G:\humanas 30 1 2008\dossiê\2 - Filosofia como

Propaganda
10
Filosofia como fundamento
e fronteira
psicologia.
Dossiê Diálogos
comda
a Psicologia
FILOSOFIA COMO FUNDAMENTO E FRONTEIRA DA PSICOLOGIA
GUSTAVO ARJA CASTAÑON1
1- Graduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – e em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Psicologia Social pela UERJ e doutor em Psicologia pela UFRJ.
Atualmente ministra cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e Católica de Petrópolis,
e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da UFRJ, tendo se dedicado nos últimos dez anos a investigações de
Epistemologia da Psicologia. Endereço para contato: [email protected].
RESUMO: CASTAÑON, G. A. Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia. Revista Universidade
Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30, n 1, p. 10-18, jan.-jun., 2008. Nas três últimas
décadas temos assistido a uma retomada das discussões filosóficas sobre os fundamentos da psicologia e o significado
de seus resultados empíricos. Ao mesmo tempo, a Filosofia da Mente emergiu como a principal área de interesse
filosófico contemporâneo. Existem três grandes áreas de intersecção entre a Psicologia e a Filosofia. Na primeira,
reconhecida plenamente por todos os psicólogos, temos a investigação filosófica sobre os fundamentos ontológicos e
epistemológicos da psicologia, assim como sobre seus limites de investigação. Ordinariamente chamamos esta disciplina
de Filosofia da Psicologia. Na segunda, temos a investigação filosófica do significado dos resultados empíricos da
Psicologia e da Neurociência, que é boa parte do que se produz em Filosofia da Mente. Na terceira, acusada de
ilegítima por behavioristas e neurocientistas materialistas, temos a investigação filosófica de aspectos psicológicos
que não se consideram passíveis de investigação experimental, a Psicologia Filosófica. Defende-se aqui que esta
terceira área não só é legítima como fundamental para a sobrevivência da Psicologia como ciência relevante.
Palavras-chave: Filosofia da Psicologia; Filosofia da Mente; Psicologia Filosófica.
ABASTRACT: CASTAÑON, G. A. Philosophy as foundation and boundary of Psychology. . Revista Universidade
Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30, n 1, p. 10-18, jan.-jun., 2008. In the last three
decades we have seen a revival of the philosophical discussions about the foundations of psychology and the meaning
of their empiric results. At the same time, the Philosophy of Mind has emerged as the main area of contemporary
philosophical interest. Three great intersection areas exist between Psychology and Philosophy. First, completely
recognized by all of the psychologists, there is the philosophical investigation of the ontological and epistemological
foundations of psychology, as well the investigation of their limits. Ordinarily we called this discipline ‘Philosophy of
Psychology’. Second, there is the philosophical investigation of the meaning of the empiric results of Psychology and
Neurosciences, and that is a significant part of what is produced in Philosophy of Mind. Third, considered illegitimate
by behaviorists psychologists and materialistic neuroscientists, we have the philosophical investigation of psychological
aspects that are not susceptible of experimental investigation, the Philosophical Psychology. This article defends that
this third area is not only is legitimate but also fundamental to the survival of Psychology as relevant science.
Keywords: Philosophy of Psychology; Philosophy of Mind; Philosophical Psychology.
As últimas três décadas assistiram um
renascimento do intercâmbio e integração
entre a Filosofia e a Psicologia. Com o fim da
utopia fisicalista do Positivismo Lógico e a
derrocada do Operacionalismo como filosofia
da ciência, ficou cada vez mais evidente para
todos os psicólogos que suas pesquisas
estavam mergulhadas em pressupostos
ontológicos e epistemológicos. Foi a filosofia
de Popper (1975) que tornou isto muito
evidente, muito embora psicólogos ingleses e
americanos tenham entrado em contato muito
tardiamente com sua obra, e costumem a
atribuir a Kuhn (1990) e a Quine (1975) muitas
das idéias de Popper, que haviam influenciado
estes dois últimos. O maior exemplo é a idéia
de que toda observação se faz à luz (no
arcabouço) de uma teoria, contra ou à favor
dela (Comte, Darwin e Pierre Duhem já tinham
inclusive manifestado esta posição antes de
Popper).
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
11
CASTAÑON, G. A.
