10 Filosofia como fundamento e fronteira psicologia. Dossiê Diálogos comda a Psicologia FILOSOFIA COMO FUNDAMENTO E FRONTEIRA DA PSICOLOGIA GUSTAVO ARJA CASTAÑON1 1- Graduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ – e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Psicologia Social pela UERJ e doutor em Psicologia pela UFRJ. Atualmente ministra cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e Católica de Petrópolis, e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da UFRJ, tendo se dedicado nos últimos dez anos a investigações de Epistemologia da Psicologia. Endereço para contato: [email protected]. RESUMO: CASTAÑON, G. A. Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30, n 1, p. 10-18, jan.-jun., 2008. Nas três últimas décadas temos assistido a uma retomada das discussões filosóficas sobre os fundamentos da psicologia e o significado de seus resultados empíricos. Ao mesmo tempo, a Filosofia da Mente emergiu como a principal área de interesse filosófico contemporâneo. Existem três grandes áreas de intersecção entre a Psicologia e a Filosofia. Na primeira, reconhecida plenamente por todos os psicólogos, temos a investigação filosófica sobre os fundamentos ontológicos e epistemológicos da psicologia, assim como sobre seus limites de investigação. Ordinariamente chamamos esta disciplina de Filosofia da Psicologia. Na segunda, temos a investigação filosófica do significado dos resultados empíricos da Psicologia e da Neurociência, que é boa parte do que se produz em Filosofia da Mente. Na terceira, acusada de ilegítima por behavioristas e neurocientistas materialistas, temos a investigação filosófica de aspectos psicológicos que não se consideram passíveis de investigação experimental, a Psicologia Filosófica. Defende-se aqui que esta terceira área não só é legítima como fundamental para a sobrevivência da Psicologia como ciência relevante. Palavras-chave: Filosofia da Psicologia; Filosofia da Mente; Psicologia Filosófica. ABASTRACT: CASTAÑON, G. A. Philosophy as foundation and boundary of Psychology. . Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 30, n 1, p. 10-18, jan.-jun., 2008. In the last three decades we have seen a revival of the philosophical discussions about the foundations of psychology and the meaning of their empiric results. At the same time, the Philosophy of Mind has emerged as the main area of contemporary philosophical interest. Three great intersection areas exist between Psychology and Philosophy. First, completely recognized by all of the psychologists, there is the philosophical investigation of the ontological and epistemological foundations of psychology, as well the investigation of their limits. Ordinarily we called this discipline ‘Philosophy of Psychology’. Second, there is the philosophical investigation of the meaning of the empiric results of Psychology and Neurosciences, and that is a significant part of what is produced in Philosophy of Mind. Third, considered illegitimate by behaviorists psychologists and materialistic neuroscientists, we have the philosophical investigation of psychological aspects that are not susceptible of experimental investigation, the Philosophical Psychology. This article defends that this third area is not only is legitimate but also fundamental to the survival of Psychology as relevant science. Keywords: Philosophy of Psychology; Philosophy of Mind; Philosophical Psychology. As últimas três décadas assistiram um renascimento do intercâmbio e integração entre a Filosofia e a Psicologia. Com o fim da utopia fisicalista do Positivismo Lógico e a derrocada do Operacionalismo como filosofia da ciência, ficou cada vez mais evidente para todos os psicólogos que suas pesquisas estavam mergulhadas em pressupostos ontológicos e epistemológicos. Foi a filosofia de Popper (1975) que tornou isto muito evidente, muito embora psicólogos ingleses e americanos tenham entrado em contato muito tardiamente com sua obra, e costumem a atribuir a Kuhn (1990) e a Quine (1975) muitas das idéias de Popper, que haviam influenciado estes dois últimos. O maior exemplo é a idéia de que toda observação se faz à luz (no arcabouço) de uma teoria, contra ou à favor dela (Comte, Darwin e Pierre Duhem já tinham inclusive manifestado esta posição antes de Popper). Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 11 CASTAÑON, G. A. Mas o fato é que, de uma forma ou de outra, hoje a Psicologia parece ter restabelecido as relações com seus pais. Temos na fronteira de baixo da Psicologia a disciplina da Fisiologia (com o campo interdisciplinar da Neuropsicologia), e na fronteira de cima, a Filosofia (com a disciplina da Filosofia da Mente). Sustentando todas, temos a Epistemologia e a Ontologia. Ainda não é uma família completamente feliz e integrada. Mas todos já se comunicam melhor do que antes dos anos cinqüenta. Baars (1986) oferece uma interessante metáfora sobre as relações da Psicologia com a Filosofia, indicando que elas se assemelham a uma crise de adolescência. Poderíamos reconstruir esta metáfora da seguinte maneira. Na sua infância, a Psicologia procurava se moldar à imagem de seus pais, seguindo os métodos herdados da Fisiologia e os objetos herdados da Filosofia. Com o Behaviorismo, como todo adolescente, a Psicologia, insegura de si mesmo, de seu lugar no mundo, procurava enfatizar suas diferenças com a Fisiologia e a Filosofia e buscar novos modelos, como a Física. Começando a sair de sua adolescência com a Revolução Cognitiva, um pouco mais confiante de seu lugar no mundo, de sua identidade, a Psicologia começa a reatar suas relações com os pais, e voltar a ser influenciada por eles (assim como passa a influenciá-los). Não há mais espaço hoje para a estranha utopia positivista tradicional de rejeição da reflexão filosófica em Psicologia. Recentemente, o behaviorista O’Dohonue (1996), em colaboração com Richard Kitchener, lançou uma coletânea de trabalhos em Filosofia da Psicologia em que lista os pontos hoje generalizadamente aceitos na Psicologia como atribuições de uma Filosofia da disciplina. Primeiro, cabe à Filosofia a análise dos méritos das metodologias de pesquisa usadas pelos psicólogos. Segundo, cabe a Filosofia explicar e compreender as interconexões entre os vários campos do conhecimento científico. Terceiro, identificar movimentos ilegítimos nos programas de pesquisa (LAKATOS, 1984), como hipóteses ad hoc, para salvar teorias favoritas. Quarto, identificar e resolver problemas conceituais nos programas de pesquisa. Quinto, identificar ou estabelecer a ontologia pressuposta em afirmações e objetos de pesquisa selecionados por psicólogos. Sexto, identificar ou formular as influências filosóficas que determinam a escolha do objeto de estudo por parte do Psicólogo. Todos estes aspectos levantados acima, valem não somente para a Psicologia, mas para todas as ciências. Mas uma vez que a Psicologia é a mais fragmentada e multifronteiriça destas, é na Psicologia que a Filosofia tem o mais importante papel a cumprir. Staats (2004) pontuou que um dos aspectos centrais de uma possível unificação futura da Psicologia é o trabalho de clarificação conceitual e uniformização terminológica, e esta também é uma tarefa mais urgente para a Psicologia do que para as outras ciências. O Cognitivismo e a Psicologia Cognitiva não só tem trabalhado em conjunto com a Filosofia, como também reconheceram plenamente esta interdependência. Na verdade, muitos pontos chaves do Cognitivismo e da Psicologia Cognitiva não são mais do que antigas questões filosóficas: construtivismo, racionalismo, intencionalidade, consciência, representação mental, inatismo, significado. Não é surpresa que a Filosofia da Psicologia tenha conhecido uma expansão sem paralelo nos últimos anos, enquanto a Filosofia da Mente cada vez mais é reconhecida como a filosofia primeira. O’Dohonue & Kitchener (1996) citam que nos últimos anos surgiram nada menos que sete periódicos dedicados à Filosofia da Psicologia. Além do tradicional Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, da APA, hoje temos o Behaviorism, Journal of Mind and Behavior, Journal for the Theory of Social Behavior, New Ideas in Psychology, Philosophical Psychology, Psychological Inquiry e Theory and Psychology. Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 12 Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia. A PSICOLOGIA COMO PSICOLOGIA FILOSÓFICA Estas duas áreas tradicionais da Filosofia da Psicologia, qual sejam, a análise dos fundamentos ontológicos e epistemológicos da psicologia, e a investigação filosófica do significado dos resultados empíricos da Psicologia e da Neurociência, são hoje tranqüilamente aceitas pelo conjunto dos psicólogos, como pudemos ver, até pelos remanescentes do Behaviorismo. À primeira área damos o nome de Epistemologia da Psicologia ou mais precisamente de Filosofia da Psicologia. À segunda, podemos tanto classificar de Filosofia da Psicologia – quando se trata da investigação sobre os limites e adequações metodológicas das pesquisas concretas em Psicologia – como de Filosofia da Mente – quando se trata da investigação do significado e conseqüências filosóficas dos resultados destas pesquisas. Porém este trabalho quer defender um aspecto ainda mais profundo da interdependência entre Psicologia e Filosofia. Defendo que a Psicologia seja uma disciplina constitutivamente dividida entre problemas científicos (e filosóficos) e problemas exclusivamente filosóficos. Pretendo argumentar no sentido de que a Psicologia é uma disciplina dividida pois seu objeto de estudo apresenta aspectos abordáveis, aspectos inabordáveis, e aspectos somente parcialmente abordáveis pelo método científico. O primeiro destes aspectos inabordáveis é a pura atividade da consciência. Tal coisa, como tem como característica central a intencionalidade, sendo sempre a relação com algo diferente dela própria, não pode ser objeto de investigação empírica ou objetiva (como fenômeno de terceira pessoa), uma vez que é a própria condição de possibilidade da experiência (um fenômeno de primeira-pessoa). A investigação das propriedades da consciência é uma tarefa filosófica, e tem hoje no filósofo Searle (1992) sua maior expressão. Quando investigada como fenômeno de terceira-pessoa, só podemos inferir da atividade da consciência seus aspetos funcionais e estruturais, mas nunca sua dimensão qualitativa e subjetiva. Em segundo lugar temos a criatividade. Não podemos pensar em nada como uma lei explicativa do ato criativo, nem em uma predição de um ato de criação. Tão pouco a criatividade está circunscrita a atos de grandes descobertas. De fato a criação é uma condição permanente da vida psicológica: desde elaborar a estratégia que seguiremos para realizar uma meta a decidir como interpretar um estímulo ambíguo. Talvez pudéssemos pensar em algo como a descoberta de condições necessárias para a emergência de atos criativos, mas até o momento não existem razões para acreditarmos que tal coisa seria possível. O terceiro domínio é o domínio da qualia. Esta palavra significa algo como qualidade singular. Refere-se às qualidades fenomenológicas da consciência, mas não à essência destes fenômenos: se refere a sua experiência singular, não aos aspectos universais (essências) através dos quais você os reconhece como pertencentes a uma determinada categoria de fenômenos. Não estamos falando portanto do sentir dor, mas da experiência única de sentir uma determinada, singular e irrepetível dor. Ninguém jamais saberá como é realmente experimentar, um determinado fenômeno como uma outra pessoa. Não podemos descrever sequer aspectos efetivamente singulares da experiência ou do mundo através de palavras, porque estas sempre se referem a universais, como bem demonstrou Hegel (2003) em sua Fenomenologia do Espírito. Portanto, o estudo da qualia em si mesma é impossível cientificamente, mas também impossível filosoficamente. Esta confusão podemos assistir na Psicologia contemporânea, particularmente latinoamericana, com uma abordagem política da Psicologia denominada psicologia sóciohistórica, ou crítica, ou pós-moderna, ou construcionista social (GERGEN, 1973). Nesta, ouvimos continuamente se afirmar que o objeto de estudo da Psicologia seria algo que Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 13 CASTAÑON, G. A. denominam ‘subjetividade’, e que em outras palavras seria a forma única, irrepetível e subjetiva de cada um experimentar o mundo. Definida a subjetividade desta forma, como qualia, temos aqui uma contradição. Tal escolha de objeto é um erro filosófico, pois este é impossível não só para uma ciência como a Psicologia (pois não existem padrões ou leis regulares a descobrir), mas mesmo para a Filosofia, que