NEPAM – Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais / Unicamp AS002 – Fundamentos Conceituais de Ecologia Marianne Silva Oliveira ENSAIO II Restauração Ecológica : princípios ecológicos x base conceitual A Restauração Ecológica é frequentemente vista apenas como uma prática agronômica sem respaldo conceitual adequado para uma disciplina científica (Allen 1997), estando muito concentrada nas mãos de administradores e se movendo lentamente no domínio científico da ecologia da restauração. O reconhecimento das limitações na pesquisa com restauração, o que inclui o uso de amplas áreas com grandes custos operacionais, problemas com referências e objetivos para restauração, tem inibido a contribuição da comunidade científica, mais especificamente os ecólogos, que não têm visto a ecologia da restauração como uma oportunidade para avançar a teoria básica. Por outro lado, profissionais identificaram a necessidade de fundamentos ecológicos mais sólidos para o desenvolvimento e implementação de projetos de restauração (Clewell & Rieger 1997). Jordan et al. (1987) advertiu que a pesquisa para restauração poderia contribuir para o entendimento ecológico da estrutura básica e funcionamento dos ecossistemas, afirmando que uma forma poderosa e válida de se estudar alguma coisa é através da tentativa de reconstruí-la ou reabilitá-la. Neste sentido, seria interessante que a prática da restauração fosse concebida como experimentação, para o teste de idéias básicas sobre porque algumas técnicas funcionam e como a comunidade funciona sobre determinadas condições. A histórica contradição entre teoria e prática na ecologia da restauração aponta para problemas centrais que vão desde os entraves na construção de uma base conceitual adequada até as freqüentes utilizações de conceitos inadequados para análise de sistemas ecológicos. De acordo com a definição proposta pela Society for Ecological Restoration – SER, “ Restauração Ecológica é o processo de assistência da recuperação de ecossistemas que têm sido degradados, danificados ou destruídos” (SER, 2004). A definição parece um tanto quanto vaga, pois não esclarece como essa assistência deve ser prestada, que tipo de ações e mecanismos são mais apropriados para assistir a recuperação e também não menciona os objetivos que devem ser alcançados, que é um assunto gerador de discussão e controvérsia. Idealmente seria esperado que as ações de restauração fossem formuladas com base no conhecimento científico disponível sobre o funcionamento de ecossistemas, porém na prática essa forma de atuação é mais uma exceção do que uma regra (van Diggelens 2001). Muitas premissas e princípios que fundamentam projetos de restauração têm suas raízes em conceitos ultrapassados de como os ecossistemas funcionam (Parker & Pickett 1997). A ecologia pode apresentar abordagens múltiplas para uma mesma questão, que resulta em diferentes concepções sobre um mesmo objeto de estudo. Logo, a maneira como concebemos os processos ecológicos, de acordo com os princípios e teorias consideradas, pode resultar em práticas restaurativas com diferentes enfoques e objetivos. Aqui podemos identificar o objetivo deste ensaio teórico, que pretende investigar como alguns princípios ecológicos são utilizados para fundamentar práticas de restauração ecológica. Breve histórico do conceito de sucessão ecológica Um tema central para a restauração é a sucessão ecológica, visto que a recuperação dos ecossistemas envolve as transformações dinâmicas da vegetação durante o processo. O conceito de sucessão ecológica constitui um tema exemplar sobre a possibilidade de múltiplas abordagens, resultantes de diversos estudos ao longo da história da ecologia. O conceito de sucessão foi desenvolvido nas primeiras duas décadas do século XX. Embora Cowlles (1899) foi um pioneiro na pesquisa de seqüências sucessionais ainda no final do século XIX , foi Clementes (1916) quem ofereceu uma teoria compreensiva e lógica sobre sucessão em plantas, a qual dominou o campo científico na primeira metade do século XX. A teoria de Clements envolve conceitos como previsibilidade, convergência e equilíbrio, apresentando um teor altamente determinístico ao postular que as mudanças na vegetação acontecem de modo ordenado e previsível em direção ao clímax, condição de estabilidade no qual a vegetação alcançaria o equilíbrio , que seria controlado apenas por condições climáticas. Nesta teoria a comunidade de plantas é concebida como um super-organismo integrado em que fatores externos como imigração de plantas e variações nas condições físicas do meio são consideradas irrelevantes para a trajetória do desenvolvimento sucessional. Esse ponto de vista foi questionado por Gleason (1926), que enfatizou importância de processos estocásticos no estabelecimento a e manutenção de uma comunidade de plantas. Gleason questionou também a afirmação de que comunidades de plantas eram entidades orgânicas altamente integradas, chamando atenção para a unidade