novos debates interdisciplinares: antropologia da alimentação e o

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Revista Diálogos Interdisciplinares
2016 vol. 5 n° 1 - ISSN 2317-3793
NOVOS DEBATES INTERDISCIPLINARES: ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO E O
COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR
Aline Pereira Sales Morel1; Gerson Augusto de Oliveira Junior2; Fabio Antonialli3; Rodrigo Cassimiro de
Freitas4; Sâmara Borges Macedo5
RESUMO: Os esforços para interlocução entre a antropologia e o marketing não são recentes, podendo ser encontrados diversos
estudos sobre as contribuições da antropologia para os estudos de marketing em comportamento do consumidor. Porém, as
contribuições da antropologia da alimentação aos estudos em marketing sobre comportamento alimentar do consumidor ainda
representa uma lacuna, o que motivou este estudo. Parte-se do pressuposto que os estudos sobre comida e alimentação se fazem
relevantes, visto que podem servir como guias para o entendimento dos processos sociais, políticos, econômicos, criação de valor e
de valor simbólico e construção de uma memória social. Além disso, a interdisciplinaridade torna possível a transposição da
dicotomia objetivo-subjetivo e permite um entendimento mais refinado acerca dos fenômenos alimentícios, tornando possível a
proposição de soluções para os problemas existentes. Por isso, objetiva-se com esse estudo oferecer uma nova perspectiva de análise
que aproxime esses campos, possibilitando o surgimento de novos diálogos. Argumenta-se que a antropologia da alimentação pode
contribuir ao trazer questões acerca da importância do marketing enquanto instrumento de difusão e promoção de novos hábitos e
comportamentos alimentares. Além disso, a Antropologia da Alimentação oferece ferramentas para o entendimento da formação das
redes simbólicas de epistemologias culturais alimentares. Dessa forma, busca-se incitar uma nova ótica para o estudo do
comportamento de consumo alimentar dos indivíduos, que vise compreender como se desenvolvem essas novas experiências e de que
forma elas se incorporam às práticas dos comensais. Esta, enquanto dimensão esquecida nos estudos do comportamento alimentar do
consumidor, constituiu-se do principal objeto deste ensaio.
Palavras-chave: Antropologia da Alimentação; Comportamento Alimentar do Consumidor; Interdisciplinaridade.
NEW INTERDISCIPLINARY DEBATES: FOOD ANTHROPOLOGY AND THE CONSUMER BEHAVIOR
ABSTRACT: Dialogue efforts between anthropology and marketing are not new, several studies can be found on anthropology
contributions to marketing and consumer behavior studies. However, the contributions of food anthropology to marketing and food
consumer behavior still represent a gap, which motivated this study. The assumption is that studies on food and nutrition are relevant,
since they can serve as guidelines to understanding processes such as: social, political, economic, value creation, symbolic value and
the building of a social memory. In addition, interdisciplinarity enables the implementation of the objective-subjective dichotomy and
enables a more refined understanding of feeding phenomena, making it possible to propose solutions to existing problems. Therefore,
the aim of this study is to offer a new perspective of analysis that brings these fields closer, enabling the emergence of new dialogues.
It is argued that food anthropology can contribute on bringing questions about the importance of marketing as an instrument of
dissemination and promotion of new habits and eating behaviors. In addition, food anthropology offers tools to understanding the
formation of the symbolic networks of food cultural epistemology. Thus, we seek to encourage a new perspective for the study of
food consumption behavior of individuals, that aims to understand how to develop these new experiences and in what way they
incorporate the practices of diners. This, as an overlooked dimension in studies of food consumer behavior constituted the main
object of this paper.
Key words: Food Anthropology; Food Consumer Behavior; Interdisciplinarity.
1Doutoranda em Administração, Universidade Federal de Lavras. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Marketing e
Comportamento do Consumidor (GECOM-UFLA). [email protected]
2Doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Adjunto da
Universidade Estadual do Ceará. Coordenador do grupo de estudo e pesquisa sobre História e Antropologia da
Alimentação. [email protected]
3Doutorando em Administração, Universidade Federal de Lavras. Pesquisador do Grupo de Estudos em Marketing e
Comportamento do Consumidor (GECOM-UFLA). [email protected]
4Doutorando em Administração, Universidade Federal de Lavras. Pesquisador do Grupo de Estudos em Marketing e
Comportamento do Consumidor (GECOM-UFLA). [email protected]
5Mestre em Administração, Universidade Federal de Lavras. Pesquisadora do Grupo de Estudos em Marketing e
Comportamento do Consumidor (GECOM-UFLA). [email protected]
179
1 Introdução
A alimentação e o ato de comer são fenômenos que há muito tempo são objetos de
estudo dos antropólogos e de outros cientistas sociais. Porém, a comida em sua forma
intrínseca recebeu, durante muito tempo, menor atenção antropológica se comparada com
suas implicações sociais, muitas vezes por ser percebida como um objeto fútil e secundário,
ou ainda, como algo feminino – considerando um universo majoritariamente composto por
estudiosos do sexo masculino (ARNAIZ, 2005; MINTZ, 2001).
Os chamados estudos de comunidade, característicos dos anos 50, forneceram as
principais bases para os estudos sobre alimentação – que até então eram realizados por
folcloristas que estudavam a alimentação no contexto cultural de povos indígenas
(CANESQUI, 1988). Foi, então, a partir da década de 60 que a antropologia da alimentação se
estabeleceu como campo de estudo específico, passando a receber maior atenção dos
estudiosos e fazendo com que a comida se tornasse objeto central de estudos (ARNAIZ, 2005;
BRAGA, 2004).
