Subaltern Studies e a atualidade da teoria gramsciana da história Camila Massaro de Góes (mestranda USP) Daniela Xavier Haj Mussi (doutoranda UNICAMP) Resumo Expandido Foi com o termo "teoria da história e da historiografia" que Antonio Gramsci inaugurou seus Cadernos do Cárcere, em 8 de fevereiro de 1929, como o primeiro dos argumentos principais que orientariam a pesquisa e reflexão do marxista sardo na prisão (Q.1, §1, p. 5). A segunda vez em que o termo apareceu foi como parágrafo "A" - que viria a compor o Caderno 11 (§8) - no Caderno 4 , onde se lê: "É possível sempre realizar a teoria da história passada e da política atual dado que, se os fatos são individuais e sempre mutáveis no fluxo do movimento histórico, os conceitos podem ser teorizados" (Q. 4, §13, p. 4351). Depois destas primeiras reflexões, o termo "teoria da história" apareceria em 1932 no Caderno 10, no sumário dedicado ao estudo sobre a filosofia de Benedetto Croce. Gramsci, aqui, tinha interesse em estudar o período de 1912 à 1932, em que Croce teria desenvolvido uma "teoria da história ético política" (Q. 10, §1, p. 1207). O argumento era que, neste período, Croce se mantivera como principal "líder das correntes revisionistas" do marxismo na Europa, e também teria conduzido sua atividade intelectual à crítica radical e ao liquidacionismo político-ideológico do materialismo histórico (idem, ibidem). Croce havia concebido a Teoria da história como quarta parte de sua filosofia dos distintos, mais precisamente como um aprofundamento da teoria da história e historiografia já delineada na Lógica (CROCE, 1989, p. 9). Funcionaria como um aprofundamento da relação de unidade e distinção entre filosofia e história, vida concreta e autoconsciência desta vida. Em sua polêmica com Croce, Gramsci assume como um princípio a identificação crociana entre filosofia e história. No entanto, vai além e concebe essa identidade também como entre história e política e, portanto, entre política e filosofia (KANOUSSI, 2007, p.25). Em um parágrafo intitulado Como estudar a história?, do Caderno 14, o marxista sardo afirmou ser necessário o conhecimento de todo um processo 1 Utilizaremos a edição crítica dos Quaderni Del Carcere, organizada por Valentino Gerratana e publicada em 1975. Citaremos da seguinte forma – Q X, referindo-se ao Caderno, § Y, de acordo com o parágrafo e p. Z, por fim, com a página. histórico para dar conta do presente, bem como para dar certa verossimilhança para as previsões políticas do presente se tornarem concretas (Q. 14, § 63, p. 1723). Para enfrentar a cisão, realizada por Croce, entre filosofia e política, realizava a defesa do historicismo absoluto como método próprio da filosofia da práxis. A reflexão sobre a teoria da história em relação ao Ensaio Popular de Bukharin foi retomada também em um caderno especial, o Caderno 11. Aqui, sobre a rubrica de "Questões Gerais", Gramsci propôs o problema: "como nasce o movimento histórico sobre a base da estrutura"? (Q.11, §22, p. 1422). E, ao recuperar o Prefácio de 1859 de Karl Marx, apresenta o núcleo do que viria a ser a sua "teoria da história": "A humanidade se propõe sempre aquelas tarefas que é capaz de resolver...; a tarefa mesma surge apenas onde as condições materiais para a sua resolução já existem ou ao menos estão em vias de surgir" (idem, ibidem). Para Gramsci, faltava ao Ensaio de Bukharin dar um tratamento adequado para a relação entre este pólos do problema histórico: a dialética é pressuposta muito superficialmente, não é exposta (...). A ausência de um tratamento da dialética pode ter duas origens: a primeira pode ser explicada pelo fato de que se pressupõe a cisão da filosofia da práxis em duas: uma teoria da história da política concebida como sociologia, ou seja, constituída de acordo os métodos com e das ciências naturais (...). A segunda origem parece ser de caráter psicológico. Se considera a dialética como algo muito árduo e difícil, na medida em que pensar dialeticamente vai de encontro ao senso comum vulgar, que é dogmático (...) (Q.11, § 22, p. 1424-1426). Gramsci criticava a falta de orientação historicista que levava o marxista russo a uma forma ingênua de metafísica na tentativa de construir uma “sociologia marxista”. Bukharin não teria oposto o materialismo histórico à sociologia tradicional como concepção de mundo – isto é, não elaborara o conceito de filosofia da práxis como “metodologia histórica” (KANOUSSI, 2007, p.84). Esse movimento duplo e concomitante de crítica ao neoidealismo crociano e ao materialismo vulgar de Bukharin foi de fundamental importância para a construção de uma teoria da história por Gramsci. Ainda que incompleta, a reflexão a respeito desse tema apareceu em forma de projeto, no pequeno e tardio Caderno 25 - Às margens da história. História dos grupos sociais subalternos. Escrito em 1934, esse caderno conta com 8 parágrafos apenas, todos do tipo "C", reescritos principalmente a partir do Cadernos 3 e 1. Dois deles, intitulados "Critérios Metodológicos", merecem atenção. Subaltern Studies: atualidade da historiografia Gramsciana? O método engendrado nos Cadernos do Cárcere, fundido à experiência dramática vivenciada pelo seu autor, provê um modo de entender a história por meio de uma singular e constitutiva capacidade de adaptação e tradução para analisar situações muito diversas das quais o marxista sardo conheceu e viveu (BARATTA, 2009, p.17). Foi trilhando este caminho que um grupo de intelectuais indianos desenvolveram os chamados Subaltern Studies com o objetivo de fundar uma nova historiografia das classes subalternas indianas. Os esforços dos “subalternistas” partiram especialmente das duas observações fundamentais do raciocínio gramsciano, esboçadas no primeiro dos parágrafos metodológicos do Caderno 25: 1) "a história das classes subalternas é necessariamente desagregada e episódica"; 2) "há na atividade dessas classes uma tendência à unificação, ainda que em planos provisórios, mas essa é a parte menos visível e que se demonstra somente com a obtenção da vitória" (Q.25, §2, p.2283). A consciência de uma perspectiva das classes subalternas na história e sua reivindicação na historiografia foi fundamental para a iniciativa dos intelectuais indianos. É preciso destacar que esse período, as décadas de 1980 e 1990, coincidiu com uma ampla difusão dos escritos carcerários de Gramsci fora da Itália. Os Subaltern Studies reunidos inicialmente sob a influência de Ranajit Guha, lançaram mão do reconhecimento da ausência de representação do conceito gramsciano de subalterno no âmbito da historiografia. Gramsci havia realizado, solitariamente, esta tarefa de construção conceitual, tomando como base as relações entre Sul agrário e Norte industrializado, camponeses e trabalhadores, na Itália e como estas se vinculavam ao universo dos costumes, das crenças, da religião e da política (RODRÍGUEZ, 2001, p.3). Além disso, Gramsci havia registrado, em um segundo parágrafo metodológico, que: "A unidade histórica das classes dirigentes se realiza no Estado e a história dessas é essencialmente a história dos Estados e dos grupos de Estados. (...) a unidade histórica fundamental é (...) o resultado das relações orgânicas entre Estado ou sociedade política e 'sociedade civil'" (Q.25, §5, p. 2287-2288). Confluentemente, os Subaltern Studies buscavam uma abordagem com vistas à afirmação na história da relação orgânica entre sociedade política e sociedade civil. A crítica destes intelectuais endereçava-se, justamente, à historiografia elitista por atribuir uma divisão tricotômica da estrutura moderna política: o Estado, a sociedade civil, e a família (burguesa) (CHAKRABARTY, 1999, p.15). Além disso, em seu projeto inicial, no Subaltern Studies I, de 1982, aparecia a preocupação central do grupo promover um estudo da política indiana a partir de uma perspectiva de classe, como meio de refutar a interpretação elitista que afirmava o domínio político como unificado e homogêneo. A noção de “subalterno” adquiriu importância central e apresentou no trabalho dos Subaltern Studies tanto