First Time. The historical Vision of an AfroAmerican people: Reflexões a respeito da construção do objeto e procedimentos analíticos usados por Richard Price Sara Alonso* Resumo: Pretendo refletir, neste texto, sobre o uso que Richard Price faz dos “relatos dos Saramaka” relativos às versões do passado histórico deles. Para isto, focalizo os critérios que Price utiliza para a construção das entrevistas ou materiais de campo e para a análise ou construção do texto. No limite, tentarei analisar até que ponto o autor leva a sério o contexto da relação pesquisador-pesquisado: quem são os sujeitos (pesquisador-entrevistado) que estão falando, de onde estão falando, sobre o que estão falando e para quem? Este procedimento metodológico permitirá desvendar alguns dos riscos e implicações dos usos, por parte de Price, da estratégia metodológica (fontes orais e escritas) e teórica (etnohistoria), tais como a cristalização e imposição de determinado ponto de vista sobre o “ser Saramaka”. Palavras-chave: “efeito teoria”; intelectual-narrador; fontes orais-escritas; invenção do passado; pesquisador-pesquisado Abstract: This article analyses the uses of the Saramaka accounts on their past by Richard Price. It focuses on the criteria chosen by Price for the definition of his interviews and his field material for the analysis and construction of his own text. It addresses the context of the relationship between researcher and those researched: who are the subjects speaking? From where they speak? About what and for whom they speak? This method intends to show the risks and implications of a methodological (oral and written texts) and theoretical (ethnohistory) strategy, such as the crystallization and Revista Estudos Amazônicos • vol. V, nº 2 (2010), pp. 155-177 imposition of a specific viewpoint about what means “being Saramaka”. Keywords: scholar-narrator; written-oral sources; past-creation, ResearcherSubject 1.Breve resumo do texto de Richard Price e apresentação dos objetivos O livro de Richard Price, First Time. The historical Vision of an AfroAmerican people, é, segundo o autor, “uma tentativa de comunicar alguma coisa da própria visão dos Saramaka a respeito dos seus primeiros anos de formação”, que são definidos pelos Saramaka de hoje como fesi-tem. Ainda que fesi-tem literalmente signifique “Tempo Passado”, Price preferiu traduzir como Primeiros Tempos – a era do povo dos tempos antigos – priorizando as implicações de poder atribuídas pelo grupo a esse período comparativamente com o passado mais recente. Motivado, em parte, pela preocupação de que a visão histórica dos “povos não-letrados” encontre espaços nos registros escritos, Price tenta mostrar, em seu texto, o que “verdadeiramente ocorreu” durante os aproximadamente 100 anos de guerra pela liberdade (iniciada em 1685, os Saramaka assinaram, em 1772, com o governo colonial holandês os denominados Tratados de Liberdade). Com este objetivo o autor examina um conjunto de formas ou eventos especiais que os Saramaka, além de preservar deliberadamente para manter viva a consciência histórica, escolhem para pensar, falar e atuar. Tentando levar a sério a própria seleção realizada pelos Saramaka, Price focaliza dezenas desses eventos escolhidos das diferentes falas dos seus informantes nas quais os Saramaka expõem as versões sobre o seu passado. O autor introduziu fragmentos desses depoimentos na parte superior da página (sempre em itálico) do livro, e, na parte inferior, nos apresenta seus próprios comentários, articulados com textos escritos – extraídos de arquivos holandeses – que referem ao mesmo período histórico. A finalidade desta “reconstrução histórica do mundo antigo” é uma maneira de captar a totalidade da experiência de vida histórica (um tipo de hermenêutica dirigida a desvendar o sentido significativo da 156 • Revista Estudos Amazônicos experiência de vida histórica e das ações para seus atores), dando voz às pessoas que até então foram forçadas a se calar. Nesse sentido, o livro First Times fornece a possibilidade para os “verdadeiros maroons” se exprimirem sobre sua própria vida, sobre seu passado, com a “vontade de construir contra vento e maré um mundo novo”, e também “homenagear sua dignidade frente à opressão e à rejeição constante de serem tratados como objetos pelos estrangeiros”.1 O texto igualmente pretende ser um tipo de experiência sobre as formas de representação da história e etnografia, visando expressar a justaposição das vozes (a denominada “multivocalidade” ou “verdades parciais”), a do colonizador europeu e dos colonizados Saramakas, a do historiador nativo e a do pesquisador ocidental. Objetivos Partindo do pressuposto de que as entrevistas ou trabalho de campo devem ser inseridos dentro do contexto de relações sociais criadas entre pesquisador e pesquisado, pretendo analisar, neste texto, o uso que Richard Price faz dos relatos, levando em consideração os critérios utilizados para a construção das entrevistas ou materiais de campo e para sua análise ou construção do texto. Isto significa que tentarei compreender em que medida o autor realiza as condições sociais de produção do seu material, ou dos contextos ou situações de produção da entrevista. No limite, tentarei analisar até que ponto ele leva a sério o contexto da relação pesquisador-pesquisado: quem são os sujeitos (pesquisador-entrevistado) que estão falando, de onde estão falando, sobre que estão falando e para quem? Questões, em certa medida já sugeridas por Malinowski2, que foram posteriormente desenvolvidas por Bourdieu.3 No trabalho de Price, conforme foi mencionado acima, são usados relatos de diferentes informantes os quais referem a multiplicidade de contextos de produção ou situações diversas de entrevista, porém todos têm, como finalidade, comunicar as versões sobre o conhecimento histórico sobre os Primeiros Tempos através das principais formas nas quais se exprime esse “conhecimento especializado”. Tais versões são expressões que manifestam a consciência dos Saramaka sobre sua experiência coletiva de vivência histórica como fonte de força para mudar o mundo futuro.4 Revista Estudos Amazônicos • 157 Usar como estratégia analítico-metodológica as questões acima mencionadas permite não apenas analisar os procedimentos utilizados