Os estudos antropológicos sobre alimentação na década de 70 foram direcionados para
o entendimento dos hábitos e ideologias alimentares das camadas populares, assim como para
organização familiar, as estratégias de sobrevivência e as práticas de consumo alimentar desse
grupo. Já na década de 80, o foco de investigação passou a ser as relações entre a alimentação,
o corpo e a saúde – sendo valorizada a boa alimentação para garantia de uma boa saúde. A
partir da segunda metade da década de 90 mudanças significativas ocorreram nos estudos
antropológicos sobre alimentação, fazendo com que novas e antigas questões fossem
incorporadas e ampliando de maneira considerável os temas de estudo que, todavia, foram
pouco explorados (CANESQUI & GARCIA, 2005; BRAGA, 2004).
O renovado interesse pela gastronomia e a abertura da antropologia para novos
objetos, desde o fim do milênio passado, parecem motivar o deslocamento de
olhares antropológicos para as cozinhas, como elementos emblemáticos de
identidades grupais, regionais. Também as alterações na comensalidade nos espaços
urbanizados metropolitanos, movidas não só pelas novas formas de
produção/consumo de alimentos, mas pelas redefinições do tempo e do espaço na
sociedade moderna, têm convocado os olhares antropológicos para os novos lugares
(CANESQUI & GARCIA, 2005, p.42)
Além disso, novos olhares têm incentivado a busca pelo saber interdisciplinar, pela
conciliação entre campos aparentemente conflitantes em prol da geração de conhecimentos
mais consistentes e completos. As interlocuções entre a antropologia e a nutrição, por
exemplo, vem trazer a visão de que as escolhas e práticas alimentares são profundamente
marcadas pela cultura. Esta perspectiva tem sido mencionada e difundida por vários
180
estudiosos (Calvo, 1992; Canesqui, 1988; Canesqui e Garcia, 2005; Braga, 2004; Poulain e
Proença, 2003a; Poulain e Proença, 2003b; Fox, 2003; Garcia e Castro, 2011; Fonseca, Souza,
Frozi e Pereira, 2011; Saglio-Yatzimirsky, 2006; Mendes, Vilart e Gutierrez, 2009; Henríquez,
2007) que destacam, ainda, as contribuições que este tipo de investigação pode proporcionar e
os obstáculos que ainda precisam ser superados.
No que tange a antropologia e o marketing, o que se observa é um movimento de
busca pela convergência entre a antropologia do consumo e os estudos do comportamento do
consumidor (DOUGLAS, M & ISHERWOOD, 1978; MCCRACKEN, 1988; ROCHA,
BLAJBERG, OUCHI, BALLVÉ, SOARES, BELLIA & LEITE, 1999; OLIVEIRA &
THÉBAUD-MONY, 1997; D’ ANGELO, 2003; VILAS BOAS, BRITO & SETTE, 2006;
JAIME JÚNIOR, 2001; BARBOSA, 2003; PINTO & SANTOS, 2008; ALMEIDA, SETTE
& REZENDE, 2012). Porém, as contribuições da antropologia da alimentação aos estudos em
marketing sobre comportamento alimentar do consumidor ainda representa uma lacuna, o que
motivou este estudo.
Parte-se do pressuposto que os estudos sobre comida e alimentação se fazem
relevantes, visto que podem servir como guias para o entendimento dos processos sociais,
políticos, econômicos, criação de valor e de valor simbólico e construção de uma memória
social. Além disso, a interdisciplinaridade torna possível a transposição da dicotomia objetivosubjetivo e permite um entendimento mais refinado acerca dos fenômenos alimentícios,
tornando possível a proposição de soluções para os problemas existentes (MINTZ & DU
BOIS, 2002; LÓPEZ, 2011; HENRÍQUEZ, 2007). Este estudo apresenta, portanto, uma nova
perspectiva de análise que, por meio da antropologia da alimentação, busca complementar o
diálogo entre a antropologia e os estudos de marketing sobre o comportamento do
consumidor.
Na próxima sessão será apresentada a antropologia da alimentação e seus principais
arcabouços teóricos, seguida por uma discussão sobre cultura, consumo e comportamento do
consumidor. Na sequência são discutidas as contribuições que a perspectiva da antropologia
da alimentação pode proporcionar aos estudos de marketing em comportamento alimentar do
consumidor. Por fim, são feitas as considerações finais do estudo.
181
2 Antropologia da alimentação
A alimentação consiste em um imperativo para a própria manutenção da vida. Assim
sendo, o homem necessita de substâncias como carboidratos, proteínas, vitaminas e sais
minerais para sobreviver. Esta necessidade se impõe para o homem desde a fase embrionária e
acompanha-o por toda sua vida. O apelo do estômago é imperioso e inadiável (CASCUDO,
2004; FOX, 2003; CARNEIRO, 2005).
Por outro lado, ainda que o homem seja refém dessa contingência como condição
inegociável para a manutenção da sua própria sobrevivência, os alimentos representam para
os seres humanos mais do que fontes de suprimento para uma necessidade vital (LUCCHESE,
BATALHA & LAMBERT, 2006). A quantidade, frequência e escolha de alimentos são
afetadas por diversas variáveis além da fome, como apetite, custo, acessibilidade de
alimentos, cultura, valores nutricionais, emoções, prazer, entre outros (LOWE; BOCARSLY;
PARIGI, 2008).
Então, cumpre considerar que os indivíduos não comem unicamente com o intento de
sobreviver e, portanto, a escolha daquilo que os indivíduos devem comer não é orientada por
uma lógica exclusivamente utilitária. Em outros termos, evidencia-se a substituição do valor
nutricional por um valor simbólico ou “poder mágico6” como justificativa para comer.