Mas o fato é que, de uma forma ou
de outra, hoje a Psicologia parece ter
restabelecido as relações com seus pais. Temos
na fronteira de baixo da Psicologia a disciplina
da Fisiologia (com o campo interdisciplinar
da Neuropsicologia), e na fronteira de cima, a
Filosofia (com a disciplina da Filosofia da
Mente). Sustentando todas, temos a
Epistemologia e a Ontologia. Ainda não é uma
família completamente feliz e integrada. Mas
todos já se comunicam melhor do que antes
dos anos cinqüenta. Baars (1986) oferece uma
interessante metáfora sobre as relações da
Psicologia com a Filosofia, indicando que elas
se assemelham a uma crise de adolescência.
Poderíamos reconstruir esta metáfora da
seguinte maneira. Na sua infância, a Psicologia
procurava se moldar à imagem de seus pais,
seguindo os métodos herdados da Fisiologia
e os objetos herdados da Filosofia. Com o
Behaviorismo, como todo adolescente, a
Psicologia, insegura de si mesmo, de seu lugar
no mundo, procurava enfatizar suas diferenças
com a Fisiologia e a Filosofia e buscar novos
modelos, como a Física. Começando a sair de
sua adolescência com a Revolução Cognitiva,
um pouco mais confiante de seu lugar no
mundo, de sua identidade, a Psicologia começa
a reatar suas relações com os pais, e voltar a
ser influenciada por eles (assim como passa a
influenciá-los).
Não há mais espaço hoje para a
estranha utopia positivista tradicional de
rejeição da reflexão filosófica em Psicologia.
Recentemente, o behaviorista O’Dohonue
(1996), em colaboração com Richard
Kitchener, lançou uma coletânea de trabalhos
em Filosofia da Psicologia em que lista os
pontos hoje generalizadamente aceitos na
Psicologia como atribuições de uma Filosofia
da disciplina. Primeiro, cabe à Filosofia a
análise dos méritos das metodologias de
pesquisa usadas pelos psicólogos. Segundo,
cabe a Filosofia explicar e compreender as
interconexões entre os vários campos do
conhecimento científico. Terceiro, identificar
movimentos ilegítimos nos programas de
pesquisa (LAKATOS, 1984), como hipóteses
ad hoc, para salvar teorias favoritas. Quarto,
identificar e resolver problemas conceituais
nos programas de pesquisa. Quinto, identificar
ou estabelecer a ontologia pressuposta em
afirmações e objetos de pesquisa selecionados
por psicólogos. Sexto, identificar ou formular
as influências filosóficas que determinam a
escolha do objeto de estudo por parte do
Psicólogo.
Todos estes aspectos levantados
acima, valem não somente para a Psicologia,
mas para todas as ciências. Mas uma vez que
a Psicologia é a mais fragmentada e multifronteiriça destas, é na Psicologia que a
Filosofia tem o mais importante papel a
cumprir. Staats (2004) pontuou que um dos
aspectos centrais de uma possível unificação
futura da Psicologia é o trabalho de
clarificação conceitual e uniformização
terminológica, e esta também é uma tarefa
mais urgente para a Psicologia do que para as
outras ciências.
O Cognitivismo e a Psicologia
Cognitiva não só tem trabalhado em conjunto
com a Filosofia, como também reconheceram
plenamente esta interdependência. Na
verdade, muitos pontos chaves do
Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva não
são mais do que antigas questões filosóficas:
construtivismo, racionalismo, intencionalidade, consciência, representação mental,
inatismo, significado. Não é surpresa que a
Filosofia da Psicologia tenha conhecido uma
expansão sem paralelo nos últimos anos,
enquanto a Filosofia da Mente cada vez mais
é reconhecida como a filosofia primeira.
O’Dohonue & Kitchener (1996) citam que nos
últimos anos surgiram nada menos que sete
periódicos dedicados à Filosofia da Psicologia.
Além do tradicional Journal of Theoretical
and Philosophical Psychology, da APA, hoje
temos o Behaviorism, Journal of Mind and
Behavior, Journal for the Theory of Social
Behavior, New Ideas in Psychology,
Philosophical Psychology, Psychological
Inquiry e Theory and Psychology.
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
12
Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia.