pelo autor para a construção e uso dos seus dados de campo e/ou para a construção do seu objeto de estudo, mas também revelar certos riscos e implicações que seus procedimentos supõem para a contribuição do conhecimento científico e, em última instância, para a compreensão das realidades sociais. Ao caracterizar seu objeto de pesquisa como “povo afro-americano”, no limite, Price pressupõe, além de atribuir como sua unidade de análise uma coletividade, a definição de que a identidade dos Saramaka se fundamenta numa idéia de consciência de identidade coletiva a partir da oposição escravos e libertos.5 Ampliando essa linha de argumentação e deixando claro que não pretendo fazer análise detalhada do conteúdo das versões, considero a pesquisa de Price sobre os Saramaka exemplar para mostrar a contribuição dos cientistas para os processos de invenção de grupos e identidades sociais e culturais, concretamente para a criação (leia-se invenção) de princípios de definição legítima de grupo. Sua estratégia metodológica (uso de fontes orais e escritas) e teórica (etnohistoria) contribuem para cristalizar e impor determinado ponto de vista sobre o “ser Saramaka”, o ponto de vista oficial (ideologia dos Primeiros Tempos). 2. Contextualizando a obra A obra de Price pode ser contextualizada dentro da denominada tradição de estudos sobre culturas ou grupos “afro-americanos”, concretamente sobre “comunidades cimarronas” (ou quilombos, palenques). Longe de querer realizar análise dessa produção, a intenção deste artigo é apenas indicar alguns elementos que nos permitam situar o contexto referencial com o qual, direta ou indiretamente, este autor dialoga. O estudo do cimarronagem e das comunidades cimarronas, dentro da divisão do trabalho intelectual, tem sido atribuído como objeto legítimo de estudo dos historiadores interessados na estrutura e funcionamento da sociedade escravista e nas diversas formas de resistência dos escravos ao sistema das plantações do Novo Mundo. Dentro dessas formas de resistência, as comunidades cimarronas representam “um heróico desafio a autoridade colonial e uma prova viva da existência de uma consciência 158 • Revista Estudos Amazônicos escrava, que se recusava a ser limitada pela concepção ou manipulação que os brancos tinham dela”.6 Foi a partir da década de 1960 que o estudo sobre as comunidades formadas por descendentes de escravos fugidos (leia-se comunidades cimarronas), foi se tornando, cada vez mais, objeto de interesse de sociólogos e, sobretudo, de antropólogos, como objetos legítimos de estudo, similares ao estatuto das denominadas sociedades tribais ou indígenas. Nos anos 1970, os estudos relativos à compreensão e análise destas sociedades tentaram superar as oposições “subjetivo-objetivo”, “interno-externo”, “sociedade-cultura”, procurando renovar as perspectivas de análise que reforçam a tradicional polarização “contato/isolamento”. Polarização compreendida em termos de valorização dos aspectos internos ou “nativos tradicionais” (atributos de isolamento e pureza), por oposição àqueles que acentuam os aspectos “modernos” ou “externos” devido ao contato (atributos da aculturação). Dentro desse contexto é que emerge, no decorrer dos anos 1980, renovada perspectiva etnohistórica ou história etnológica. Esta perspectiva antropológica se propõe compreender os grupos e sociedades, concretamente as sociedades tribais, consideradas na tradição antropológica “sem história”. Partindo de proposta teórico-metodológica que pretende vincular história e antropologia, esse tipo de produção tem como um dos seus objetivos recuperar a visão que essas sociedades têm da sua história. O livro de Price sobre os Saramaka – junto com o trabalho de Sahlins7 sobre grupos “autóctones” do Hawaí e o de Renato Rosaldo8 sobre os “caçadores de cabeça Ilongot” – é considerado um dos expoentes da “nova recuperação da história”. Também na década de 80 apareceu no campo da produção antropológica uma série de trabalhos que tratam, direta ou indiretamente, da produção de discursos ou teorias normativas e os vínculos entre estes e a política, o que revelaria a ocultação do outro a partir da fabricação da “exotização” como uma das implicações da dominação.9 Tais trabalhos apresentavam como condição indispensável para a produção de conhecimento antropológico a necessidade de refletir sobre as implicações que podem ser depreendidas da relação “pesquisador e pesquisado”. Esse debate, considerado central para a prática etnográfica, pressupõe, no limite, refletir a respeito das elaborações do antropólogo, Revista Estudos Amazônicos • 159 indagando se suas interpretações são subjetivas ou objetivas (os denominados problemas morais e éticos da etnografia).10 Dentro deste contexto, a monografia de Price é considerada exemplo paradigmático por sua tentativa de propor novos caminhos para o “fazer etnográfico”. Isto é, por se propor estabelecer ruptura com o denominado modelo clássico de fazer etnografia sobre as sociedades ditas tradicionais ou tribais, tanto na construção e estrutura narrativa do texto, quanto no enfoque e instrumental analítico utilizado. Vale sublinhar também que a partir dos anos 1990, surge em diversos países de América, especialmente no Brasil, Colômbia e Suriname, um debate político objetivando discutir os direitos das comunidades quilombolas sobre as terras que tradicionalmente ocuparam como descendentes de quilombos. Esta problemática não pode ser, certamente, desvinculada do debate sobre o “multiculturalismo” e/ou “diálogo entre culturas”, cujo reconhecimento e expressão social maior se deu, sobretudo, a partir das diversas atividades e encontros realizados, entre fins dos anos 1980 e princípios dos anos 1990, em razão das diferentes comemorações sobre os 100 anos da abolição da escravidão, os 500 anos do descobrimento da América, entre outros. Um dos efeitos desses debates e encontros políticos tem sido o incremento do interesse pelo estudo das culturas e sociedades “afro-americanas”, dentro dos quais, o trabalho de Price continua sendo, ainda hoje, uma das principais referências teóricoanalíticas. 