Nesse contexto, a antropologia da alimentação se insere como um campo na busca do
“esclarecimento dos condicionantes culturais e sociais do comportamento alimentar, com base
na reconstrução de cada sistema alimentar” (PONS, 2005, p.103). Poulain (2006) trata do
conceito de “sistema alimentar”, por meio do qual:
O alimento não se move ou se transforma sozinho; os processos de transformação,
elaboração e consumo envolvem, acima de tudo, os sujeitos. Ou seja, do campo à
mesa do consumidor, o alimento percorre um fluxo em sua forma física, mas
também nesse processo, ele passa a adquirir diferentes sentidos em um modelo
sistêmico que compreende perspectivas que envolvem o alimento e seus diferentes
contextos locais e globais inter-relacionados (POULAIN, 2006).
Assim, a avaliação dos comportamentos alimentares de indivíduos e grupos
transcenderia a análise estritamente nutricional dos alimentos, passando a se constituir como
ferramenta de estudo da cultura. Isto porque a maneira como as sociedades organizam seus
sistemas alimentares diz respeito a escolhas, que expressam características e diferenciações
6Fala-se em “poder mágico” referindo-se, por exemplo, aos alimentos considerados afrodisíacos. Além disso,
podemos pensar na prática do canibalismo nas sociedades primitivas, no qual a carne humana era vista como
alimento dos deuses, do qual deriva o entendimento de que o canibalismo assumia claramente a forma de
comunhão divina. Para saber mais sobre este tema, ver Fernandez-Armesto (2004).
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entre grupos e seus membros. Desta forma, tudo que os homens comem, assim como a
qualidade e quantidade, dependem da posição que ocupam no mundo social.
Estando os indivíduos inseridos em contextos sociais específicos – com hábitos e
crenças particulares – a comida e o comer passam a ser modelados pela cultura à medida que
a alimentação se configura como aprendizado sociocultural e historicamente derivado do
ambiente em que se está inserido (CANESQUI E GARCIA, 2005; MINTZ, 2001). Em outras
palavras, “se todos precisam comer, não o fazem do mesmo modo” (ROMANELLI, 2006,
p.335).
É neste sentido que Leonardo (2009) afirma que o ato de comer transcende a simples
ideia de ingestão do alimento ao incorporar a este ato aspectos subjetivos, como
relacionamentos pessoais, sociais e culturais. A esse respeito, DaMatta (1986) estabelece uma
interessante distinção entre os termos alimento e comida, a saber:
Alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos:
amigos ou inimigos, gente de perto e de longe, da rua ou de casa, do céu e da terra.
Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas em foco. Assim, a
comida é correspondente ao famoso e antigo de-comer, expressão equivalente a
refeição, como de resto é a palavra comida. Por outro lado, comida se refere a algo
costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo,
por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa (DA MATTA, 1986, p. 22).
Asp (1999) acrescenta que a comida ajuda a promover união familiar quando os
membros comem juntos, denota identidade étnica e pode ser utilizada socialmente para
desenvolver amizades, proporcionar hospitalidade, mostrar status ou prestígio, além de
expressar sentimentos e emoções, entre outros atributos.
Desta forma, a comida deixa de ser uma simples substância nutritiva (alimento) e
passa a contemplar modos, estilos e formas de alimentação. A escolha do alimento, por sua
vez, deixa de ser uma ação individual ao perpassar a satisfação das necessidades fisiológicas
para envolver, em grande medida, a satisfação das necessidades sociais (ROMANELLI,
2006). Conforme destaca Maciel (2001, p.147), “se o homem come de tudo, ele não come
tudo”, pois, “para serem comidos, ou comestíveis, os alimentos precisam ser elegíveis,
preferidos, selecionados e preparados ou processados pela culinária, e tudo isso é matéria
cultural” (CANESQUI & GARCIA, 2005, p.9).
Poulain (2004) advoga que as qualidades nutricionais são necessárias, mas
insuficientes para justificar a transformação de um produto que possui comprovados
princípios nutritivos em alimento humano. Na escolha e definição do alimento são
consideradas outras diversas dimensões da vida social. É o que ocorre, por exemplo, na
proibição da ingestão de carne bovina, tradicionalmente na Índia. Longe de qualquer
183
explicação nutricional, prevalece a observância de rígidas justificativas de natureza religiosa.
Igualmente, os Judeus ortodoxos organizam seu sistema alimentar a partir das determinações
definidas nas doutrinas religiosas que, segundo acreditam, consistem em revelações divinas da
verdade. Em muitos casos, ainda hoje o Rabino, figura de maior prestigio na religião judaica,
possui o poder de vetar um alimento classificando-o como impróprio para o consumo. Ou, por
exemplo, ainda que alguns insetos comprovadamente se apresentem como uma excelente
fonte de proteína, nem todas as sociedades praticam a entomofagia (prática de comer insetos).
Aliás, para muitos indivíduos o simples fato de cogitar a possibilidade de ingerir insetos pode
ser o suficiente para desencadear uma um sentimento de aversão e uma sensação incontrolável
de repugnância. O sentimento de aversão pode perfeitamente ser respaldado na ideia de que
comer insetos não é hábito humano, mas algo próprio dos animais. Nesse caso, é possível
perceber uma classificação que objetiva operar a oposição entre natureza e cultura. Logo,
qualquer tentativa de romper essa barreira pode ser severamente repreendida.
Para se tornar um alimento, o produto deve ser reconhecido pelos sujeitos como tal, ou seja,
deve estar inscrito em uma rede de categorizações e classificações, as quais incluem um
objeto nutricional no campo alimentar (LUCCHESE, BATALHA & LAMBERT, 2006). A
cultura alimentar seria, então, constituída pelos hábitos e comportamentos alimentares
socialmente construídos – formando uma identidade social (FISCHLER, 2001; MACIEL,
2001; BRAGA, 2004; MINTZ, 2001; CANESQUI E GARCIA, 2005; ROMANELLI, 2006;
BLEIL, 1998, JOHNSTON & BAUMANN, 2010).