e comportamento individualístico das espécies de plantas em oposição aos padrões generalistas utilizados nas classificações de associações de plantas. Seguindo a mesma linha de questionamento da teoria clementesiana, Tansley (1935) criticou fortemente a hipótese de que todas as mudanças na vegetação de uma região particular iriam convergir para o mesmo tipo de clímax, propondo a existência de diferentes tipos de clímax associados a condições climáticas regionais e também a fatores locais do ambiente físico. É importante notar nas proposições desses autores a crescente atenção dada para a variabilidade das condições ambientais e sua influência na interação da comunidade de plantas, enfoque que se opõe a idéia holística de desenvolvimento direcional e previsível do conceito de Clements sobre sucessão. No sentido de romper com o paradigma determinístico de sucessão, Watt (1947) na síntese sobre padrões e processos em comunidade de plantas, propõe que as comunidades de plantas devem ser melhor concebidas como mosaicos de fases estruturais que estão sempre em mudança e Whittaker (1953) faz a junção das visões de Gleason e Tansley para descrever a vegetação clímax em constante mudança ao longo de uma paisagem de variação contínua. Toda essa linha de trabalhos de questionamentos ao conceito de sucessão clementesiano constitui a base precursora do paradigma contemporâneo da dinâmica da vegetação, que rompe com a visão de desenvolvimento direcional e previsível da vegetação e considera a presença de distúrbios como fatores constantes que contribuem para a dinâmica da vegetação (Pickett & White, 1985). Porém, essa visão moderna só foi consolidada a partir dos anos 70, pois antes disso houve predomínio da visão holística de equilíbrio e estabilidade de processos ecológicos fundamentada nas proposições teóricas de Margalef (1963) e Odum (1969) sobre a sucessão ecológica em ecossistemas. Basicamente, esses autores tentaram construir uma teoria unificada de sucessão, na qual ocorreria o desenvolvimento progressivo na direção de um tipo de ecossistema com propriedades expressas de modo maximizado e em equilíbrio. Segundo esta perspectiva, o local físico e recursos bióticos se manteriam constantes por um longo período de tempo durante o qual ecossistemas simples se transformaria em sistemas complexos, com mais níveis tróficos e diversidade de espécies e formas de vida. Em termos filosóficos, a teoria sintética da sucessão de Margalef e Odum, formulada em termos de parâmetros ecossistêmicos e noções de termodinâmica é similar à teoria de Clements. Os dois corpos de teoria incluem esquemas de desenvolvimento onde mudanças sucessionais são vistas largamente como conseqüências das relações e interações na comunidade , enquanto fatores externos como distúrbios de larga-escala, variação climática e imigração de novas espécies são relegados a papéis menores e/ou são considerados constantes. (Glenn-Lewin et al. 1992) Este paradigma determinístico de sucessão foi predominante até início dos anos 70, embora houvesse ausência de um suporte empírico adequado e representava mais uma filosofia de como a natureza deveria ser do que uma teoria derivada de dados empíricos e testada cuidadosamente através da experimentação. O paradigma contemporâneo concebe a sucessão como um caso específico da dinâmica da vegetação, que é fundamentada na idéia de que as diferentes capacidades das plantas em se estabelecer num local específico é que determina a natureza da comunidade de plantas que poderá existir no local, o que envolve fatores como: disponibilidade de locais, diferentes conjuntos de espécies disponíveis nos locais e performance diferencial das espécies ( Pickett & Cadenasso 2005). A partir do breve histórico das idéias a respeito do conceito de sucessão ecológica, é possível caracterizar sinteticamente os paradigmas em oposição (tabela 1). Segundo o paradigma clássico, os ecossistemas alcançam pontos estáveis na sucessão, onde permanecem em equilíbrio ou homeostase. Esse modelo determinístico concebe os ecossistemas como sistemas fechados e auto-reguláveis em que distúrbios e eventos que podem alterar as condições de equilíbrio são vistos como exceções. No paradigma contemporâneo, ecossistemas são sujeitos a distúrbios naturais constantes e podem ser regulados por processos internos ou externos, já que são concebidos como sistemas abertos e a sucessão ocorre de modo probabilístico podendo levar a estado de equilíbrio múltiplos. Tabela 1: Breve descrição das premissas teóricas dos paradigmas clássico e contemporâneo Paradigma clássico Paradigma contemporâneo visão determinística de sucessão visão probabilística de sucessão equilíbrio único – estático equilíbrio múltiplo – dinâmico ecossistemas fechados ecossistemas abertos auto-regulação regulação interna e externa distúrbios são exceções distúrbios são constantes Mas o que tudo isso tem haver com a restauração? A teoria da sucessão ecológica é vista como uma ferramenta valiosa