3. Contextualizando o campo: o contato e a relação pesquisador e seus speakers Segundo Price, os Saramaka são uma das “seis tribos maroons” (ou Bush Negro), comunidades formadas por escravos fugidos do Suriname que conseguiram a liberdade, na década de 1760, após quase cem anos de luta. Em fins dos anos 1970, os Saramaka somavam aproximadamente 15.000 pessoas, cerca de 10% do total, em palavras de Price, da “população nacional de Suriname”.11 O primeiro contato de Richard Price com os Saramaka (que viajou ao Suriname com a sua esposa, Sally Price) ocorreu na segunda metade dos anos 1960, realizando durante cerca de dois anos trabalho de campo etnográfico sobre ampla linha de questões: “estrutura social”, “religião”, 160 • Revista Estudos Amazônicos “linguagem”, “arte”. Alguns dos resultados das primeiras pesquisas de Price no Suriname foram publicados em “Saramaka Woodcarving: The Development of and Afroamerican Art”12 e “Avenging Spirits and the Structure of Saramaka lineages”.13 No trabalho intitulado “Saramaka Emigration and Marriage: a Case Study of Social Change”14, Price, servindo-se de pesquisa documental e outras fontes escritas como procedimento metodológico complementar ao trabalho de campo, adota uma dimensão “histórica” e/ou perspectiva de “ethno-reconstructions”, com o objetivo de explicar, por exemplo, as mudanças ocorridas, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, na estrutura social Saramaka. Mudanças provocadas, segundo o autor, pela “dependência [dos Saramaka] da sociedade da costa”, pela procura de bens materiais e de consumo e pela migração de homens Saramaka para trabalhar na extração e transporte de madeira.15 Nesse mesmo trabalho, Price assinala o “interesse que [os Saramaka] têm, comparado com outros grupos tribais, por sua própria história, particularmente pelo papel que têm os eventos passados, via mecanismo sobrenatural, na definição das relações sociais”.16 Destaque-se que os resultados deste trabalho, inicialmente apresentados no encontro de Nederlandse Ethnologenkring (Rotterdam, março de 1970), segundo nos indica o autor, em nota de pé de página, se vinculam ao primeiro período de trabalho de campo supostamente relacionados com a tese de doutorado, contextualizada dentro da pesquisa do National Institute of Mental Health. Na mesma nota, o autor informa sobre outros elementos de sua trajetória intelectual e linha de produção, como por exemplo, sua pesquisa desenvolvida nos arquivos da Holanda, financiada pela NATO Post-doctoral Fellowship in Science, e sua participação no “Seminario Bush Negro”, realizado pela Universidade de Amsterdam entre 1969 e 1970. Na década de 1960, os Saramaka estavam distribuídos em 70 vilas localizadas em área de floresta, ao longo do curso do rio Suriname. Em contraste com as vilas do baixo curso do rio Suriname, que somavam um total aproximado de 4.000 a 5.000 pessoas, as do alto curso “tinham pouco contato com o mundo de fora”, tendo população aproximada, por vila, de 200 pessoas.17 Referindo-se a Vila Dangogó, situada no curso alto do rio Suriname, na qual Price desenvolveu, nesse primeiro período, sua pesquisa de campo, diz o autor: “é, sem dúvida, a região mais Revista Estudos Amazônicos • 161 conservadora da tribo, e é aqui onde a autoridade do chefe tribal é mais forte”.18 Não podemos deixar de mencionar que tanto o primeiro período de trabalho de campo de Price, nos anos 1960, quanto o segundo, em 1976 e 1978, coincidem com momentos vinculados a processos de descolonização e criação do Suriname como novo estado-nação. Na década de 1960, o governo colonial do Suriname, em colaboração com a empresa de mineração Alcoa, constrói uma barragem e usina hidrelétrica “em terras tradicionalmente garantidas pelos tratados de paz realizados entre Saramaka e governo colonial em 1762”.19 A inundação dessa área obrigou ao traslado forçado de aproximadamente 6.000 pessoas para as vilas, denominadas de “transmigração”, criadas pelo governo ao norte do lago. Outros grupos de pessoas edificaram suas casas nas proximidades dos rios meridionais próximos ao lago, conforme nos comenta Price, logo nas primeiras páginas no seu livro Firts Times, em nota explicativa do mapa sobre a localização das aldeias Saramaka e outros “maroons” de Suriname. Suriname se tornaria país independente em 1975 e podemos pressupor, examinando outros processo similares de construção de novos estados-nação20, que durante os anos posteriores o governo implementasse políticas de integração territorial e cultural, as quais também deviam afetar, direta ou indiretamente, as denominadas populações “maroons”. O trabalho de campo de Richard Price, realizado em 1976 e 1978, coincide com esses processos de descolonização, ainda que ele nada mencione a esse respeito no seu trabalho. Considero que esses processos de descolonização devem ser relacionados dentro de um contexto maior de lutas pela independência ou criação de novos estados-nação, como ocorreu, após a Segunda Guerra Mundial, em outros países coloniais, dentro dos quais, os EUA tiveram papel de destaque nas novas formas de controle e regulação das relações entre as nações. O reconhecimento da soberania dos novos estados-nações e “respeito pela diversidade e pluralismo cultural” eram algumas das questões debatidas pelos intelectuais desses países com intelectuais ou pesquisadores procedentes das antigas metrópoles europeias e também dos EUA. Com tais generalizações apenas pretendemos indicar elementos que nos permitam vislumbrar algumas das possíveis conexões a serem feitas 162 • Revista Estudos Amazônicos na análise de Price relativas ao contexto social de produção do seu trabalho, dos seus objetivos e/ou das suas práticas no campo. Tais conexões podem, seguramente, nos ajudar a revelar algumas das ideias e pressupostos sociais e culturais do autor, projetados na construção e elaboração do seu objeto, norteando os objetivos e finalidade do projeto de pesquisa como parte da sua opção intelectual, apontando, assim, para os limites do que seria uma real compreensão da experiência e ações dos sujeitos envolvidos. 