Esta ideia de identidade remete à associação feita entre comidas e povos em particular
(como, por exemplo, a conexão que é feita entre o arroz e o Japão, ou entre as massas e a
Itália) e à própria identificação individual, através do qual as pessoas optam pelo que vão
comer ou não como uma forma de diferenciação social, ao mesmo tempo em que se
identificam com aqueles que comem as mesmas coisas e da mesma maneira (MINTZ, 2001;
FOX, 2003). É neste sentido, que Fox (2003) – parafraseando a célebre frase “nós somos o
que comemos” – afirma que o que comemos representa o símbolo mais importante do que
somos e a comensalidade a forma mais eficaz de difusão das nossas mensagens para outrem.
Observa-se, entretanto, que a vertiginosa difusão de comidas e indivíduos pelo mundo
tem incitado novos debates e revelado um aparente paradoxo entre conservadorismo e
mudança, no qual os comportamentos alimentares são, concomitantemente, os mais flexíveis
e arraigados entre os hábitos alimentares. Neste novo cenário, novos hábitos alimentares
vindos de outras localidades dividem espaço com hábitos historicamente perpetuados, em um
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movimento de coexistência entre o novo e o antigo, sugerindo que as identidades alimentares
podem ser criadas e desfeitas ao longo do tempo (MINTZ, 2001).
Através da observação desse movimento é que muitos autores (Mintz, 2001; Braga,
2004; Fox, 2003; Ortigoza, 1997; Rial, 2008; Petrini, 2009) têm alertado para o fenômeno da
homogeneização dos hábitos alimentares em todo o mundo. Porém, assim como os hábitos
alimentares, a percepção e classificação do gosto são também influenciadas, desde a infância,
pela cultura alimentar, formando as chamadas preferências alimentares de indivíduos e
populações. Na formação dessas preferências, e também da aceitabilidade dos alimentos,
aspectos sensoriais como o paladar, o olfato, o tato e a visão se configuram em grande parte
dos sistemas culturais como fatores decisivos (BRAGA, 2004; CANESQUI E GARCIA,
2005). É por esse motivo que Canesqui e Garcia (2005, p.11) defendem que a
homogeneização dos hábitos alimentares dificilmente acontecerá de maneira completa, pois,
gosto e paladar, ao invés de se naturalizarem, seriam “cultivados no emaranhado da história,
da economia, da política e da própria cultura”.
O comer seria, então, um ato social de união e partilha, balizado por um conjunto de
saberes, normas, tabus e valores que orientam o preparo e o consumo dos alimentos. Cada
sistema cultural estabelece prescrições e proibições que regem o ato alimentar definindo o que
se come, onde, quando se come, com quem se come e como se come. O que também implica
regras, locais, ocasiões especiais, rituais para o preparo e consumo dos alimentos. A reunião
em torno da comida implica em fatores de sociabilidade e resulta na afirmação dos laços
sociais. Ou seja, em torno da comida também se mobiliza sentimentos de pertencimento a
determinado grupo. Ao comer junto os indivíduos nutrem e reforçam os vínculos que
garantem a coesão grupal.
Foi através da busca coletiva pela comida que os seres humanos desenvolveram
diferentes artefatos culturais, como a própria linguagem. Além disso, o cozinhar deixa de ser
apenas uma necessidade para se configurar como um símbolo de nossa humanidade, à medida
que consideramos que o ser humano é o único animal que cozinha e o único ser que atribui
sentido aos atos de partilha (FOX, 2003; CARNEIRO, 2005).
Segundo Lévi-Strauss (2004) é preciso reconhecer que o homem, diferentemente dos
outros animais, cozinha e não se restringe a recolher o que existe na natureza. Somente o
homem é capaz de acender e usar o fogo para transformar um produto da natureza em algo
completamente diferente do seu estado natural. Tal fato nos possibilita ponderar sobre a
relevância do domínio do fogo no processo que marca e define a transformação do alimento
185
em algo profundamente crivado pela cultura. O cozimento assinala as diferenças entre os
animais e as pessoas, deste modo, a cozinha pode ser vista como uma atividade humana
universal. Todas as sociedades, guardando as suas respectivas especificidades, cozinham
alguns dos seus alimentos. Em outros termos, cozimento é concebido como fator definidor da
humanidade.
Lévi-Strauss (2004) argumenta, ainda, que o cru, o cozido ou podre são os três
principais estados que os alimentos se apresentam para o homem. O cru representaria o estado
da natureza e o cozido, como resultado de processos desencadeados pela ação humana,
pertence ao âmbito da cultura. O podre, por sua vez, representa a transformação natural do
cru. Sendo assim, o cru e o cozido são visto como metáfora para pensar a passagem do estado
da natureza à cultura. Contudo, o autor alerta para o fato de que tais categorias não são
absolutas e, em hipótese alguma, devem ser tomadas em si mesmas, sob pena de serem
esvaziadas de significados e nada nos informarem sobre a culinária de uma determinada
sociedade. Sendo assim, o que Lévi-Strauss nos incita a refletir é sobre a profunda relação
existente entre sistemas alimentares e a organização social, o que implica considerar que as
práticas culinárias podem ser entendidas como linguagem que nos dizem dos homens e suas
relações.
Desta forma, Maciel e Castro (2013) tratam a alimentação como um fenômeno
integrado, o qual vai além do simples ato de ingestão de alimentos. Para os autores, nenhum
alimento está livre das associações culturais, visto que, se por um lado existe o valor nutritivo
do alimento e todo um repertório de elementos que o caracterizam do ponto de vista
biológico, há, por outro, um valor simbólico, um sentido simbólico no ato alimentar que torna
complexa a questão, pois requer uma abordagem compreensiva.