para a restauração, a medida que pode prever a trajetória das comunidades durante o processo de recuperação dos ecossistemas. Em muitos casos, a prática da restauração é entendida como a manipulação dos processos de sucessão e diante de diferentes paradigmas sobre o funcionamento dos ecossistemas, a escolha entre um deles resulta em diferentes enfoques e objetivos na restauração. O paradigma clássico, em sua predominância histórica, deixou alguns resquícios fortemente cristalizados, por exemplo, a idéia de alcance obrigatório de um estágio de máxima estabilidade, a partir da qual provavelmente foi derivada a idéia de “natureza em equilíbrio”. Mesmo com a existência de questionamentos que levaram ao desenvolvimento de um novo paradigma, a teoria clássica foi predominantemente assimilada em várias áreas do conhecimento não-ecológico, como disciplinas das áreas de humanas e exatas (Scoones 1999), que resistem fortemente em revisar os conceitos clássicos para incorporação de conceitos atuais que consideram a dinâmica dos processos ecológicos. A adoção do paradigma clássico pode resultar em práticas simplistas e objetivos idealizados para o ecossistema restaurado. Uma idéia comum, advinda da perspectiva de equilíbrio da natureza, é a ilusão de que a restauração proporcionará o retorno do ecossistema restaurado para um estado de clímax., sendo este baseado em características do próprio sistema em situações pretéritas aos distúrbios ocorridos. Esta visão além de desconsiderar completamente a complexidade dimensional e dinâmica dos sistemas ecológicos, contribui para reforçar uma perspectiva idealizada sobre o conceito de sucessão como um processo ordenado, direcional e convergente para estabilidade, com exclusão total das possibilidades de influência de eventos externos e estocásticos. De acordo com Parker & Pickett (1997) o paradigma contemporâneo é o único enfoque válido para a restauração, pois considera processos e contextos na dinâmica dos ecossistemas. Processos se referem às interações bióticas e abióticas que podem afetar simultaneamente uma variedade de aspectos ecossistêmicos. Já o contexto se refere à conexão espacial do local de estudo com a paisagem do entorno. “A prática da restauração deve promover o re-estabelecimento dos processos ecológicos que garantem a funcionalidade do ecossistema, levando em consideração os aspectos históricos locais e o contexto espacial” (Parker e Pickett 1997) Se os objetivos da restauração envolvem a manutenção dos processos responsáveis pela estrutura e função do ecossistema, é necessário um modelo que considere os sistemas ecológicos como entidades dinâmicas e passíveis de influências de processos internos e externos. Porém, diante da complexidade de modelos que tratam adequadamente a dinâmica dos sistemas ecológicos considerando a variabilidade de processos e possibilidade de eventos estocásticos, a visão determinística de equilíbrio e previsibilidade de processos ecológicos parece ter mais aceitação, pelo menos entre profissionais envolvidos na prática da restauração, pois essa visão pode assegurar (pelo menos na teoria) o alcance de um estado de estabilidade, que é o objetivo máximo requisitado pelo senso comum , no que se refere as condições esperadas para ecossistemas restaurados, que pode ir de estabilidade até auto-sustentabilidade. Neste sentido, o paradigma clássico reforça uma perspectiva idealizada de como a natureza deveria ser, e baseado nesta perspectiva muitas técnicas são aplicadas sem qualquer respaldo teórico ou dados empíricos. Alguma generalizações referentes a heterogeneidade de habitats e re-estabelecimento da fauna são amplamente aceitas, embora nem mesmo tenham sido efetivamente testadas. Com relação à restauração de habitas, a idéia geral é que o aumento da heterogeneidade do habitat pode levar ao aumento da biodiversidade e com relação a fauna, predomina a hipótese de que a recomposição da vegetação implica no aparecimento da fauna. Porém é importante reconhecer que essas generalizações para contextos de restauração continuam amplamente não testadas (Palmer 1997). Por uma base conceitual Num cenário de impactos antrópicos extensivos sobre os ecossistemas, a reparação de danos constitui uma tarefa fundamental, em que a ecologia da restauração deve ser um componente integral no manejo do uso da terra , que para ser efetivamente aplicável deve apresentar uma base conceitual consistente (Hobbs e Harris 2001). Embora profissionais da área da restauração reconheçam a necessidade de um sistema conceitual, eles também chamam atenção para necessidade de informações locais específicas (Clewel &Rieger 1997). A utilização de modelos generalistas é apontada como um dos principais entraves para a aplicação de técnicas restaurativas, que devem combinar princípios gerais com as condições particulares do local a ser restaurado. Logo é necessário um modelo de base conceitual que forneça tanto o entendimento geral de como o ecossistema funciona e os fatores