First Time. The historical Vision of an Afro- American people

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First Time. The historical Vision of an AfroAmerican people: Reflexões a respeito da
construção do objeto e procedimentos
analíticos usados por Richard Price
Sara Alonso*
Resumo:
Pretendo refletir, neste texto, sobre o uso que Richard Price faz dos
“relatos dos Saramaka” relativos às versões do passado histórico
deles. Para isto, focalizo os critérios que Price utiliza para a
construção das entrevistas ou materiais de campo e para a análise ou
construção do texto. No limite, tentarei analisar até que ponto o
autor leva a sério o contexto da relação pesquisador-pesquisado:
quem são os sujeitos (pesquisador-entrevistado) que estão falando,
de onde estão falando, sobre o que estão falando e para quem? Este
procedimento metodológico permitirá desvendar alguns dos riscos e
implicações dos usos, por parte de Price, da estratégia metodológica
(fontes orais e escritas) e teórica (etnohistoria), tais como a
cristalização e imposição de determinado ponto de vista sobre o
“ser Saramaka”.
Palavras-chave: “efeito teoria”; intelectual-narrador; fontes orais-escritas;
invenção do passado; pesquisador-pesquisado
Abstract:
This article analyses the uses of the Saramaka accounts on their past
by Richard Price. It focuses on the criteria chosen by Price for the
definition of his interviews and his field material for the analysis
and construction of his own text. It addresses the context of the
relationship between researcher and those researched: who are the
subjects speaking? From where they speak? About what and for
whom they speak? This method intends to show the risks and
implications of a methodological (oral and written texts) and
theoretical (ethnohistory) strategy, such as the crystallization and
Revista Estudos Amazônicos • vol. V, nº 2 (2010), pp. 155-177
imposition of a specific viewpoint about what means “being
Saramaka”.
Keywords: scholar-narrator; written-oral sources; past-creation, ResearcherSubject
1.Breve resumo do texto de Richard Price e apresentação
dos objetivos
O livro de Richard Price, First Time. The historical Vision of an AfroAmerican people, é, segundo o autor, “uma tentativa de comunicar alguma
coisa da própria visão dos Saramaka a respeito dos seus primeiros anos
de formação”, que são definidos pelos Saramaka de hoje como fesi-tem.
Ainda que fesi-tem literalmente signifique “Tempo Passado”, Price
preferiu traduzir como Primeiros Tempos – a era do povo dos tempos
antigos – priorizando as implicações de poder atribuídas pelo grupo a
esse período comparativamente com o passado mais recente.
Motivado, em parte, pela preocupação de que a visão histórica dos
“povos não-letrados” encontre espaços nos registros escritos, Price tenta
mostrar, em seu texto, o que “verdadeiramente ocorreu” durante os
aproximadamente 100 anos de guerra pela liberdade (iniciada em 1685,
os Saramaka assinaram, em 1772, com o governo colonial holandês os
denominados Tratados de Liberdade). Com este objetivo o autor
examina um conjunto de formas ou eventos especiais que os Saramaka,
além de preservar deliberadamente para manter viva a consciência
histórica, escolhem para pensar, falar e atuar.
Tentando levar a sério a própria seleção realizada pelos Saramaka,
Price focaliza dezenas desses eventos escolhidos das diferentes falas dos
seus informantes nas quais os Saramaka expõem as versões sobre o seu
passado. O autor introduziu fragmentos desses depoimentos na parte
superior da página (sempre em itálico) do livro, e, na parte inferior, nos
apresenta seus próprios comentários, articulados com textos escritos –
extraídos de arquivos holandeses – que referem ao mesmo período
histórico.
A finalidade desta “reconstrução histórica do mundo antigo” é uma
maneira de captar a totalidade da experiência de vida histórica (um tipo
de hermenêutica dirigida a desvendar o sentido significativo da
156 • Revista Estudos Amazônicos
experiência de vida histórica e das ações para seus atores), dando voz às
pessoas que até então foram forçadas a se calar. Nesse sentido, o livro
First Times fornece a possibilidade para os “verdadeiros maroons” se
exprimirem sobre sua própria vida, sobre seu passado, com a “vontade
de construir contra vento e maré um mundo novo”, e também
“homenagear sua dignidade frente à opressão e à rejeição constante de
serem tratados como objetos pelos estrangeiros”.1
O texto igualmente pretende ser um tipo de experiência sobre as
formas de representação da história e etnografia, visando expressar a
justaposição das vozes (a denominada “multivocalidade” ou “verdades
parciais”), a do colonizador europeu e dos colonizados Saramakas, a do
historiador nativo e a do pesquisador ocidental.
Objetivos
Partindo do pressuposto de que as entrevistas ou trabalho de campo
devem ser inseridos dentro do contexto de relações sociais criadas entre
pesquisador e pesquisado, pretendo analisar, neste texto, o uso que
Richard Price faz dos relatos, levando em consideração os critérios
utilizados para a construção das entrevistas ou materiais de campo e para
sua análise ou construção do texto. Isto significa que tentarei
compreender em que medida o autor realiza as condições sociais de
produção do seu material, ou dos contextos ou situações de produção da
entrevista. No limite, tentarei analisar até que ponto ele leva a sério o
contexto da relação pesquisador-pesquisado: quem são os sujeitos
(pesquisador-entrevistado) que estão falando, de onde estão falando,
sobre que estão falando e para quem? Questões, em certa medida já
sugeridas por Malinowski2, que foram posteriormente desenvolvidas por
Bourdieu.3
No trabalho de Price, conforme foi mencionado acima, são usados
relatos de diferentes informantes os quais referem a multiplicidade de
contextos de produção ou situações diversas de entrevista, porém todos
têm, como finalidade, comunicar as versões sobre o conhecimento histórico
sobre os Primeiros Tempos através das principais formas nas quais se exprime
esse “conhecimento especializado”. Tais versões são expressões que
manifestam a consciência dos Saramaka sobre sua experiência coletiva de
vivência histórica como fonte de força para mudar o mundo futuro.4
Revista Estudos Amazônicos • 157
Usar como estratégia analítico-metodológica as questões acima
mencionadas permite não apenas analisar os procedimentos utilizados
pelo autor para a construção e uso dos seus dados de campo e/ou para a
construção do seu objeto de estudo, mas também revelar certos riscos e
implicações que seus procedimentos supõem para a contribuição do
conhecimento científico e, em última instância, para a compreensão das
realidades sociais. Ao caracterizar seu objeto de pesquisa como “povo
afro-americano”, no limite, Price pressupõe, além de atribuir como sua
unidade de análise uma coletividade, a definição de que a identidade dos
Saramaka se fundamenta numa idéia de consciência de identidade
coletiva a partir da oposição escravos e libertos.5
Ampliando essa linha de argumentação e deixando claro que não
pretendo fazer análise detalhada do conteúdo das versões, considero a
pesquisa de Price sobre os Saramaka exemplar para mostrar a
contribuição dos cientistas para os processos de invenção de grupos e
identidades sociais e culturais, concretamente para a criação (leia-se
invenção) de princípios de definição legítima de grupo. Sua estratégia
metodológica (uso de fontes orais e escritas) e teórica (etnohistoria)
contribuem para cristalizar e impor determinado ponto de vista sobre o
“ser Saramaka”, o ponto de vista oficial (ideologia dos Primeiros
Tempos).
