Epilepsia do lobo frontal na infância ... ARTIGO DE REVISÃO Schlindwein-Zanini R, Portuguez MW, Costa JC Epilepsia do lobo frontal na infância: aspectos psicológicos e neuropsicológicos Frontal lobe epilepsy in childhood: Psychological and neuropsychological aspects RACHEL SCHLINDWEIN-ZANINI1 MIRNA W. PORTUGUEZ2 JADERSON C. DA COSTA3 RESUMO ABSTRACT Objetivos: Revisar os aspectos psicológicos e neuropsicológicos da epilepsia do lobo frontal na infância. Fonte de dados: Revisão da literatura, utilizando, principalmente, artigos de jornais indexados no SciELO e Medline. Síntese dos dados: Crises epilépticas do lobo frontal na infância, aspectos neuropsicológicos e psicológicos da epilepsia do lobo frontal e suas repercussões são abordados e discutidos. Conclusões: Na criança, a epilepsia do lobo frontal pode gerar distúrbios psicológicos e neuropsicológicos, como déficits em funções executivas (cognição, planejamento, linguagem, memória e atenção), alterações comportamentais (controle de impulsos e agressividade), manifestações de crises epilépticas comportamentais e piora da qualidade de vida. Suas alterações podem ser confundidas com doenças psiquiátricas, reforçando a importância do diagnóstico diferencial e da avaliação neuropsicológica. Aims: To review the psychological and neuropsychological aspects of the frontal lobe epilepsy in childhood. Source of data: Review of the literature, mainly through journals indexed in SciELO and Medline. Summary of findings: Epileptic crisis of the frontal lobe epilepsy in childhood, psychological and neuropsychological aspects of the frontal lobe epilepsy and their repercussions are presented and discussed. Conclusions: In the child, frontal lobe epilepsy can result in psychological and neuropsychological disorders, such as deficits in executive functions (cognition, planning, language, memory and attention), behavior alterations (control of impulses and aggressiveness), manifestations of behavior epileptic crisis, and worsening of the quality of life. DESCRITORES: EPILEPSIA DO LOBO FRONTAL/complicações; MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS; DOENÇAS DO SISTEMA NERVOSO; SINTOMAS COMPORTAMENTAIS; CRIANÇA; LITERATURA DE REVISÃO. 1 2 3 KEY WORDS: EPILEPSY, FRONTAL LOBE/complications; NEUROLOGIC MANIFESTATIONS; NERVOUS SYSTEM DISEASES; BEHAVIORAL SYMPTOMS; CHILD; REVIEW LITERATURE. Doutora em Ciências da Saúde, Área de Concentração: Neurociências, pela Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutora em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo. Professora Adjunta em Neurologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Titular de Neurologia da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Scientia Medica, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 93-96, abr./jun. 2007 93 Epilepsia do lobo frontal na infância ... INTRODUÇÃO A epilepsia do lobo frontal (ELF) é uma alteração neurológica, com ativação da área do córtex frontal, com repercussões de ordem psicológica e neuropsicológica importantes de serem consideradas na prática clínica, principalmente quando ocorrem na infância. Há muitas mudanças cognitivas e comportamentais decorrentes das enfermidades associadas ao lobo frontal. Tal sintomatologia pode ser muito diversificada, conforme a localização e extensão da lesão, podendo ocasionar transtornos afetivos, de personalidade e atencionais.1 Neste artigo é apresentada uma revisão de literatura acerca dos aspectos psicológicos e neuropsicológicos da ELF na infância e suas repercussões. CRISES EPILÉTICAS DO LOBO FRONTAL NA INFÂNCIA A ELF pode apresentar crises com manifestações clínicas e eletroencefalográficas iniciais indicando ativação de uma região frontal, como as associadas, inclusive, aos processos de memória, podendo ocorrer perda da consciência.2 A maior parte das funções do lobo frontal está reunida sob o termo “funções executivas”: ele controla a ação por antecipação, a escolha dos objetivos a serem alcançados, a planificação, a seleção apropriada das respostas (e inibição de outras respostas), a vigilância do andamento da situação e a verificação do resultado alcançado. Tal controle, por sua vez, está relacionado à motivação e à capacidade de prever a sucessão de ações a serem feitas.3 A ELF nem sempre é bem compreendida e reconhecida pelos profissionais da área da saúde que se dedicam às crianças, podendo ser confundida com um distúrbio do sono ou um problema psiquiátrico. Nesse