4. Projeto: pesquisa interativa Nos anos que precederam à primeira visita de campo no Suriname, sendo professor da Universidade de Yale e também da Universidade de Johns Hopkins, Price teve a oportunidade de aprofundar seus conhecimentos sobre as origens da “história afro-america, concretamente sobre a dos “maroons” distribuídos pelo conjunto do hemisfério”.21 Entre 1974 e 1975, Price resolveu realizar o projeto de pesquisa sobre o conhecimento histórico dos Saramaka, com a ideia de lhes propor a possibilidade de explorarem juntos os First Times. Esse projeto de pesquisa interativa vinculado, como foi referido acima, a uma tentativa de romper com o “modelo clássico” de fazer etnografia, é justificado pelas supostas expectativas depositadas pelos Saramaka no autor, principalmente por parte das “pessoas mais velhas”, com as quais ele mantinha relação de maior proximidade. Segundo Price, os mais velhos, “sempre esperaram que trabalhasse sobre os Primeiros Tempos; como poderia me ter convertido num homem de saber sem esse conhecimento? Porém, somente poderia acontecer com a condição de que eu fosse preparado, isto é, quando eles me julgassem preparado – tal tempo parecia estar próximo”.22 Essas interpretações do autor que, no limite, dizem respeito à maneira como tenta articular (consciente ou inconscientemente) as bases em que se sustenta seu projeto interativo, ou seja, a relação estabelecida entre ele e os Saramaka, parecem, aparentemente, contrariar as afirmações feitas em outras páginas do seu livro a respeito da sua primeira viagem às aldeias. Sobretudo quando nos relata as adversidades e obstáculos encontrados em seus primeiros contatos com o grupo, Revista Estudos Amazônicos • 163 especialmente quando refere às proibições explícitas feitas pelos Saramaka, desde o primeiro dia da “nossa chegada [do casal Price] até a nossa partida: os Primeiros Tempos”.23 Não obstante, como veremos, o aparente paradoxo é solucionado por Price na própria maneira de interpretar a relação entre pesquisador-pesquisado, isto é, na maneira que ele tem de construir os critérios a partir dos quais ela se sustenta e se legitima. Richard Price introduz o leitor nos primeiros contextos ou situações criadas no campo, sem sua previa contextualização, isto é, sem localizar o lugar, o tempo e as pessoas, fornecendo apenas interpretações genéricas, como por exemplo, quando escreve que muitos membros do grupo realmente acreditavam que tínhamos chegado lá para matá-los, outros que tínhamos chegado para tirar seus segredos. De maneira geral todos estavam convencidos de que nossa presença podia contrariar os deuses e ancestrais e conduzir à destruição sistêmica de todo o povo Saramaka.24 Para justificar tais argumentações, o autor nos apresenta as palavras de um Saramaka, o Capitão Kála, feitas no altar dos ancestrais (supostamente na aldeia Dangogó): Nunca os Brancos vieram a Dongogó. Os ancestrais sempre falam que os brancos nunca devem vir a Dangogó. Nunca nenhum estrangeiro [negro ou branco] tem dormido em Dangogó. Os Povo do Tempo Antigo simplesmente não pode “ver” os Brancos. Na guerra que nós lutamos, ainda não terminou… Que vamos fazer com essas pessoas? Eu nunca sepultei um Branco. Se eles morrem, como saberia os sepultar?25 Sobre o autor da performance, o Capitão Kála, e da relação entre este e Richard Price, poucos elementos nos são fornecidos, ainda que alguns parecem ser aparentemente contraditórios, como quando o autor nos fala da rivalidade inicial que Kála tinha com ele e a mudança experimentada, na segunda viagem, quando Kála acolheu o casal Price como “hospedes honrosos”: “Asó pipí mi as djóubi, Asó pipí mi as djóub’i”.26 Quando você [Price] veio pela primeira vez as pessoas falavam: “Abáteli [o filho menor de Kála, a primeira pessoa que nos acolheu 164 • Revista Estudos Amazônicos em Dangogó] me trouxestes qualquer um. Dangasí [outro nome de Kála] e todos os Saramaka serão aniquilados” (…). De repente, um dia qualquer, tu [Price] retornastes com todo tipo de “presentes” [para cada um] (…). O Americano tem deixado seu país e chegou à casa dos Saramaka. As pessoas falavam que Abátéli e eu [Kála] o tínhamos trazido aqui para destruir o mundo. Porém, hoje, asó pipí mi as djóubi [todos se beneficiando]. Linguagem dos Primeiros Tempos! Eu, Dangasí, falo assim.27 Em outras palavras, o tempo ou intervalo da relação entre o pesquisador e os entrevistados (ou speakers) desde a primeira viagem até a segunda e os efeitos decorrentes das mesmas, é desconsiderado por Price, sendo apenas refletido a partir de uma idéia explicativa em termos culturalistas ou essencialistas. São as qualidades morais e éticas dos Saramaka, diretamente vinculadas à ideologia dos primeiros tempos, segundo a qual os perigos originados nas ações humanas sempre têm dupla direção (por exemplo, uma ofensa sempre terá uma contra-ofensa), são as bases nas quais Price se apoia para compreender o sentido das ações resultantes do processo interativo entre ele e os Saramaka. Quer dizer, tanto a atitude adversa inicial dos Saramaka, quanto a receptividade posterior se encaixam na mesma lógica explicativa. Desta maneira, o comportamento exemplar (leia-se ter respeitado os princípios morais sobre os Primeiros Tempos), por exemplo, “não falar ou perguntar sobre aquilo que não devia ser evocado”28 e o retorno posterior coincidem com o supostamente esperado pelos Saramaka. Esta suposta mudança de status foi favorecida também, segundo Price, pela conduta exemplar (ideal), ideia de “respeito” e “sensibilidade” mantida por ele e sua esposa nos primeiros contatos com os Saramaka.29 Fatores que o autor considera como circunstâncias históricas favoráveis para levar a cabo seu projeto sobre os Firts Times. Price tenta introduzir alguns dos elementos do contexto social dos Saramaka durante os anos 1970, mas os mesmos são apresentados tomando como referência implícita a existência de uma “sociedade isolada”, congelada no tempo, na qual, em decorrência das “forças externas”, consideradas negativas, os Saramaka são obrigados a se adequar às novas circunstâncias, fazendo com que determinadas pessoas, especialmente “os mais velhos, tomem consciência dos riscos que tais Revista Estudos Amazônicos • 165 forças pressupõem para a tradição e costumes Saramaka” isto é, para a identidade ou maneira de ser Saramaka.30 De acordo com as palavras de Price: No nosso retorno ao Suriname, na metade dos anos 70, o mundo dos Saramaka do alto curso do Rio Suriname (…) tinha mudado. Uma vez por mês oficiais do governo ou turistas visitavam as vilas, anteriormente isoladas, equipes de cinema iam de tempos em tempos, alguns homens