2. Contextualizando a obra
A obra de Price pode ser contextualizada dentro da denominada
tradição de estudos sobre culturas ou grupos “afro-americanos”,
concretamente sobre “comunidades cimarronas” (ou quilombos, palenques).
Longe de querer realizar análise dessa produção, a intenção deste artigo é
apenas indicar alguns elementos que nos permitam situar o contexto
referencial com o qual, direta ou indiretamente, este autor dialoga.
O estudo do cimarronagem e das comunidades cimarronas, dentro da
divisão do trabalho intelectual, tem sido atribuído como objeto legítimo
de estudo dos historiadores interessados na estrutura e funcionamento
da sociedade escravista e nas diversas formas de resistência dos escravos
ao sistema das plantações do Novo Mundo. Dentro dessas formas de
resistência, as comunidades cimarronas representam “um heróico desafio a
autoridade colonial e uma prova viva da existência de uma consciência
158 • Revista Estudos Amazônicos
escrava, que se recusava a ser limitada pela concepção ou manipulação
que os brancos tinham dela”.6
Foi a partir da década de 1960 que o estudo sobre as comunidades
formadas por descendentes de escravos fugidos (leia-se comunidades
cimarronas), foi se tornando, cada vez mais, objeto de interesse de
sociólogos e, sobretudo, de antropólogos, como objetos legítimos de
estudo, similares ao estatuto das denominadas sociedades tribais ou
indígenas. Nos anos 1970, os estudos relativos à compreensão e análise
destas sociedades tentaram superar as oposições “subjetivo-objetivo”,
“interno-externo”, “sociedade-cultura”, procurando renovar as
perspectivas de análise que reforçam a tradicional polarização
“contato/isolamento”. Polarização compreendida em termos de
valorização dos aspectos internos ou “nativos tradicionais” (atributos de
isolamento e pureza), por oposição àqueles que acentuam os aspectos
“modernos” ou “externos” devido ao contato (atributos da aculturação).
Dentro desse contexto é que emerge, no decorrer dos anos 1980,
renovada perspectiva etnohistórica ou história etnológica. Esta
perspectiva antropológica se propõe compreender os grupos e
sociedades, concretamente as sociedades tribais, consideradas na tradição
antropológica “sem história”. Partindo de proposta teórico-metodológica
que pretende vincular história e antropologia, esse tipo de produção tem
como um dos seus objetivos recuperar a visão que essas sociedades têm
da sua história. O livro de Price sobre os Saramaka – junto com o
trabalho de Sahlins7 sobre grupos “autóctones” do Hawaí e o de Renato
Rosaldo8 sobre os “caçadores de cabeça Ilongot” – é considerado um
dos expoentes da “nova recuperação da história”.
Também na década de 80 apareceu no campo da produção
antropológica uma série de trabalhos que tratam, direta ou indiretamente,
da produção de discursos ou teorias normativas e os vínculos entre estes
e a política, o que revelaria a ocultação do outro a partir da fabricação da
“exotização” como uma das implicações da dominação.9 Tais trabalhos
apresentavam como condição indispensável para a produção de
conhecimento antropológico a necessidade de refletir sobre as
implicações que podem ser depreendidas da relação “pesquisador e
pesquisado”. Esse debate, considerado central para a prática etnográfica,
pressupõe, no limite, refletir a respeito das elaborações do antropólogo,
Revista Estudos Amazônicos • 159
indagando se suas interpretações são subjetivas ou objetivas (os
denominados problemas morais e éticos da etnografia).10
Dentro deste contexto, a monografia de Price é considerada exemplo
paradigmático por sua tentativa de propor novos caminhos para o “fazer
etnográfico”. Isto é, por se propor estabelecer ruptura com o
denominado modelo clássico de fazer etnografia sobre as sociedades
ditas tradicionais ou tribais, tanto na construção e estrutura narrativa do
texto, quanto no enfoque e instrumental analítico utilizado.
Vale sublinhar também que a partir dos anos 1990, surge em diversos
países de América, especialmente no Brasil, Colômbia e Suriname, um
debate político objetivando discutir os direitos das comunidades
quilombolas sobre as terras que tradicionalmente ocuparam como
descendentes de quilombos. Esta problemática não pode ser, certamente,
desvinculada do debate sobre o “multiculturalismo” e/ou “diálogo entre
culturas”, cujo reconhecimento e expressão social maior se deu,
sobretudo, a partir das diversas atividades e encontros realizados, entre
fins dos anos 1980 e princípios dos anos 1990, em razão das diferentes
comemorações sobre os 100 anos da abolição da escravidão, os 500 anos do
descobrimento da América, entre outros. Um dos efeitos desses debates
e encontros políticos tem sido o incremento do interesse pelo estudo das
culturas e sociedades “afro-americanas”, dentro dos quais, o trabalho de
Price continua sendo, ainda hoje, uma das principais referências teóricoanalíticas.