A PSICOLOGIA COMO PSICOLOGIA
FILOSÓFICA
Estas duas áreas tradicionais da
Filosofia da Psicologia, qual sejam, a análise
dos
fundamentos
ontológicos
e
epistemológicos da psicologia, e a
investigação filosófica do significado dos
resultados empíricos da Psicologia e da
Neurociência, são hoje tranqüilamente aceitas
pelo conjunto dos psicólogos, como pudemos
ver, até pelos remanescentes do Behaviorismo.
À primeira área damos o nome de
Epistemologia da Psicologia ou mais
precisamente de Filosofia da Psicologia. À
segunda, podemos tanto classificar de
Filosofia da Psicologia – quando se trata da
investigação sobre os limites e adequações
metodológicas das pesquisas concretas em
Psicologia – como de Filosofia da Mente –
quando se trata da investigação do significado
e conseqüências filosóficas dos resultados
destas pesquisas.
Porém este trabalho quer defender um
aspecto ainda mais profundo da
interdependência entre Psicologia e Filosofia.
Defendo que a Psicologia seja uma disciplina
constitutivamente dividida entre problemas
científicos (e filosóficos) e problemas
exclusivamente filosóficos. Pretendo
argumentar no sentido de que a Psicologia é
uma disciplina dividida pois seu objeto de
estudo apresenta aspectos abordáveis, aspectos
inabordáveis, e aspectos somente parcialmente
abordáveis pelo método científico.
O primeiro destes aspectos
inabordáveis é a pura atividade da consciência.
Tal coisa, como tem como característica
central a intencionalidade, sendo sempre a
relação com algo diferente dela própria, não
pode ser objeto de investigação empírica ou
objetiva (como fenômeno de terceira pessoa),
uma vez que é a própria condição de
possibilidade da experiência (um fenômeno de
primeira-pessoa). A investigação das
propriedades da consciência é uma tarefa
filosófica, e tem hoje no filósofo Searle (1992)
sua maior expressão. Quando investigada
como fenômeno de terceira-pessoa, só
podemos inferir da atividade da consciência
seus aspetos funcionais e estruturais, mas
nunca sua dimensão qualitativa e subjetiva.
Em segundo lugar temos a
criatividade. Não podemos pensar em nada
como uma lei explicativa do ato criativo, nem
em uma predição de um ato de criação. Tão
pouco a criatividade está circunscrita a atos
de grandes descobertas. De fato a criação é
uma condição permanente da vida psicológica:
desde elaborar a estratégia que seguiremos
para realizar uma meta a decidir como
interpretar um estímulo ambíguo. Talvez
pudéssemos pensar em algo como a descoberta
de condições necessárias para a emergência
de atos criativos, mas até o momento não
existem razões para acreditarmos que tal coisa
seria possível.
O terceiro domínio é o domínio da
qualia. Esta palavra significa algo como
qualidade singular. Refere-se às qualidades
fenomenológicas da consciência, mas não à
essência destes fenômenos: se refere a sua
experiência singular, não aos aspectos
universais (essências) através dos quais você
os reconhece como pertencentes a uma
determinada categoria de fenômenos. Não
estamos falando portanto do sentir dor, mas
da experiência única de sentir uma
determinada, singular e irrepetível dor.
Ninguém jamais saberá como é realmente
experimentar, um determinado fenômeno
como uma outra pessoa. Não podemos
descrever sequer aspectos efetivamente
singulares da experiência ou do mundo através
de palavras, porque estas sempre se referem a
universais, como bem demonstrou Hegel
(2003) em sua Fenomenologia do Espírito.
Portanto, o estudo da qualia em si mesma é
impossível cientificamente, mas também
impossível filosoficamente. Esta confusão
podemos
assistir
na
Psicologia
contemporânea, particularmente latinoamericana, com uma abordagem política da
Psicologia denominada psicologia sóciohistórica, ou crítica, ou pós-moderna, ou
construcionista social (GERGEN, 1973).
Nesta, ouvimos continuamente se afirmar que
o objeto de estudo da Psicologia seria algo que
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
13
CASTAÑON, G. A.
denominam ‘subjetividade’, e que em outras
palavras seria a forma única, irrepetível e
subjetiva de cada um experimentar o mundo.