Saramaka usavam calças compridas nas vilas, as pessoas escutavam rádio e passavam parte do tempo na costa.31 Outro dos elementos que Price indica do novo contexto de campo é sua ascendente carreira universitária (por exemplo, concluir a tese de doutorado e assumir, posteriormente, a chefia do Departamento de Etnologia da Universidade de Johns Hopkins) e, sobretudo, o conhecimento adquirido das fontes documentais referentes aos Primeiros Tempos dos Saramaka, que lhe permitiam, segundo ele, oferecer “aos historiadores Saramaka um presente altamente valorizado: novas informações sobre seu antigo passado”.32 Entre 1977 e 1978, Richard Price realiza novas pesquisas nos arquivos holandeses, a partir das quais o corpo de informação sobre os Primeiros Tempos aumentou consideravelmente, em todo caso suficiente para que, ainda sem fornecer detalhes precisos de casos particulares, possibilitasse ter uma boa reputação de historiador para os Saramaka bem informados. Determinados velhos me procuravam justamente para intercambiar informação.33 Price assinala também que “se sabia que [ele] havia adquirido, aos olhos dos estrangeiros uma certa autoridade em questões Saramaka” que podia ser usada como “ajuda para eles nas relações com as autoridades holandesas”.34 Em suma, é como se as atitudes dos Saramaka e as de Price fossem se gerando, casual (leia-se naturalmente) e espontaneamente, para validar e atribuir legitimidade a seu projeto: “por sorte, o enriquecimento dos meus próprios conhecimentos coincidia com a tomada de consciência independente de alguns velhos que desejavam (…) que o saber sobre os Primeiros Tempos fosse guardado por escrito antes de ser perdido para sempre”.35 Foi, com essa finalidade que o autor explicou o fato de que, 166 • Revista Estudos Amazônicos em 1978, os oficiais do clã Matjáu, em reunião realizada na sala do chefe tribal, lhe nomearam seu cronista oficial.36 Contudo, Price não reflete a respeito dos efeitos de assimetria que se produzem pelo fato de ser o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do jogo. Isto é, é ele quem inicia, num contexto de troca, o círculo dos “dons” e “contra-dons”. Além disso, o autor também contribui para acentuar essa assimetria pela posição superior que o pesquisador ocupa em relação ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital, especialmente do capital cultural.37 No limite, Price construiu uma idéia da relação ou comunicação entre ele e os Saramaka, segundo o princípio metodológico da reflexividade etnográfica, centrado na crença no “poder” que exercem as práticas do pesquisador no diálogo ou interação com seus informantes; ou seja, legitimada segundo as bases culturais que estruturam a maneira de ser Saramaka: “eu tomei consciência da crença que meu saber suscitou nos velhos. Uma vez mais eu sentia como a Ideologia dos Primeiros Tempos permanecia forte e até que ponto dava profundidade e dignidade para a vida destes homens”.38 O autor também aborda os efeitos performáticos das interações e implicações de autoridade enquanto produção de conhecimento textual, a denominada “tradução entre culturas” da prática e escrita do texto etnográfico e suas conotações relativas aos problemas éticos e às obrigações morais do pesquisador para com seus “objetos” de pesquisa. Considero, em última instância, que as reflexões de Price são uma continuidade, mais que propriamente uma ruptura, a respeito das ideias referentes à neutralidade da ciência. Ideias manifestas, especialmente nos anos 1980, nos debates sobre a exterioridade ou distanciamento desinteressado no contexto da relação pesquisador-pesquisado ou na relação entre “sujeito” e “objeto”. Estas preocupações carecem de fundamento quando se parte da ideia de que a presença do pesquisador no contexto do campo é, desde o início, resultado de um processo de acertos e negociações, sejam implícitas ou explícitas, inseridas em determinada lógica de relação social entre o pesquisador e o pesquisado. Negociações, entre ambas as partes, que também definirão o tipo de inserção do pesquisador no sistema de classificação do grupo, isto é, o próprio lugar ou lugares que o grupo lhe atribuirá no “espaço social local”. Revista Estudos Amazônicos • 167 Indagar (circularmente) sobre as preocupações e pressupostos de pesquisa, sem se esforçar para analisar seus próprios pressupostos, implica conduzir essas preocupações tomando como base a autoreflexão, mais que realizar uma pesquisa reflexiva. Pensar a experiência de campo como evento significativo que cria uma relação social desde os primeiros momentos de contato e nos diferentes contextos de interação, implica considerar, de um ponto de vista reflexivo, que as ações ou objetivos no campo não têm sempre os resultados esperados, ou podem escapar, em diferentes momentos, à consciência do pesquisador. Em outros termos, é condição indispensável para uma sociologia reflexiva, adotar a objetivação participante como procedimento analítico ou maneira de operar do pesquisador.39 Questão que significa considerar, também, o efeito político de teoria, apontado por Bourdieu.40 5. Comentários sobre o uso dos relatos e critérios para escolher os seus speakers As afirmações e práticas contextuais, sem nenhuma explicitação ou conexão realizada com o contexto social e histórico, seja local, nacional ou internacional do momento, ou com as reais condições sociais que são produzidas, somente são possíveis de serem compreendidas na medida em que Price pressupõe uma idéia de identidade Saramaka, ou maneira de ser Saramaka, como corpo coerente, que lhe permite unificar e homogeneizar, não somente as situações de pesquisa, mas também as atitudes e/ou qualidades que definem os diferentes Saramaka nesses contextos. O autor faz uma homogeneização de informantes e eventos sobre determinados fatos na procura de dar coerência a três momentos históricos que ele ordena na seguinte ordem: os Anos Heróicos, 1685-1748; a Procura da Liberdade, 1749-1759; Finalmente Livres!, 1760-1762. As descontinuidades geradas nesse processo de luta pela liberdade, assim como as práticas contextuais dos informantes, são pautadas por uma idéia original de continuidade ancestral: o herói dos tempos de guerra. Tais ancestrais coletivos, dado o processo de segmentação e criação de novos