3. Contextualizando o campo: o contato e a relação
pesquisador e seus speakers
Segundo Price, os Saramaka são uma das “seis tribos maroons” (ou
Bush Negro), comunidades formadas por escravos fugidos do Suriname
que conseguiram a liberdade, na década de 1760, após quase cem anos de
luta. Em fins dos anos 1970, os Saramaka somavam aproximadamente
15.000 pessoas, cerca de 10% do total, em palavras de Price, da
“população nacional de Suriname”.11
O primeiro contato de Richard Price com os Saramaka (que viajou ao
Suriname com a sua esposa, Sally Price) ocorreu na segunda metade dos
anos 1960, realizando durante cerca de dois anos trabalho de campo
etnográfico sobre ampla linha de questões: “estrutura social”, “religião”,
160 • Revista Estudos Amazônicos
“linguagem”, “arte”. Alguns dos resultados das primeiras pesquisas de
Price no Suriname foram publicados em “Saramaka Woodcarving: The
Development of and Afroamerican Art”12 e “Avenging Spirits and the
Structure of Saramaka lineages”.13
No trabalho intitulado “Saramaka Emigration and Marriage: a Case
Study of Social Change”14, Price, servindo-se de pesquisa documental e
outras fontes escritas como procedimento metodológico complementar
ao trabalho de campo, adota uma dimensão “histórica” e/ou perspectiva
de “ethno-reconstructions”, com o objetivo de explicar, por exemplo, as
mudanças ocorridas, especialmente a partir da segunda metade do século
XIX, na estrutura social Saramaka. Mudanças provocadas, segundo o
autor, pela “dependência [dos Saramaka] da sociedade da costa”, pela
procura de bens materiais e de consumo e pela migração de homens
Saramaka para trabalhar na extração e transporte de madeira.15 Nesse
mesmo trabalho, Price assinala o “interesse que [os Saramaka] têm,
comparado com outros grupos tribais, por sua própria história,
particularmente pelo papel que têm os eventos passados, via mecanismo
sobrenatural, na definição das relações sociais”.16
Destaque-se que os resultados deste trabalho, inicialmente
apresentados no encontro de Nederlandse Ethnologenkring (Rotterdam,
março de 1970), segundo nos indica o autor, em nota de pé de página, se
vinculam ao primeiro período de trabalho de campo supostamente
relacionados com a tese de doutorado, contextualizada dentro da
pesquisa do National Institute of Mental Health. Na mesma nota, o
autor informa sobre outros elementos de sua trajetória intelectual e linha
de produção, como por exemplo, sua pesquisa desenvolvida nos
arquivos da Holanda, financiada pela NATO Post-doctoral Fellowship in
Science, e sua participação no “Seminario Bush Negro”, realizado pela
Universidade de Amsterdam entre 1969 e 1970.
Na década de 1960, os Saramaka estavam distribuídos em 70 vilas
localizadas em área de floresta, ao longo do curso do rio Suriname. Em
contraste com as vilas do baixo curso do rio Suriname, que somavam um
total aproximado de 4.000 a 5.000 pessoas, as do alto curso “tinham
pouco contato com o mundo de fora”, tendo população aproximada, por
vila, de 200 pessoas.17 Referindo-se a Vila Dangogó, situada no curso
alto do rio Suriname, na qual Price desenvolveu, nesse primeiro período,
sua pesquisa de campo, diz o autor: “é, sem dúvida, a região mais
Revista Estudos Amazônicos • 161
conservadora da tribo, e é aqui onde a autoridade do chefe tribal é mais
forte”.18
Não podemos deixar de mencionar que tanto o primeiro período de
trabalho de campo de Price, nos anos 1960, quanto o segundo, em 1976
e 1978, coincidem com momentos vinculados a processos de
descolonização e criação do Suriname como novo estado-nação. Na
década de 1960, o governo colonial do Suriname, em colaboração com a
empresa de mineração Alcoa, constrói uma barragem e usina hidrelétrica
“em terras tradicionalmente garantidas pelos tratados de paz realizados
entre Saramaka e governo colonial em 1762”.19 A inundação dessa área
obrigou ao traslado forçado de aproximadamente 6.000 pessoas para as
vilas, denominadas de “transmigração”, criadas pelo governo ao norte do
lago. Outros grupos de pessoas edificaram suas casas nas proximidades
dos rios meridionais próximos ao lago, conforme nos comenta Price,
logo nas primeiras páginas no seu livro Firts Times, em nota explicativa
do mapa sobre a localização das aldeias Saramaka e outros “maroons” de
Suriname.
Suriname se tornaria país independente em 1975 e podemos
pressupor, examinando outros processo similares de construção de
novos estados-nação20, que durante os anos posteriores o governo
implementasse políticas de integração territorial e cultural, as quais
também deviam afetar, direta ou indiretamente, as denominadas
populações “maroons”. O trabalho de campo de Richard Price, realizado
em 1976 e 1978, coincide com esses processos de descolonização, ainda
que ele nada mencione a esse respeito no seu trabalho.
Considero que esses processos de descolonização devem ser
relacionados dentro de um contexto maior de lutas pela independência
ou criação de novos estados-nação, como ocorreu, após a Segunda
Guerra Mundial, em outros países coloniais, dentro dos quais, os EUA
tiveram papel de destaque nas novas formas de controle e regulação das
relações entre as nações. O reconhecimento da soberania dos novos
estados-nações e “respeito pela diversidade e pluralismo cultural” eram
algumas das questões debatidas pelos intelectuais desses países com
intelectuais ou pesquisadores procedentes das antigas metrópoles
europeias e também dos EUA.
Com tais generalizações apenas pretendemos indicar elementos que
nos permitam vislumbrar algumas das possíveis conexões a serem feitas
162 • Revista Estudos Amazônicos
na análise de Price relativas ao contexto social de produção do seu
trabalho, dos seus objetivos e/ou das suas práticas no campo. Tais
conexões podem, seguramente, nos ajudar a revelar algumas das ideias e
pressupostos sociais e culturais do autor, projetados na construção e
elaboração do seu objeto, norteando os objetivos e finalidade do projeto
de pesquisa como parte da sua opção intelectual, apontando, assim, para
os limites do que seria uma real compreensão da experiência e ações dos
sujeitos envolvidos.
