1 evolução da percepção quanto ao transtorno mental

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A FAMÍLIA COMO ELEMENTO SIGNIFICATIVO NO
TRATAMENTO DO PACIENTE COM TRANSTORNOS MENTAIS
THE FAMILY AS A SIGNIFICANT ELEMENT IN THE TREATMENT OF A PATIENT WITH MENTAL
DISORDERS
Antonia do Nascimento Bastos
Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional e em Saúde Mental Pelo Centro Universitário
Internacional Uninter
[email protected]
Shirlei Marly Alves
Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, doutoranda pela Universidade Federal de
Pernambuco
[email protected]
RESUMO
O presente artigo irá tratar da temática das relações familiares e do transtorno mental. Será dada ênfase na
transformação do modelo tradicional do cuidado e tratamento dos indivíduos com transtornos mentais a
partir da participação ativa da família. Acredita-se que este novo modelo possa contribuir para a superação
do problema. Assim, será discutida a importância do fortalecimento na relação paciente-família dentro da
nova concepção após a reforma psiquiátrica, no que se refere ao suporte familiar. Este estudo é baseado
em um levantamento bibliográfico a respeito do assunto. São apresentados conceitos, definições,
classificações e apontamentos de caráter histórico, sociológico e jurídico pertinentes ao tema. Pode-se,
desta formar, verificar que a família do portador de transtorno mental exerce um papel essencial na
construção de uma nova trajetória para seu ente enfermo, ao mesmo tempo em que é o núcleo de suporte
fundamental do indivíduo. Torna-se, portanto, necessária a participação ativa da família, não somente no
tratamento, mas, principalmente, no processo de recuperação do portador de transtorno mental.
Palavras-chave: Família. Transtorno mental. Reforma psiquiátrica. Saúde mental.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the family relationships and mental disorder issue. It will be emphasized the
transformation of the traditional care and treatment model of individuals with mental disorders from the
active participation of the family. It is believed that this new model can contribute to overcome the
problem. Thus, it will be discussed the importance of strengthening the patient-family relationship within
the new conception after the psychiatric reform, regarding family support. This study is based on a
bibliographic research on the topic. Concepts, definitions, classifications and notes of historical, sociological
and legal characteristics relevant to the theme are presented. In this way, it can be verified that the family
of a person with mental disorder plays an essential role in the construction of a new path for their ill
relative, at the same time that they are the core of fundamental support for the individual. Thus, it becomes
necessary the family’s active participation, not only during the treatment, but, mainly, during the recovery
process of the individual with mental disorder.
Key words: Family. Mental disorder. Psychiatric reform. Mental health
A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
INTRODUÇÃO
Atualmente, vêm-se consolidando novas formas de atenção referentes às
pessoas com transtornos mentais, que são promovidas de maneira cada vez mais eficaz e
satisfatória para o usuário por parte do profissional, tendo em vista que esse usuário
permanece no seio familiar e comunitário. A família, nessa conjuntura, desempenha um
papel cada vez mais importante como unidade básica no processo de assistência.
Considerando-a um espaço de vivências e experiências significativas no cotidiano do ser
humano, independente do tempo, espaço ou organização.
Assim, quando as necessidades de um membro desse núcleo requerem atenção
diferenciada, pressupõe-se que todos os limites são extrapolados na busca de cumprir os
direitos e cuidados que esse exige. Contudo, nem sempre as famílias possuem estruturas
próprias que garantam esses direitos, necessitando de apoio para o enfrentamento das
adversidades surgidas no dia a dia, como vários tipos de doenças, dentre as quais a
doença mental, que se apresenta como a demanda de atendimentos e serviços de saúde
prestados por diversas instituições voltadas a assistir pessoas com problemas de saúde
mental, de forma individual e coletivamente.
Desse modo, o presente artigo tem como objetivo abordar as relações dos
familiares com o portador de transtorno mental, bem como os suportes dispensados
pelos familiares aos mesmos e ainda a eficácia da participação da família no processo de
tratamento.
Para isso, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se de material
acadêmico acessível ao público em geral, visando elaborar um enfoque pluridimensional
do tema, destacando conceitos, características, marcos históricos, classificações,
etiologia, modelos explicativos, entre outros aspectos, com o fim de construir o
arcabouço teórico do presente artigo.