sentido, foram analisados 22 pacientes pediátricos com diagnóstico de ELF, com idade entre 10 meses e 16 anos. Notaram que as crises duravam entre 30 segundos e 2 minutos, com início explosivo, grito, agitação, rigidez, movimento de pedalar dos pés e incontinência. Tais crises são difíceis de controlar, mas podem responder à carbamazepina, ao ácido valpróico ou à cirurgia da epilepsia.4 As crises epilépticas comportamentais (behavioural epileptic seizures – BES), referem-se a 94 Schlindwein-Zanini R, Portuguez MW, Costa JC vários sinais clínicos que compreendem mudança do humor, agitação repentina, quietude inesperada, e mudança sutil da consciência ou despertar. Pode haver movimentos repetitivos, como os estereótipos epilépticos. As BES originam-se das áreas pré-frontais do cérebro, mas a maioria delas são negligenciadas ou diagnosticadas erroneamente como manifestações comportamentais, em especial nas crianças com deficiência mental e características de autismo. Dada a melhora do comportamento e de funções mentais depois da cirurgia, supõe-se que as BES podem contribuir para gerar a disfunção mental e comportamental.5 Na ELF, o comportamento agressivo é observado raramente como uma semiologia ictal. A agressão ictal pode ocorrer em lesões de estruturas frontais e límbicas. Em lesões da estrutura límbica, o mecanismo principal do comportamento agressivo é a hiperatividade, visto que lesões frontais podem causar um comportamento agressivo como um mecanismo indireto, em que a supressão no sistema límbico é perdida.6 Foi analisada uma série de 111 crises em 14 crianças com idade entre 3 e 81 meses, com crises do lobo frontal. O estudo mostrou que os pacientes apresentavam freqüência elevada de crises, com até 40 episódios/dia (em comparação com os lactentes com epilepsia refratária do lobo temporal, que apresentam entre 5 e 15 crises/ mês), duração curta, com média de 29 segundos, e que metade deles apresentava tendência a salvas. Quarenta e sete por cento destes eventos tiveram início durante o sono noturno ou diurno. Os sinais mais comuns foram os motores, como crises tônicas, clônicas e espasmos, observados em cinco crianças. As vocalizações apareceram em 36% das crises, enquanto que a generalização secundária foi mais freqüente em adultos.7 ASPECTOS NEUROPSICOLÓGICOS E PSICOLÓGICOS DA EPILEPSIA DO LOBO FRONTAL O lobo frontal agrupa funções motoras, de expressão lingüística, memória e funções de planejamento mental do comportamento.8 As crianças com epilepsia têm maiores chances de manifestar déficits cognitivos específicos, como na memória. Em indivíduos entre 6 e 18 anos, com ELF, foi demonstrado, através dos dados clínicos, do eletroencefalograma e da avaliação neuropsicológica, que havia grande Scientia Medica, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 93-96, abr./jun. 2007 Epilepsia do lobo frontal na infância ... probabilidade desses pacientes terem dificuldades de memória. As crianças com ELF tiveram resultados baixos em algumas tarefas verbais e visuais. Uma epilepsia intratável de maior duração está associada com a habilidade reduzida da memória. A função da memória e seu impacto potencial na realização acadêmica são considerações vitais ao manejar a doença na criança.9 No caso de ELF, ao pensar em diagnóstico diferencial, deve-se considerar, freqüentemente, a etiologia psicológica e a epilepsia focal, já que podem ocorrer alucinações visuais recorrentes, que são freqüentemente passageiras.10 A atenção é a capacidade de selecionar e focalizar processos mentais em algum aspecto específico, respondendo predominantemente aos estímulos que lhe são significativos e inibindo respostas a outros estímulos.11 A condição básica para se fazer uso da atenção é a vigília, subentendida no sistema ativador reticular ascendente que, devido às relações com os núcleos intralaminares do tálamo, exerce uma influência excitadora no cérebro todo. Logo, a reação de vigília está na base dos processos de atenção que permitem ao organismo executar uma reação de orientação em vista de estímulos recebidos. Nesta reação intervêm a amígdala, o hipocampo e o lobo frontal, constituindo a vigília que coloca cérebro em condições ideais para tratar a informação.3 Acerca da atenção de crianças com ELF, observou-se que esta afeta seletivamente a capacidade desses pacientes resistirem à interferência de um distrator.12 Foi realizado um trabalho explorando a atenção, a memória e o