De maneira complementar a esta visão cultural e simbólica da comensalidade,
Canesqui (1988) e Canesqui e Garcia (2005) fazem uma ressalva importante em relação à
necessidade de se considerar também as implicações socioeconômicas sobre os hábitos e
comportamentos alimentares. Desta forma, a organização de determinada sociedade, assim
como sua estrutura, forma de distribuição alimentar e de riqueza e as classes sociais de
pertencimento, também influenciariam os hábitos e comportamentos alimentares de
indivíduos e populações.
Por isso, a alimentação precisa ser entendida como um fenômeno complexo, que
abarca componentes biológicos, psicológicos e sociais, não comportando, desta forma,
perspectivas unilaterais (ROMANELLI, 2006; CANESQUI & GARCIA, 2005). Por outro
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lado, o entendimento dos processos alimentares a partir da comunhão de diferentes campos
das Ciências Sociais ainda pressupõe a superação de alguns obstáculos (POULAIN &
PROENÇA, 2003b). Neste sentido, este estudo representa um primeiro esforço de
aproximação entre os campos da antropologia da alimentação e do comportamento alimentar
do consumidor.
3 Cultura, Consumo e o Comportamento do Consumidor
A análise do comportamento de consumo dos indivíduos tem sua origem na teoria
econômica, sendo a partir da década de 50 incorporada pelo marketing, que passou a se pautar
nos desejos e necessidades do consumidor para um ajustamento adequado das ofertas
(ENGEL, BLACKWELL E MINIARD, 2000; LAS CASAS, 2006). Apenas a partir da década
de 90 esse entendimento passou a ser modificado, fazendo com que a cultura passasse a ser
entendida como elemento essencial no processo de consumo.
A análise cultural do consumo ganhou espaço à medida em que os estudiosos da área
perceberam que a teoria utilitarista tradicional não proporciona subsídios para compreensão
profunda das relações socioculturais envolvidas na aquisição e consumo de bens e serviços.
Além disso, quando as escolhas são submetidas à análise da teoria utilitarista, sujeito e objeto
são colocados em um isolamento que retira qualquer possibilidade de explicação que não seja
acompanhada pela lógica da racionalidade (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2006).
O estudo do comportamento do consumidor, especialmente quando se busca analisar a
sua conexão com os diversos elementos culturais e sociais, passa pela concepção de que o
consumo é um processo essencialmente cultural. Ele é um processo porque não se inicia e
tampouco se esgota na compra de um bem ou serviço, uma vez que funciona universalmente
como elemento de construção e afirmação de identidades, diferenciação, exclusão e inclusão
social que medeia relações e práticas sociais (BARBOSA, 2004). A partir deste momento, o
ato de consumo passou a ser visto “como impregnado de significado simbólico, sendo o lócus
em que se reafirmam, entre outras questões, identidade, pertencimento, hierarquia, status e
poder” (ROCHA & ROCHA, 2007, p.72).
Las Casas (2006) lembra que o entendimento do consumidor não é uma tarefa simples,
haja vista as diversas influências sofridas por estes indivíduos, simultaneamente.
Corroborando com esta ideia, Rocha e Barros (2006) afirmam que, sob a perspectiva
antropológica de consumo, a lógica do comportamento do consumidor não pode ser explicada
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por fatores estritamente econômicos, uma vez que a escolha dos indivíduos é diretamente
afetada pelo sistema cultural e simbólico da qual este faz parte.
Cultura e consumo, por sua vez, são conceitos amplos, pois, acolhem dentro de seus
significados uma série de outros conceitos primordiais para a sociedade e sua manutenção
(FEATHERSTONE, 1995). A cultura é responsável pela costura do entendimento de realidade
de toda uma sociedade ou especificamente de um grupo étnico. Por outro lado, o consumo
define como a sociedade se relaciona com a natureza e utiliza seus recursos para garantir a
sobrevivência dos seus membros (ROCHA & BARROS, 2006).
Gerrtz (1978) afirma que a cultura deve ser entendida como um documento de atuação
por meio do qual os indivíduos orientam e ordenam as práticas sociais. Nessa perspectiva, o
comportamento humano é visto como ação simbólica articulada por um conjunto de símbolos
significantes cuja compreensão, ou seja, o significado, só poderá ser alcançado no próprio
contexto social em que se realiza. A cultura, portanto, produz orientações e coordenadas para
o comportamento de uma comunidade em função das atividades e relações que desenvolve
nas esferas social, econômica e ambiental, que são coletivamente construídas e
individualmente absorvidas por cada sujeito social.
O consumo, por sua vez, é parte integrante e indissociável da cultura compartilhada de
um povo. O sentido do consumo de um determinado objeto não está nas suas características
natas, mas nas epistemologias histórico-culturais de um coletivo social, que nada tem de valor
por si só, sendo o valor simbólico construído coletivamente. Assim, entende-se por consumo
todo o arcabouço objetivo e subjetivo-simbólico que confere ao indivíduo ou a uma
comunidade a possibilidade de utilizar e apropriar-se de recursos parcos e de conceitos
relacionados a eles para atender necessidades e desejos conscientes ou inconscientes
(ROCHA; BARROS, 2006).
Na próxima sessão, serão apresentadas e discutidas as contribuições que a
antropologia da alimentação pode oferecer aos estudos de marketing sobre o comportamento
alimentar do consumidor.
4 Contribuições da Antropologia da Alimentação aos estudos do Comportamento
Alimentar do Consumidor
Reafirmar que o consumo alimentar é um fato social na vida humana, como defendido
por Douglas & Isherwood (2006), é dizer que a Antropologia da Alimentação surge como um
campo repleto de possibilidades que emergem com a finalidade de compreender como as
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pessoas se relacionam com os alimentos para além de uma perspectiva puramente nutritiva.
