Módulo O Pequeno Príncipe

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Módulo
O Pequeno Príncipe
Antoine de Saint-Exupéry
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Módulo do Pequeno Príncipe
“Gostaria de ter começado essa história como nos contos de fadas. Gostaria de ter
começado assim: Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta
pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo...” (p.18)
Mas o livro O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, não começa como
em um conto de fadas, mas sim com o narrador, um aviador, contando sobre o medo que
ele sentia quando criança e a sua dificuldade em expressá-lo. Por não ter sido
compreendido, se tornou um adulto solitário e sem amigos. Freqüentemente, a infância é
romantizada e existe o mito da “criança feliz”. Muitas crianças, na realidade, se sentem
como o aviador, e sofrem por não saber expressar seus medos. Quando sentimos medo e
não somos compreendidos, nos fechamos para as relações e perdemos a possibilidade
de viver plenamente. O mistério e a magia da vida surgem quando nossa alma nasce nos
encontros e nas experiências reais.
Incompreendido, o menino torna-se um adulto solitário que não acredita
nas “pessoas grandes”. Ao dedicar o livro a um adulto, o aviador quer mostrar que
quando fala das pessoas grandes com hostilidade, não está se referindo a todas
elas, mas àquelas que, como ele, esqueceram a criança que existe dentro de si.
“A Léon Werth
Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa
grande. Tenho um bom motivo: essa pessoa grande é o melhor amigo que
possuo. Tenho um outro motivo: essa pessoa grande é capaz de
compreender todas as coisas, até mesmo os livros de criança. Tenho ainda
um terceiro motivo: essa pessoa grande mora na França e ela tem fome e
frio. Ela precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu dedico
então este livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas
grandes foram um dia criança – mas poucas se lembram disso. Corrijo,
portanto, a dedicatória:
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A Léon Werth
Quando ele era criança”
Quando fala das “pessoas grandes”, o aviador está falando de como ele as
vê. O processo de ver o outro e a si próprio só terá início no encontro com o
pequeno príncipe.
A falta de comunicação fez com que o aviador, por não ter sido
compreendido quando menino, estabelecesse relações superficiais e nelas
permanecesse pela dificuldade de ficar consigo mesmo. Viveu desta maneira até o
dia em que uma pane em seu avião o obrigou a fazer um pouso de emergência no
Saara. No deserto, longe de outras pessoas, entrou em contato consigo mesmo e
ouviu a voz do seu pequeno príncipe, dando início a um encontro entre o adulto
que era e a criança adormecida dentro de si.
Na contracapa do livro, há um pequeno texto de Amélia Lacombe que
mostra a trajetória e a abertura do espaço interno para a criatividade e a
imaginação, tão indispensáveis para a vida: “O pequeno príncipe devolve a cada
um o mistério da infância. De repente retornam os sonhos. Reaparece a lembrança
de questionamentos, desvelam-se incoerências acomodadas, quase já imperceptíveis
na pressa do dia a dia. Voltam ao coração escondidas recordações. O reencontro, o
homem-menino.”
Percebemos na relação entre o aviador e o pequeno príncipe, dois
grandes momentos: antes do encontro com a raposa, quando o pequeno príncipe,
com sua atitude superficial, não consegue olhar para o mundo com simpatia,
vendo apenas as aparências e estereótipos; e depois do encontro com a raposa,
quando aprende a criar laços e se relacionar verdadeiramente com outras
pessoas.
Parte I – Antes do encontro com a raposa
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O aviador conta que, aos seis anos, ficou impressionado com uma gravura
que viu em um livro e fez seu primeiro desenho:
“Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta
Virgem, Histórias vividas, uma impressionante gravura. Ela representava
uma jibóia engolindo um animal. (...)
Dizia o livro: ‘As jibóia engolem, sem mastigar, a presa inteira. Em
seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão.’
Refleti muito sobre as aventuras da selva e fiz, com lápis de cor, o
meu primeiro desenho. O meu desenho número 1. (...)” (p. 7)
Assustado com o que vira, mostrava sua “obra-prima” às pessoas grandes
e lhes perguntava se sentiam medo. Mas, para elas, a ilustração parecia um
chapéu, e um chapéu não é nada assustador. Diante disso, o menino resolveu
fazer o desenho número 2 em que o interior da jibóia estava representado, mas
não obteve sucesso:
“As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os
desenhos de jibóias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à
geografia, à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos
seis anos, uma promissora carreira de pintor.” (p. 8)
Por não ter sido compreendido, o menino se fechou e viveu por longos
anos de sua vida sem interesse pelas pessoas. A falta de comunicação fez com que
se tornasse um homem arrogante e ressentido. Sem acreditar na criatividade e na
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comunicação, desistiu de seguir o que pensava ser uma “promissora carreira de
pintor” e escolheu uma profissão que lhe parecia mais “técnica”: “Tive então que
escolher outra profissão e aprendi a pilotar aviões.” (p. 8). Manteve-se longe do
contato humano: com seu avião poderia ver todos os lugares, mas sem
permanecer de fato em nenhum deles. Ser aviador é uma linda profissão que,
assim como todas as outras, exige imaginação, criatividade e amor, mas ele ainda
não estava pronto para compreender que o problema não estava na sua profissão,
mas nele mesmo.
O aviador admite que, ao longo de sua vida, “teve vários contatos”, mas
nunca um verdadeiro amigo:
“Vivi, portanto, só, sem alguém com quem pudesse realmente
conversar, até o dia em que uma pane obrigou-me a fazer um pouso de
emergência no deserto do Saara, há cerca de seis anos. Alguma coisa se
quebrara no motor. E como não trazia comigo nem mecânico nem
passageiros, preparei-me para executar sozinho aquele difícil conserto.
Era, para mim, questão de vida ou morte. A água que eu tinha para beber
só dava para oito dias.” (p. 9)
Quando adulto - mas ainda se comportando como uma criança que deseja
ser adivinhada -, antes mesmo de iniciar uma conversa, o aviador mostrava seu
desenho número 1 para testar as pessoas. Como elas não adivinhavam o medo
que ele pensava estar expressando, aumentava sua mágoa e seu tom de
superioridade, afastando as pessoas ainda mais:
“Quando encontrava uma que me parecia um pouco esclarecida,
fazia a experiência do meu desenho número 1, que sempre conservei
comigo. Eu queria saber se ela era na verdade uma pessoa inteligente. Mas
a resposta era sempre a mesma: “É um chapéu”. Então eu não falava nem
de jibóias, nem de florestas virgens, nem de estrelas. Colocava-me ao seu
nível” (p. 9)
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Essa postura durou até o encontro com o pequeno príncipe. Caminharam
juntos pelo deserto, por oito dias:
“Na primeira noite adormeci sobre a areia, a quilômetros e
quilômetros de qualquer terra habitada. Estava mais isolado que um
náufrago num bote perdido no meio do oceano. Imaginem qual foi minha
surpresa quando, ao amanhecer, uma vozinha estranha me acordou.” (p. 9)
Ele estava “a quilômetros e quilômetros de qualquer região habitada”
quando uma vozinha o despertou com o seguinte pedido: “Desenha-me um
carneiro...” Era o pequeno príncipe, uma figura extraordinária que não parecia
alguém perdido no deserto, pois não aparentava ter fome, sede, medo ou fadiga.
