bsbm brasíliamédica Artigo de Revisão Processos fisiológicos e patológicos das bactérias redutoras de sulfato do gênero desulfovibrio sp. Fabiano Luiz Heggendorn,1 Lúcio de Souza Gonçalves,2 Márcia T.S. Lutterbach3 e Eliane Pedra Dias4 resumo As bactérias redutoras de sulfato do gênero Desulfovibrio sp. podem ser encontradas normalmente formando parte da biota intestinal e oral de seres humanos saudáveis, participando, direta ou indiretamente, com seus produtos metabólicos, de diversas afecções como: periodontites, câncer colorretal, infecções e sepsemias. Propõe-se com esta revisão avaliar os aspectos normais e as possíveis alterações patológicas correlacionadas com as bactérias redutoras de sulfato no organismo humano. As conclusões levam a crer que o desequilíbrio na biota oral e intestinal pode levar a aumento no número de bactérias redutoras de sulfato e na produção de sulfeto, como produto metabólico final, podendo representar um fator adicional no desenvolvimento daquelas afecções. Além disso, por haver forte propensão para formar associações bacterianas, aumentando seu potencial patológico, pode ser difícil a identificação do seu verdadeiro papel nas morbidades em que estão envolvidas assim como o seu potencial virulento. Palavras-chave. BRS; bactéria redutora de sulfato; Desulfovibrio; periodontite; sepsemia. Abstract PHYSIOLOGIC AND PATHOLOGICAL PROCESSES OF THE SULPHATE-REDUCING BACTERIA OF THE GENUS DESULFOVIBRIO sp. Sulfate-reducing bacteria of the genus Desulfovibrio spp. can be routinely detected as member of the normal intestinal and oral microbiota in health individuals. This bacterial group produces metabolic byproducts, which participate, direct or indirect, in several diseases, such as periodontitis, colorectal cancer, infections and sepsis. The purpose of the present study was to assess the association between sulfate-reducing bacteria and normal conditions and pathology alterations in human. In conclusion, it is possible that alteration of the oral and intestinal flora can result in increase of sulfate-reducing bacteria levels and products of sulfide as final metabolic. Therefore, these conditions can represent an important fact associated with those diseases. In addition, this bacterial group presents a great tendency in to associate with other microorganisms. Like that, it can increase the pathologic potential and can difficult the identification of the true involvement with several diseases as well as its virulent potential. Key words. SRB; sulphate-reducing bacteria; Desulfovibrio; periodontitis; sepsis. Introdução s bactérias redutoras de sulfato (BRS) são microorganismos procariontes, que não produzem oxigênio, quimiolitotróficos, e o meio de obtenção de energia provém da oxidação de compostos inorgânicos, que reduz o íon sulfato a sulfeto.1-4 A São bactérias anaeróbicas estritas com faixa de temperatura ótima de 25ºC a 44°C e pH de 5,5 a 9. Apresentam-se como bacilos curvos ou espiralados, de 0,5 a 1 µm de diâmetro e 3 a 5 µm de comprimento. Existem mais de vinte gêneros bem conhecidos, como Desulfovibrio, Desulfomonas, Desulfotomaculum, Desulfolobus, Desulfobacter, Trabalho realizado na Universidade Federal Fluminense e Instituto Nacional de Tecnologia (INT). Auxílio-bolsista – CAPPES. 1 Mestrando em Patologia Bucodental, Universidade Federal Fluminense (UFF). Laboratório de Biocorrosão e Biodegradação, Instituto Nacional de Tecnologia. Correspondência: Rua Feliz da Cunha 11, ap. 806, Tijuca. CEP 20260-300, Rio de Janeiro. Telefone: 21- 94119341. Fax: 21- 22040764. Internet: [email protected] 2 Doutor em Microbiologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisador Colaborador, Laboratório de Microbiologia Oral - (IMPPG/UFRJ). Professor de Periodontia da Universidade Gama Filho. Professor do Programa de Mestrado em Odontologia da UNESA 3 Doutora em Microbiologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Gerente do Laboratório de Biocorrosão e Biodegradação, Instituto Nacional de Tecnologia 4 Professora Titular de Anatomia Patológica, UFF. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Patologia da UFF. Recebido em 3-8-2009. Aceito em 10-9-2009. Brasília Med 2009;46(3):247-252 247 bsbm brasíliamédica Fabiano Luiz Heggendorn e cols. Desulfococus, Desulfosarcina, Desulfonema e outros.1,3-5 Além disso, são fastidiosas, de difícil isolamento e identificação.6,7 Frequentemente, essas bactérias são encontradas no ecossistema em associações microbianas formando os biofilmes, em que o consumo de oxigênio, por meio da respiração das bactérias aeróbias presentes, garantirá condições redutoras necessárias para o crescimento das bactérias redutoras de sulfato.3 Na obtenção da energia necessária para reduzir o íon sulfato a sulfeto, tais bactérias utilizam fontes de carbono orgânico como o lactato, o piruvato, o etanol, o maleato e alguns ácidos graxos. O resultado dessa redução é a produção de sulfetos, bissulfetos e hidrogênio sulfetado, assim como produtos metabólicos intermediários, como tiossulfatos, tetrationatos, politionatos, que têm papel importante na corrosão anaeróbica do ferro.1,3,4 A produção desses metabólitos como, por exemplo, os sulfetos biogênicos, será vital no mecanismo de biocorrosão por serem estes responsáveis por causar a ruptura dos filmes protetores sobre o metal.3 Paralelamente, as bactérias redutoras de sulfato também podem ser encontradas formando parte da colônia intestinal de seres humanos e de mamíferos.4,8-11 Quanto à sua importância no organismo humano, essas bactérias são apontadas como tendo um papel fundamental na degradação de material orgânico do intestino, além de serem indicadas como coadjuvantes na carcinogênese no intestino devido à liberação de sulfeto, como produto metabólico final no processo de redução.12 Entretanto, tal indicação ainda parece controversa pelo fato de serem encontradas em pacientes saudáveis e de serem comumente encontradas em consórcios microbianos,10,13 o que obscurece seu papel nas doenças associadas a essas bactérias. As bactérias redutoras de sulfato também podem ser encontradas na cavidade oral de indivíduos saudáveis e em pacientes com periodontite,14-16 podendo ainda ser reportada a sua presença em sepsemias e outras infecções.17,18 Até a presente data, nenhuma revisão foi conduzida no intuito de avaliar e apresentar os diversos 248 Brasília Med 2009;46(3):247-252 aspectos patológicos e fisiológicos das bactérias redutoras de sulfato e seus aspectos gerais relacionados ao corpo humano, incluindo-se a cavidade oral e intestinal. Dessa maneira, este trabalho teve como objetivo revisar, analisar e buscar correlações entre as bactérias em estudo e os processos patológicos apontados como causados por estas. Método Realizou-se, nas bases de dados eletrônicas Medline e ScieLo, uma busca com os seguintes descritores: (1) SRB; (2) Sulphate-reducing bacteria e (3) Desulfovibrio. Somando-se a isso, as referências dos artigos utilizados foram revisadas e buscadas para possível utilização. Revisão de literatura As bactérias redutoras de sulfato, em especial do gênero Desulfovibrio, podem ser encontradas normalmente formando parte da colônia intestinal de adultos saudáveis e podem também estar associadas a doenças inflamatórias de intestino.4,8-11 Têm papel significante na degradação de material orgânico no intestino grosso com utilização de lactato, piruvato, etanol e alguns ácidos gordurosos no cólon de alguns indivíduos e de outras espécies de mamíferos.12,19,20 Essas bactérias estão presentes nas fezes de seres humanos adultos em um número aproximado de 107/g.13 A presença de Desulfovibrio spp. também pode ser identificada nas fezes de bebês saudáveis de até seis meses de idade, havendo aumento na contagem de Desulfovibrio spp. a partir dos sete meses de idade.10 Bartosch e colaboradores,21 ao analisar a população microbiana intestinal de pacientes idosos saudáveis, hospitalizados e hospitalizados sob o uso de antibióticos, demonstraram a presença de Desulfovibrio spp. nos três grupos. Observaram, porém, redução acentuada na contagem bacteriana no grupo sob efeito de antibioticoterapia. Câncer e doenças inflamatórias do intestino O sulfeto, liberado como produto metabólico pelas bactérias redutoras de sulfato, pode ter poder Fisiologia e patologia do Desulfovibrio sp. inibitório em algumas espécies da microbiota intestinal, quando em concentrações elevadas,22 levando ao desequilíbrio da microbiota intestinal. Assim, o sulfeto é apontado como uma das causas da colite ulcerativa11,23 e do câncer colorretal,24 sendo o cólon distal mais susceptível a alterações metabólicas promovidas pelo sulfeto de hidrogênio quando comparado ao cólon proximal.23 A liberação do sulfeto pode representar uma alteração no microambiente epitelial, como um estimulo crônico proliferativo, representando um fator adicional para a iniciação de alterações genéticas na célula epitelial, modulando o pH e o estado redox, embora não haja dados concretos do papel da BRS na carcinogênese e de seus produtos na promoção do câncer colorretal.12 Ohge e colaboradores25 correlacionaram a presença de sulfeto e de bactérias redutoras de sulfato com a inflamação da bolsa ileal, o que mostra alto