Definida a subjetividade desta forma, como
qualia, temos aqui uma contradição. Tal
escolha de objeto é um erro filosófico, pois
este é impossível não só para uma ciência
como a Psicologia (pois não existem padrões
ou leis regulares a descobrir), mas mesmo para
a Filosofia, que por usar a linguagem – que só
expressa universais – só pode teorizar sobre
aspectos universais de seus objetos. Sobre
qualidades subjetivas, a Filosofia não pode
afirmar nada mais do que sua existência, pois
não tem como expressar aspectos únicos de
vivências subjetivas, através de universais
lingüísticos.
O quarto é a questão do significado.
O significado que as pessoas dão aos
fenômenos e às informações só é abordável
pela Psicologia indiretamente, por inferências
a partir de reações comportamentais que as
pessoas apresentam a determinadas
informações. O domínio semântico da
experiência, o significado vivido, no entanto,
é absolutamente impenetrável à ciência. Fodor
(1991) ilustrou este limite com seu princípio
do ‘solipsismo metodológico’, afirmando que
só o aspecto sintático da mente é abordável
cientificamente. Podemos estudar regras e
representações, não o significado delas. Como
abordei em trabalhos anteriores (CASTAÑON
2006, 2006b), temos muito a dizer sobre como
se dá o processamento de informação pelo ser
humano, mas a informação é cega para
questões semânticas: é naquele que codifica a
informação e naquele que a decodifica que se
encontra seu significado, não no meio que a
transmite nem em seu padrão específico. Não
temos muito a dizer sobre como representações
podem significar algo distinto delas próprias,
e pelo menos até o momento, esta é uma
questão
diretamente
inabordável
cientificamente. Assim, o significado das ações
e experiências só é investigado por derivação
de terceira ordem: um comportamento, que
indica uma representação, que se refere a um
significado. Em virtude disso, defendo que a
Fenomenologia, conforme estabelecida por
Husserl (1976), é o método adequado para a
investigação do significado, e portanto, este
é um domínio filosófico da Psicologia.
Podemos ainda distinguir questões de
significado de questões de sentido, que se
revelariam um quinto domínio somente
marginalmente abordável pelo método
científico. A palavra significado geralmente é
utilizada em dois sentidos diferentes. O
primeiro é o que significa a informação, ou
seja, o que significa aquele objeto que tem
uma coluna de madeira que se abre em vários
ramos, os quais possuem folhas verdes. Você
pode atribuir àqueles estímulos o significado:
árvore. O segundo é qual o sentido da
informação, ou seja, como ela se relaciona
com o conjunto de sua vida: o lugar onde você
caindo quebrou um braço, o fruto da muda
plantada por seu avô, a futura coluna de seu
novo chalé, etc. De fato, aqui também, só
podemos ter acesso ao sentido atribuído por
uma pessoa a uma informação de maneira
indireta: ou pelo comportamento verbal da
pessoa ou pela reação comportamental em
face de determinado estímulo. Mas o processo
de atribuição de sentido é um ato criativo
impenetrável ao conhecimento científico.
Novamente aqui, temos um domínio da
Psicologia que já foi abordado com maestria
por psicólogos fenomenólogos como Frankl
(1973), no que também constitui um domínio
exclusivo da Psicologia Filosófica.
O sexto domínio psicológico
inacessível à investigação científica é o valor,
intimamente ligado à questão do sentido. Os
valores são fins em si mesmos, inúteis para
provocar ou conseguir qualquer coisa
necessária biologicamente, mas ainda assim
perseguidos por nós. A verdade, a beleza, o
sagrado, o amor, a justiça, o prazer são todos
exemplos deste tipo de motivação que difere
profundamente daquelas que podem ser
provocadas ou manipuladas (e portanto
estudáveis de modo indireto em laboratório),
como dor, fome, sede, sono, frio e calor. A
Fenomenologia, particularmente com a obra
de Max Scheler (2001), e mais uma vez com
a de Frankl, parece o método filosófico mais
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
14
Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia.
adequado para a abordagem deste tipo de
aspecto da vida psicológica.
Por fim, temos um sétimo domínio
apenas parcialmente acessível à investigação
científica, que é o da causação final, ou
vontade, ou agency. Só podemos investigar
motivos e razões do comportamento
indiretamente, depois que estes se
transformaram em metas, que podem ser
inferidas do padrão geral do comportamento.