Sem ousar desobedecê-lo, o aviador retirou do bolso papel e caneta, mas não foi
um carneiro que desenhou:
“Como jamais houvesse desenhado um carneiro, refiz para ele um
dos dois únicos desenhos que sabia: o da jibóia fechada. E fiquei estupefato
de ouvir o garoto replicar:
- Não! Não! Eu não quero um elefante numa jibóia. A jibóia é
perigosa e o elefante toma muito espaço. Tudo é pequeno onde eu moro.
Preciso é de um carneiro. Desenha-me um carneiro.” (p. 12)
Onde todos viam um chapéu, o principezinho viu a jibóia, e teve a
coragem e a firmeza de dizer ao aviador que não queria jibóia nem tampouco
elefante, pois sabia exatamente do que precisava: um carneiro. No sonho, através
de um diálogo interno com o principezinho, o aviador conseguiu dizer “não” ao
seu medo. Ele tenta desenhar o carneiro, mas sem sucesso e, depois de inúmeras
tentativas, perde a paciência, desenha uma caixa e diz que o carneiro está dentro
dela. O desenho da caixa ganha vida na imaginação do principezinho: ali caberia
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qualquer carneirinho. Nesse momento, começa a surgir a idéia de que o essencial
é invisível aos olhos:
“- Não! Esse já está muito doente. Desenha outro.
Desenhei de novo.
Meu amigo sorriu com indulgência:
- Bem vês que isto não é um carneiro. É um bode... Olha os chifres...
Fiz mais uma vez o desenho.
Mas ele foi recusado como os precedentes:
- Este aí é muito velho. Quero um carneiro que viva muito.
Então, perdendo a paciência, como tinha pressa de desmontar o motor, rabisquei
o desenho abaixo.
E arrisquei:
- Esta é a caixa. O carneiro está dentro.
Mas fiquei surpreso de ver iluminar-se a face do meu pequeno juiz:
- Era assim mesmo que eu queria! Será preciso muito capim para esse carneiro?
- Por quê?
- Porque é muito pequeno onde eu moro...
- Qualquer coisa chega. Eu te dei um carneirinho de nada!
Inclinou a cabeça sobre o desenho:
- Não é tão pequeno assim... Olha! Adormeceu...
E foi assim que conheci, um dia, o pequeno príncipe.” (p.12)
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Na relação com o pequeno príncipe, o aviador começa a perceber o
mundo à sua volta e a se interessar verdadeiramente pelos outros: “- De onde
vens, meu caro? Onde é a tua casa? Para onde queres levar meu carneiro?” (p. 14) É
também neste contato com o principezinho que ele começa a recuperar a
imaginação.
Esta etapa também é marcada pelo início da sua percepção como uma “pessoa
grande”. Ele, que até agora se acreditava superior a todos, começa a perceber que suas
críticas aos outros se referiam também a si mesmo: “Infelizmente, não sei ver carneiros
através de caixas. Talvez eu seja um pouco como as pessoas grandes. Devo ter envelhecido.”
(p. 19) A couraça que evitava qualquer possibilidade de relacionamentos se desfaz nos
diálogos com o principezinho. Esse encontro foi marcante e o aviador quer mantê-lo vivo
em sua lembrança:
“Já faz seis anos que meu amigo se foi com seu carneiro. Se tento
descrevê-lo aqui, é justamente porque não quero esquecê-lo. É triste esquecer um
amigo. Nem todo o mundo tem amigo. E eu corro o risco de ficar como as pessoas
grandes, que só se interessam por números. Foi por isso que comprei um estojo de
aquarelas e alguns lápis. É difícil voltar a desenhar na minha idade,
principalmente quando não se fez outra tentativa além das jibóias fechadas e
abertas, aos seis anos! Experimentei, é claro, fazer os retratos mais fiéis que
pudesse. Mas não tenho muita certeza de conseguir. Um desenho parece passável;
outro, já é inteiramente diferente. Engano-me também o tamanho. Ora o
principezinho está muito grande, ora pequeno demais. Hesito também quanto à
cor de suas roupas. Vou arriscando, então, aqui e ali. Provavelmente esquecerei
detalhes dos mais importantes. Peço que me perdoem.” (p. 18)
Aos poucos, o aviador vai conhecendo o principezinho. Descobre que ele vem de
um planeta muito pequeno e que uma de suas atividades preferidas é ver o pôr-do-sol. O
pequeno príncipe fica feliz em saber que os carneiros se alimentam de arbustos porque,
assim, poderão comer os baobás quando estes ainda forem pequenos. O aviador não
conseguia compreender porque isso era tão importante para o principezinho, mas após
“um grande esforço” passa a entender:
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“De fato, no planeta do pequeno príncipe havia, como em outros
planetas, ervas boas e más. Conseqüentemente, sementes boas, de ervas
boas; e sementes más, de ervas más. Mas as sementes são invisíveis. Elas
dormem nas entranhas da terra até que uma cisme de despertar. Então ela
se espreguiça e lança, timidamente, para o sol, um inofensivo galhinho. Se
for de roseira ou rabanete, podemos deixar que cresça à vontade. Mas
quando percebemos que se trata de uma planta ruim, é preciso que a
arranquemos imediatamente. Ora, havia sementes terríveis no planeta do
pequeno príncipe... as sementes de baobá. O solo do planeta estava
infestado.” (p. 20)
Os baobás são árvores grandes e ocas por dentro. Se um baobá cresce,
nem mesmo uma manada de elefantes consegue destruí-lo, avisa o aviador. Mas o
pequeno príncipe sabe como resolver o problema antes que as más sementes
infestem seu planeta:
“- É uma questão de disciplina - disse mais tarde o principezinho. Quando a gente acaba a higiene matinal, começa a fazer com cuidado a
higiene do planeta. É preciso que nos habituemos a arrancar regularmente
os baobás logo que se diferenciem das roseiras, com as quais muito se
parecem quando pequenos. É um trabalho sem graça, mas de fácil
execução.” (p. 22)
O principezinho fala a respeito da importância de saber discernir o que é
bom do que é ruim e cuidar permanentemente para que as más sementes não
tomem conta. Este é um trabalho rotineiro que exige disciplina e não requer
muito esforço. Se não arrancamos esta plantinha no início, “nunca mais a gente
consegue se livrar dela, pois suas raízes penetram o planeta todo, atravancando-o.
E, se o planeta for pequeno e os baobás, numerosos, o planeta acaba rachando.” (p.
21) Como mostra o pequeno príncipe, o trabalho de prevenção é primordial para
nos proteger tanto dos perigos internos quanto dos externos que fazem parte da
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vida. É por ter consciência da importância do trabalho preventivo que o aviador
faz um grande desenho para alertar as crianças sobre o perigo dos baobás:
“Não gosto de assumir o tom de moralista, mas o perigo dos
baobás é tão pouco conhecido, e tão grandes são os riscos para aquele que
um dia se perca num asteróide, que, ao menos uma vez, abro exceção e
digo: “Crianças! Cuidado com os baobás!” Foi para advertir meus amigos de
um perigo que há tanto tempo os ameaçava, como a mim, e do qual nunca
suspeitamos, que tanto caprichei naquele desenho.” (p. 22)
Com a ajuda do carneiro, o aviador vai descobrindo cada vez mais sobre o
pequeno príncipe. Ao saber que os carneiros comem arbustos, o principezinho
fica muito assustado e com medo de perder a sua flor e pergunta para que servem
os espinhos da sua rosa. O aviador, preocupado naquele momento com o
problema do motor de seu avião, responde irritado: “Espinhos não servem para
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nada, são pura maldade das flores.” (p.26) Diz que só se ocupa com coisas sérias, e
que as flores não tem importância, e o principezinho fica muito indignado:
“- Conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo.
Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém.
Nunca fez outra coisa senão contas. E o dia todo repete, como tu: ‘Eu sou
um homem sério! Eu sou um homem sério!’ E isso o faz inchar-se de
orgulho. Mas ele não é um homem, é um cogumelo! (...) (p.27)
E acrescenta:
“- Há milhões e milhões de anos que as flores fabricam espinhos. Há
milhões e milhões de anos que os carneiros as comem, apesar de tudo. E não será
sério procurar compreender porque perdem tanto tempo fabricando espinhos
inúteis? Não terá importância a guerra dos carneiros e das flores? Não será mais
importante que as contas do tal sujeito? E se eu, por minha vez, conheço uma flor
única no mundo, que só existe no meu planeta, e que um belo dia um carneirinho
pode liquidar num só golpe, sem avaliar o que faz, - isto não tem importância?!
Corou um pouco, e continuou em seguida:
- Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em
milhões e milhões de estrelas, isso basta para fazê-la feliz quando a
contempla. Ele pensa: minha flor está lá, em algum lugar... Mas se o
carneiro come a flor, para ele é como se todas as estrelas repentinamente
se apagassem! E isso não tem importância!” (p. 28)
Nesse momento tanto o principezinho quanto o aviador estão irritados. O
aviador, preocupado com seu avião, não prestou atenção no que o principezinho
estava dizendo. Ao não ser ouvido, o principezinho o chama de cogumelo e
mostra toda a sua indignação com as pessoas que só se interessam por elas. Ele
confrontou o aviador dizendo o que verdadeiramente pensava, e chorou ao ter
que pronunciar palavras tão duras. Ao ver suas lágrimas, o aviador compreende o
quanto ele é importante para o principezinho, e sente uma vontade imensa de
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consolá-lo. Nesse instante, a falta de comunicação dá lugar a um entendimento
profundo entre eles:
“Não conseguiu dizer mais nada. Imediatamente se pôs a soluçar. A noite
caíra. Larguei as ferramentas. Ria-me do martelo, do parafuso, da sede e da morte.
Havia numa estrela, num planeta, o meu, a Terra, um principezinho a consolar!
Tomei-o nos braços. Embalei-o. E lhe dizia: “A flor que tu amas não está em
perigo... Vou desenhar uma pequena mordaça para o carneiro... Uma armadura
para a flor... Eu...” Eu não sabia o que dizer. Sentia-me desajeitado. Não sabia
como atingi-lo, onde encontrá-lo... É tão misterioso, o país das lágrimas!” (p. 28)
Preocupado com os baobás, certo dia o principezinho observa um broto
diferente dos outros, e decide vigiá-lo de perto. “O pequeno príncipe, que assistia
ao surgimento de um enorme botão, pressentiu que dali sairia uma aparição
miraculosa”, e após alguns dias, “eis que, numa manhã, justamente à hora do sol
nascer, ela se mostrou. O principezinho, então, não pôde conter o seu espanto: Como és bonita!” (p.29) Era envolvente, mas nada modesta. “Tu poderias cuidar de
mim...” (p. 29), pediu a flor, e o pequeno príncipe, embora “atordoado”, obedeceu.
“Assim, ela logo começou a atormentá-lo com sua doentia vaidade.” (p. 30),
conseguindo que ele atendesse a todos os seus pedidos: que a regasse, que a
protegesse das correntes de ar com um para-vento, que à noite a abrigasse sob
uma redoma de vidro. Certa vez, pediu que fosse colocada sob a redoma de vidro
pela noite, dizendo que nesse planeta fazia muito frio, ao contrário do lugar de
onde viera. Subitamente calou-se, e o principezinho percebeu que ela estava
mentindo, pois ele a vira nascer, então “não pudera conhecer nada dos outros
mundos.” (p. 31) Desencantado, “o principezinho, apesar da sinceridade do seu
amor, logo começara a duvidar dela. Levara a sério palavras sem importância, e
isto o fez sentir-se muito infeliz.” (p. 31)
Foi assim que o pequeno príncipe decidiu partir. Antes, “pôs o planeta em
ordem” (p. 32): revolveu seus três vulcões, inclusive o inativo, afinal, “nunca se
sabe!”; arrancou os últimos rebentos de baobás e, por fim, despediu-se da flor.
Surpreendeu-se com a “ausência de censuras”: esperava que ela o repreendesse,
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mas isso não aconteceu. Ela compreendeu a importância da separação, ambos
haviam sido tolos e precisavam conhecer a vida para aprender o verdadeiro
significado do amor:
“- É claro que eu te amo - disse-lhe a flor. - Foi minha culpa que
não perceberes isso. Mas não tem importância. Foste tão tolo quanto eu.
Tenta ser feliz... Larga essa redoma, não preciso mais dela.
- Mas o vento...
- Não estou assim tão resfriada... O ar fresco da noite me fará bem.
Eu sou uma flor.
- Mas os bichos...
- É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as
borboletas. Dizem que são tão belas! Do contrário, quem virá visitar-me?
Tu estarás longe... Quanto aos bichos grandes, não tenho medo deles. Eu
tenho as minhas garras.” (p. 34)
No diálogo com o aviador, o principezinho reconhece que não sabia a
importância do amor, e se entristece:
“- Não soube compreender coisa alguma! Devia tê-la julgado por
seus atos, não pelas palavras. Ela exalava perfumes e me alegrava... Não
podia jamais tê-la abandonado. Deveria ter percebido sua ternura por trás
daquelas tolas mentiras. As flores são tão contraditórias! Mas eu era jovem
demais para saber amá-la.” (p. 31)
A separação foi essencial para que o pequeno príncipe lembrasse o que
havia vivido com a sua flor. Após a despedida, ele começou sua viagem visitando
os asteróides mais próximos “para desta forma ter uma atividade e se instruir.” (p.
34) Esta foi uma viagem de muitos aprendizados. Foram seis os asteróides
visitados pelo principezinho e, em cada um, conheceu uma pessoa diferente: o rei,
o vaidoso, o bêbado, o empresário, o acendedor de lampiões e o geógrafo. Ao
retratar cada um dos habitantes dos planetas que visitara, o principezinho nos
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mostra estereótipos do que seja a pessoa humana. “Pessoas grandes” que,
infelizmente, não encontraram um sentido na vida e vivem sós, cada uma em seu
planeta de forma bem limitada.
O rei
O primeiro deles foi o asteróide habitado pelo rei que, assim que avistou
o principezinho, exclamou alegre: “Ah! Eis um súdito!” (p. 35) Todo orgulhoso por,
finalmente, encontrar um súdito, o rei passou a dar ordens sistemáticas ao
pequeno príncipe: que bocejasse, que sentasse, que ficasse, que fosse embora.
“Não tolerava desobediência. Era um monarca absoluto. Mas, como era muito bom,
dava ordens razoáveis.” (p. 35) O monarca, ao mandar as pessoas fazerem o que
elas já queriam fazer, encontrou uma forma de sempre ser obedecido e sentia-se
muito importante com o seu método:
“O principezinho procurou com olhos onde sentar-se, mas o planeta
estava todo atravancado pelo magnífico manto de arminho. Ficou, então, de pé.
Mas, como estava cansado, bocejou.
- É contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse o monarca. Eu o
proíbo.
-Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz uma longa viagem e
não dormi ainda...
-Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos que não vejo
ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridade para mim. Vamos, boceja! É uma
ordem!
-Isso me intimida... Eu não posso mais... Disse o principezinho todo
vermelho.
-Hum! Hum! Respondeu o rei. Então... Eu te ordeno ora bocejares e ora...”
(p. 35)
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O principezinho, intrigado com o minúsculo planeta do monarca, o
interroga: “Majestade... sobre quem reinais?” E o rei “com um gesto simples, indicou
seu planeta, os outros planetas, e também as estrelas.” (p. 37) Sabendo que o rei
reinava sobre todo o universo, o principezinho lhe pede para que ele ordene que
o sol se ponha. E o rei lhe explica:
“- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou
escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não
executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado?
-Vós - respondeu com firmeza o principezinho.
-Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar - replicou o
rei. - A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que se lance ao
mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas
ordens são razoáveis.” (p. 37)
Este rei estava sozinho em seu planeta. Ansioso por ter um súdito, propõe ao
principezinho que seja seu Ministro da Justiça, mas o pequeno príncipe recusa dizendo
que não há ninguém para julgar naquele lugar, ao que o rei responde:
“- Tu julgarás a ti mesmo – respondeu-lhe o rei. – É o mais difícil. É bem
mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um
julgamento de ti, és um verdadeiro sábio.
- Mas eu posso julgar-me a mim próprio em qualquer lugar, replicou o
principezinho. Não preciso, para isso, ficar morando aqui.
-Ah! - disse o rei -, eu tenho quase certeza de que há um velho rato no meu
planeta. Eu o escuto de noite. Tu poderás julgar esse rato. Tu o condenarás à
morte de vez em quando: assim a sua vida dependerá da tua justiça. Mas tu o
perdoarás cada vez, para economizá-lo. Pois só temos um.
- Eu, respondeu o principezinho, eu não gosto de condenar à morte, e acho
que vou mesmo embora.” (p. 39)
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Apesar dos argumentos do rei, o principezinho não ficou convencido a
ficar em seu planeta, e prosseguiu a viagem.
O Vaidoso
O segundo planeta visitado pelo principezinho era habitado por um vaidoso que
ficou feliz em ver um admirador, afinal, “para os vaidosos, os outros homens são seus
admiradores.” (p. 40) Para esse tipo de homem, lidar com a crítica é muito difícil, eles “só
ouvem os elogios” (p. 42). O principezinho não entende o que significa admirar:
-Não é verdade que tu me admiras muito? Perguntou ele ao
principezinho.
-Que quer dizer admirar?
-Admirar significa reconhecer que eu sou o homem mais belo, mais rico,
mais inteligente e mais bem vestido de todo o planeta.
- Mas só há você no seu planeta!
-Dá-me esse gosto. Admira mesmo assim!
-Eu te admiro, disse o principezinho, dando de ombros. Mas como pode
isso interessar-te?
E o principezinho foi-se embora.” (p.42)
O Bêbado
Neste terceiro planeta, o pequeno príncipe conhece um bêbado “que se
encontrava silenciosamente acomodado diante de inúmeras garrafas vazias e diversas
garrafas cheias.” (p. 42). O bêbado confessa que bebe para esquecer que tem vergonha
de beber, o que deixa o principezinho “mergulhado numa profunda tristeza” (p.42), pois
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ele sabia que beber para esquecer não resolveria seus problemas. Este homem está
preso em um ciclo vicioso do qual não consegue se livrar:
“-Eu bebo, respondeu o bêbado com ar lúgubre.
-Por que é que bebes? Perguntou-lhe o principezinho.
-Para esquecer, respondeu o beberrão.
-Esquecer o quê? Indagou o principezinho, que já começava a sentir pena.
-Esquecer que eu tenho vergonha, confessou o bêbado, baixando a cabeça.
-Vergonha de quê? Investigou o principezinho, que desejava socorrê-lo.
-Vergonha de beber! Concluiu o beberrão, encerrando-se definitivamente
no seu silêncio.
E o principezinho foi-se embora, perplexo.” (p. 43)
O Empresário
No quarto planeta conhece um empresário que diz possuir estrelas e
passa todo o tempo a contá-las. Este homem leva seu trabalho muito a sério: “Eu
sou um sujeito sério, Gosto de exatidão.” (p. 45) Porém, apesar de possuir as
estrelas, ele não sabe admirá-las. Pela primeira vez o principezinho lembra da flor
que deixou em seu planeta: “Eu – disse ele, ainda – possuo uma flor que rego todos
os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que
está extinto. A gente nunca sabe! É útil para os meus vulcões, é útil para a minha
flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas...” O empresário sente-se
importante, mas o principezinho não se convence:
“-Como pode a gente possuir as estrelas?
-De quem são elas? Respondeu, ameaçador, o homem de negócios.
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-Eu não sei. De ninguém.
-Logo são as minhas, porque pensei primeiro.
-Basta isso?
-Sem dúvida. Quando achas um diamante que não é de ninguém, ele é teu.
Quando achas uma ilha que não é de ninguém, ela é tua. Quando tens uma idéia
primeiro, tu a fazes registrar: ela é tua. E quanto a mim, eu possuo as estrelas, pois
ninguém antes de mim teve a idéia de possuí-las.
-Isso é verdade, disse o principezinho. E que fazes tu com elas?
-Eu as administro. Eu as conto e reconto, disse o homem de negócios. É
difícil. Mas eu sou um homem serio!
O principezinho ainda não estava satisfeito.
-Eu, se possuo um lenço, posso colocá-lo em torno do pescoço e levá-lo
comigo. Se possuo uma flor, posso colher a flor e levá-la comigo. Mas tu não podes
colher as estrelas.
-Não. Mas eu posso colocá-las no banco.
-Que quer dizer isto?
-Isso quer dizer que eu escrevo num papelzinho o número das minhas
estrelas. Depois tranco o papel a chave numa gaveta.
-Só isto?
- E basta...
- É divertido, pensou o principezinho. É bastante poético. Mas não é muito
sério.
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O principezinho tinha, sobre as coisas sérias, idéias muito diversas das
idéias das pessoas grandes.
- Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três
vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A
gente nunca sabe. É útil para os meus vulcões, é útil para a minha flor que eu os
possua. Mas tu não és útil às estrelas...
O homem de negócios abriu a boca, mas não achou nada a responder, e o
principezinho se foi...
As pessoas grandes são mesmo extraordinárias, repetia simplesmente no
percurso da viagem.” (p.46)
O Acendedor de Lampiões
O acendedor diz que executa uma “tarefa terrível”. Antes gostava desta tarefa,
mas agora, como seu planeta gira muito rápido, não lhe sobra tempo para fazer outras
coisas:
“- Eu executo uma tarefa terrível. No passado, era mais sensato.” (...) O
regulamento não mudou – disse o acendedor. – Aí é que está o problema”.
Mesmo com a mudança da realidade, o acendedor continua fazendo a mesma
coisa e não pensa na possibilidade de mudar o regulamento. Existem pessoas, que com o
ele, não conseguem criar novas regras quando necessário. O principezinho vê um
sentido no trabalho do acendedor, o que não aconteceu no seu encontro com as outras
pessoas que conhecera até agora: “Seu trabalho ao menos tem um sentido. Quando acende
o lampião, é como se fizesse nascer mais uma estrela, ou uma flor. Quando apaga, porém,
faz adormecer a estrela ou a flor. É um belo trabalho, tem sua utilidade.” (p.47 )
E na tentativa de ajudá-lo, o pequeno príncipe faz sugestões para que o
acendedor consiga mudar esta situação, que se tornara um tormento e o deixava infeliz:
19
“-Sabes? Eu sei de um modo de descansar quando quiseres...