4. Projeto: pesquisa interativa
Nos anos que precederam à primeira visita de campo no Suriname,
sendo professor da Universidade de Yale e também da Universidade de
Johns Hopkins, Price teve a oportunidade de aprofundar seus
conhecimentos sobre as origens da “história afro-america,
concretamente sobre a dos “maroons” distribuídos pelo conjunto do
hemisfério”.21
Entre 1974 e 1975, Price resolveu realizar o projeto de pesquisa sobre
o conhecimento histórico dos Saramaka, com a ideia de lhes propor a
possibilidade de explorarem juntos os First Times. Esse projeto de
pesquisa interativa vinculado, como foi referido acima, a uma tentativa
de romper com o “modelo clássico” de fazer etnografia, é justificado
pelas supostas expectativas depositadas pelos Saramaka no autor,
principalmente por parte das “pessoas mais velhas”, com as quais ele
mantinha relação de maior proximidade. Segundo Price, os mais velhos,
“sempre esperaram que trabalhasse sobre os Primeiros Tempos; como
poderia me ter convertido num homem de saber sem esse
conhecimento? Porém, somente poderia acontecer com a condição de
que eu fosse preparado, isto é, quando eles me julgassem preparado – tal
tempo parecia estar próximo”.22
Essas interpretações do autor que, no limite, dizem respeito à
maneira como tenta articular (consciente ou inconscientemente) as bases
em que se sustenta seu projeto interativo, ou seja, a relação estabelecida
entre ele e os Saramaka, parecem, aparentemente, contrariar as
afirmações feitas em outras páginas do seu livro a respeito da sua
primeira viagem às aldeias. Sobretudo quando nos relata as adversidades
e obstáculos encontrados em seus primeiros contatos com o grupo,
Revista Estudos Amazônicos • 163
especialmente quando refere às proibições explícitas feitas pelos
Saramaka, desde o primeiro dia da “nossa chegada [do casal Price] até a
nossa partida: os Primeiros Tempos”.23 Não obstante, como veremos, o
aparente paradoxo é solucionado por Price na própria maneira de
interpretar a relação entre pesquisador-pesquisado, isto é, na maneira que
ele tem de construir os critérios a partir dos quais ela se sustenta e se
legitima.
Richard Price introduz o leitor nos primeiros contextos ou situações
criadas no campo, sem sua previa contextualização, isto é, sem localizar
o lugar, o tempo e as pessoas, fornecendo apenas interpretações
genéricas, como por exemplo, quando escreve que muitos membros do
grupo
realmente acreditavam que tínhamos chegado lá para
matá-los, outros que tínhamos chegado para tirar seus
segredos. De maneira geral todos estavam convencidos de
que nossa presença podia contrariar os deuses e ancestrais
e conduzir à destruição sistêmica de todo o povo
Saramaka.24
Para justificar tais argumentações, o autor nos apresenta as palavras
de um Saramaka, o Capitão Kála, feitas no altar dos ancestrais
(supostamente na aldeia Dangogó):
Nunca os Brancos vieram a Dongogó. Os ancestrais
sempre falam que os brancos nunca devem vir a
Dangogó. Nunca nenhum estrangeiro [negro ou branco]
tem dormido em Dangogó. Os Povo do Tempo Antigo
simplesmente não pode “ver” os Brancos. Na guerra que
nós lutamos, ainda não terminou… Que vamos fazer com
essas pessoas? Eu nunca sepultei um Branco. Se eles
morrem, como saberia os sepultar?25
Sobre o autor da performance, o Capitão Kála, e da relação entre este
e Richard Price, poucos elementos nos são fornecidos, ainda que alguns
parecem ser aparentemente contraditórios, como quando o autor nos
fala da rivalidade inicial que Kála tinha com ele e a mudança
experimentada, na segunda viagem, quando Kála acolheu o casal Price
como “hospedes honrosos”:
“Asó pipí mi as djóubi, Asó pipí mi as djóub’i”.26 Quando você
[Price] veio pela primeira vez as pessoas falavam: “Abáteli
[o filho menor de Kála, a primeira pessoa que nos acolheu
164 • Revista Estudos Amazônicos
em Dangogó] me trouxestes qualquer um. Dangasí [outro
nome de Kála] e todos os Saramaka serão aniquilados” (…).
De repente, um dia qualquer, tu [Price] retornastes com
todo tipo de “presentes” [para cada um] (…). O
Americano tem deixado seu país e chegou à casa dos
Saramaka. As pessoas falavam que Abátéli e eu [Kála] o
tínhamos trazido aqui para destruir o mundo. Porém,
hoje, asó pipí mi as djóubi [todos se beneficiando].
Linguagem dos Primeiros Tempos! Eu, Dangasí, falo
assim.27
Em outras palavras, o tempo ou intervalo da relação entre o
pesquisador e os entrevistados (ou speakers) desde a primeira viagem até a
segunda e os efeitos decorrentes das mesmas, é desconsiderado por
Price, sendo apenas refletido a partir de uma idéia explicativa em termos
culturalistas ou essencialistas. São as qualidades morais e éticas dos
Saramaka, diretamente vinculadas à ideologia dos primeiros tempos,
segundo a qual os perigos originados nas ações humanas sempre têm
dupla direção (por exemplo, uma ofensa sempre terá uma contra-ofensa),
são as bases nas quais Price se apoia para compreender o sentido das
ações resultantes do processo interativo entre ele e os Saramaka. Quer
dizer, tanto a atitude adversa inicial dos Saramaka, quanto a receptividade
posterior se encaixam na mesma lógica explicativa. Desta maneira, o
comportamento exemplar (leia-se ter respeitado os princípios morais
sobre os Primeiros Tempos), por exemplo, “não falar ou perguntar sobre
aquilo que não devia ser evocado”28 e o retorno posterior coincidem
com o supostamente esperado pelos Saramaka.
Esta suposta mudança de status foi favorecida também, segundo
Price, pela conduta exemplar (ideal), ideia de “respeito” e “sensibilidade”
mantida por ele e sua esposa nos primeiros contatos com os Saramaka.29
Fatores que o autor considera como circunstâncias históricas favoráveis
para levar a cabo seu projeto sobre os Firts Times.
Price tenta introduzir alguns dos elementos do contexto social dos
Saramaka durante os anos 1970, mas os mesmos são apresentados
tomando como referência implícita a existência de uma “sociedade
isolada”, congelada no tempo, na qual, em decorrência das “forças
externas”, consideradas negativas, os Saramaka são obrigados a se
adequar às novas circunstâncias, fazendo com que determinadas pessoas,
especialmente “os mais velhos, tomem consciência dos riscos que tais
Revista Estudos Amazônicos • 165
forças pressupõem para a tradição e costumes Saramaka” isto é, para a
identidade ou maneira de ser Saramaka.30 De acordo com as palavras de
Price:
No nosso retorno ao Suriname, na metade dos anos 70, o
mundo dos Saramaka do alto curso do Rio Suriname (…)
tinha mudado. Uma vez por mês oficiais do governo ou
turistas visitavam as vilas, anteriormente isoladas, equipes
de cinema iam de tempos em tempos, alguns homens
Saramaka usavam calças compridas nas vilas, as pessoas
escutavam rádio e passavam parte do tempo na costa.31
Outro dos elementos que Price indica do novo contexto de campo é
sua ascendente carreira universitária (por exemplo, concluir a tese de
doutorado e assumir, posteriormente, a chefia do Departamento de
Etnologia da Universidade de Johns Hopkins) e, sobretudo, o
conhecimento adquirido das fontes documentais referentes aos
Primeiros Tempos dos Saramaka, que lhe permitiam, segundo ele,
oferecer “aos historiadores Saramaka um presente altamente valorizado:
novas informações sobre seu antigo passado”.32
Entre 1977 e 1978, Richard Price realiza novas pesquisas nos
arquivos holandeses, a partir das quais
o corpo de informação sobre os Primeiros Tempos
aumentou consideravelmente, em todo caso suficiente
para que, ainda sem fornecer detalhes precisos de casos
particulares, possibilitasse ter uma boa reputação de
historiador para os Saramaka bem informados.