conotações políticas, quanto intelectuais. A questão era conceitualizar todo um aspecto da história humana como história – como um movimento que flui a partir de uma oposição entre duas distintas forças, isto é, a luta de classes. Negar a autonomia dos subalternos seria petrificar esse aspecto do processo histórico, reduzi-lo para a imobilidade, ou ainda, destruir sua história – e isso é o que fez a historiografia da Índia (CHATTERJEE, 1983 p.59). Cabe destacar igualmente a apropriação pelos indianos da reflexão de Gramsci sobre a relação entre força e consenso, numa proposta metodológica unificada para a análise do Estado. Com base nisso, Guha (1997), por exemplo, argumentou que a política colonial da Índia nunca foi nada menos do que uma articulação mútua de "dois domínios autônomos em interação". Outro aspecto saliente seria a definição do Estado colonial como uma “dominância sem hegemonia”. A noção de hegemonia se estabelece no argumento de Guha como uma “condição de domínio” de tal forma que, em uma posição orgânica de composição de domínio, a persuasão sobrepõe-se à coerção. Trata-se de uma apropriação problemática do pensamento gramsciano e que merece atenção especial. Ao fixar a unidade orgânica entre a coerção e o consenso, Gramsci utilizou a imagem do Centauro como forma de representação da vida estatal, “não apenas a coerção que não pode existir sem o consenso. Também o consenso não pode existir sem a coerção” (BIANCHI, 2008, p.190). Nesse sentido ainda, não é possível falar de domínio sem hegemonia, ainda que seja possível falar de "hegemonia encouraçada de coerção" (quando a força é superior ao consenso). A noção de hegemonia como critério historiográfico não é apropriada sem problemas pelos subalternistas indianos. Há, ainda, uma tendência à ampliação da noção de “subalterno”, o que faz com que passe a ter uma dimensão expandida para além da perspectiva política reivindicada por Gramsci em seu pensamento. Neste trabalho pretendemos contribuir também para uma melhor compreensão dos Subaltern Studies e de sua apropriação crítica dos Cadernos do Cárcere. Referências Bibliográficas BADALONI, Nicola. Conteúdos Gramsci, para além de sua época e de seu país. In: COUTINHO, Carlos N.; NOGUEIRA, Marco A. (orgs.). Gramsci e a América Latina. Rio se Janeiro: Paz e Terra, 1985. BARATTA, Giorgio. Prefazione. In: SCHIRRU, Giancarlo. Gramsci, le culture e il mondo. Roma: Viella, 2009. BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. BUGIO, Alberto. Gramsci storico. Una lettura dei "Quaderni del carcere". Roma-Bari: Laterza, 2003. CHAKRABARTY, Dipesh. Postcoloniality and the Artífice of History: Who Speaks for “Indian” Pasts?. In: GUHA, Ranajit (ed.). A subaltern studies reader 1986-1995. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1999. CHAKRABARTY, Dipesh. Subaltern Studies and Postcolonial Historiography. Nepantla:Views from South, 2000. CHATTERJEE, Partha. More on Modes of Power and the Peasantry. In: GUHA, Ranajit. Subaltern Studies II, , ed. New Delhi: Oxford University Press India, 1983. CROCE, Benedetto. Teoria e storia della storiografia. Milano: Adelphi, 1989. FROSINI, Fabio, La religione dell’uomo moderno. Politica e verità nei Quaderni del carcere di Antonio Gramsci, Roma, Carocci, 2010. GUHA, Ranajit. Dominance without hegemony: history and power in colonial India. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere; Turim: Einaudi, 1975. 4v. KANOUSSI, Dora. Los Cuadernos filosoficos de Antonio Gramsci: de Bujarin a Maquiavelo. Ciudad de Mexico: Plaza y Valdés, 2007. LIGUORI, Guido. Gramsci storico. L'Ernesto, no.3, 2003. MORERA, Esteve. Gramsci’s Historicism. A Realistic Interpretation. Londres, Routledge, 1990. RODRÍGUEZ, Ileana. Reading Subalterns Across Texts, Disciplines, and Theories: From Representation to Recognition. In: RODRÍGUEZ, Ileana (ed.). The Latin American Subaltern Studies Reader. Durham e Londres: Duke University Press, 2001. VACCA, Giuseppe. Prefazione. In: SCHIRRU, Giancarlo. Gramsci, le culture e il mondo. Roma: Viella, 2009.