Mas não podemos sequer estabelecer
cientificamente o que seriam motivos e razões:
se ações diretas livres da consciência ou se as
razões são causadas eficientemente, como
alegou o filósofo da Psicologia Davidson
(1963). De toda maneira, pensar em causas
finais como causas últimas do comportamento
tem o inconveniente de sempre resultar em
teorias infalsificáveis. O caso da teoria do
raciocínio dialético conforme definida por
Rychlak (1994) (como o processo de decisão
entre duas ou mais interpretações possíveis das
informações do ambiente ou duas alternativas
igualmente plausíveis de curso de ação), é
exemplo da natureza irrefutável destas
alegações. Uma vez alegada que a causa de
um comportamento foi a vontade, ou a decisão
entre duas alternativas igualmente plausíveis
de interpretação da informação, ou ainda a
criação de uma nova estratégia de ação como
resultado de um processo dialético de
raciocínio, a investigação finda e a alegação é
infalsificável. A afirmação de que um ser
humano possui determinada meta em
determinada situação é indiretamente
falsificável por seu curso de ação, mas a de
que ele “mudou” sua meta como resultado de
um ato de criatividade e vontade é
absolutamente infalsificável. Isto não significa
que esta afirmação é falsa, somente significa
que tal afirmação pertence ao campo da
especulação filosófica, não ao campo do
conhecimento de base empírica.
A COMPLEMENTARIDADE DA
FILOSOFIA EM RELAÇÃO À
PSICOLOGIA
Por tudo o quanto ficou evidente por
toda esta argumentação, defendo aqui que mais
do que as relações com a Filosofia comuns a
todas as ciências, a Psicologia é ela própria
uma disciplina que para oferecer uma
abordagem completa a seu objeto de estudo
precisa se dividir entre uma abordagem
científica e uma abordagem filosófica. Não
podemos nos submeter à falsa opção oferecida
pelo Positivismo nos últimos cento e vinte
anos, entre destruir a imagem de ser humano
para adaptá-la a ciência ou destruir a imagem
da ciência para adaptá-la ao ser humano. No
primeiro caso ficamos com uma imagem
degradada da condição humana, e um objeto
que não se assemelha em nada ao ser humano.
No segundo caso, como afirma o humanista
Rychlak (2004), temos outra catástrofe: a
Psicologia rejeita o método científico e assim
rejeita seu status científico, como também tudo
o que o método científico tem a oferecer para
legislar sobre teorias rivais.
Não se trata aqui também da outra
falsa opção oferecida por alguns psicólogos
humanistas, em dividir a Psicologia em uma
ciência nomotética e uma ciência idiográfica.
Como afirma o filósofo da psicologia
Robinson (1985) a própria idéia de uma
ciência do singular é um contra-senso. Toda
ciência só se realiza com o estabelecimento
de leis universais. Toda ciência é nomotética.
A investigação do individual pode se valer de
técnicas surgidas das ciências nomotéticas,
mas ainda assim é sempre interpretativa e
filosófica. Mais do que isso, esta investigação
é sempre baseada em conceitos universais,
razão pela qual a psicologia pós-moderna se
coloca tanto fora da ciência quanto da filosofia
(CASTAÑON, 2007). Diz Robinson sobre
como a Psicologia deve lidar com seus
aspectos idiográficos:
“O que é proposto aqui não são os
significados pelos quais alguma nova
‘ciência’ pode ser criada para suportar
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
15
CASTAÑON, G. A.
tópicos idiográficos, mas a aplicação
de verdadeiros e testados métodos nãocientíficos de análise para estes
problemas psicológicos que são
nomoteticamente inexplicáveis.”
(1985b, p.73) 1
Muitos
outros
psicólogos
contemporâneos compartilham desta posição,
no Brasil e no exterior. Entre nós recentemente
Ued Maluf apresentou sua Teoria das
Estranhezas (2002), a partir da qual interpreta
a Psicologia como um mosaico de teorias
fragmentadas e ontologicamente irredutíveis.
Penna (1997) expressou também recentemente
sua convicção de que a dispersão do
pensamento psicológico é um fenômeno
irremediável,
assim
como
sua
interdependência visceral e inextrincável do
pensamento filosófico, tema, aliás, várias
vezes defendido ao longo de sua obra.