por usar a linguagem – que só expressa universais – só pode teorizar sobre aspectos universais de seus objetos. Sobre qualidades subjetivas, a Filosofia não pode afirmar nada mais do que sua existência, pois não tem como expressar aspectos únicos de vivências subjetivas, através de universais lingüísticos. O quarto é a questão do significado. O significado que as pessoas dão aos fenômenos e às informações só é abordável pela Psicologia indiretamente, por inferências a partir de reações comportamentais que as pessoas apresentam a determinadas informações. O domínio semântico da experiência, o significado vivido, no entanto, é absolutamente impenetrável à ciência. Fodor (1991) ilustrou este limite com seu princípio do ‘solipsismo metodológico’, afirmando que só o aspecto sintático da mente é abordável cientificamente. Podemos estudar regras e representações, não o significado delas. Como abordei em trabalhos anteriores (CASTAÑON 2006, 2006b), temos muito a dizer sobre como se dá o processamento de informação pelo ser humano, mas a informação é cega para questões semânticas: é naquele que codifica a informação e naquele que a decodifica que se encontra seu significado, não no meio que a transmite nem em seu padrão específico. Não temos muito a dizer sobre como representações podem significar algo distinto delas próprias, e pelo menos até o momento, esta é uma questão diretamente inabordável cientificamente. Assim, o significado das ações e experiências só é investigado por derivação de terceira ordem: um comportamento, que indica uma representação, que se refere a um significado. Em virtude disso, defendo que a Fenomenologia, conforme estabelecida por Husserl (1976), é o método adequado para a investigação do significado, e portanto, este é um domínio filosófico da Psicologia. Podemos ainda distinguir questões de significado de questões de sentido, que se revelariam um quinto domínio somente marginalmente abordável pelo método científico. A palavra significado geralmente é utilizada em dois sentidos diferentes. O primeiro é o que significa a informação, ou seja, o que significa aquele objeto que tem uma coluna de madeira que se abre em vários ramos, os quais possuem folhas verdes. Você pode atribuir àqueles estímulos o significado: árvore. O segundo é qual o sentido da informação, ou seja, como ela se relaciona com o conjunto de sua vida: o lugar onde você caindo quebrou um braço, o fruto da muda plantada por seu avô, a futura coluna de seu novo chalé, etc. De fato, aqui também, só podemos ter acesso ao sentido atribuído por uma pessoa a uma informação de maneira indireta: ou pelo comportamento verbal da pessoa ou pela reação comportamental em face de determinado estímulo. Mas o processo de atribuição de sentido é um ato criativo impenetrável ao conhecimento científico. Novamente aqui, temos um domínio da Psicologia que já foi abordado com maestria por psicólogos fenomenólogos como Frankl (1973), no que também constitui um domínio exclusivo da Psicologia Filosófica. O sexto domínio psicológico inacessível à investigação científica é o valor, intimamente ligado à questão do sentido. Os valores são fins em si mesmos, inúteis para provocar ou conseguir qualquer coisa necessária biologicamente, mas ainda assim perseguidos por nós. A verdade, a beleza, o sagrado, o amor, a justiça, o prazer são todos exemplos deste tipo de motivação que difere profundamente daquelas que podem ser provocadas ou manipuladas (e portanto estudáveis de modo indireto em laboratório), como dor, fome, sede, sono, frio e calor. A Fenomenologia, particularmente com a obra de Max Scheler (2001), e mais uma vez com a de Frankl, parece o método filosófico mais Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 14 Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia. adequado para a abordagem deste tipo de aspecto da vida psicológica. Por fim, temos um sétimo domínio apenas parcialmente acessível à investigação científica, que é o da causação final, ou vontade, ou agency. Só podemos investigar motivos e razões do comportamento indiretamente, depois que estes se transformaram em metas, que podem ser inferidas do padrão geral do comportamento. Mas não podemos sequer estabelecer cientificamente o que seriam