nível de sulfeto e daquelas bactérias quando comparado a pacientes sem o quadro inflamatório e a pacientes em uso de terapia antibiótica. Enquanto outros estudos indicaram um número igual de Desulfovibrio sp., nas fezes de pacientes saudáveis e de pacientes com câncer colorretal e gastrointestinal.24 Contrariamente, Scanlan e colaboradores26 verificaram significante redução no número de Desulfovibrio sp. em doentes com câncer colorretal quando comparados a pacientes saudáveis e indivíduos polipectomizados e que todos os pacientes apresentavam baixa diversidade desse gênero bacteriano, sendo o Desulfovibrio piger a espécie predominante. A participação de Desulfovibrio spp. em doenças intestinais de animais também foi relatada.27 Inness e colaboradores 28 mostraram maior número de Desulfovibrio spp. em gatos com doenças intestinais, quando comparado ao grupo-controle. Em um relato de caso, foi identificada a espécie Desulfovibrio desulfuricans no sangue de um cão labrador, que apresentou anorexia, febre alta, rigidez de membros e de abdômen, sendo levantada a possibilidade de tal bacteremia ter sido originada do trato gastrointestinal. BRS e Sepsemia Porschen & Chan17 documentaram a primeira bacteremia em seres humanos causada por Desulfovibrio desulfuricans. A paciente do sexo feminino de 67 anos teve febre, sudorese e náuseas, sendo diagnosticada a presença de Desulfovibrio desulfuricans com base em cultura de sangue periférico. O segundo caso de bacteremia causada por Desulfovibrio spp. foi relatado somente em 1997. Anos mais tarde, foi identificada a espécie Desulfovibrio fairfieldensis como responsável pela infecção.29,30 Além desses dois casos, foi relatada a presença de Desulfovibrio vulgaris em um abscesso intra-abdominal18 e o isolamento de Desulfovibrio spp. em um de vinte pacientes com apendicite aguda, e em um de dez pacientes com perfuração de apêndice.31 Tee e colaboradores32 descreveram a presença de uma nova espécie de Desulfovibrio spp. associada a Fusubacterium varium no sangue de um paciente masculino de 82 anos, que causou um abscesso piogênico, sendo denominada Desulfovibrio fairfieldensis.30 Posteriormente, foi relatado em um paciente masculino de 39 anos, dependente de álcool, com higiene oral inadequada, gengivite e diversas cáries, o primeiro isolamento de Desulfovibrio spp. em abscesso cerebral. Esse paciente tinha história de sinusite, rigidez na nuca, febre e cefaléia, e o abscesso pode ter-se originado de infecção dos seios nasais e da boca.6 Entretanto, tal abscesso cerebral tinha origem polimicrobiana formada por Streptococcus constellatus, Capnocytophaga sp., Eubacterium exiguum e Desulfovibrio sp.. Estas cepas são comumente encontradas na microbiota oral e não esclarecem o papel da Desulfovibrio spp. na patogenia deste abscesso.6 No mesmo ano, foi isolada a espécie Desulfovibrio fairfieldensis da urina de uma paciente, caso em que se suspeitou de meningoencefalite. Foi constatada, após duas semanas, eliminação de tais bactérias do trato urinário por meio da administração de antibióticos.30,33 Loubinoux e colaboradores 30 relataram o oitavo caso de isolamento de Desulfovibrio spp. Brasília Med 2009;46(3):247-252 249 bsbm brasíliamédica Fabiano Luiz Heggendorn e cols. em um paciente de 23 anos com úlcera gástrica, dor epigástrica e perfuração do apêndice, sendo isolado Desulfovibrio fairfieldensis do fluido peritoneal. Posteriormente, os mesmos autores comprovaram a presença de bactérias redutoras de sulfato em 12 entre 100 pacientes com coleções purulentas no abdome e na cavidade pleural. Tais pacientes tiveram, em sua maioria, peritonite e ou apendicite. Um paciente teve abscesso após cirurgia de câncer de reto.34 As espécies de bactérias redutoras de sulfato presentes foram Desulfovibrio piger, Desulfovibrio fairfieldensis e Desulfovibrio desulfuricans, formando parte de uma microbiota constituída de bactérias aeróbicas e anaeróbicas.34 Em outro estudo, foi isolado Desulfovibrio desulfuricans do sangue periférico de um paciente de 64 anos, masculino, imunocompetente com febre, diarréia severa e sepsemia, o que levanta possível associação intra-abdominal com a presença de Desulfovibrio spp.35 Em 2008, foi relatado o primeiro isolamento, no Japão, de Desulfovibrio fairfieldensis do sangue de uma paciente com 69 anos com quadro de degeneração espinocerebelar havia um ano, apresentou febre, diarréia, hipotensão e distúrbios de consciência.36 A presença de bactérias redutoras de sulfato em determinadas doenças pode ser subestimada pela falta de meios específicos para sua identificação médico