Assim sendo, parte-se do pressuposto de que a internação e o hospital
psiquiátrico não devem ser vistos como opção única nem a mais viável no tratamento do
portador de transtorno mental, já que com a consolidação de mudanças na assistência
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em saúde mental, tornaram-se desnecessárias as práticas hospitalocêntricas como as
internações em prol de um espaço de atendimento substitutivo em que a família exerce
papel fundamental.
A importância da pesquisa reside no fato de apresentar dados que realçam o
papel significativo da família na superação dos problemas que caracterizam o tratamento
de paciente com transtornos mentais, sendo que esta participação ativa é essencial.
Portanto, deve-se trabalhar para conquistar a cumplicidade do familiar ao que diz
respeito aos conceitos, envolvimento e compromisso no enfrentamento da problemática
ligada à experiência de aproximação com os transtornos mentais.
Durante muitos anos o doente mental foi tratado de forma excludente, sempre
carregando o estigma de que oferecia perigo à sociedade, ficando enclausurado nos
manicômios, isolados até mesmo da própria família.
Sendo interpretada de acordo aos padrões sociais de cada época, o transtorno
mental foi concebido como “loucura”, sendo tratada durante séculos com a perspectiva
do isolamento social do “louco”, excluindo-o da vida em sociedade, considerando-se
perigo sua convivência com os cidadãos “normais”.
Michel Foucault, em História da Loucura, demonstra que a apreensão e o trato da
loucura nunca foram homogêneos e que ao longo dos séculos houve diversas formas
sociais de lidar com os loucos de maneiras muito específicas. Na Grécia Antiga, por
exemplo, a loucura foi considerada ora como possessão demoníaca, ora como divino.
(FOUCAULT, 2004, p. 06).
Na Idade Média, os insanos, retardados e miseráveis, eram considerados parte da
sociedade alvo da caridade daqueles mais abastados, que procuravam expiar seus
pecados mediante tal ato. Os desvios mentais seriam assim decorrentes de uma relação
defeituosa entre o homem e a divindade. (AMARANTE, 1995, p. 24).
Na Idade Moderna, em meados do século XVI, a Igreja Católica por meio da Santa
Inquisição, teve grande predomínio no processo de repressão àqueles que não se
enquadravam nos padrões sociais vigentes (loucos, leprosos, prostitutas, ladrões,
vagabundos, cientistas, judeus e protestantes). Sendo esses, julgados em tribunais
religiosos e, na maioria das vezes, queimados nas fogueiras ao serem considerados
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
hereges.
Até a primeira metade do século XVIII, não houve uma distinção clara entre os
loucos e as outras categorias tidas como “diferentes”, mas o que motiva a exclusão dos
primeiros é a figura oposta da razão. Essa, a partir da metade do mesmo século, começa a
perder importância em favor da alienação, tida “como critério de distinção do louco
frente à ordem social”. (AMARANTE, 1995, p.24). O alienismo baseou-se no entendimento
da loucura como “desrazão”, ou seja, alienação mental.
No século XIX, a loucura passou a ser focalizada pela ciência, dando início às
pesquisas do que se denominou como “doença mental”. Desde então, a Psiquiatria
tratou os doentes mentais, administrando a loucura por meio da medicação e novas
terapêuticas. A partir de então, a loucura adquire o estatuto de “doença mental”,
requerendo técnicas específicas, próprias do saber médico, para ser diagnosticada.
Durante o início do século XX, ocorre um importante avanço na Psiquiatria: os
loucos são separados dos demais na tentativa de estudá-los na busca de uma cura. Dessa
maneira, a partir do nascimento da Psiquiatria, tornou-se institucionalizada a relação de
tutela com o doente mental, deixando este sua comunidade, para ser internado e tratado
em um local organizado pelo saber médico. (ROSA, 2003).
Contudo, a cura não é alcançada e o fracasso das instituições de internação no
que tange à ressocialização dos indivíduos em processo de cuidados de saúde,
desencadeia uma crise neste modelo, questionando-o, passando a haver maior ênfase na
humanização da instituição psiquiátrica.
É desse momento histórico que surge o movimento anti psiquiátrico durante a
década de 1960, como um movimento questionador e denunciador dos valores e práticas
utilizadas pela Psiquiatria até então.
Assim, com a reforma psiquiátrica instituída por este movimento a partir da
segunda metade do século XX, foram denunciadas as condições muitas vezes subumanas
em que eram atendidos os portadores de transtornos mentais, possibilitando seu retorno
ao seio da família e da sociedade.