Determinados velhos me procuravam justamente para
intercambiar informação.33
Price assinala também que “se sabia que [ele] havia adquirido, aos
olhos dos estrangeiros uma certa autoridade em questões Saramaka” que
podia ser usada como “ajuda para eles nas relações com as autoridades
holandesas”.34
Em suma, é como se as atitudes dos Saramaka e as de Price fossem se
gerando, casual (leia-se naturalmente) e espontaneamente, para validar e
atribuir legitimidade a seu projeto: “por sorte, o enriquecimento dos
meus próprios conhecimentos coincidia com a tomada de consciência
independente de alguns velhos que desejavam (…) que o saber sobre os
Primeiros Tempos fosse guardado por escrito antes de ser perdido para
sempre”.35 Foi, com essa finalidade que o autor explicou o fato de que,
166 • Revista Estudos Amazônicos
em 1978, os oficiais do clã Matjáu, em reunião realizada na sala do chefe
tribal, lhe nomearam seu cronista oficial.36
Contudo, Price não reflete a respeito dos efeitos de assimetria que se
produzem pelo fato de ser o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a
regra do jogo. Isto é, é ele quem inicia, num contexto de troca, o círculo
dos “dons” e “contra-dons”. Além disso, o autor também contribui para
acentuar essa assimetria pela posição superior que o pesquisador ocupa
em relação ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital,
especialmente do capital cultural.37
No limite, Price construiu uma idéia da relação ou comunicação entre
ele e os Saramaka, segundo o princípio metodológico da reflexividade
etnográfica, centrado na crença no “poder” que exercem as práticas do
pesquisador no diálogo ou interação com seus informantes; ou seja,
legitimada segundo as bases culturais que estruturam a maneira de ser
Saramaka: “eu tomei consciência da crença que meu saber suscitou nos
velhos. Uma vez mais eu sentia como a Ideologia dos Primeiros Tempos
permanecia forte e até que ponto dava profundidade e dignidade para a
vida destes homens”.38 O autor também aborda os efeitos performáticos
das interações e implicações de autoridade enquanto produção de
conhecimento textual, a denominada “tradução entre culturas” da prática
e escrita do texto etnográfico e suas conotações relativas aos problemas
éticos e às obrigações morais do pesquisador para com seus “objetos” de
pesquisa.
Considero, em última instância, que as reflexões de Price são uma
continuidade, mais que propriamente uma ruptura, a respeito das ideias
referentes à neutralidade da ciência. Ideias manifestas, especialmente nos
anos 1980, nos debates sobre a exterioridade ou distanciamento
desinteressado no contexto da relação pesquisador-pesquisado ou na
relação entre “sujeito” e “objeto”. Estas preocupações carecem de
fundamento quando se parte da ideia de que a presença do pesquisador
no contexto do campo é, desde o início, resultado de um processo de
acertos e negociações, sejam implícitas ou explícitas, inseridas em
determinada lógica de relação social entre o pesquisador e o pesquisado.
Negociações, entre ambas as partes, que também definirão o tipo de
inserção do pesquisador no sistema de classificação do grupo, isto é, o
próprio lugar ou lugares que o grupo lhe atribuirá no “espaço social
local”.
Revista Estudos Amazônicos • 167
Indagar (circularmente) sobre as preocupações e pressupostos de
pesquisa, sem se esforçar para analisar seus próprios pressupostos,
implica conduzir essas preocupações tomando como base a autoreflexão, mais que realizar uma pesquisa reflexiva. Pensar a experiência
de campo como evento significativo que cria uma relação social desde os
primeiros momentos de contato e nos diferentes contextos de interação,
implica considerar, de um ponto de vista reflexivo, que as ações ou
objetivos no campo não têm sempre os resultados esperados, ou podem
escapar, em diferentes momentos, à consciência do pesquisador. Em
outros termos, é condição indispensável para uma sociologia reflexiva,
adotar a objetivação participante como procedimento analítico ou maneira de
operar do pesquisador.39 Questão que significa considerar, também, o
efeito político de teoria, apontado por Bourdieu.40
5. Comentários sobre o uso dos relatos e critérios para
escolher os seus speakers
As afirmações e práticas contextuais, sem nenhuma explicitação ou
conexão realizada com o contexto social e histórico, seja local, nacional
ou internacional do momento, ou com as reais condições sociais que são
produzidas, somente são possíveis de serem compreendidas na medida
em que Price pressupõe uma idéia de identidade Saramaka, ou maneira
de ser Saramaka, como corpo coerente, que lhe permite unificar e
homogeneizar, não somente as situações de pesquisa, mas também as
atitudes e/ou qualidades que definem os diferentes Saramaka nesses
contextos. O autor faz uma homogeneização de informantes e eventos
sobre determinados fatos na procura de dar coerência a três momentos
históricos que ele ordena na seguinte ordem: os Anos Heróicos, 1685-1748;
a Procura da Liberdade, 1749-1759; Finalmente Livres!, 1760-1762.
As descontinuidades geradas nesse processo de luta pela liberdade,
assim como as práticas contextuais dos informantes, são pautadas por
uma idéia original de continuidade ancestral: o herói dos tempos de
guerra. Tais ancestrais coletivos, dado o processo de segmentação e
criação de novos grupos, seja por causa das novas gerações após
processo de paz ou pelas migrações das vilas para o norte, passam a
funcionar, a partir de 1845, como símbolos de identidade
institucionalizada. Criando-se, desta maneira, dois grupos de ancestrais:
168 • Revista Estudos Amazônicos
os que se referem aos mortos recentes, que possuem papel importante
no dia a dia; e os ancestrais dos First Times, ideologicamente
institucionalizados e legitimados.