-Eu sempre quero, disse o acendedor. Pois a gente pode ser, ao mesmo
tempo, fiel e preguiçoso.
E o principezinho prosseguiu:
-Teu planeta é tão pequeno, que podes, com três passos, dar-lhe a volta.
Basta andares lentamente, bem lentamente, de modo a ficares sempre no sol.
Quando quiseres descansar, caminharás... E o dia durará quanto queiras.
-Isso não adianta muito, disse o acendedor. O que eu gosto mais na vida é
de dormir.
-Então não há remédio, disse o principezinho.
-Não há remédio, disse o acendedor. Bom dia.” (p. 50)
O principezinho pensa: “No entanto, é o único que não me parece
ridículo. Talvez porque é o único que se ocupa de outra coisa que não ele próprio.
(...) Era o único com quem eu poderia ter feito amizade. Mas seu planeta é mesmo
pequeno demais. Não há lugar para dois.” (p. 50)
O Geógrafo
No sexto planeta vivia um geógrafo que “nunca abandona sua escrivaninha”. Não
sabia nada sobre seu próprio planeta, afinal, este era um trabalho para exploradores.
Entusiasmado com a chegada do principezinho, lhe pergunta sobre o planeta de onde
vem:
“O geógrafo, de súbito, se entusiasmou:
-Mas tu vens de longes. Tu és explorador! Tu me vais descrever o teu
planeta!
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E o geógrafo, tendo aberto o seu caderno, apontou o seu lápis. Anotam-se
primeiro a lápis as narrações dos exploradores. Espera-se, para cobrir à tinta, que
o explorador tenha fornecido provas.
-Então? Interrogou o geógrafo.
-Oh! Onde eu moro, disse o principezinho, não é interessante: é muito
pequeno. Eu tenho três vulcões. Dois vulcões em atividade e um vulcão extinto. A
gente nunca sabe...
-A gente nunca sabe, repetiu o geógrafo.
-Tenho também uma flor.
-Mas nós não adotamos as flores, disse o geógrafo.
-Por que não? É o mais bonito!
-Porque as flores são efêmeras.
-Que quer dizer “efêmera”?
-As geografias, disse o geógrafo, são os livros de mais valor. Nunca ficam
fora de moda. É muito raro que um monte troque de lugar. É muito raro um
oceano esvaziar-se. Nós escrevemos coisas eternas.
-Mas os vulcões extintos podem se reanimar, interrompeu o principezinho.
Que quer dizer “efêmera”?
-Que os vulcões estejam extintos ou não, isso dá no mesmo para nós, disse
o geógrafo. O que nos interessa é a montanha. Ela não muda.
-Mas que quer dizer “efêmera”? repetiu o principezinho, que nunca, na
sua vida, renunciara a uma pergunta que tivesse feito.
-Quer dizer “ameaçada de próxima desaparição”.
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-Minha flor estará ameaçada de próxima desaparição?
-Sem duvida.
Minha flor é efêmera, disse o principezinho, e não tem mais que quatro
espinhos para defender-se do mundo! E se eu a deixei sozinha!
Foi seu primeiro movimento de remorso. Mas retomou coragem:
-Que me aconselha a visitar? Perguntou ele.
-O planeta terra, respondeu-lhe o geógrafo. Goza de grande reputação...
E o principezinho se foi, pensando na flor.”(p.53)
A conversa com o geógrafo assusta o principezinho e o faz refletir sobre o que
desaparece e o que é eterno.
A visita aos seis planetas fez o pequeno príncipe refletir sobre diferentes
assuntos: poder, admiração, esquecimento, ambição, submissão, efemeridade.
Finalmente, chegou ao sétimo planeta, a Terra: “A Terra não é um planeta qualquer!
Contam-se lá cento e onze reis (não esquecendo, é claro, os reis negros), sete mil geógrafos,
novecentos mil negociantes, sete milhões e meio de beberrões e trezentos e onze milhões de
vaidosos – isto é, cerca de dois bilhões de pessoas grandes (...) antes da invenção da
eletricidade, era necessário manter , para o conjunto dos seus seis continentes, um
verdadeiro exército de quatrocentos e sessenta e dois mil quinhentos e onze acendedores
de lampiões.” (p. 56) Esperava encontrar um planeta povoado, e surpreendeu-se ao não
ver ninguém. Em seu primeiro encontro na Terra, com a serpente, ficou sabendo que
estava no deserto:
“- Em que planeta me encontro? Perguntou o principezinho.
- Na Terra, na África, respondeu a serpente.
- Ah!... E não há ninguém na Terra?
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- Aqui é o deserto. Não há ninguém nos desertos. A Terra é grande, disse a
serpente.
O principezinho sentou-se numa pedra e ergueu os olhos para o céu:
- As estrelas são todas iluminadas... Não será para que cada um possa um
dia encontrar a sua? Olha o meu planeta: está justamente em cima de nós... Mas
como está longe!
- Teu planeta é belo, disse a serpente. Que vens fazer aqui?
- Tive dificuldades com uma flor, disse o príncipe.
- Ah! Exclamou a serpente.
E se calaram.
- Onde estão os homens? Repetiu enfim o principezinho. A gente se sente
um pouco só no deserto.
- Entre os homens também, disse a serpente.
O principezinho olhou-a longamente.
- Tu és um bichinho engraçado, disse ele, fino como um dedo...
- Mas sou mais poderosa do que o dedo de um rei, disse a serpente.
O principezinho sorriu.
- Tu não és tão poderosa assim... Não tens sequer umas patas... Não podes
sequer viajar...
- Eu posso levar-te mais longe que um navio, disse a serpente.
Ela enrolou-se na perninha do príncipe, como um bracelete de ouro:
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- Aquele que eu toco, eu o devolvo à terra de onde veio, continuou a
serpente. Mas tu és puro. Tu vens de uma estrela...
O principezinho não respondeu.
- Tenho pena de ti, tão fraco, nessa Terra de granito. Posso ajudar-te um
dia, se tiveres muita saudade do teu planeta. Posso...
- Oh! Eu compreendi muito bem, disse o principezinho. Mas por que falas
sempre por enigmas?
- Eu os resolvo todos, disse a serpente.
E calaram-se os dois.” (p.57)
Embora, como ela mesma disse, fosse “mais poderosa do que o dedo de um rei” e
capaz de levá-lo “mais longe que um navio” , a serpente nada fez: “Aquele que eu toco
devolvo à terra de onde veio – continuou a serpente. – Mas tu és puro e vens de uma
estrela...” Ela se coloca à disposição para ajudá-lo, caso um dia sinta muita saudade de
seu planeta. Veremos, mais adiante que, quando chega o momento, é ela quem ajuda o
principezinho a retornar para o lugar de onde veio. Após despedir-se da serpente, o
pequeno príncipe continua sua caminhada. Viu uma “florzinha insignificante” (p. 60),
escalou uma grande montanha e, após muito caminhar, encontrou um jardim cheio de
rosas e nesse momento leva um choque: “Eram todas iguais à sua flor.” (p. 62):
“E ele se sentiu extremamente infeliz. Sua flor lhe havia dito que
ela era a única de sua espécie em todo o universo. E eis que havia cinco mil,
iguaizinhas, num só jardim!” (p. 62)
O principezinho se sentia especial por pensar que sua flor era única, e ao
ver tantas outras iguais a sua, sentiu uma profunda decepção. Sofreu muito e sua
tristeza foi tão intensa, que naquele momento, o principezinho chegou e perder as
esperanças e a pensar que o vulcão extinto, que ele sempre revolvia por acreditar
que poderia voltar à atividade, nunca mais despertaria:
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“Depois, refletiu ainda: ‘Eu me julgava rico por ter uma flor única, e
possuo apenas uma rosa comum. Uma rosa e três vulcões que não passam do meu
joelho, estando um, talvez extinto para sempre. Isso não faz de mim um príncipe
muito poderoso...’