Ao que se percebe, o consumo de comida não é somente uma questão de gostos e preferências
individuais, mas, fruto de amarrações culturais que definem como determinados grupos se
relacionam com os alimentos consumidos e quais os desdobramentos simbólicos dessas
relações.
Neste sentido, o intenso processo de mudança nos hábitos alimentares de todo o
mundo pode ser atribuído às mudanças culturais que também aconteceram ao longo do tempo.
Os progressos na agricultura, a urbanização, a tecnologia e o comércio foram determinantes
na evolução deste processo, porém, podem ser consideradas mínimas se comparadas com a
“revolução cultural” ocorrida no último século (BLEIL, 1998).
Ainda que as transformações ocorridas sejam decorrentes de um processo não
repentino, que teve seu início muito antes da chamada “globalização”, deve-se considerar que
a partir da década de 80 uma grande quantidade de novos alimentos foi difundida por todo o
mundo, provocando grandes transformações na comensalidade, como, por exemplo, a
dominação dos Fast Foods – característicos da cultura norte-americana – na Ásia (MINTZ,
2001; PHILLIPS, 2006). Porém, deve-se considerar que a introdução de novos alimentos e
sabores pode provocar tanto o fascínio quanto a rejeição, pois, cada região possui o seu
padrão cultural, permeado por tradições e identidades.
Assim, os consumidores podem apresentar, ao mesmo tempo, uma tendência para se
aproximar (neofilia) e evitar (neofobia) novos produtos alimentares (VAN TRIJP; VAN
KLEEF, 2008). A chegada de novos produtos parece criar um clima de ambivalência ou
insegurança, no qual algumas inovações se deparam com oposição e desconfiança, enquanto
outras se tornam facilmente parte da rotina diária (GRUNERT & VALLI, 2001).
É nesse sentido que Fernandez-Armesto (2004, p.206) se refere à comida como “um
tornassol cultural” que, ao promover identificação implica, necessariamente, em
diferenciação. Desta forma, indivíduos de um mesmo grupo cultural se reconhecem através da
comensalidade ao mesmo tempo em que examinam fatores de diferenciação para encontrar os
diferenciados.
E assim, o gosto (neofilia) e a repulsa (neofobia) alimentar se constroem dentro das
sociedades, como resultado da formação histórica e cultural daquele povo. Portanto, por
estarem profundamente arraigados na identidade social dos indivíduos, os hábitos alimentares
representariam conservadores e persistentes artefatos culturais (FRANCO, 2006).
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Montanari (2009) destaca a dinâmica cultural na formação de identidades,
considerando que a tradição não deve ser entendida como algo estático e fossilizado:
Exatamente como a linguagem, a cozinha é depositária das tradições de quem a
pratica, é depositária das tradições e das identidades de grupos. Constitui, assim, um
extraordinário veiculo de autorrepresentação e de comunicação: não apenas é
instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para entrar em
contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais fácil –
mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua (...).
Conservadoras, embora nada estáticas, as tradições alimentares e gastronômicas são
extremamente sensíveis às mudanças, à imitação e as influências externas. Cada
tradição é fruto – sempre provisório – de uma série de inovações e das adaptações
que estas provocaram na cultura que as acolheu (MONTANARI, 2009, pp.11-12).
Sholliers (2009) completa:
[...] fisicamente, os seres humanos necessitam de uma alimentação diversificada e,
portanto, têm uma tendência biológica a buscar inovações alimentares. Além disso,
podem apreciar novas comidas e sabores por razões sociais e culturais. Ao mesmo
tempo são prudentes, conservadores e temerosos acerca de alimentos desconhecidos,
porque eles ameaçam categoria, procedimentos habituais sobre comida
(SCHOLLIERS, 2009, p. 333).
É neste contexto dinâmico e influenciável que o marketing se insere como um
importante instrumento na construção dos processos de aceitação e valorização do novo,
imbuindo nos indivíduos novos hábitos e comportamentos alimentares. O maior desafio, nesse
sentido, é conseguir mudar os hábitos alimentares, atitudes, prioridades e valores dos
indivíduos, de forma a transformar alimentos que as pessoas não gostam em alimentos que
elas gostam (ASP, 1999).
Scholliers (2009) elucida bem esta questão ao retratar a importância da publicidade na
aceitação do frango industrializado e da Coca-Cola por parte dos consumidores. No caso do
consumo de frango, por exemplo, apesar da população europeia e norte-americana resistir
inicialmente, fundamentadas no argumento do sabor insosso, tornou-se inevitável a sua
disseminação diante da produtividade, da ampliação do mercado e campanhas de marketing
de popularização. Assim, entre as décadas de 50 e 80, o consumo deste produto deixou de ser
um ritual de consumo dominical para se tornar diário. Já a Coca Cola se estabeleceu como
uma das marcas mais importantes no mercado por meio de estratégias para ampliação do
consumo da bebida em todas as partes do mundo, principalmente, nos Estados Unidos após a
Segunda Guerra. Buscou-se fazer com que a Coca Cola assumisse um aspecto cultural
relacionado ao patriotismo, liberdade e heroísmos, uma vez que era consumida pelos militares
(SCHOLLIERS, 2009).
Por outro lado, ao apresentar novas alternativas para os consumidores, o marketing
acaba por delinear novas formas no modo de comer, que certamente contribuem para
190
alterações no consumo alimentar. Estas mudanças, por sua vez, impõem ao comensal a
necessidade de adaptar sua vida às novas condições estabelecidas, conforme destaca Garcia
(2003), ao indicar algumas características típicas da comensalidade moderna, produtos do
processo de globalização:
[...] a comensalidade contemporânea se caracteriza pela escassez de tempo para o
preparo e consumo de alimentos; pela presença de produtos gerados com novas
técnicas de conservação e de preparo; [...] pelos deslocamentos das refeições de casa
para estabelecimentos que comercializam alimentos [...]; pela oferta de produtos
provenientes de várias partes do mundo; [...] pela flexibilização de horários para
comer agregada à diversidade de alimentos; pela crescente individualização dos
rituais alimentares (GARCIA, 2003, p. 484).