Tal processo culminou com a desinstitucionalização em vários países, dentre os
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quais a Itália com a aprovação da Lei 180, ou Lei Basaglia, de 13 de maio de 1978. Ancorada
nesta Lei, objetivou-se a redução de internação em manicômios, a não construção de
novos, além da substituição dos serviços prestados nessas instituições por serviços
desenvolvidos na comunidade, tendo como metas não a desassistência com a
desospitalização, mas a modificação do atendimento, baseado nas mudanças das
relações e dos poderes que nele demanda.
A partir da década de 1970, o movimento de Reforma Psiquiátrica alcançou o
Brasil, buscando substituir os manicômios por iniciativas sociais, culturais, políticas,
científicas, jurídicas, bem como modificar os conceitos e a relação da sociedade com as
pessoas portadoras de transtornos mentais.
Desse modo, na década de 80, começaram a ocorrer significativas mudanças
nesta área, entre elas a aspiração da desinstitucionalização da assistência ao portador de
transtorno mental. Na década seguinte, no ano de 1992, realizou-se a II Conferência
Nacional de Saúde Mental, trazendo inovações nesse campo. Surge o Movimento de Luta
dos Trabalhadores da Saúde Mental, transformando-se, mais tarde no Movimento Nacional
da Luta Antimanicomial, culminando no movimento de Reforma Psiquiátrica, e a
aprovação da Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, ano em que se realiza a III Conferência
Nacional de Saúde Mental. (DJI, 2001).
O Movimento da Reforma Psiquiátrica, gradativamente vem trazendo
transformação na forma de tratamento dado aos ‘loucos’, onde o portador de transtorno
mental deve deixar a instituição, asilar e retornar ao seio da família e da sua comunidade.
Assim, mais que a cura do Portador de Transtorno Mental, “[...] a questão a ser
enfrentada é a emancipação, a ampliação do poder de trocas sociais das pessoas com
transtornos mentais, não a obstinação terapêutica pela cura ou a reparação, mas a
reprodução social, a reinscrição dessas pessoas no mundo social”. (ROSA, 2005, p. 14).
A Organização Mundial de Saúde – OMS passou a designar os transtornos
mentais como “condições clinicamente significativas, caracterizadas por alterações do
modo de pensar e do humor ou por comportamentos associados com angústia pessoal
e/ou deterioração do funcionamento intelectual”. (apud CONSCIÊNCIA, 2008).
O processo de Reforma Psiquiátrica é um projeto de horizonte democrático e
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
participativo. Seus protagonistas são os gestores do Sistema Único de Saúde - SUS, os
trabalhadores em saúde, e principalmente os usuários e os familiares dos Centros de
Atenção Psicossociais - CAPS e de outros serviços substitutivos.
Com o advento da Reforma Psiquiátrica brasileira e o surgimento de serviços
substitutivos de atendimento ao Portador de Transtorno Mental, no que diz respeito às
crianças e adolescentes, cumpre-se o que já estava previsto nas diretrizes nacionais para a
política de atenção integral à infância e adolescência, aprovadas pelo Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, Lei 8.242, de 12 de outubro de 1991,
que no condizente à saúde visa “Garantir uma política de saúde pública de acesso
universal e igualitário, nos aspectos da promoção, proteção e recuperação da saúde de
crianças e adolescentes”. (BRASIL, 1991).
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei nº. 8.069 de 13 de agosto de
1990 assegura no Art.86. “A política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não
governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”. (ANGHER,
2006).
Sob este aspecto, em sintonia com o conceito de saúde defendido pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), e reforçado pela Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, os determinantes sociais do processo saúde-doença ganham destaque. A saúde
está intrínseca à condição de vida. Tal percepção está expressa no conceito de saúde
proposto pelo OMS. “Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e
não apenas a ausência de doença”. (CONSCIÊNCIA, 2008).
Assim, foi criada uma rede de atendimento que abrange não somente a criança e
o adolescente, mas, toda a família indo desde a Unidade Básica de Saúde como o
Programa Saúde da Família - PSF visando uma promoção da saúde de forma preventiva,
até os atendimentos emergenciais efetuados pelos hospitais e de promoção social como
os Centros de Atenção Psicossocial os CAPS. Efetivando-se pela construção de redes de
atendimento básica ou especial por meio dos serviços, benefícios, programas e produtos,
com finalidade de inclusão de seus usuários.