motivos e razões: se ações diretas livres da consciência ou se as razões são causadas eficientemente, como alegou o filósofo da Psicologia Davidson (1963). De toda maneira, pensar em causas finais como causas últimas do comportamento tem o inconveniente de sempre resultar em teorias infalsificáveis. O caso da teoria do raciocínio dialético conforme definida por Rychlak (1994) (como o processo de decisão entre duas ou mais interpretações possíveis das informações do ambiente ou duas alternativas igualmente plausíveis de curso de ação), é exemplo da natureza irrefutável destas alegações. Uma vez alegada que a causa de um comportamento foi a vontade, ou a decisão entre duas alternativas igualmente plausíveis de interpretação da informação, ou ainda a criação de uma nova estratégia de ação como resultado de um processo dialético de raciocínio, a investigação finda e a alegação é infalsificável. A afirmação de que um ser humano possui determinada meta em determinada situação é indiretamente falsificável por seu curso de ação, mas a de que ele “mudou” sua meta como resultado de um ato de criatividade e vontade é absolutamente infalsificável. Isto não significa que esta afirmação é falsa, somente significa que tal afirmação pertence ao campo da especulação filosófica, não ao campo do conhecimento de base empírica. A COMPLEMENTARIDADE DA FILOSOFIA EM RELAÇÃO À PSICOLOGIA Por tudo o quanto ficou evidente por toda esta argumentação, defendo aqui que mais do que as relações com a Filosofia comuns a todas as ciências, a Psicologia é ela própria uma disciplina que para oferecer uma abordagem completa a seu objeto de estudo precisa se dividir entre uma abordagem científica e uma abordagem filosófica. Não podemos nos submeter à falsa opção oferecida pelo Positivismo nos últimos cento e vinte anos, entre destruir a imagem de ser humano para adaptá-la a ciência ou destruir a imagem da ciência para adaptá-la ao ser humano. No primeiro caso ficamos com uma imagem degradada da condição humana, e um objeto que não se assemelha em nada ao ser humano. No segundo caso, como afirma o humanista Rychlak (2004), temos outra catástrofe: a Psicologia rejeita o método científico e assim rejeita seu status científico, como também tudo o que o método científico tem a oferecer para legislar sobre teorias rivais. Não se trata aqui também da outra falsa opção oferecida por alguns psicólogos humanistas, em dividir a Psicologia em uma ciência nomotética e uma ciência idiográfica. Como afirma o filósofo da psicologia Robinson (1985) a própria idéia de uma ciência do singular é um contra-senso. Toda ciência só se realiza com o estabelecimento de leis universais. Toda ciência é nomotética. A investigação do individual pode se valer de técnicas surgidas das ciências nomotéticas, mas ainda assim é sempre interpretativa e filosófica. Mais do que isso, esta investigação é sempre baseada em conceitos universais, razão pela qual a psicologia pós-moderna se coloca tanto fora da ciência quanto da filosofia (CASTAÑON, 2007). Diz Robinson sobre como a Psicologia deve lidar com seus aspectos idiográficos: “O que é proposto aqui não são os significados pelos quais alguma nova ‘ciência’ pode ser criada para suportar Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 15 CASTAÑON, G. A. tópicos idiográficos, mas a aplicação de verdadeiros e testados métodos nãocientíficos de análise para estes problemas psicológicos que são nomoteticamente inexplicáveis.” (1985b, p.73) 1 Muitos outros psicólogos contemporâneos compartilham desta posição, no Brasil e no exterior. Entre nós recentemente Ued Maluf apresentou sua Teoria das Estranhezas (2002), a partir da qual interpreta a Psicologia como um mosaico de teorias fragmentadas e ontologicamente irredutíveis. Penna (1997) expressou também recentemente sua convicção de que a dispersão do pensamento psicológico é um fenômeno irremediável, assim como sua interdependência visceral e inextrincável do pensamento filosófico, tema, aliás, várias vezes defendido ao longo de sua obra. Koch (1985, 1993), importante filósofo da psicologia, defendeu famosa tese de que a Psicologia não era um campo passível de unificação nem teórica nem metodológica, em virtude do que ele acreditava que se deveria