E, deitado na relva, ele chorou.” (p. 64)
Parte II – O encontro com a raposa
Depois de sua jornada por diversos planetas, sem ter encontrado nada
que lhe fizesse sentido e percebendo que talvez não fosse tão importante quanto
se julgava, o pequeno príncipe se sente vazio e triste. Ele deita na relva e chora, e
é nesse momento que está pronto para ouvir a raposa:
“O principezinho sentia-se muito infeliz por ter descoberto que sua rosa vermelha
parecia igual a tantas outras rosas. “Não sou um príncipe tão grande”, pensava. E
deitado na relva, começou a chorar.
E foi então que apareceu a raposa:
- “Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira…
- Quem és tu? Perguntou o principezinho. Tu és bem bonita…
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Tu és bem bonita…
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer “cativar”?” (p.67)
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“Eu não tenho necessidade de ti, e tu não tens necessidade de mim”, explica a
raposa para o Pequeno Príncipe. Para sentir necessidade, precisa ser cativada. A raposa
diz que ele precisa cativá-la, mas ele responde que não tem tempo, pois busca amigos e
tem muitas coisas a conhecer. No entanto, para ter esses amigos, ele precisa fazer
justamente o que a raposa lhe aconselha: aprender a cativar, fazer vínculos, pois só
conhecemos bem aquilo que cativamos. E para criar vínculos precisamos de tempo, pois
é o tempo que dedicamos as coisas que as torna especiais. Como nos diz Proust, em sua
obra Em Busca do Tempo Perdido: “E iremos amá-la durante muito mais tempo que às
outras, pois teremos levado muito mais tempo até amar.” (p. 410)
- “Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer “cativar”?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa “criar laços”…
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és ainda para mim senão um garoto
inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu
não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil
outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás
para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor…eu creio que
ela me cativou…
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra…
- Oh! Não foi na Terra, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores neste planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.” (p.68)
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A raposa diz que a vida deixa de ser monótona e se torna maravilhosa quando
aprendemos a cativar. Quando conhecemos uma pessoa e confiamos nela perdemos o medo
e saímos do nosso esconderijo.
Mas a raposa voltou à sua idéia:
- “Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas
as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me
aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol.
Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me
fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para for a da toca, como se fosse
música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo
para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste!
Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado.
O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no
trigo…
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor…cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho
amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não
tem mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas
como não existem lojas de amigos, os homens não tem mais amigos. Se tu queres um
amigo, cativa-me!” (p.69)
A raposa ensina ao príncipe a arte de cativar, ao mesmo tempo em que é
profundamente cativada. Ela propõe um ritual: ficará esperando, e quando ele chegar, a
principio não falarão nada, ficarão olhando um para o outro. Na preparação, sentimos a
presença da pessoa antes da sua chegada. Essa espera alegre, confiante, nos prepara
para a intensidade do encontro:
- “Que é preciso fazer? Perguntou o principezinho.
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- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um
pouco longe de mim, assim na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás
nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas cada dia te sentarás mais
perto…
No dia seguinte, o principezinho voltou.
-Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por
exemplo às quarto da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora
for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e
agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca
saberei a hora de preparar o coração…É preciso ritos.” (p.69)
A raposa nos lembra da importância de reconhecer a sabedoria dos rituais. Para
que a vida tenha graça e equilíbrio, é importante alternar os dias de trabalho com
aqueles dias especiais para o descanso e celebração. A raposa dá um exemplo: “ Os meus
caçadores, por exemplo, possuem ritos, dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A
quinta-feira é um dia maravilhoso. Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem
qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias”.
Como a raposa não se alimenta de pão, o trigo nunca teve nenhuma utilidade.
Mas agora, ao olhar para o campo de trigo, lembrará: dos cabelos loiros do príncipe: “o
campo de trigo vai trazer você de volta”, diz ela. O trigo ganha significado ao ser
associado à cor do cabelo do principezinho. A raposa ensina ao príncipe e o prepara
tanto para o encontro, como para a despedida. Sugere que volte ao jardim para dar a
rosa um segundo olhar. Ela introduz a idéia de que na separação há um “lucro”, pois na
separação o que foi vivido ganha mais intensidade, ao se tornar lembrança:
“- Ah, eu vou chorar...
- A culpa é tua – disse o principezinho – eu não te queria fazer mal. Mas tu
quisestes que eu te cativaste.
- Quis – disse a raposa
- Mas tu vais chorar – disse o principezinho
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- Vou – disse a raposa
- Então, não sais lucrando nada.
- Eu lucro – disse a raposa – por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou:
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu
voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.” (p. 70
A raposa tem a parte mais ativa nesse encontro, conhece a arte de cativar, e sabe
o valor dessa arte, mesmo sabendo do sofrimento que há na separação. Ela di z ao
Pequeno Príncipe para ir rever as rosas antes de se despedir dela. Quando ele voltar, ela
lhe dará de presente um segredo: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível
para os olhos”.
A raposa acrescenta: “Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas”.
Pensamos que a eterna responsabilidade está em manter vivo o aprendizado que se deu
no encontro. O “lucro” é esse aprendizado de que fala a raposa, é o que precisa ficar
preservado para sempre na nossa lembrança.
Parte III – A fonte e a despedida
E foi no oitavo dia da pane no deserto, quando acabou toda a reserva de
água, que o aviador sentiu-se assustado e com medo da morte. Antes de partirem
para a caminhada em busca da fonte, o principezinho conta ao aviador sobre o
encontro que teve com um manobreiro de trens, logo após ter se despedido da
raposa. O pequeno príncipe vê trens iluminados, indo e vindo, e pergunta ao
manobreiro para onde aquelas pessoas estão indo. O manobreiro, que tem a
função de despachar os trens com “passageiros em blocos de mil, ora para a
esquerda, ora para a direita.” (p.72), conta que “nem o homem da locomotiva sabe”
para onde estão indo, porque eles “estão com muita pressa”:
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“- Já estão de volta? Perguntou o principezinho...
- Não são os mesmos, disse o manobreiro. É uma troca.
- Não estavam contentes onde estavam?
- Nunca estamos contentes onde estamos, disse o manobreiro.
E um terceiro rápido, iluminado, trovejou.
- Estão correndo atrás dos primeiros viajantes? Perguntou o principezinho.
- Não correm atrás de nada, disse o manobreiro. Estão dormindo lá dentro, ou
bocejando. Apenas as crianças apertam seus narizes nas vidraças.
- Só as crianças sabem o que procuram, disse o principezinho. Perdem tempo com
uma boneca de pano, e a boneca se torna muito importante, e choram quando ela
lhes é tomada...