grupos, seja por causa das novas gerações após processo de paz ou pelas migrações das vilas para o norte, passam a funcionar, a partir de 1845, como símbolos de identidade institucionalizada. Criando-se, desta maneira, dois grupos de ancestrais: 168 • Revista Estudos Amazônicos os que se referem aos mortos recentes, que possuem papel importante no dia a dia; e os ancestrais dos First Times, ideologicamente institucionalizados e legitimados. Estes últimos ancestrais são os menos frequentemente invocados; eles se referem às coletividades antigas que articulam de maneira matrilinear seus ascendentes a um grupo original de escravos rebeldes. De maneira geral, nas palavras do autor, “são os movimentos migratórios dos antigos dos primeiros tempos que têm estabelecido os direitos fundiários para a posteridade, eles são os detalhes das práticas políticas antigas, que servem de modelo às sucessões atuais”.41 Ampliando esta linha de argumentação, considero que tal modelo é usado por Price como pressuposto cultural e social para qualificar o informante nos contextos de interação. Neste sentido, podemos dizer que o autor caracteriza seus informantes e as falas dos mesmos (os eventos ou relatos), como práticas interativas em termos interclânicos. Ou seja, como se os sujeitos das ações fossem os clãs e não os indivíduos.42 Tomando como base as reflexões de Leach também podemos questionar o procedimento metodológico de Price. Segundo Leach, não é possível compreender a narrativa do mito sem levar em consideração os direitos adquiridos do narrador, ou seja, da pessoa que está falando. Assinala também Leach que as diferentes narrações de um mesmo mito estão em estrita relação com a obtenção do poder político.43 Continuando com esta linha de argumentação, considero que as atribuições sociais e culturais e/ou as redes de aliança relativas à posição social da pessoa que está falando são condições necessárias para compreender suas práticas. Richard Price não analisa, em seu livro, estes aspectos, e a escolha dos diferentes informantes, além de responder a critérios genéricos, segundo uma suposta hierarquia nativa do saber, “mestres”, “velhos” ou “chefes tribais”, responde a definições carregadas de juízos de valor. Como mostram, por exemplo, as afirmações de Price a respeito de Peléki, do clã Matjáu, de idade madura e, segundo o autor, homem extremamente sério que “sempre manifestou uma real paixão pela história dos Primeiros Tempos”44 ou sobre Tebíni, que ele define como “o grande historiador”, atribuição dada com base no depoimento do “chefe tribal”, por ser a única pessoa viva entre os Saramaka que conheceu as mais antigas gerações ou porque conheceu todos os mais Revista Estudos Amazônicos • 169 velhos.45 A respeito de Otjútú, outro dos seus speakers, Price comenta que ele lhe forneceu “informações importantes sobre os Primeiros Tempos, porém, após verificação, suas informações são reveladas inexatas”. Otjútú é também qualificado de “bom vivant”, na versão inglesa, porém, tal afirmação, foi excluída da versão francesa do seu livro. Em geral, as informações sobre os critérios para definir e escolher os seus informantes se reduzem a um tipo de ficha que contém as informações de alguns deles, colocadas em seis páginas, logo após a introdução do livro, onde aparecem também os retratos de algum deles. A totalidade de relatos incluídos no livro foi de 202, 130 dentre os quais correspondem às falas de Tebíni (48 do total), Otjúju (36 do total) e Peleki (12 do total), todos eles do denominado clã Matjáu. Outros 23 relatos são de Bakaá, “assistente do capitão”, do clã Dómbi (clã subordinado aos Matjáu), outros 10 são do “forte e digno” capitão Góme, do clã Awaná, que Price considera mestre sem igual e verdadeiro amante das palavras dos Primeiros Tempos. A maioria dos relatos restantes (72 no total) corresponde a 20 informantes, grande parte deles incluídos dentro do clã Matjáu. Note-se que o total dos relatos corresponde a 201 e não 202 conforme anunciado pelo autor. O saber e controle sobre o conhecimento histórico dos Primeiros Tempos é atribuído por Price de forma dada ou “natural” aos mais velhos ou chefes tribais. Estes, com base na ideia (ou consciência) de que o “conhecimento é poder”, tentam guardar e preservar de forma circunscrita e fragmentada (nos nomes honoríficos dos mais velhos dos Primeiros Tempos, falas dirigidas a eles, cânticos, slogans dos tambores, provérbios, fragmentos genealógicos, listas de terras pertencendo a tal ou qual clã), como fonte de legitimidade existencial, social e histórica, frente às pressões da modernização dos brancos.46 Partindo do pressuposto de que os grupos e identidades são fenômenos de construção social que se sustentam em critérios de legitimidade igualmente construídos, os mesmos não podem ser compreendidos sem considerar as diferentes dimensões do processo que contribuem para criá-los. Considero, neste sentido, que a “Ideologia dos Primeiros Tempos”, como fundamento de legitimidade da existência social original dos Saramaka que a localiza num tempo e lugar determinado no espaço social, resulta das ações e/ou interpretações de diversos agentes sociais que ocupam lugares diferentes no espaço social, 170 • Revista Estudos Amazônicos e não apenas dos Saramaka, ou de determinados Saramaka, como sugere Price. Isto significa que uma análise sobre os critérios de definição e limites legítimos de um determinado grupo, como por exemplo, as versões sobre o passado ou conhecimento histórico, implica considerar as lutas de classificação, as quais, segundo Bourdieu, são lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de fazer conhecer e fazer reconhecer, de impor as divisões legítimas do mundo social, e dadas suas pretensões performativas, de fazer e desfazer grupos sociais tentando impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão.47 Para Bourdieu, as “lutas de classificação” também pertencem ao domínio da ciência, isto é, os princípios científicos participam das lutas de classificação consciente ou inconscientemente. Também considero pertinente sublinhar as audazes argumentações que Handler levanta a respeito dos obstáculos e implicações do pesquisador ao tentar explicar os conceitos nativos sobre cultura. Por exemplo, aqueles que os líderes dos