mudar sua denominação de Psicologia para Psychological Studies, dos quais eram alguns científicos, outros não. O cognitivista Gardner (1992) adere à tese de Koch e defende que grande parte dos tópicos de investigação psicológica não é passível de adequada abordagem científica, sendo de natureza filosófica. Ele acredita que psicólogos não só devem investigar em colaboração com filósofos, como também com lingüistas, neurocientistas, engenheiros de computação e outros profissionais, como por exemplo, romancistas. Ainda Gardner (1996) acredita em alguma forma dialética de investigação científico-filosófica na Ciência Cognitiva. Rychlak (1993) é outro expressivo psicólogo contemporâneo que não vê mais como se pensar uma disciplina psicológica científica isolada da Filosofia. Ele propõe para o campo a importação do princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Para ele, uma vez que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade de reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a um único nível de explicação (físico, biológico, lógico ou social): “’Explicar’ deriva do latim planare, que significa aplainar ou nivelar. Um princípio psicológico de complementari-dade tornará evidente que uma explicação teórica deve ser reduzida (nivelada) para qualquer um dos quatro níveis evidentes [Physikos, Bios, Socius, and Logos], cada um dos quais com status igual. Nós não estamos falando de quatro níveis de explicação aqui. Os níveis não são ordenados em hierarquia de dependência. Complementar não é reduzir um nível a outro. Zukav observou que o impacto da complementaridade na física era, com efeito, ‘que não interessa sobre o que trata a mecânica quântica! A coisa importante é que ela funciona em todas as situações experimentais possíveis’. Eu gostaria de parafrasear esta declaração dizendo que se nós aceitamos os quatro níveis que eu recomendei, não importará quais destas bases nós selecionamos para construir nossa teoria. Enquanto o que nós dissermos for instrutivo e consistente com os achados empíricos relevantes para a abordagem teórica em si, estaremos praticando Psicologia”. (1993, p.939)2 UMA NOVA PROPOSTA: A EXPLICAÇÃO CONDICIONAL EM PSICOLOGIA COMO FRONTEIRA DA CIÊNCIA Atualmente tenho trabalhado no desenvolvimento teórico de uma nova proposta de natureza da explicação psicológica. Minha tese é que, para tornarmos a explicação científica uma empresa precisa e respeitável, ou ainda para incorporarmos ao empreendimento científico as teorias que assumam o pressuposto da liberdade relativa Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 16 Filosofia como fundamento e fronteira da psicologia. do ser humano em relação aos condicionantes biológicos, psicológicos, físicos e sociais, é preciso promover uma mudança na natureza da explicação em Psicologia. Em virtude da extrema complexidade que uma suposta explicação dedutivo-nomológica em Psicologia teria, e da evidência da existência da capacidade humana de raciocínio dialético (conforme definido por RYCHLAK, 1994) e construção de hipóteses originais, advogo a tese da impossibilidade de explicação dedutivo-nomológica ou probabilística do fenômeno psicológico, e a necessidade de adotar uma forma de explicação condicional para a Psicologia. Em outras palavras, julgo que a exigência de explicação de um evento psicológico ocorrido está suficientemente satisfeita se demonstrarmos que o ocorrido foi possível, não havendo possibilidade de demonstrar, além disso, que era necessário. As explicações condicionais se limitam a indicar uma série de leis e condições particulares (explanans) que tornaram possível a ocorrência do explanandum. É uma explicação das condições necessárias, porém, não suficientes. Elas têm a forma geral de “dadas as leis gerais X, Y e Z, e as condições particulares x, y e z, então o comportamento C foi possível”. Ou seja, certas condições tornam possíveis certos comportamentos, porém, não os determinam. Uma lei de forma somente necessária mantém a mesma condição falsificável da lei necessária e suficiente, embora perca conteúdo falsificável. Isto implica no fato de que todas as leis psicológicas deveriam apresentar uma estrutura condicional, trocando a forma necessária e suficiente “se x estiver