- Elas são felizes... Disse o manobreiro. (p.73)”
O manobreiro afirma que aquelas pessoas nunca estão contentes onde
estão, porque elas não estão de fato onde estão. O descontentamento não decorre
necessariamente do lugar, mas do fato de que as pessoas não estão presentes ali.
Quando alguém está com muita pressa, não dá tempo às coisas e não consegue
valorizar o momento presente, ficando insatisfeito e triste. Nesse capítulo
novamente aparece o “mito da criança feliz” na conversa entre o principezinho e
o manobreiro, em que está retratada uma visão romantizada da infância, como
um período em que as crianças brincam, são muito felizes e sabem o que
procuram. Sabemos que, na verdade, as crianças só irão compreender de fato as
experiências da infância quando adultas, ao ressignificar o que foi vivido através
da lembrança.
O pequeno príncipe tentava lhe falar da raposa e da importância da
amizade, mas a iminência do perigo impedia o aviador de pensar em qualquer
outra coisa que não fosse o motor de seu avião. É assim que o principezinho
propõe:
30
“- Tenho sede também... Procuremos um poço...
Eu fiz um gesto de desânimo: é absurdo procurar um poço ao
acaso, na imensidão do deserto. No entanto, pusemo-nos a caminho.
Já tínhamos andado horas em silêncio quando a noite caiu e as
estrelas começaram a brilhar. Eu as apreciava como num sonho, porque a
sede me tornara febril. As palavras do pequeno príncipe ressoavam na
minha memória.” (p. 75)
Mesmo sem saber para onde ir, os dois se colocaram a caminho. O
pequeno príncipe conduz o aviador, e ambos procuram juntos a fonte: têm sede,
sentem falta de algo e é essa falta que os faz continuar a busca: “ Ele estava
cansado. Sentou-se. Sentei-me junto dele.” (p. 75) Nessa procura o aviador
encontrará a fonte de água e se reconciliará com a infância. Pouco a pouco, as
lembranças vão emergindo em sua memória e ele vai compreendendo o
verdadeiro significado do segredo que lhe revelou a raposa:
“- As estrelas são belas por causa de uma flor que não se pode ver...
Eu respondi ‘É verdade’ e, mantendo-me em silêncio, fixei os olhos
nas ondulações da areia iluminada pela Lua.
- O deserto é belo – acrescentou...
E era verdade. Eu sempre amei o deserto. A gente se senta numa
duna de areia. Não vê nada. Não escuta nada. De repente, alguma coisa
irradia no silêncio...
- O que torna belo o deserto – disse o principezinho – é que ele
esconde um poço em algum lugar.
Fiquei surpreso por compreender de repente essa misteriosa
irradiação da areia. Quando eu era pequeno, morava numa casa antiga, e
diziam as lendas que ali fora enterrado um tesouro. Ninguém jamais
conseguiu descobri-lo, nem talvez o tenha procurado. Mas isto encantava a
todos. Minha casa escondia um tesouro no fundo do seu coração...
- Sim – respondi-lhe -, quer seja a casa, as estrelas ou o deserto, o
que os torna belos é invisível!”(p. 75)
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O principezinho adormeceu, o aviador pegou-o nos braços e continuou a
caminhada: “estava emocionado e tinha a impressão de carregar um frágil
tesouro.” (p. 76) Como nos diz Proust, “o espírito é um viajante numa região
obscura procurando por algo esquecido em sua bagagem, e que não consegue
lembrar o que deveria encontrar nesse lugar, ao mesmo tempo estrangeiro e
próximo.”
Depois de horas e horas caminhando sob o sol, com sede, fome, febre e
com o pequeno príncipe nos braços, a aviador descobriu o poço “ao raiar do dia”:
“O poço a que tínhamos chegado não se parecia de forma alguma
com os poços do Saara. Os poços do Saara são simples buracos na areia.
Aquele parecia um poço de aldeia. Mas não havia ali aldeia alguma, e eu
pensava estar sonhando.
- É estranho – disse eu ao principezinho. – Tudo está preparado: a
roldana, o balde e a corda.
Ele riu, pegou a corda, fez girar a roldana. E a roldana gemeu
como geme um velho cata-vento.
- Tu escutas? – disse o príncipe. – Estamos acordando o poço,
ele canta...
Eu não queria que ele fizesse nenhum esforço:
- Deixa que eu puxo – disse eu. – É muito pesado para ti.
Lentamente icei o balde e, com cuidado, o coloquei na borda do
poço. O canto da roldana ainda permanecia nos meus ouvidos, e na água
ainda trêmula eu podia ver o reflexo do sol.
- Tenho sede dessa água – disse o principezinho. – Dá-me de beber.
E eu compreendi o que ele havia buscado!
Levantei o balde até sua boca. Ele bebeu, de olhos fechados.
Era doce como uma festa. Aquela água era muito mais que um
alimento. Nascera da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana,
do esforço do meu braço. Era boa para o coração, como um presente.
Quando eu era pequeno, as luzes da árvore de Natal, a música da
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missa de meia-noite e a doçura dos sorrisos se refletiam nos
presentes que ganhava.” (p. 78)
Eles se puseram a caminho sem saber exatamente para onde estavam
indo, mas, no caminhar, encontraram o que buscavam: o poço que estava
escondido nas profundezas de sua alma despertou na caminhada, nesta jornada
que o principezinho e o aviador empreenderam juntos. O despertar da fonte
recupera a memória de um tempo anterior, de quando era criança, e a lembrança
do Natal conecta o aviador à mais longínqua infância: o nascimento do menino
Jesus. Nesse reencontro entre a sensação presente e a sensação passada, ele
desperta sua consciência para a vida verdadeira, enfim descoberta e tornada
clara, essa vida que está presente em todos os homens, mas que só é desvendada
através do esforço.
Proust, em seu livro O Tempo Redescoberto, reflete sobre uma “poderosa
alegria” experimentada ao sentir o gosto do chá e do bolo:
“É claro que a verdade que procurava não estava nela [a bebida],
mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece. (...) Deponho a taça
e volto-me para o espírito. É a ele que compete achar a verdade.” (p. 156)
O autor nos fala sobre a alegria de certos momentos de graça, instantes
quase místicos nos quais os diversos tempos se condensam na intensidade da
sensação presente. A água não possui qualidade por si mesma - quem diria que
havia tanta coisa naquela água? Ela só adquiriu aquele significado por estar ligada
a essa lembrança, a uma imagem psíquica.
Depois de terem bebido da água da fonte, o aviador e o pequeno príncipe
estão preparados para um outro ritual de passagem, o da separação. Apesar de
ter bebido da água do poço e contemplado a beleza do amanhecer no deserto, o
aviador estava triste: era hora de o principezinho voltar ao seu planeta: “A gente
corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...” (p. 81)
Neste momento, o principezinho vai a procura da serpente, a mesma que
encontrara em sua chegada à Terra. Interessante observar que a serpente
aparece em três momentos centrais da história: na infância do aviador, quando
ela o deixa muito assustado; na chegada do principezinho à Terra, onde não
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desperta nele nenhum temor; e agora, que ele pede sua ajuda para poder retornar
ao seu planeta:
“Parei, o coração apertado, ainda sem compreender nada.
- Agora, vai-te embora... – disse ele. – Eu quero descer!
Então eu baixei os olhos para o pé do muro e dei um salto! Lá estava,
erguida para o principezinho, uma dessas serpentes amarelas que nos liquidam em
trinta segundos.
(...)
Cheguei ao muro a tempo de segurar nos braços o meu caro príncipe,
pálido como neve.
