POSSIBILIDADES SEMIÓTICAS DA CARTOGRAFIA E DA ICONOGRAFIA NO ENSINO DE GEOGRAFIA Márcio Willyans Ribeiro/Universidade Federal do Paraná [email protected] Marcelo Smaniotto/Editora Positivo [email protected] INTRODUÇÃO Professores de Geografia! Afinal, qual é o nosso papel? Assim como todos vocês, temos pensado muito firmemente nisso. Cremos que nesse exercício geramos mais dúvidas do que certezas, mas será que a dúvida não é aquilo que nos garante a liberdade de continuar pensando? A certeza não nos proporciona tal caminhada, apesar de ser importante, pois, de algum modo, atende a nossa ânsia de procurar por respostas. No entanto, será que mesmo as respostas encontradas podem ser vistas como conclusivas? Algumas luzes surgem desse embate entre dúvidas e certezas. De algum modo, elas iluminam nossa prática pedagógica, conduzindo-nos a algumas reflexões fundamentais, como: Ensinar é apenas repassar informações? Mas será que informar também não é nosso papel? De que modo podemos contribuir com nossos alunos para que sigam para além da visão maniqueísta de mundo que possuem? Entretanto, será possível ensiná-los sem partir da leitura de mundo que eles possuem hoje? A Geografia é uma ciência que na atualidade ganhou grande reconhecimento? Quais os motivos dessa ascensão? Apenas ela valorizou-se ou será que todas as ciências vivem um momento de exaltação com a atual conjuntura social, natural, política e econômica? Afinal, o espaço garante à Geografia uma fatia na leitura do mundo em que vivemos? O espaço constitui-se em nosso objeto de estudo ou em nossa clausura? Estas perguntas e diversas outras precisam permanecer em nossas mentes, pois nos mobilizam a buscar respostas (temporárias) ao que nos aflige dentro e fora de sala de aula, como cidadãos que são professores de Geografia. A dúvida nos mantém em movimento, para que acompanhemos o movimento do mundo no qual vivemos e do qual fazemos parte. É nessa perspectiva que valoriza-se o caráter semiótico das linguagens de interesse geográfico, entre elas a cartográfica e a iconográfica, pois ambas permitem construir e reconstruir significados nos mais diferentes contextos espaço-temporais. Enfim, debruçar-se a respeito do nosso papel como professores de Geografia deve ser algo contínuo e, por isso mesmo, uma resposta a ser buscada no cotidiano de cada um de nós. Admitir esse desafio é uma condição para que nossa prática pedagógica mantenha-se hodierna. Cartografia e iconografia Uma abordagem semiótica do conteúdo de Geografia A Geografia se vale de diversas linguagens para explicitar aquilo que lhe diz respeito: o espaço e sua espacialidade. Contudo, algumas dessas linguagens estão mais presentes na abordagem geográfica do que outras. Podemos afirmar que dentre as mais presentes destacam-se a cartografia e a iconografia. Seguem abaixo alguns de seus conceitos e, também, os de seus objetos de estudo, para ampliar nossos horizontes: A cartografia é um conjunto de estudos e operações científicas, artísticas e técnicas, baseado nos resultados de observações diretas ou de análise de documentação, com vistas à elaboração e preparação de cartas, planos e outras formas de expressão, bem como sua utilização. (DUARTE, 1994, p.14). Um mapa é uma representação geométrica plana, simplificada e convencional, do todo ou de parte da superfície terrestre, numa relação de similitude conveniente denominada escala. (JOLY, F. 1990, p. 7). A iconografia preocupa-se em ‘ler imagens’, significa classificar seus significados, ler seu sentido. Para tal, há de delas se aproximar, detalhar esses sinais por meio de outras fontes: o trajeto do olhar, as impressões visuais globais, as rupturas ou contradições entre o que é percebido e o que é compreendido. E isso é muito mais amplo do que uma simples leitura. (FELDMAN-BIANCO; LEITE, 1998, p. 222). Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen. (PEIRCE, 2003, p. 46). Desses conceitos várias questões podem ser aprofundadas. A mais importante delas cremos que seja a seguinte: “A cartografia não é uma componente da iconografia e o mapa uma espécie de signo?” Em princípio, podemos afirmar que a pergunta anterior receberia um sonoro SIM. Contudo, nos atreveremos a sugerir que NÃO no caso da Geografia de maneira específica. A cartografia é a principal linguagem geográfica, pois permite que “visualizemos” os arranjos espaciais dos mais diversos pontos de vista: natural, histórico, econômico, cultural, etc. Devido a esta característica, ela não deve ser vista como apenas mais uma componente da linguagem iconográfica. Fazer isso, de algum modo, subestimaria a força semiótica de uma representação cartográfica, já que ela carrega consigo seu próprio significado, mas também uma conexão direta com o que há de mais geográfico, o espaço e sua espacialidade. Por esse motivo, faremos uma estratégica separação entre as linguagens cartográfica e iconográfica. Entendendo a iconografia como o conjunto das outras linguagens gráficas, como as fotografias, os gráficos, as tabelas, as gravuras, etc. A escolha destas duas linguagens deve-se a sua riqueza de conteúdo, mas também à qualidade gráfica que possuem, pois a partir desses dois atributos será possível mobilizar os alunos para desnudá-las semioticamente. Mas, afinal, o que é semiótica? A semiótica Parece estranho, quando se pensa sobre isso, que um signo deva deixar que seu intérprete supra uma parte de seu significado; mas a explicação do fenômeno está no fato de que todo o universo – não apenas o universo dos existentes, mas todo o universo mais vasto, abrangendo o universo dos existentes como parte dele [...] – [...] está repleto de signos, se não for composto exclusivamente de signos (PEIRCE, 19051906: 5. 448n.). Admite-se, hoje em dia, que a semiótica, como ciência, possui duas vertentes: a lingüística e a filosófica. A vertente lingüística, denominada “semiologia”, tem como principal expoente o suíço Ferdinand Saussure. Ele publicou vários trabalhos no início do século XX, que foram compilados sob o nome de Cours de Linguistique Générale (1916). Seu modelo analítico baseava-se em dois pólos: o significado e o significante. Conforme o diagrama: SIGNIFICADO -------------------------------------------------SIGNIFICANTE A vertente filosófica, denominada “semiótica”, tem como principal destaque o estadunidense Charles Sanders Peirce. Ele foi autor de diversos trabalhos e alguns livros, publicados entre o final do século XIX e início do século XX. A maioria de suas obras foram publicadas sob o nome The Collected Papers of Charles Sanders Peirce (1931). O modelo peirciano considera um outro pólo, além de levar em conta o contexto do aparecimento do signo, assim como da expectativa de seu receptor. Observe o diagrama: SIGNIFICADO INTERPRETANTE REPRESENTAMEN OBJETO SIGNIFICANTE REFERENTE Devido ao recorte que cada uma destas vertentes propõe e, mais do que isso, tendo em vista nosso objetivo de trabalhar com a semiótica da cartografia e da iconografia aplicadas à Geografia, optamos por tomar o caminho da vertente filosófica. A reflexão a respeito dos signos e de seus significados com base na filosofia, como não podia deixar de ser, iniciou-se na Grécia Antiga, com Platão, no manuscrito Cratylus (385 a.C.). No entanto, o primeiro a utilizar a palavra “semiótica” foi John Locke, no seu Ensaio Sobre o Conhecimento Humano (1690). Suas idéias tiveram forte influência do filósofo de origem lusitana John Poinsot, que, em seu livro Tractatus de Signis (1632), já trazia uma consciência temática mais explícita sobre o assunto. Resumidamente pode-se dizer que “na verdade, o que está no cerne da semiótica é a constatação de que a totalidade da experiência humana, sem exceção, é uma estrutura interpretativa mediada e sustentada por signos” (DEELY, 1990, p. 22). Essa afirmação projeta a semiótica como ferramenta conceitual, na busca dos significados explícitos e, principalmente, implícitos das linguagens cartográfica e iconográfica, já que nos permite trabalhar com o produto das significações dos nossos alunos. No entanto, os semioticistas concordam em afirmar que a semiótica não possui um método, mas, sim, um ponto de vista. Contudo, não se pode negar que ela “é uma perspectiva ou um ponto de vista que emerge de um reconhecimento explícito daquilo que todo método de pensamento ou todo método de pesquisa pressupõe.” (DELLY, 1990, p. 29). Isso significa que na tentativa de tematizar o campo da semiótica, é necessário atender aos princípios científicos mais genuínos de investigação, ou seja, adotar um “método”. O processo de significação dos signos foi chamado por Peirce de “semiose”. Trata-se de um processo de revelação individual, portanto traz consigo a possibilidade de engano ou confusão. Não uma confusão irremediável, mas um ponto de partida para novas leituras mais profundas e melhor fundamentadas. Como nosso objetivo é realizar a “semiose” para fins educativos, essa característica da leitura semiótica permitirá realizar