Como reflexo deste novo cenário, observa-se a o aumento vertiginoso no consumo de
alimentos preparados que, conforme observado por Domene (s/d), cresceu 218% entre 1974 e
2002; além da expansão das redes de comida rápida (fast foods); a crescente demanda por
porções cada vez menores ou até mesmo individualizadas.
Petrini (2009) demonstra bem os desdobramentos da emergência da indústria
alimentícia e da globalização sobre a comensalidade e critica a criação artificial dos sabores.
Segundo o autor:
Os sabores tornaram-se padronizados, privando-nos do prazer de experimentar uma
diversidade natural, rica e muito gratificante. Em nível cultural, então, os aditivos no
prato transformaram o sabor em instrumento de marketing, tanto que se pode falar
de um verdadeiro “design alimentar”, que constrói o gosto de um produto e o
próprio produto a partir de pesquisas de mercado e o adapta ao processo de produção
industrial, com a escolha da matéria-prima mais conveniente do ponto de vista
econômico. Na pratica, inverte-se o processo em que o homem se alimenta daquilo
que encontra na natureza, realçando seu sabor. Agora, parte-se do sabor que se
deseja obter, e o resto é relativo (PETRINI, 2009, p. 69).
Assim, nota-se que a globalização acaba por inundar a sociedade com diversas opções
de bens de consumo, serviços e informações, o que não é diferente na esfera alimentar. Essa
multiplicidade evoca, em um movimento contrário, a discussão sobre as origens culturais da
comida e promove outras possibilidades de consumo ainda não vislumbradas.
Os discursos de base gastronômica, por exemplo, surgem com a finalidade de defender
a sua percepção sobre a realidade do consumo alimentar. A disputa de espaços entre essas
posturas tem se tornado cada vez mais emblemáticas do ponto de vista argumentativo.
Geralmente, esses discursos estão associados a metáforas de estilos de vida saudável, bem
estar, culto ao corpo, distinção social, consideração de formas de vida não-humanas. O que é
interessante nesse contexto é a utilização das mesmas metáforas para formas de consumo
alimentar distintas, ao disputar espaços de reconhecimento comuns. Os fatores socioculturais
e seus marcadores étnicos são bastante utilizados como estrutura argumentativa, ou seja,
191
utiliza-se o marcador de comida típica para estabelecer padrões de diferenciação e
reconhecimento únicos.
Outro fator interessante de ser observado é a desconstrução das categorias de distinção
alimentar baseadas puramente em capacidade financeira para consumo, mesmo porque o
consumo conspícuo alimentar sofreu mudanças significativas. Para exemplificar essa
mudança, basta observar como o discurso gastronômico denominado de Gourmet foi
amplamente questionado pela emergência do que se denomina de Foodie. Essa nova categoria
de consumo alimentar de luxo é amplamente reconhecida nos livros lançados por Alex Atala
(entre outros) com um discurso gastronômico mais próximo de uma sociedade global e com o
fator da diferença e distinção étnica cultural presente.
Lody (2008) ainda acrescenta que esse movimento de reconhecimento também pode
acontecer por meio da experiência do consumo alimentar relacionado ao local no qual se
consome. Assim, por exemplo, consome-se o acarajé da Bahia, o pão de queijo de Minas, o
Pato no Tucupi do Pará, a Moqueca capixaba, o sushi de Tóquio, dentre outros. Dessa forma,
apenas a comida típica seria responsável por agregar um público específico de consumo,
quando essas barreiras locais são transpostas. Ao que parece isso não é uma realidade dado o
ambiente global, pois as pessoas podem consumir diversas opções alimentares em um curto
espaço de tempo e, em muitas circunstancias, simultaneamente. Dessa forma, a comida típica
de uma cultura específica se torna uma forma de fast-food para aproximar consumidores e
tornar popular, acessível e criar memórias que estimulem outras experiências de consumo.
Também é interessante observar que fenômenos tidos como tendências por Romanelli
(2006) já podem ser considerados como uma realidade atual. Assim, por exemplo, o
processamento dos alimentos deixa de ser algo a ser escondido, feito nos fundos da casa, e
passa a ganhar destaque e valor a partir da atribuição de novos significados ao ato. Além
disso, percebe-se uma relativa “dessexualização” do cozinhar, no sentido de que, ao menos
aparentemente, o ato deixa de ser uma atribuição exclusivamente feminina. Diz-se
aparentemente, em virtude de a ação masculina de cozinhar estar quase sempre atrelada à
prática de um hobby, realizado em momentos especiais e de lazer. Conforme destaca o
Romanelli (2006):
[...] além de conquistar um lugar social nobilitado, o preparo de alimentos adquire
característica de atividade agradável, repousante, que permite a cada um exercer sua
criatividade e exibi-la para amigos em ambiente informal, oposto ao universo
estressante e formal do trabalho (ROMANELLI, 2006, p.334).
192
Percebe-se assim que, embora esse processo de “dessexualização” do cozinhar tenha
sido iniciado, ele ainda ocorre de maneira relativa, haja vista que o preparo cotidiano dos
alimentos ainda permanece como tarefa feminina.
Neste sentido, pode-se dizer que, embora os padrões alimentares possam ser
modificados pela necessidade de adaptação às mudanças geradas pela introdução dos novos
alimentos e sabores – condicionando até mesmo os horários e locais para comensalidade –
geralmente, o que se observa é uma flexibilização dos padrões existentes face às novas
variáveis ambientais. Isto acontece porque, ainda que algumas mudanças se imponham ao
comensal,
seus
hábitos
e
comportamentos
alimentares
continuam
vinculados
às
representações do comer pré-existentes e envoltos em um sistema histórico-cultural que faz
com que esse condicionamento, muitas vezes, aconteça de forma relativa (COLLAÇO, 2003).