movimentos étnicos usam para definir a “nossa cultura” ou tradição, em termos de uma noção ou pressuposto de cultura. Isto é, o que os líderes definem como “nossa cultura”, é o mesmo que o antropólogo pretende conceituar.48 Tentamos mostrar, nestas páginas, que Price também desconsidera esses aspectos ao dar preferência à “procura do que verdadeiramente ocorreu”, uniformizando, assim, informantes e eventos. Isto se manifesta quando nos informa sobre as diferentes versões e disputas existentes entre os Saramaka a respeito de um ou outro evento e das próprias disputas existentes, das quais ele também participa, em diferentes contextos de intercâmbio de informação, sobre os significados dessas versões. Por exemplo, quando Price se refere às versões sobre as migrações dos primeiros clãs, nas quais diferentes informantes, ao tentar lembrar a procedência original do clã, discordam das referências ou critérios que cada um atribui para a definir, sendo as lembranças dos antigos ancestrais o que outorga autoridade e credibilidade ao relator. Para Price, estes debates são expressões de práticas comuns da vida Saramaka e também um tipo de “interrupções” orientadas a esclarecer e complementar informações anexas, similar ao procedimento usado pelo “historiador” ou “saber ocidental”. Quer dizer, tais desacordos entre os informantes a respeito dos diferentes nomes dos ancestrais ou dos Revista Estudos Amazônicos • 171 lugares e tempos originais atribuídos aos mesmos, são abordados por Price como um tipo de citação de fonte que especifica informações gerais (por exemplo, a respeito dos detalhes das migrações dos Saramaka), e também denota a rigidez crítica dos pensadores Saramaka.49 Também podemos observar, na metodologia usada por Price, sua preferência em escolher determinadas versões, por exemplo as do clã Matjáu. Uma das implicações destas escolhas, além de atribuição de legitimidade a determinadas interpretações em detrimento de outras, é ocultar uma das propriedades constitutivas da lutas de classificação. A ideologia ou conhecimento histórico, fragmentado e guardado em diferentes formas culturais no decorrer de dois séculos por determinados agentes, pressupõe considerar a história ou mito como função sociológica para glorificar um grupo em detrimento de outro.50 As interpretações do mito, como nos sugere Malinowski, estão estreitamente vinculadas com a dimensão política da “autoridade”, que implica legitimar ou fazer valer sua autoridade e projeto de futuro daquele que está falando, recorrendo a um elemento temporal, por exemplo, ser Saramaka, do “passado” e também do “presente”. Em outras palavras, as diferentes versões ou interpretações do passado, estão em estreita conexão com os princípios que definem tanto posições sociais diferenciadas no grupo como critérios de “autoridade legítima”, vinculados a um tipo de conhecimento “original” ou “puro”. Richard Price, como mencionamos acima, faz uso dos relatos para tentar mostrar o que “verdadeiramente ocorreu”, desconsiderando a disputa pelos critérios de definição legítima (leia-se as lutas de classificação). No debate a respeito dos First Times, parece estar em jogo, portanto, não apenas a autoridade daqueles que falam, mas também os critérios ou propriedades do objeto de referência (Primeiros Tempos), a identidade social de cada sujeito debatedor e as expectativas de cada um deles nas relações entre objeto e sujeito. Porém nada disso é abordado por Price. De acordo com essa argumentação, e como acontece em todo mito, considero que as construções ou narrativas apresentadas por Price se baseiam numa interpretação do presente com representações do passado, que pretende negar ou manipular a história segundo uma “invenção” temporal (leia-se de descontinuidade) para mostrar uma reprodução ou continuidade do mesmo. Isto é, o autor se fundamenta numa lógica 172 • Revista Estudos Amazônicos circular na qual os diagnósticos históricos sobre o presente são descritos em termos históricos, ao passo que os relatos sobre o passado negam, na verdade, a história, mostrando-a como uma reprodução do mesmo. Nesse sentido, a visão catastrófica de Price sobre a sociedade Saramaka, que opõe duas sociedades com dinâmicas diferentes, a tradicional – ou isolada –, e a moderna, como força motora, é, em última instância, o princípio estruturante das suas práticas. Igualmente, o que legitima e norteia o sentido das interações, está estreitamente vinculado a sua previsão “profeticamente teleológica” do processo de mudança e a necessidade de repará-lo, dada a tomada de consciência dos Saramaka: Aquilo que outras vezes formava parte do saber gradual que, remodelado pela experiências passadas, visava levar a termo novos projetos de sociedade – condição de todo sistema evolutivo – é atualmente uma fonte acelerada que, com certeza pode levar ao desaparecimento total do saber.51 Vale lembrar que Price é reconhecido como autoridade legítima na produção de conhecimento histórico Saramaka. Este saber é usado também como argumento de autoridade nas disputas pela defesa e reconhecimento dos direitos que os Saramaka têm sobre seu “território tradicional”. Quer dizer, é utilizado, por ele, para fundamentar e legitimar a existência histórica de uma identidade coletiva ou cultura comum. Assim, originada em um tempo e lugar, a sociedade Saramaka é percebida (inventada) por Price a partir de uma idéia de continuidade histórica, legitimada pela “resistência à escravidão” e pela “consciência dos seus membros da sua heroica descendência maroon”. Bourdieu afirma que todos os atos de fala são performativos, contudo o grau de eficácia que exercem sobre a realidade social é proporcional à autoridade daquele que fala. Pois, dado o reconhecimento e legitimidade que tem o cientista social para produzir conhecimento sobre o mundo social, seus atos exercem maior eficácia performativa. São atos que contribuem para exercer o efeito de teoria, “efeito propriamente político que consiste em mostrar uma ‘realidade’ que não existe completamente enquanto não se a conheça e reconheça”.52 Artigo recebido em julho de 2010 Aprovado em outubro de 2010 Revista Estudos Amazônicos • 173 Notas * Professora na Universidade Ramón Llull, Barcelona, Espanha. Uma primeira versão deste texto foi apresentada e publicada nos Anais do VI Encontro Nacional de História Oral, realizado na Universidade de São Paulo, de 28 a 31 de maio de 2002. 