Estes últimos ancestrais são os menos frequentemente invocados;
eles se referem às coletividades antigas que articulam de maneira
matrilinear seus ascendentes a um grupo original de escravos rebeldes.
De maneira geral, nas palavras do autor, “são os movimentos
migratórios dos antigos dos primeiros tempos que têm estabelecido os
direitos fundiários para a posteridade, eles são os detalhes das práticas
políticas antigas, que servem de modelo às sucessões atuais”.41
Ampliando esta linha de argumentação, considero que tal modelo é
usado por Price como pressuposto cultural e social para qualificar o
informante nos contextos de interação. Neste sentido, podemos dizer
que o autor caracteriza seus informantes e as falas dos mesmos (os
eventos ou relatos), como práticas interativas em termos interclânicos.
Ou seja, como se os sujeitos das ações fossem os clãs e não os
indivíduos.42
Tomando como base as reflexões de Leach também podemos
questionar o procedimento metodológico de Price. Segundo Leach, não
é possível compreender a narrativa do mito sem levar em consideração
os direitos adquiridos do narrador, ou seja, da pessoa que está falando.
Assinala também Leach que as diferentes narrações de um mesmo mito
estão em estrita relação com a obtenção do poder político.43
Continuando com esta linha de argumentação, considero que as
atribuições sociais e culturais e/ou as redes de aliança relativas à posição
social da pessoa que está falando são condições necessárias para
compreender suas práticas. Richard Price não analisa, em seu livro, estes
aspectos, e a escolha dos diferentes informantes, além de responder a
critérios genéricos, segundo uma suposta hierarquia nativa do saber,
“mestres”, “velhos” ou “chefes tribais”, responde a definições carregadas
de juízos de valor. Como mostram, por exemplo, as afirmações de Price
a respeito de Peléki, do clã Matjáu, de idade madura e, segundo o autor,
homem extremamente sério que “sempre manifestou uma real paixão
pela história dos Primeiros Tempos”44 ou sobre Tebíni, que ele define
como “o grande historiador”, atribuição dada com base no depoimento
do “chefe tribal”, por ser a única pessoa viva entre os Saramaka que
conheceu as mais antigas gerações ou porque conheceu todos os mais
Revista Estudos Amazônicos • 169
velhos.45 A respeito de Otjútú, outro dos seus speakers, Price comenta
que ele lhe forneceu “informações importantes sobre os Primeiros
Tempos, porém, após verificação, suas informações são reveladas
inexatas”. Otjútú é também qualificado de “bom vivant”, na versão
inglesa, porém, tal afirmação, foi excluída da versão francesa do seu livro.
Em geral, as informações sobre os critérios para definir e escolher os
seus informantes se reduzem a um tipo de ficha que contém as
informações de alguns deles, colocadas em seis páginas, logo após a
introdução do livro, onde aparecem também os retratos de algum deles.
A totalidade de relatos incluídos no livro foi de 202, 130 dentre os quais
correspondem às falas de Tebíni (48 do total), Otjúju (36 do total) e
Peleki (12 do total), todos eles do denominado clã Matjáu. Outros 23
relatos são de Bakaá, “assistente do capitão”, do clã Dómbi (clã
subordinado aos Matjáu), outros 10 são do “forte e digno” capitão
Góme, do clã Awaná, que Price considera mestre sem igual e verdadeiro
amante das palavras dos Primeiros Tempos. A maioria dos relatos
restantes (72 no total) corresponde a 20 informantes, grande parte deles
incluídos dentro do clã Matjáu. Note-se que o total dos relatos
corresponde a 201 e não 202 conforme anunciado pelo autor.
O saber e controle sobre o conhecimento histórico dos Primeiros
Tempos é atribuído por Price de forma dada ou “natural” aos mais
velhos ou chefes tribais. Estes, com base na ideia (ou consciência) de que
o “conhecimento é poder”, tentam guardar e preservar de forma
circunscrita e fragmentada (nos nomes honoríficos dos mais velhos dos
Primeiros Tempos, falas dirigidas a eles, cânticos, slogans dos tambores,
provérbios, fragmentos genealógicos, listas de terras pertencendo a tal ou
qual clã), como fonte de legitimidade existencial, social e histórica, frente
às pressões da modernização dos brancos.46
Partindo do pressuposto de que os grupos e identidades são
fenômenos de construção social que se sustentam em critérios de
legitimidade igualmente construídos, os mesmos não podem ser
compreendidos sem considerar as diferentes dimensões do processo que
contribuem para criá-los. Considero, neste sentido, que a “Ideologia dos
Primeiros Tempos”, como fundamento de legitimidade da existência
social original dos Saramaka que a localiza num tempo e lugar
determinado no espaço social, resulta das ações e/ou interpretações de
diversos agentes sociais que ocupam lugares diferentes no espaço social,
170 • Revista Estudos Amazônicos
e não apenas dos Saramaka, ou de determinados Saramaka, como sugere
Price.
Isto significa que uma análise sobre os critérios de definição e limites
legítimos de um determinado grupo, como por exemplo, as versões
sobre o passado ou conhecimento histórico, implica considerar as lutas
de classificação, as quais, segundo Bourdieu, são lutas pelo monopólio de
fazer ver e fazer crer, de fazer conhecer e fazer reconhecer, de impor as
divisões legítimas do mundo social, e dadas suas pretensões
performativas, de fazer e desfazer grupos sociais tentando impor uma
visão do mundo social através dos princípios de divisão.47 Para Bourdieu,
as “lutas de classificação” também pertencem ao domínio da ciência, isto
é, os princípios científicos participam das lutas de classificação
consciente ou inconscientemente.
Também considero pertinente sublinhar as audazes argumentações
que Handler levanta a respeito dos obstáculos e implicações do
pesquisador ao tentar explicar os conceitos nativos sobre cultura. Por
exemplo, aqueles que os líderes dos movimentos étnicos usam para
definir a “nossa cultura” ou tradição, em termos de uma noção ou
pressuposto de cultura. Isto é, o que os líderes definem como “nossa
cultura”, é o mesmo que o antropólogo pretende conceituar.48
Tentamos mostrar, nestas páginas, que Price também desconsidera
esses aspectos ao dar preferência à “procura do que verdadeiramente
ocorreu”, uniformizando, assim, informantes e eventos. Isto se manifesta
quando nos informa sobre as diferentes versões e disputas existentes
entre os Saramaka a respeito de um ou outro evento e das próprias
disputas existentes, das quais ele também participa, em diferentes
contextos de intercâmbio de informação, sobre os significados dessas
versões. Por exemplo, quando Price se refere às versões sobre as
migrações dos primeiros clãs, nas quais diferentes informantes, ao tentar
lembrar a procedência original do clã, discordam das referências ou
critérios que cada um atribui para a definir, sendo as lembranças dos
antigos ancestrais o que outorga autoridade e credibilidade ao relator.