comportamento em crianças com ELF utilizando o WISC-III, teste de aprendizado verbal de memória (Califórnia Verbal Memory Test), e a figura complexa de Rey (Rey-Osterrieth Figure), enquanto seus pais respondiam à lista de verificação do comportamento da criança de Achenbach. No teste de aprendizado verbal de memória, essas crianças fizeram mais erros de intrusão e foram mais propensas à interferência. Tiveram mais dificuldades em copiar e recordar a figura complexa de Rey. Os perfis do comportamento revelaram problemas de atenção, pondo as crianças com ELF em maior risco de desenvolver problemas escolares. É interessante citar que Achenbach foi o criador do instrumento diagnóstico CBCL (Child Behavior Checklist – Lista de Verificação Comportamental para Crianças), que consiste em um questionário de avaliação Scientia Medica, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 93-96, abr./jun. 2007 Schlindwein-Zanini R, Portuguez MW, Costa JC comportamental de utilização internacional e visa avaliar competência social e problemas de comportamento em crianças e adolescentes entre 4 e 18 de idade. As informações são fornecidas pelo responsável pela criança/adolescente.13 Acerca da memória episódica, os pacientes com danos no lobo frontal esquerdo mostram déficits no ensaio da informação a ser recordada, enquanto que os pacientes com danos no lobo frontal direito mostram-se enfraquecidos na memória de reconhecimento.14 O funcionamento executivo da ELF foi investigado através de uma bateria de testes, onde não houve evidência de déficits em funcionamento intelectual global.15 Destaca-se que o QI dos pacientes com ELF é geralmente preservado.16 As crianças nas quais a epilepsia surgiu antes dos 6 anos de idade tinham redução da habilidade de mudar estratégias comportamentais, o que é uma função executiva do lobo frontal. Além de déficits no planejamento e no controle do impulso, tinham mais problemas de coordenação e maior rigidez.17 Foi averiguado o desempenho neuropsicológico de 12 crianças com ELF, comparando-as com 12 crianças com epilepsia do lobo temporal. Notou-se que as crianças com ELF tiveram um QI significativamente mais elevado do que as crianças com epilepsia do lobo temporal, mas sofreram danos na coordenação motora manual com maior freqüência.18 As crianças com ELF exibem também déficits significativos nas habilidades de leitura, interferindo no seu processo fonológico.19 As crianças com ELF tiveram déficits em funções executivas e déficits proeminentes em funcionamento executivo de planejamento, enquanto a memória verbal e não-verbal era intacta. Tais resultados parecem relacionar-se à adaptação comportamental pobre.20 Nesse caso, a “função executiva” é um termo que descreve os processos requeridos para o controle consciente do pensamento, da emoção e da ação, que sejam centrais à gerência da vida cotidiana. A função executiva é subordinada ao córtex pré-frontal e às estruturas subcorticais relacionadas. Os distúrbios que afetam o sistema pré-frontal do córtex subcortical são numerosos e heterogêneos. A disfunção executiva pré-frontal resulta em danos no regulamento da cognição, da atenção, dos comportamentos, da estimulação e da emoção, que têm conseqüências sérias no funcionamento ao longo da vida. Estes déficits executivos da função são tipicamente difíceis de 95 Epilepsia do lobo frontal na infância ... tratar, melhorar, ou remediar. A disfunção executiva pode ocorrer devido a diversos fatores: metabólicos, genéticos, presença de epilepsia, disgenesia cerebral, prematuridade, ferimento traumático do cérebro, hipóxia e exposição tóxica.21 Disfunções executivas são um importante preditor de pior qualidade de vida na criança com epilepsia.22 Tal tendência é freqüentemente confirmada, já que a criança com epilepsia refratária mostra prejuízos importantes em sua qualidade de vida.23 CONCLUSÕES A ELF pode gerar distúrbios psicológicos e neuropsicológicos, como déficits em funções executivas (cognição, planejamento, linguagem, memória e atenção), alterações comportamentais (controle de impulsos e agressividade), manifestações de crises epilépticas comportamentais e piora da qualidade de vida. É importante destacar que suas alterações podem ser confundidas com doenças psiquiátricas, reforçando a importância do diagnóstico diferencial e da avaliação neuropsicológica. REFERÊNCIAS 1. Tisser L, Azambuja LS, Santo JLE, et al. 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