1 PRICE, Richard. First Time: The Historical Vision of an Afro-American People. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1983, p. 24. 2 MALINOWSKI, Bronislaw. “The method of field-work and the invisible facts of native law and economic” e “An ethnographic theory of language and some practical corollaries”. In: Coral Gardens and their magic. London: George Allen and Unwin Ltd. 1935, vol. 1, pp. 317-340 e vol. 2, pp. 3-74; MALINOWSKI. “El mito en la psicología primitiva”. In: Magia, Ciencia y Religión. Barcelona: Planeta. 1985, pp. 105173. 3 BOURDIEU, Pierre. Ce que Parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. Paris : Fayard. 1982; BOURDIEU & WACQUANT, L.J.D. Per una sociologia reflexiva. Barcelona: Herder. 1994. 4 PRICE. First Time, p. 5. 5 Ibidem, p. 11. 6 PRICE. “Novas direções na História etnográfica”. Estudos Afro-Asiáticos, n° 23 (1992), p. 192. 7 SAHLINS, Marshall. Historical Metaphors and Myhtical realities: Structure in the early History of the Sandwich Islands kingdom. Association for the Study of Anthropology in Oceania, Special Publication, Society for Psycological Anthropology. University of Michigan Press, 1981. 8 ROSALDO, Renato. Ilongot Headbunting, 1883-1974: A Study in Society and History. Stanford: Stanford University Press, 1980. 9 FABIAN, Joahnnes. Time and the Other: How Anthropology makes its object. New York: Columbia University Press, 1983; HERZFELD, M. Anthropology Throug the Looking-Glass. Critical etnography in the margins of Europe. Cambeidge: Cambridge University Press, 1987; COMAROFF, J. & COMAROFF, J. Ethnography and the Historical Imagination. San Francisco/Oxford: Westiew Press Boulder, 1992; TAUSSIG, M. Shamanismo, Colonialismo e o Homen Selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1994. 10 A respeito dessas questões ver, por exemplo: Fabian (1983); Herzfeld (1987) e Davies (1999). Para uma análise mais completa a respeito das considerações ‘reflexivas’ na prática e análises do antropólogo ver CLIFFORD, J. The Predicament of Culture: Twentieth-Century Etnography, Literature, and Art. Cambridge, Mass.: 174 • Revista Estudos Amazônicos Harvard University Press, 1989; e CLIFFORD, J & MARCUS, G. (orgs.). Retóricas de la Antropologia. Gijon: Jucar, 1991. 11 PRICE. First Time, p. 2. 12 PRICE, Richard. “Saramaka Woodcarving: The Development of and Afroamerican Art”. Man, nº 5 (1970), pp. 363-78. 13 PRICE. “Avenging Spirits and the Structure of Saramaka Lineages”. Bijdragen tot the Taal-, Land- en Volkenkunde, n° 129 (1973), pp. 86-107. 14 PRICE. “Saramaka Emigration and Marriage: a Case Study of Social Change”. Southwestern Journal of Anthropology, vol. 26, nº 2 (1970), pp. 157-89. 15 Ibidem, pp. 157 e 160. 16 Ibidem, p. 160. 17 Ibidem, p. 158. 18 Ibidem. 19 PRICE, Richard. “Quilombolas e direitos humanos no Suriname”. Horizontes Antropológicos, vol. 5, n° 10 (1999), pp. 203-42. 20 GORDON, Edmund. “Revolution, Common Sense and The Dynamics of African-Nicaraguan Politics, 1979-1985”. Critique of Anthropology, vol. l5, n°1 (1995), pp. 5-36; SUTTON, Paul. “Politics in the Commonwealth Carribbean. The PostColonial Experience”. European Review of Latin American and Caribbean Studies, n° 51 (1991). 21 PRICE. First Time, p. 14. Parte dos resultados destas pesquisas e reflexões sobre estos assuntos foram publicados em: MINTZ, Sidney W. & PRICE. An Anthropological Approach to the Afro-American Past: A Carribbean Perspective. Philadelphia: ISHI, 1976; e PRICE (org.). Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the Americas. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979. 22 PRICE. First Time, p. 14. 23 Ibidem, p. 15. 24 Ibidem, p. 14. 25 Ibidem. 26 Segundo autor se trata de um fragmento proverbial típico, “preservado como unidade linguística particular”, o qual testemunha a procedência da língua mãe africana de uns dos “maroons originais”. É de destacar a produção de trabalhos a respeito das “línguas africanas originais”, que emergem a partir dos anos 1970 para responder a questões “sobre” os denominados grupos na diáspora de “afroamericanos”. Revista Estudos Amazônicos • 175 27 Ibidem, p. 15. 28 Ibidem. 29 Ibidem, p. 15, nota 20; pp. 28-29. 30 Ibidem, p. 26. 31 Ibidem, p. 15. 32 Ibidem, pp. 15-17. 33 Ibidem, p. 17. 34 Ibidem, p. 15. 35 Ibidem, p. 17. 36 Ibidem. 37 BOURDIEU, Pierre. “Compreender”. In: BOURDIEU (org.). A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997; BOURDIEU. “Marginália. Algumas notas adicionais sobre O Dom”. Mana, vol. 2, n° 2 (1996), pp. 7-20. 38 PRICE. First Time, p. 19. 39 Para Bourdieu é condição indispensável da sociologia reflexiva “pôr em questão o privilégio do sujeito conhecedor, que geralmente se lhe libera, com toda arbitrariedade e em tanto que se lhe considera com o puramente noético do trabalho da objetivação. Se trata de trabalhar para dar conta do ‘sujeito’ empírico nos mesmos termos da objetividade construída pelo sujeito científico – colocando-o sobretudo num lugar determinante do espaço-tempo social”. BOURDIEU & WACQUANT. Per una sociologia reflexiva, p. 186. 40 BOURDIEU. Razones Prácticas. Sobre la teoría de la Acción. Barcelona: Anagrama. 1997. 41 PRICE. First Time, p. 7. 42 MALINOWSKI. “The method of field-work and the invisible facts of native law and economic” e “An ethnographic theory of language and some practical corollaries”; seu trabalho intitulado “The method of field-work” já nos alertava a respeito dos riscos de personalizar unidades no processo de desenvolvimento de pesquisa ou trabalho de campo. 43 LEACH, Edmund R. Sistemas Políticos da Alta Birmania. Um Estudo da Estrutura Social Kachin. São Paulo: EdUSP. 1995, pp. 318-19. 44 PRICE. First Time, p. 18. 45 Ibidem, p. 11. 46 Ibidem, p. 26. 176 • Revista Estudos Amazônicos 47 BOURDIEU. Ce que Parler veut dire, pp. 137-40. 48 HANDLER, R. Nationalism and Politics of Culture in Quebec. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1988, pp. 15 e 25. 49 PRICE. First Time, p. 9, notas 16, 17 e 25, e relato 169. 50 MALINOWSKI. “El mito en la psicología primitiva”, p. 145. 51 PRICE. First Time, p. 26. 52 BOURDIEU. Razones Prácticas, p. 23. Revista Estudos Amazônicos • 177