Para Price, estes debates são expressões de práticas comuns da vida
Saramaka e também um tipo de “interrupções” orientadas a esclarecer e
complementar informações anexas, similar ao procedimento usado pelo
“historiador” ou “saber ocidental”. Quer dizer, tais desacordos entre os
informantes a respeito dos diferentes nomes dos ancestrais ou dos
Revista Estudos Amazônicos • 171
lugares e tempos originais atribuídos aos mesmos, são abordados por
Price como um tipo de citação de fonte que especifica informações
gerais (por exemplo, a respeito dos detalhes das migrações dos
Saramaka), e também denota a rigidez crítica dos pensadores Saramaka.49
Também podemos observar, na metodologia usada por Price, sua
preferência em escolher determinadas versões, por exemplo as do clã
Matjáu. Uma das implicações destas escolhas, além de atribuição de
legitimidade a determinadas interpretações em detrimento de outras, é
ocultar uma das propriedades constitutivas da lutas de classificação.
A ideologia ou conhecimento histórico, fragmentado e guardado em
diferentes formas culturais no decorrer de dois séculos por determinados
agentes, pressupõe considerar a história ou mito como função
sociológica para glorificar um grupo em detrimento de outro.50 As
interpretações do mito, como nos sugere Malinowski, estão
estreitamente vinculadas com a dimensão política da “autoridade”, que
implica legitimar ou fazer valer sua autoridade e projeto de futuro
daquele que está falando, recorrendo a um elemento temporal, por
exemplo, ser Saramaka, do “passado” e também do “presente”. Em
outras palavras, as diferentes versões ou interpretações do passado, estão
em estreita conexão com os princípios que definem tanto posições
sociais diferenciadas no grupo como critérios de “autoridade legítima”,
vinculados a um tipo de conhecimento “original” ou “puro”.
Richard Price, como mencionamos acima, faz uso dos relatos para
tentar mostrar o que “verdadeiramente ocorreu”, desconsiderando a
disputa pelos critérios de definição legítima (leia-se as lutas de
classificação). No debate a respeito dos First Times, parece estar em jogo,
portanto, não apenas a autoridade daqueles que falam, mas também os
critérios ou propriedades do objeto de referência (Primeiros Tempos), a
identidade social de cada sujeito debatedor e as expectativas de cada um
deles nas relações entre objeto e sujeito. Porém nada disso é abordado
por Price.
De acordo com essa argumentação, e como acontece em todo mito,
considero que as construções ou narrativas apresentadas por Price se
baseiam numa interpretação do presente com representações do passado,
que pretende negar ou manipular a história segundo uma “invenção”
temporal (leia-se de descontinuidade) para mostrar uma reprodução ou
continuidade do mesmo. Isto é, o autor se fundamenta numa lógica
172 • Revista Estudos Amazônicos
circular na qual os diagnósticos históricos sobre o presente são descritos
em termos históricos, ao passo que os relatos sobre o passado negam, na
verdade, a história, mostrando-a como uma reprodução do mesmo.
Nesse sentido, a visão catastrófica de Price sobre a sociedade
Saramaka, que opõe duas sociedades com dinâmicas diferentes, a
tradicional – ou isolada –, e a moderna, como força motora, é, em última
instância, o princípio estruturante das suas práticas. Igualmente, o que
legitima e norteia o sentido das interações, está estreitamente vinculado a
sua previsão “profeticamente teleológica” do processo de mudança e a
necessidade de repará-lo, dada a tomada de consciência dos Saramaka:
Aquilo que outras vezes formava parte do saber gradual
que, remodelado pela experiências passadas, visava levar a
termo novos projetos de sociedade – condição de todo
sistema evolutivo – é atualmente uma fonte acelerada que,
com certeza pode levar ao desaparecimento total do
saber.51
Vale lembrar que Price é reconhecido como autoridade legítima na
produção de conhecimento histórico Saramaka. Este saber é usado
também como argumento de autoridade nas disputas pela defesa e
reconhecimento dos direitos que os Saramaka têm sobre seu “território
tradicional”. Quer dizer, é utilizado, por ele, para fundamentar e legitimar
a existência histórica de uma identidade coletiva ou cultura comum.
Assim, originada em um tempo e lugar, a sociedade Saramaka é
percebida (inventada) por Price a partir de uma idéia de continuidade
histórica, legitimada pela “resistência à escravidão” e pela “consciência
dos seus membros da sua heroica descendência maroon”.
Bourdieu afirma que todos os atos de fala são performativos, contudo
o grau de eficácia que exercem sobre a realidade social é proporcional à
autoridade daquele que fala. Pois, dado o reconhecimento e legitimidade
que tem o cientista social para produzir conhecimento sobre o mundo
social, seus atos exercem maior eficácia performativa. São atos que
contribuem para exercer o efeito de teoria, “efeito propriamente político
que consiste em mostrar uma ‘realidade’ que não existe completamente
enquanto não se a conheça e reconheça”.52
Artigo recebido em julho de 2010
Aprovado em outubro de 2010
Revista Estudos Amazônicos • 173
Notas
* Professora na Universidade Ramón Llull, Barcelona, Espanha. Uma primeira versão
deste texto foi apresentada e publicada nos Anais do VI Encontro Nacional de História
Oral, realizado na Universidade de São Paulo, de 28 a 31 de maio de 2002.
1
PRICE, Richard. First Time: The Historical Vision of an Afro-American People.
Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1983, p. 24.
2 MALINOWSKI, Bronislaw. “The method of field-work and the invisible facts of
native law and economic” e “An ethnographic theory of language and some practical
corollaries”. In: Coral Gardens and their magic. London: George Allen and Unwin Ltd.
1935, vol. 1, pp. 317-340 e vol. 2, pp. 3-74; MALINOWSKI. “El mito en la
psicología primitiva”. In: Magia, Ciencia y Religión. Barcelona: Planeta. 1985, pp. 105173.
3
BOURDIEU, Pierre. Ce que Parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques.
Paris : Fayard. 1982; BOURDIEU & WACQUANT, L.J.D. Per una sociologia reflexiva.
Barcelona: Herder. 1994.
4
PRICE. First Time, p. 5.