envolvidos na restauração do sistema quanto as metodologias que podem ser aplicadas em situações específicas (Figura 1), relação que aponta para a necessidade de um diálogo contínuo entre aspectos conceituais e práticos da ecologia da restauração. Figura 1: Relação ente base conceitual e aplicações concretas (Hobbs & Harris 2001 – adaptado de Lawton 1996) Idealmente seria esperada uma interação contínua entre aspectos gerais/teóricos e específico/práticos, em que a base conceitual pode orientar ações específicas e as experiências concretas poderiam constituir cenários para obtenção de dados empíricos . Logo, a formulação de uma base conceitual vai ao encontro do mais amplo objetivo da teoria científica que é o entendimento e a explicação da realidade observada através de um sistema de conceitos, leis e generalizações empiricamente baseadas (Pickett et al. 1994). E além do objetivo científico de relacionar padrões de mudança na vegetação através de estruturas teóricas explicativas, há inúmeras razões práticas para entender e se possível predizer as mudanças na vegetação. A dinâmica específica de qualquer sistema e a trajetória que poderá tomar após início da restauração depende da história particular e processos locais em atuação além do contexto da paisagem no qual está inserido (Parker & Pickett 1997). Logo, a adoção do paradigma contemporâneo que concebe a dinamicidade dos sistemas ecológicos, não deve implicar em restrições para a previsibilidade, desde que seja realizada uma modelagem adequada que englobe processos, contextos e o acaso de fatores e eventos na dinâmica da vegetação. No caso da restauração, a previsibilidade é uma questão central no que se refere ao planejamento das ações e intervenções para assistência da recuperação de um ecossistema. Porém, previsões devem ser derivadas empiricamente do conhecimento dos mecanismos responsáveis pelas mudanças da vegetação que podem ser aplicadas para locais particulares em vez de serem dedutivamente derivadas de teorias universalmente aplicadas. Definindo objetivos realistas para a restauração ecológica O estabelecimento de objetivos para projetos de restauração é frequentemente descrito como a tarefa mais importante do projeto, pois cria expectativas, dirige planos de ações e determina o tipo de monitoramento pós-projeto. Porém a procura por sentenças universais para objetivos da restauração é geradora contínua de discussão e controvérsia (Ehrenfel 2000). A formulação de objetivos é uma questão amplamente discutida por restauradores e é comum o estabelecimento de metas referentes a recriação de comunidades e/ou ecossistemas naturais ou auto-sustentáveis. Porém é preciso esclarecer até que ponto essas metas são realistas e alcançáveis ou apenas consistem em discurso verde e retórica ambiental. A primeira questão a ser analisada é o conceito de natural. Numa análise bem simplista, natural em oposição à artificial pode implicar na ausência do ser humano. Mas como é possível recriar algo natural através de um processo artificial de intervenção humana que é a restauração? Mais uma contradição implícita na recriação do natural, é que as paisagens naturais são idealizadas como estado de estabilidade e equilíbrio, visão que desconsidera a complexa dinâmica dos ecossistemas e os processos multidimensionais, que incluem o regime de distúrbios internos e externos ao qual o ecossistema pode estar submetido. Neste sentido, a auto-sustentabilidade é também uma condição idealizada, pois a restauração requer intervenções ativas e contínuas para a manutenção dos ecossistemas restaurados que são influenciados por processos internos e externos além de eventos estocásticos. Segundo Diamond (1987), se declararmos que nosso objetivo é restaurar comunidades para seu estado natural ou para uma condição auto-sustentável, nós estaremos propondo um objetivo fictício que poderá apenas criar conflitos entre ecólogos e administração pública e financiadores. Logo, os projetos de restauração devem ser executados sem a pretensão de resultar numa replica do sistema natural original. Para isso, é necessário um total realismo quanto às limitações do processo de restauração, em que a admissão e identificação das diferenças entre um ecossistema funcional criado e o presumido sistema original e natural irá ajudar a guiar também a legislação e política (Ehrenfel 2000). “Good ecological restoration entails negotiating the best possible outcome for a specific site based on ecological knowledge and the diverse perspectives of interested stakeholders; to this end it is as much process as product oriented” (Higgs, 1997) Por fim, é importante ter em mente que as condições ecológicas não são os únicos fatores determinantes para o sucesso ou falhas de projetos de restauração ecológica. As circunstâncias sócio-econômicas e percepções da natureza das pessoas envolvidas são fatores chaves neste processo (Higgs, 1997). REFERÊNCIAS ALLEN, E. 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