- Que história é essa? Tu conversas agora com as serpentes?
Afrouxei o nó do lenço dourado que ele sempre usava no pescoço. Molhei
sua testa. Dei-lhe de beber. E agora não ousava perguntar-lhe mais nada. Olhou-me
seriamente e abraçou o meu pescoço. Sentia o seu coração bater de encontro ao
meu, como o de um pássaro morrendo, atingido por um tiro. Ele me disse:
- Estou contente de teres consertado o defeito da tua máquina. Vais poder
voltar para casa...
- Como soubeste?
Eu vinha justamente avisar-lhe que, contra toda expectativa, havia
conseguido realizar o conserto!
Ele não respondeu à minha pergunta, mas acrescentou:
- Eu também volto hoje para casa...
(...)
- Meu caro, tu tiveste medo...
É claro que tivera. Mas ele sorriu docemente.
- Terei mais medo ainda esta noite...” (p. 81)
O avião do aviador foi consertado, ele estava agora pronto para seguir
viagem. E o pequeno príncipe também já podia tranquilamente voltar para casa,
mas, para isso, precisava do veneno da serpente para se libertar do pesado corpo.
Exatamente um ano após ter saído de seu pequeno planeta, o principezinho se
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despede do aviador e pede para que ele não vá ao local da partida, talvez por não
entender que a separação pode parecer dolorosa. Ambos estão assustados com a
separação, mas o pequeno príncipe sabe que chegou o momento de partir. Como
diz Rilke em Orfeu: “todo espaço feliz é filho ou neto da separação – há um limite
que precisa ser ultrapassado, com assombro, com temor, com medo, mas depois com
felicidade.” O pequeno príncipe diz:
“- Eu parecerei estar sofrendo... parecerei estar morrendo. É assim. Não
venhas ver. Não vale a pena...
- Eu não te abandonarei.
(...)
Naquela noite, não o vi partir. Saiu sem fazer barulho. Quando consegui
alcançá-lo, ele caminhava decidido, num passo rápido. Disse-me apenas:
- Ah! Aí estás...
E segurou minha mão. Mas preocupou-se de novo:
- Fizeste mal. Tu sofrerás. Eu parecerei estar morto, e isso não será
verdade...
Eu me calara.
- Tu compreendes. É muito longe. Eu não posso carregar este corpo. É
muito pesado.
Eu continuava calado.
- Mas será como uma velha concha abandonada. Não tem nada de triste
numa velha concha...” (p. 86)
O medo da separação é superado pela sabedoria de que o essencial é invisível
aos olhos e de que na ausência, estamos presentes pela lembrança. Assim como a raposa,
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que se lembrará do principezinho sempre que vir os campos de trigo, o aviador poderá
olhar para as estrelas e se lembrar do bom amigo:
“O sentimento do irremediável me fez gelar de novo. E eu compreendi que
não poderia suportar a idéia de nunca mais escutar aquele riso. Ele era para mim
como uma fonte no deserto.
(...)
- O que é importante não se vê...
- Sim, eu sei...
- É como com a flor. Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é bom,
de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estarão floridas.
- Todas as estrelas estão floridas.
(...)
- À noite, tu olharás as estrelas. Aquela onde moro é muito pequena para
que eu possa te mostrar. É melhor assim. Minha estrela será para ti qualquer uma
das estrelas. Assim, gostarás de olhar todas elas... Serão, todas, tuas amigas. E,
também, eu lhe darei um presente...
E ele riu outra vez.
- Ah! Meu caro, meu querido amigo, como eu gosto de ouvir esse riso!
- Pois é ele o meu presente... será como a água...
- Que queres dizer?
- As pessoas vêem estrelas de maneiras diferentes. Para aqueles que
viajam, as estrelas são guias. Para os sábios, elas são problemas. Para o
empresário, eram ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu, porém, terás
estrelas como ninguém nunca as teve...
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- Que queres dizer?
- Quando olhares o céu de noite, eu estarei habitando uma delas, e de lá
estarei rindo; então será, para ti, como se todas as estrelas te rissem! Dessa forma,
tu, e somente tu, terás estrelas que sabem rir!
E ele riu mais uma vez.
- E quando estiver consolado (a gente sempre se consola), tu ficarás
contente por teres me conhecido, tu serás sempre meu amigo. Terás vontade de rir
comigo. E as vezes abrirás a tua janela apenas pelo simples prazer... e teus amigos
ficarão espantados de ver-te rir olhando o céu. Tu explicarás então: “Sim, as
estrelas, elas sempre me fazem rir!” E eles te julgarão louco.
E riu de novo.
- Será como se eu lhe houvesse dado, em vez de estrelas, montes de
pequenos guizos que sabem rir.” (p.86)
O aviador disse ao principezinho que “não poderia suportar a idéia de nunca
mais escutar aquele riso.” (p.84), e então o pequeno príncipe o consola criando uma
forma de permanecerem na lembrança um do outro. Assim, ao olhar as estrelas, o
aviador – e somente ele - ouvirá o riso do pequeno príncipe em todas elas.
No poema “Ouvir Estrelas”, de Olavo Bilac, observamos a mesma idéia:
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto
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Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
Nas últimas páginas do livro, o aviador desenha duas vezes a paisagem do lugar
em que o principezinho apareceu e desapareceu na Terra. No primeiro desenho, vemos
uma estrela e o principezinho em uma duna de areia. O segundo desenho tem a mesma
estrela e a duna, porém o principezinho não está mais na paisagem, justamente porque
não precisa estar representado, afinal “o essencial é invisível aos olhos”.
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O livro termina com um convite do aviador para que encontremos o pequeno príncipe , a
infância, que existe dentro de cada um de nós.
“Olhem atentamente essa paisagem, para que estejam certos de
reconhecê-la, se viajarem um dia pela África, através do deserto. E se passarem
por ali, eu lhes peço que não tenham pressa, e esperem um pouco bem debaixo da
estrela! Se, de repente, um menino vem ao encontro de vocês, se ele ri, se tem
cabelos dourados, se não responde quando é perguntado, adivinharão quem ele é.
Façam-me então um favor! Não me deixem tão triste: escrevam-me depressa,
dizendo que ele voltou...”(p.93)
Para nós, essa é a história do percurso de um ser humano que passou da nãocomunicação para a comunicação plena, ao aprender a dar significado ao mundo e
sentido à sua vida. A infância representa um primeiro tempo da vida, do brincar, em que
na imaginação, no fazer de conta, tudo é possível. Em certo momento, começamos a nos
relacionar com o mundo externo e com os outros, e percebemos que para se relacionar
verdadeiramente é preciso aprender a cativar, a criar laços. É somente após esse
aprendizado que estamos prontos para o encontro verdadeiro, para a comunicação
plena, e para a separação, quando for necessário. Antes do encontro com o
principezinho, o aviador era uma pessoa que não tinha conseguido fazer essa passagem
de sua própria fantasia para a comunicação com o mundo externo. E o pequeno príncipe,
só após ter aprendido a arte de cativar com a raposa, pôde fazer a caminhada com o
aviador, em que juntos beberam da água da fonte e finalmente se separaram. A
separação representa o momento em que o vivido pode ser eternizado através da
lembrança - e na lembrança o passado se conecta com esse outro tempo da humanidade,
da memória ancestral.
O segredo da infância dorme na noite do tempo: na caminhada, o aviador
ressignifica a magia dos contos de fadas. É nesse intrincado que reside a verdade do eu
integrado.
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