Koch (1985, 1993), importante
filósofo da psicologia, defendeu famosa tese
de que a Psicologia não era um campo passível
de unificação nem teórica nem metodológica,
em virtude do que ele acreditava que se deveria
mudar sua denominação de Psicologia para
Psychological Studies, dos quais eram alguns
científicos, outros não. O cognitivista Gardner
(1992) adere à tese de Koch e defende que
grande parte dos tópicos de investigação
psicológica não é passível de adequada
abordagem científica, sendo de natureza
filosófica. Ele acredita que psicólogos não só
devem investigar em colaboração com
filósofos, como também com lingüistas,
neurocientistas, engenheiros de computação e
outros profissionais, como por exemplo,
romancistas. Ainda Gardner (1996) acredita
em alguma forma dialética de investigação
científico-filosófica na Ciência Cognitiva.
Rychlak (1993) é outro expressivo
psicólogo contemporâneo que não vê mais
como se pensar uma disciplina psicológica
científica isolada da Filosofia. Ele propõe para
o campo a importação do princípio da
complementaridade, de Niels Bohr. Para ele,
uma vez que o fenômeno psicológico é
multicausado, não existe possibilidade de
reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a
um único nível de explicação (físico,
biológico, lógico ou social):
“’Explicar’ deriva do latim planare, que
significa aplainar ou nivelar. Um
princípio
psicológico
de
complementari-dade tornará evidente
que uma explicação teórica deve ser
reduzida (nivelada) para qualquer um
dos quatro níveis evidentes [Physikos,
Bios, Socius, and Logos], cada um dos
quais com status igual. Nós não estamos
falando de quatro níveis de explicação
aqui. Os níveis não são ordenados em
hierarquia
de
dependência.
Complementar não é reduzir um nível
a outro. Zukav observou que o impacto
da complementaridade na física era,
com efeito, ‘que não interessa sobre o
que trata a mecânica quântica! A coisa
importante é que ela funciona em todas
as situações experimentais possíveis’.
Eu gostaria de parafrasear esta
declaração dizendo que se nós
aceitamos os quatro níveis que eu
recomendei, não importará quais destas
bases nós selecionamos para construir
nossa teoria. Enquanto o que nós
dissermos for instrutivo e consistente
com os achados empíricos relevantes
para a abordagem teórica em si,
estaremos praticando Psicologia”.
(1993, p.939)2
UMA NOVA PROPOSTA: A
EXPLICAÇÃO CONDICIONAL EM
PSICOLOGIA COMO FRONTEIRA DA
CIÊNCIA
Atualmente tenho trabalhado no
desenvolvimento teórico de uma nova
proposta de natureza da explicação
psicológica. Minha tese é que, para tornarmos
a explicação científica uma empresa precisa e
respeitável, ou ainda para incorporarmos ao
empreendimento científico as teorias que
assumam o pressuposto da liberdade relativa
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
16
Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia.
do ser humano em relação aos condicionantes
biológicos, psicológicos, físicos e sociais, é
preciso promover uma mudança na natureza
da explicação em Psicologia. Em virtude da
extrema complexidade que uma suposta
explicação dedutivo-nomológica em
Psicologia teria, e da evidência da existência
da capacidade humana de raciocínio dialético
(conforme definido por RYCHLAK, 1994) e
construção de hipóteses originais, advogo a
tese da impossibilidade de explicação
dedutivo-nomológica ou probabilística do
fenômeno psicológico, e a necessidade de
adotar uma forma de explicação condicional
para a Psicologia. Em outras palavras, julgo
que a exigência de explicação de um evento
psicológico ocorrido está suficientemente
satisfeita se demonstrarmos que o ocorrido foi
possível, não havendo possibilidade de
demonstrar, além disso, que era necessário.
As explicações condicionais se limitam
a indicar uma série de leis e condições particulares (explanans) que tornaram possível a
ocorrência do explanandum. É uma explicação
das condições necessárias, porém, não
suficientes. Elas têm a forma geral de “dadas
as leis gerais X, Y e Z, e as condições
particulares x, y e z, então o comportamento
C foi possível”. Ou seja, certas condições
tornam possíveis certos comportamentos,
porém, não os determinam. Uma lei de forma
somente necessária mantém a mesma condição
falsificável da lei necessária e suficiente,
embora perca conteúdo falsificável.