5
Ibidem, p. 11.
6
PRICE. “Novas direções na História etnográfica”. Estudos Afro-Asiáticos, n° 23
(1992), p. 192.
7
SAHLINS, Marshall. Historical Metaphors and Myhtical realities: Structure in the early
History of the Sandwich Islands kingdom. Association for the Study of
Anthropology in Oceania, Special Publication, Society for Psycological
Anthropology. University of Michigan Press, 1981.
8
ROSALDO, Renato. Ilongot Headbunting, 1883-1974: A Study in Society and
History. Stanford: Stanford University Press, 1980.
9
FABIAN, Joahnnes. Time and the Other: How Anthropology makes its object. New
York: Columbia University Press, 1983; HERZFELD, M. Anthropology Throug the
Looking-Glass. Critical etnography in the margins of Europe. Cambeidge: Cambridge
University Press, 1987; COMAROFF, J. & COMAROFF, J. Ethnography and the
Historical Imagination. San Francisco/Oxford: Westiew Press Boulder, 1992;
TAUSSIG, M. Shamanismo, Colonialismo e o Homen Selvagem. Um estudo sobre o terror
e a cura. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
10
A respeito dessas questões ver, por exemplo: Fabian (1983); Herzfeld (1987) e
Davies (1999). Para uma análise mais completa a respeito das considerações
‘reflexivas’ na prática e análises do antropólogo ver CLIFFORD, J. The Predicament of
Culture: Twentieth-Century Etnography, Literature, and Art. Cambridge, Mass.:
174 • Revista Estudos Amazônicos
Harvard University Press, 1989; e CLIFFORD, J & MARCUS, G. (orgs.). Retóricas de
la Antropologia. Gijon: Jucar, 1991.
11
PRICE. First Time, p. 2.
12
PRICE, Richard. “Saramaka Woodcarving: The Development of and
Afroamerican Art”. Man, nº 5 (1970), pp. 363-78.
13
PRICE. “Avenging Spirits and the Structure of Saramaka Lineages”. Bijdragen tot
the Taal-, Land- en Volkenkunde, n° 129 (1973), pp. 86-107.
14
PRICE. “Saramaka Emigration and Marriage: a Case Study of Social Change”.
Southwestern Journal of Anthropology, vol. 26, nº 2 (1970), pp. 157-89.
15
Ibidem, pp. 157 e 160.
16
Ibidem, p. 160.
17
Ibidem, p. 158.
18
Ibidem.
19
PRICE, Richard. “Quilombolas e direitos humanos no Suriname”. Horizontes
Antropológicos, vol. 5, n° 10 (1999), pp. 203-42.
20
GORDON, Edmund. “Revolution, Common Sense and The Dynamics of
African-Nicaraguan Politics, 1979-1985”. Critique of Anthropology, vol. l5, n°1 (1995),
pp. 5-36; SUTTON, Paul. “Politics in the Commonwealth Carribbean. The PostColonial Experience”. European Review of Latin American and Caribbean Studies, n° 51
(1991).
21
PRICE. First Time, p. 14. Parte dos resultados destas pesquisas e reflexões sobre
estos assuntos foram publicados em: MINTZ, Sidney W. & PRICE. An
Anthropological Approach to the Afro-American Past: A Carribbean Perspective. Philadelphia:
ISHI, 1976; e PRICE (org.). Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the Americas.
Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979.
22
PRICE. First Time, p. 14.
23
Ibidem, p. 15.
24
Ibidem, p. 14.
25
Ibidem.
26 Segundo autor se trata de um fragmento proverbial típico, “preservado como
unidade linguística particular”, o qual testemunha a procedência da língua mãe
africana de uns dos “maroons originais”. É de destacar a produção de trabalhos a
respeito das “línguas africanas originais”, que emergem a partir dos anos 1970 para
responder a questões “sobre” os denominados grupos na diáspora de “afroamericanos”.
Revista Estudos Amazônicos • 175
27
Ibidem, p. 15.
28
Ibidem.
29
Ibidem, p. 15, nota 20; pp. 28-29.
30
Ibidem, p. 26.
31
Ibidem, p. 15.
32
Ibidem, pp. 15-17.
33
Ibidem, p. 17.
34
Ibidem, p. 15.
35
Ibidem, p. 17.
36
Ibidem.
37
BOURDIEU, Pierre. “Compreender”. In: BOURDIEU (org.). A Miséria do
Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997; BOURDIEU. “Marginália. Algumas notas
adicionais sobre O Dom”. Mana, vol. 2, n° 2 (1996), pp. 7-20.
38
PRICE. First Time, p. 19.
39
Para Bourdieu é condição indispensável da sociologia reflexiva “pôr em questão o
privilégio do sujeito conhecedor, que geralmente se lhe libera, com toda
arbitrariedade e em tanto que se lhe considera com o puramente noético do trabalho
da objetivação. Se trata de trabalhar para dar conta do ‘sujeito’ empírico nos mesmos
termos da objetividade construída pelo sujeito científico – colocando-o sobretudo
num lugar determinante do espaço-tempo social”. BOURDIEU & WACQUANT.
Per una sociologia reflexiva, p. 186.
40
BOURDIEU. Razones Prácticas. Sobre la teoría de la Acción. Barcelona: Anagrama.
1997.
41
PRICE. First Time, p. 7.
42
MALINOWSKI. “The method of field-work and the invisible facts of native law
and economic” e “An ethnographic theory of language and some practical
corollaries”; seu trabalho intitulado “The method of field-work” já nos alertava a
respeito dos riscos de personalizar unidades no processo de desenvolvimento de
pesquisa ou trabalho de campo.
43
LEACH, Edmund R. Sistemas Políticos da Alta Birmania. Um Estudo da Estrutura
Social Kachin. São Paulo: EdUSP. 1995, pp. 318-19.
44
PRICE. First Time, p. 18.
45
Ibidem, p. 11.
46
Ibidem, p. 26.
176 • Revista Estudos Amazônicos
47
BOURDIEU. Ce que Parler veut dire, pp. 137-40.
48
HANDLER, R. Nationalism and Politics of Culture in Quebec. Wisconsin: The
University of Wisconsin Press, 1988, pp. 15 e 25.
49
PRICE. First Time, p. 9, notas 16, 17 e 25, e relato 169.
50
MALINOWSKI. “El mito en la psicología primitiva”, p. 145.
51
PRICE. First Time, p. 26.
52
BOURDIEU. Razones Prácticas, p. 23.
Revista Estudos Amazônicos • 177
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