laboratorial,34 sendo subestimada a verdadeira incidência e participação nas infecções. Este fato é dificultado pelas associações com outras bactérias. Dos sete primeiros relatos de casos, somente no primeiro relato de sepsemia por bactérias redutoras de sulfato o Desulfovibrio spp. não se encontrou em associação com outras bactérias.30 Outra característica de tais bacteremias é o fato de ocorrerem associadas a fatores patológicos pregressos, caracterizando-a como patógena oportunista.30 Microbiota oral Em um trabalho pioneiro, van der Hoeven e colaboradores14 descreveram a ocorrência de bactérias redutoras de sulfato nas bolsas periodontais, onde foram detectadas em 58% dos pacientes com periodontite, mostrando principalmente a 250 Brasília Med 2009;46(3):247-252 existência de bactérias dos gêneros Desulfovibrio e Desulfobacter. Estas podem ser encontradas também em sítios como mucosa oral, língua e biofilme supragengival, sendo este último o de maior incidência.15,16 Não há, entretanto, correlação entre halitose e a presença e atividade de bactérias redutoras de sulfato, apesar da produção de sulfeto ocasionada por este grupo de bactérias.37 Por poderem ser encontradas em diferentes sítios, as bactérias redutoras de sulfato constituem parte da microbiota oral de pacientes saudáveis e com periodontite,16 formando associações com patógenos periodontais, tais como Treponema denticola, Tanerella forsythia e Porphyromonas gingivalis, que representam o complexo com maior associação com parâmetros clínicos de periodontite,37 com alta prevalência em bolsas periodontais.16 Willis e colaboradores38 verificaram bactérias redutoras de sulfato em 97% dos pacientes, sendo a saliva o local com maior número delas quando comparada com mucosa vestibular, biofilme supra e subgengival, mucosa bucal e parte anterior e posterior da língua. Enquanto Robichaux e colaboradores39 mostraram a presença dessas bactérias em sete de oito voluntários. Encontraram maior número delas no biofilme subgengival quando comparado a língua posterior e anterior, mucosa bucal, mucosa vestibular e biofilme supragengival. Além disso, em dois pacientes com periodontite do tipo III,40 foi identificada a presença de bactérias redutoras de sulfato e bactérias metalogênicas associadas. Esses autores também verificaram diferenças fisiológicas e morfológicas das bactérias redutoras de sulfato encontradas em sítios acometidos por periodontite, quando comparadas com as da microbiota do trato digestivo de pacientes normais.41 Sendo denominadas de Desulfovibrio fairfieldensis pela semelhança ao gênero Desulfovibrio e à espécie Desulfomicrobium orale, tais bactérias podem ser encontradas em 49% dos indivíduos acometidos por doenças periodontais, 41 o que sugere tais bactérias terem um papel na etiologia da periodontite.42 Apesar disso, ainda não se compreende sua participação na perda óssea alveolar.42 De Fisiologia e patologia do Desulfovibrio sp. relevância clínica, é a possibilidade de eliminação das bactérias redutoras de sulfato de bolsas periodontais pelo desbridamento mecânico por meio de terapias periodontais.43 Conclusões Após analisar a presença das bactérias redutoras de sulfato em diversos quadros patológicos e fisiológicos verificada na literatura pode-se concluir que: 1) essas bactérias são partes da microbiota intestinal de seres humanos e animais saudáveis e exercem um papel essencial na digestão de material orgânico; 2) tais bactérias integram a microbiota oral de pessoas saudáveis; 3) Elas podem ser encontradas em afecções orais como periodontites. São, entretanto, encontradas em associações microbianas, o que dificulta identificar sua correlação e seu verdadeiro papel na periodontite; 4) são extremamente raros os relatos de sepsemia causada por bactérias redutoras de sulfato, sendo encontradas em associação com outras bactérias, o que dificulta avaliar o seu poder patológico isolado. Além disso, tais associações podem exercer papel potencializador dessas bactérias pelo aumento da expressão de fatores de virulência. Em todos os casos de sepsemia, os pacientes se encontravam em imunossupressão e, ainda, com doenças pregressas. Tal fato facilitaria o desequilíbrio da população bacteriana normal e se tornaria um fator adicional para a manutenção de porta de entrada para bactérias oportunistas. Conflitos de interesses Nenhum declarado. Referências 4. Madigan TM, Martinko JM, Parker JB. Biología de los microorganismos. 10.ª ed. Madrid: Perason-Prentice Hall; 2003. 5. Gentil V. Corrosão. 3.ª ed. Rio de Janeiro: LTC; 1996. 6. 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