Isto implica no fato de que todas as
leis psicológicas deveriam apresentar uma
estrutura condicional, trocando a forma
necessária e suficiente “se x estiver presente
então o comportamento y acontecerá” pela
forma somente necessária “se x não estiver
presente então o comportamento y não pode
acontecer”. Esta segunda forma de lei equivale
a “se e somente se x estiver presente então o
comportamento y pode acontecer”. Em outras
palavras, um evento x, em Psicologia, não é
nunca suficiente para causar y, mas pode ser
necessário para que o comportamento y possa
acontecer.
Tendo em vista a proposta de
importação do conceito de
complementaridade feita por Rychlak e desta
proposta de que a verdadeira explicação
científica psicológica é condicional, quero
propor um novo critério de demarcação entre
Psicologia Científica e Filosófica. É cientifica
na Psicologia, toda assertiva universal
condicional falsificável e empiricamente
corroborada. É filosófica na Psicologia, toda
assertiva universal ou idiográfica, não
falsificável, que atribua causalidade
determinante de um determinado
comportamento a algum dos níveis
irredutíveis da explicação psicológica. Assim,
toda assertiva que aspirar a uma condição de
determinação causal última em Psicologia será
considerada metafísica, porque é infalsificável.
Creio realmente que se há alguma
esperança de unidade futura para a Psicologia,
ela não está em explicações causais necessárias
e suficientes, mas somente em explicações
necessárias, ou seja, condicionais. Em um
fenômeno multicausado como o psicológico,
sempre haverá disputas de interpretações
quanto ao nível determinante. Deixemos que
continue a haver: estas disputas são
metafísicas. A unidade da Psicologia nunca
poderá acontecer nas interpretações
metafísicas de seus resultados empíricos. A
Psicologia pode um dia ser uma disciplina
unificada, não em teoria, mas em método. Esta
é uma utopia distante. Mas estas sempre valem
a pena, pois sem utopias, não há estradas a
seguir.
Não conseguiremos a unidade da
Psicologia como ciência querendo afirmar
determinadas posições metafísicas (portanto
filosóficas, infalsificáveis e não-científicas)
como sérias e outras como ingênuas. Creio que
a conseguiremos reconhecendo uma fronteira
intransponível entre a Psicologia científica e
a Psicologia filosófica. Poderemos alcançar
consenso em relação a regularidades
empíricas, mas não em relação à interpretação
destas. O reconhecimento não só desta
interdependência, mas também desta fronteira
intransponível entre Psicologia e Filosofia, é
fundamental para a sobrevivência da
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
17
CASTAÑON, G. A.
Psicologia como ciência, inclusive para sua
diferenciação em relação à nova velha ameaça
cientificista vinda das assim chamadas
‘neurociências’, ou mais especificamente, da
velha Fisiologia.
GARDNER, H. (1996). A Nova Ciência da
Mente. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo.
GERGEN, K. (1973). Social Psychology as
History. In: Journal of Personality and
Social Psychology. v.26. n.2. p.309-320.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAARS, B. J. (1986). The Cognitive
Revolution in Psychology. New York:
Guilford.
HEGEL, G. W. F. (2003). Fenomenologia do
Espírito. Petrópolis: Editora Vozes.
HEMPEL, C. (1970). Filosofia da Ciência
Natural. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
CASTAÑON, G. (2006). O Cognitivismo e o
Desafio da Psicologia Científica. Tese de
Doutorado, Pós-graduação do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.
HUSSERL, E. (1976). Investi gações
Lógicas. Madrid: Biblioteca de la Revista de
Occidente.
CASTAÑON, G. (2006b). A Crise do
Computacionalismo: por uma nova metáfora
computacional. Revista Ciências e Cognição,
Vol. 09: 27-41.
KOCH, S. (1985). The Nature and Limits of
Psychological Knowledge: Lessons of a
Century qua “Science”. In: Koch, S. & Leary,
D. (orgs), A Century of Psychology as
Science. New York: McGraw-Hill Book
Company. p. 75-97.
CASTAÑON, G. (2007). Psicologia Pós
moderna? Rio de Janeiro: Booklink
DAVIDSON, D. (1963). Actions, Reasons and
Causes. Journal of Philosophy, vol. 60,
p.685-700.