presente então o comportamento y acontecerá” pela forma somente necessária “se x não estiver presente então o comportamento y não pode acontecer”. Esta segunda forma de lei equivale a “se e somente se x estiver presente então o comportamento y pode acontecer”. Em outras palavras, um evento x, em Psicologia, não é nunca suficiente para causar y, mas pode ser necessário para que o comportamento y possa acontecer. Tendo em vista a proposta de importação do conceito de complementaridade feita por Rychlak e desta proposta de que a verdadeira explicação científica psicológica é condicional, quero propor um novo critério de demarcação entre Psicologia Científica e Filosófica. É cientifica na Psicologia, toda assertiva universal condicional falsificável e empiricamente corroborada. É filosófica na Psicologia, toda assertiva universal ou idiográfica, não falsificável, que atribua causalidade determinante de um determinado comportamento a algum dos níveis irredutíveis da explicação psicológica. Assim, toda assertiva que aspirar a uma condição de determinação causal última em Psicologia será considerada metafísica, porque é infalsificável. Creio realmente que se há alguma esperança de unidade futura para a Psicologia, ela não está em explicações causais necessárias e suficientes, mas somente em explicações necessárias, ou seja, condicionais. Em um fenômeno multicausado como o psicológico, sempre haverá disputas de interpretações quanto ao nível determinante. Deixemos que continue a haver: estas disputas são metafísicas. A unidade da Psicologia nunca poderá acontecer nas interpretações metafísicas de seus resultados empíricos. A Psicologia pode um dia ser uma disciplina unificada, não em teoria, mas em método. Esta é uma utopia distante. Mas estas sempre valem a pena, pois sem utopias, não há estradas a seguir. Não conseguiremos a unidade da Psicologia como ciência querendo afirmar determinadas posições metafísicas (portanto filosóficas, infalsificáveis e não-científicas) como sérias e outras como ingênuas. Creio que a conseguiremos reconhecendo uma fronteira intransponível entre a Psicologia científica e a Psicologia filosófica. Poderemos alcançar consenso em relação a regularidades empíricas, mas não em relação à interpretação destas. O reconhecimento não só desta interdependência, mas também desta fronteira intransponível entre Psicologia e Filosofia, é fundamental para a sobrevivência da Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008. 17 CASTAÑON, G. A. Psicologia como ciência, inclusive para sua diferenciação em relação à nova velha ameaça cientificista vinda das assim chamadas ‘neurociências’, ou mais especificamente, da velha Fisiologia. GARDNER, H. (1996). A Nova Ciência da Mente. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. GERGEN, K. (1973). Social Psychology as History. In: Journal of Personality and Social Psychology. v.26. n.2. p.309-320. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAARS, B. J. (1986). 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The important thing is that it works in all possible experimental situations”. I would like to paraphrase this statement by saying that if we accept the four grounds that I have recommended, it will not matter which of these bases we select to build our theory on. So long as what we say is instructive and consistent with the empirical findings relevant to the theoretical grounding per se, we will be practicing psychology.” (tradução do autor) Submissão: 04/2008. Aprovação: 08/2008. RYCHLAK, J. (2004). Unification in Theory and Method: Possibilities and Impossibilities. In: Sternberg, R. (org) Unity in Psychology: c Washington, American Psychological Association. pp. 145-177. SCHELER, M. (2001). Ética. Madrid: Caparrós Editores. STAATS, A. (2004). A Road to, and Philosophy of, Unification. In: Sternberg, R. (org) Unity in Psychology: Possibility or Pipedream? Washington, American Psychological Association. pp. 145-177. (Footnotes) 1 “What is proposed here is not the means by which some new ‘science’ can be brought to bear upon ideographic topics, but the application of tried and true nonscientific Ciências Humanas e Sociais em Revita. Seropédica, RJ, EDUR, v. 30, n. 1, jan.-jun., p. 10-18, 2008.