investigações ainda mais interessantes, pois o próprio “método semiótico” traz consigo a possibilidade do engano e da reconstrução. Ambas típicas dos processos de ensino e de aprendizagem. Ainda vale a pena lembrar que “uma das funções primordiais da análise da imagem (signo) é sua função pedagógica. Embora possa se exercer num contexto institucional como a escola ou a universidade, a análise com objetivo pedagógico não se atém a ele.” (JOLY, M. 1996, p. 48). Na realização de atividades pedagógicas de cunho semiótico, devemos ter alguns cuidados. Eles são fundamentais para que o trabalho não se torne banal ou sem objetividade, desvalorizando a experiência semiótica. Os semioticistas acreditam que “uma boa análise se define, em primeiro lugar, por seus objetivos. Definir o objetivo de uma análise é indispensável para instalar suas próprias ferramentas, lembrando-se que elas determinam grande parte do objeto da análise e suas conclusões.” (JOLY, M. 1996, p. 49). Entretanto, outros dois cuidados devem ser considerados na análise dos signos visuais, ambos ligados à premissa de que o signo visual é uma mensagem para o outro. São eles: o estudo da sua função e o contexto do seu surgimento. Obviamente, além desses cuidados a utilização da semiótica em sala de aula permitirá ao professor uma conexão direta entre os conteúdos de Geografia, sua mediação pedagógica e a participação efetiva dos alunos. Semiótica e Cartografia A conexão entre estas duas ciências possui um histórico que remonta meados do século XX. Segundo SANTAELLA e NÖTH (1997, p. 35), desde a Semiologia Cartográfica de Bertin (1967), existe o ramo da cartossemiótica na área das ciências geográficas. Os resultados desses estudos estão documentados na série de estudos Kartosemiotica (1991). Outros estudiosos do tema são Palek (1986), Moore (1989), Freitag (1992) e Nöth (1998). Estes dados demonstram que a proposição de realizar atividades semióticas, tendo por base mapas e outros produtos cartográficos, não se constitui em uma novidade. Além disso: ...a imagem pode ser um instrumento de conhecimento, porque serve para ver o próprio mundo e interpretá-lo. [...] uma imagem (um mapa ou um quadro) não é uma reprodução da realidade, mas o resultado de um longo processo, durante o qual foram utilizadas alternadamente representações esquemáticas e correções. (JOLY, M., 1996, p. 60). Desse modo, qualquer mapa é um signo repleto de conteúdos explícitos (título, escala, legenda...) e implícitos (tipo de projeção, escolha da temática, escala geográfica...), mais do que isso, é uma linguagem com amplas possibilidades para o desenvolvimento de leituras semióticas. No intuito de demonstrar a viabilidade das idéias apresentadas anteriormente, faremos a apresentação de duas atividades semióticas. Elas aparecem a seguir: Atividades da oficina de Cartossemiótica Atividade 1 O que pode ser extraído do mapa América do Sul – Físico? Possíveis respostas: variação de temperatura, divisores de água, rede de drenagem, etc. Atividade 2 O que pode ser extraído do mapa África – Político? Possíveis respostas: tipos de limites, território dos países, latitude, colonização, etc. Semiótica e Iconografia Como foi afirmado nas páginas iniciais, entendemos por iconografia, ao menos neste trabalho, o conjunto de todos os recursos visuais, com exceção da cartografia. Nesse caso, ela abarca diversas linguagens representadas por signos, como as fotografias, as imagens de satélite, os gráficos, as gravuras, as tabelas, entre outros. Devido a essa diversidade, focaremos nosso trabalho, principalmente, em três tipos de signos: as fotografias, os gráficos e as gravuras. Isso se deve a maior facilidade na sua “leitura” por parte dos alunos. Contudo, com o amadurecimento do debate semiótico, a longo prazo, é possível atrever-se a fazer a “semiose” de signos mais estéreis. Segundo SANTAELLA e NÖTH (1997, p. 107), a semiótica da fotografia foi intensamente estudada por um significativo número de teóricos. Os mais destacados foram Peirce, Hjelmslev, Greimas e Barthes, sendo que cada um deles deu origem a uma linha semiótica ligada à fotografia. Em nosso trabalho, não há a necessidade de detalharmos, ou mesmo de distinguirmos, qual dessas linhas iremos seguir, mesmo porque a proposta é utilizar todas as linhas de uma maneira híbrida, pois nossa preocupação é menos técnica e mais pedagógica. No entanto, é necessário ter em mente que, independentemente do caminho que sigamos, durante o processo de “semiose” A característica semiótica mais notável da fotografia reside no fato de que a foto funciona, ao mesmo tempo, como ícone e índice. Por um lado ela reproduz a realidade através de (aparente) semelhança; por outro, ela tem uma relação causal com a realidade devido às leis da ótica. (SANTAELLA e NÖTH, 1997, p. 107). Devido a essas características a fotografia revela, mas ao mesmo tempo exige um esforço semiótico do “leitor” na busca de significados implícitos em seu conteúdo. Nesse caso, uma aposta interessante é a leitura coletiva, pois ela permite a construção de significados por meio do debate que o signo provoca. Atividades da oficina de fotossemiótica Atividade 3 O que pode ser visualizado por meio da fotografia a seguir? Serra do Rio do Rastro–SC Possíveis respostas: vale, divisores de água, vegetação, relevo, ação antrópica, etc. Atividade 4 Que elementos podem ser identificados por meio da fotografia abaixo? João Pessoa–PB Possíveis respostas: verticalização, proximidade do mar, arborização urbana, etc. Os gráficos constituem-se em uma linguagem de grande valor semiótico, pois, como signos, explicitam por meio dos dados que apresentam uma forma de sistematizar seu conteúdo de modo intencional, com isso podem-se ressaltar alguns aspectos e “mascarar” outros. Segundo SANTAELLA e NÖTH (1997, p. 107), existem vários estudos sobre a semiótica dos gráficos, destacando-se os de Krampen (1965), Berger (1979), Bertin (1967, 1989) e Savarese (1991). Nesse sentido, trata-se de uma aposta interessante para potencializar o conteúdo presente em materiais didáticos, sendo um convite à reflexão. Atividade da oficina de semiótica de gráficos Atividade 5 Que análise pode-se fazer dos dados explicitados pelo gráfico abaixo? O que ele mascara? Brasil: População – urbana e rural # IBGE 2000 População rural População urbana Possíveis respostas: Mostra o processo de crescimento urbano. Mascara a realidade regional, pois apresenta a média nacional. O trabalho semiótico com gravuras possui pouca tradição. Talvez porque elas deixem seu significado bastante explícito, permitindo aos “leitores” mais segurança durante o processo de “semiose”. Por esse motivo constituem-se em um excelente ponto de partida para despertar nos alunos o interesse pela semiótica em sala de aula. Atividade da oficina de semiótica da gravura Atividade 6 Que fenômeno está representado na gravura a seguir? Indique alguns de seus motivadores: Possíveis respostas: Uma enchente. Alguns motivadores: A impermeabilização do solo, um longo período de chuvas, a ocupação de áreas de várzea, etc. Considerações finais Depois de refletir acerca da semiótica e, principalmente, de sua conexão com a Geografia através das linguagens cartográfica e iconográfica, podemos compreender com maior propriedade de que modo elas podem nos auxiliar na dinamização e potencialização da prática pedagógica do professor. Trata-se de uma oportunidade para que o docente convide seus alunos a participarem do processo de construção de conhecimentos, pois ao longo do processo de leitura de mapas e elementos iconográficos cria-se uma parceria e abre-se a possibilidade de que a diversidade de olhares amplie o entendimento do que é analisado. Nesse sentido, cabe ao professor apresentar aos seus alunos os mapas, as fotografias, os gráficos, as gravuras, entre outros, não como meras ilustrações, mas como conteúdo geográfico latente. Referências bibliográficas ALMEIDA, Rosângela Doin de. Do desenho ao mapa: iniciação cartográfica na escola. São Paulo: Contexto, 2001. ____________; PASSINI, Elza Yazuko. O espaço geográfico: ensino e representação. 7. ed. São Paulo: Contexto, 1999. DEELY, John. Semiótica básica. São Paulo: Ática, 1990. DUARTE, Paulo Araújo. Fundamentos de cartografia. Florianópolis: UFSC, 1994. FELDMAN-BIANCO, Bela; LEITE, Miriam L. Moreira. Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998. JOLY, Fernand. A cartografia. Campinas, SP: Papirus, 1990. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. MARTINELLI, Marcelo. Gráficos e mapas: construa-os você mesmo. São Paulo: Moderna, 1998. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. SANTAELLA, Lucia; WINFRIED, Nöth. Imagem: cognição, semiótica e mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. SOUZA, Gilberto de Souza; KATUTA, Ângela Massumi. Geografia e conhecimentos cartográficos: a cartografia no movimento de renovação da geografia brasileira e a importância do uso de mapas. São Paulo: Unesp, 2001.