DILTHEY, W. (1945). Psicologia y Teoria
Del Conocimiento. México: Fondo de
Cultura Econômica. (Original publicado em
1924).
FODOR, J. A. (1991). Methodological
solipsism considered as a research strategy in
Cognitive Psychology. In: Boyd, R. & Gasper,
P. (Orgs.). The Philosophy of Science. p. 651669. Cambridge, Massachusetts: MIT Press.
FRANKL, V. (1973). Psicoterapia e Sentido
da Vida. São Paulo, Editora Quadrante.
GARDNER, H. (1992).
Scientific
Psychology: Should We Bury it or Praise it?.
In: Sternberg, R. (org) New Ideas in
Psychology, v.10 (2): pp.179-190.
KOCH, S. (1993). “Psychology” or “The
Psychological Studies”?
American
Psychologist. 48 (8), pp.902-904.
KUHN, T. (1991). A Estrutura das
Revoluções Científicas. São Paulo: Ed.
Perspectiva.
LAKATOS, I. (1974). Falsification and the
Methodology of Scientific Research
Programmes. In: Lakatos & Musgrave (ed.).
Criticism and the Growth of Knowledge.
Cambridge: Cambridge University Press. p.
91-196.
MALUF, U. (2002). Cultura e Mosaico:
Uma Introdução à Teoria das Estranhezas. Rio
de Janeiro: Ed. Booklink.
O’DOHONUE, W. & KITCHENER, R.
(1996). The Philosophy of Psychology.
London, Sage Publications.
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
18
Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia.
PENNA, A. G. (1997) Repensando a
Psicologia. Rio de Janeiro: Imago.
POPPER, K. (1975). A Lógica da
Investigação Científica. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo.
QUINE, W. (1975). De um Ponto de Vista
Lógico. São Paulo: Abril Cultural.
ROBINSON, D. (1985). Philosophy of
Psychology. New York: Columbia University
Press.
ROBINSON, D. (1985b).
Science,
Psychology and Explanation: Synonyms or
Antonyms? In: Koch, S. & Leary, D. (orgs), A
Century of Psychology as Science. New
York: McGraw-Hill Book Company. p. 60-74.
RYCHLAK, J. (1993). A Suggested Principle
of Complementarity for Psychology: In
Theory, Not Method. In: American
Psychologist, Vol. 48(9): p.933-942.
RYCHLAK, J. (1994). Logical Learning
Theory: A Human Teleology and its
Empirical Support. Nebraska: University of
Nebraska Press.
methods of analysis to those psychological
problems that are nomothetically inexplicable.
“ (tradução do autor)
2
“Explain also devolves from the Latin word
planare, which means to flatten or make things
level. A psychological principle of
complementarity will therefore make it clear
that a theoretical explanation must be brought
down (leveled) to any one of four clear (flat)
grounds, each of which has equal status. We
are not speaking of four levels of explanation
here. The groundings are not to be rank
ordered. To complement is not to subsume one
ground by another. Zukav observed that the
impact of complementarity on physics was, in
effect, “that it does not matter what quantum
mechanics is about! The important thing is that
it works in all possible experimental
situations”. I would like to paraphrase this
statement by saying that if we accept the four
grounds that I have recommended, it will not
matter which of these bases we select to build
our theory on. So long as what we say is
instructive and consistent with the empirical
findings relevant to the theoretical grounding
per se, we will be practicing psychology.”
(tradução do autor)
Submissão: 04/2008.
Aprovação: 08/2008.
RYCHLAK, J. (2004). Unification in Theory
and Method: Possibilities and Impossibilities.
In: Sternberg, R. (org) Unity in Psychology:
c Washington, American Psychological
Association. pp. 145-177.
SCHELER, M. (2001). Ética. Madrid:
Caparrós Editores.
STAATS, A. (2004). A Road to, and
Philosophy of, Unification. In: Sternberg, R.
(org) Unity in Psychology: Possibility or
Pipedream?
Washington, American
Psychological Association. pp. 145-177.
(Footnotes)
1
“What is proposed here is not the means by
which some new ‘science’ can be brought to
bear upon ideographic topics, but the
application of tried and true nonscientific
Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.
Download