Nota-se, portanto, como consumo alimentar e suas mobilidades, inevitavelmente, estão
associados a aspectos históricos e culturais. Por esse motivo, argui-se que a Antropologia da
Alimentação contribui sobremaneira ao oferecer ferramentas para entender a formação das
redes simbólicas de epistemologias culturais alimentares. É também por esse motivo que o
estudo do comportamento do consumidor a partir de uma perspectiva antropológica tem
ganhado destaque nos últimos anos, evidenciando que os aspectos culturais e simbólicos não
podem ser omitidos ao longo da definição e execução dos esforços de marketing, assim
também como nos estudos do comportamento de compra. Aurier, Fort e Sirieix (2005), por
exemplo, concluíram em seu estudo que as variáveis tempo e cultura representavam os fatores
mais influentes na avaliação (atitude e qualidade percebida) e envolvimento dos consumidores
com um produto alimentar.
Como complemento a esta perspectiva, uma das grandes contribuições que
antropologia da alimentação pode trazer às discussões acerca do consumo alimentar diz
respeito à importância do marketing enquanto instrumento de difusão e promoção do novo,
levando as sociedades a se desguarnecer da armadura do conservadorismo e se abrirem para
novos hábitos e comportamentos alimentares.
Isto não significa promover uma homogeneização dos hábitos alimentares no globo,
tão pouco é um incentivo à disseminação de tendências pouco nutritivas e saudáveis, como
muitas vezes é declarado como consequências do marketing de alimentos. Conforme
argumenta Arnaiz (2001), o marketing de alimentos é tão heterogêneo quanto à oferta de
alimentos, sendo os esforços de promoção e incentivo ao consumo existente tanto para os
alimentos “nutricionalmente aconselháveis” quanto para os “pouco ou nada aconselháveis”.
193
Além disso, considerando que os indivíduos não comem apenas para satisfazer suas
necessidades físicas, a nutrição passa a influenciar apenas em parte as escolhas alimentares –
fazendo com que muitos alimentos considerados pouco ou nada saudáveis façam parte das
práticas alimentares dos indivíduos ou grupos. O marketing, neste sentido, faria uso do que é
significativo para os consumidores, procurando corresponder às expectativas destes, sem se
limitar a questões exclusivamente nutricionais (FOX, 2003; ARNAIZ, 2001).
Assim, em um contexto contemporâneo, marcado pelo “culto ao novo” o marketing de
alimentos pode ser o principal difusor de novos hábitos e comportamentos alimentares,
através do incentivo à experimentação e aceitação de novas comidas e práticas alimentares.
Nesta perspectiva, busca-se incitar uma nova ótica para o estudo do comportamento de
consumo alimentar dos indivíduos, que vise compreender como se desenvolvem essas novas
experiências e de que forma elas se incorporam às práticas dos comensais.
5 Considerações Finais
O consumo alimentar tem despertado uma série de questionamentos, principalmente
relacionados às estradas que estão sendo abertas pelo contexto da globalização. É reconhecida
a necessidade de outras abordagens para compreensão desses fenômenos de distinção e, ao
mesmo tempo, massificação do consumo alimentar, nos quais os hábitos alimentares não estão
limitados às questões geográficas e culturais. As metáforas simbólicas que atravessam o
discurso gastronômico perpassam por estudos mais profundos que demandam a consideração
de várias percepções do campo da Antropologia da Alimentação e os estudos de Marketing
voltados para o Consumo Simbólico.
O presente estudo, ao tentar uma aproximação entre a antropologia da alimentação e
os estudos de marketing em comportamento alimentar do consumidor, objetivou trazer novos
olhares para o campo, através da proposição de uma nova perspectiva. Assim, não se pretende
superar, mas, complementar os diálogos entre a antropologia do consumo e o marketing.
Neste sentido, assume-se que a compreensão da dinâmica do consumo alimentar vai
além do levantamento de hábitos, ou seja, necessita-se de processos de imersão em campo
para entender as relações que definem a experiência de consumo enquanto processo. A
Antropologia colabora nos estudos de Consumo Simbólico no sentido de desvendar através de
métodos que abordam a cultura transversalmente e por dentro dela os principais fatores que
estão associados a esse campo.
194
O discurso gastronômico desponta como um catalisador de argumentos do consumo
alimentar, através dos quais são erguidas posturas que disputam por espaços de
reconhecimento e ampliação de suas capilaridades argumentativas. Ao que se percebe, o fator
geográfico do consumo de determinada comida típica foi desconstruído, em certa medida, em
função da globalização. Por esse motivo, as defesas de espaços de reconhecimento estão
amplamente amparadas em questões de distinção cultural e nas metáforas/categorias
simbólicas que estão associadas a um determinado tipo de consumo alimentar.
Se por um lado a globalização incitou a homogeneização das práticas alimentares, por
outro lado, deu origem a um movimento de valorização das práticas regionais tradicionais,
como forma de distinção. Desta forma, pode-se dizer que o processo de distinção e
homogeneização são ruelas de uma mesma estrada e a indagação é incontestável, no sentido
de tentar compreender qual dos processos é mais representativo.
Em outras palavras, haverá espaço para diversos discursos gastronômicos e variadas
formas de consumo ou despontará uma postura que orientará os hábitos alimentares diante da
dinâmica global? Não se pretende aqui dar respostas, mas, ampliar os questionamentos e as
possibilidades de estudo e de abordagens no campo de pesquisa. Acredita-se que a partir deste
esforço inicial, novos estudos possam contribuir para a construção do conhecimento do
campo.
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