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As concepções sobre rede sócio-assistencial são múltiplas. A atuação em rede
potencializa a atuação dos profissionais para melhorar o atendimento aos usuários de
seus serviços.
Sob este prisma, o trabalho em rede dimensiona e efetiva as ações, promovendo
troca de experiência entre os vários atores institucionais, principalmente profissionais e
usuários, e ainda fortalece e difunde informações e serviços entre instituições de diversas
regiões.
Neste contexto, a rede possibilita o compartilhamento de idéias entre pessoas
que possuem interesses e objetivos comuns e também valores a serem compartilhados.
Segundo Fontes (2004, apud ROSA, 2008, p. 176) “as redes são pontes que ligam os
indivíduos às instituições sociais e estruturam suas biografias em inserções sociais que
garantem suas identidades”.
Dentre os objetivos da rede sócio-assistencial, destaca-se atender suas próprias
necessidades, geradas de acordo com necessidades reais do usuário diagnosticadas, bem
como das instituições que frente as suas limitações veem na articulação um instrumento
para garantirem direitos e atender às demandas.
Desse modo, cabe ressaltar que fazendo parte dessas redes sócio-assistenciais os
Centros de Atenção Psicossocial – CAPS se põem como instituições destinadas a
expandir, consolidar e qualificar o atendimento da rede de atenção à saúde mental.
Centralizado em ações normatizadoras do Ministério da Saúde, com rede pública e
articulada de serviços.
Os novos serviços substitutivos, que têm surgido no país, assim como, por
exemplo, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), os NAPS (Núcleos de Atenção
Psicossocial), tem como proposta oferecer atendimento à população, construindo uma
alternativa às internações em hospitais psiquiátricos, realizando o acompanhamento
clínico e a reinserção social dos usuários, bem como privilegiando o acesso ao trabalho,
ao lazer, ao exercício dos direitos civis e, principalmente, o fortalecimento dos laços
familiares e comunitários.
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
Cada CAPS, por sua vez, deve ter um projeto terapêutico do serviço, que leve em
consideração as diferentes contribuições técnicas dos profissionais dos CAPS, as
iniciativas de familiares e usuários e o território onde se situa, com sua
identidade, sua cultura local e regional. (BRASIL, 2004, p.16).
Como toda política de saúde no Brasil, a implantação da rede pública de CAPS
também enfrentou dificuldades em alguns setores, visto que o Sistema Único de Saúde
possibilita contratar serviços privados na complementação dos serviços públicos de
saúde. No entanto, seguindo as recomendações da III Conferência de Saúde Mental, e o
caráter estratégico destes serviços, que têm atribuições intransferíveis, é tomada a
decisão política por uma rede CAPS de gestão pública.
De acordo ao Relatório de Gestão 2003-2006, da Coordenação Geral de Saúde
Mental do Ministério da Saúde publicado em 2007: “Hoje, 98,6% dos CAPS da rede são
públicos [...] estão presentes em todos os estados da federação. Apenas 06 dos 74
municípios com mais de 300.000 habitantes não tem um serviço tipo CAPS em sua rede
de atenção à saúde”. (BRASIL, 2007).
Nesse contexto, se inserem os Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi),
fazendo parte dos serviços públicos municipais, do Sistema Único de Saúde, e está
voltado a assistir crianças e adolescentes com problemas de saúde mental, individual e/ou
coletivamente. A criação desses serviços substitutivos está orientada pela portaria 224 do
Ministério da Saúde, “sendo um serviço extra-hospitalar que tem como principal objetivo
a redução de internações psiquiátricas”. (BRASIL, 2007).
Descrita como resultado de um processo histórico, a família é um grupo que
sofre transformação através do tempo e, no decorrer dessas mudanças, desenvolve seus
padrões, que carregam particularidades próprias. “Estes padrões constituem a estrutura
familiar que por sua vez governa o funcionamento dos membros da família delineando
sua gama de comportamento e facilitando sua interação”. (MINUCHIN, 1990, p. 21).
Assim, cada estrutura familiar define o papel desempenhado por indivíduos, bem
como suas tarefas essenciais o que dá suporte para a individualidade, ao mesmo tempo
em que provê um sentimento de pertinência. Ou seja, cada membro tem a experiência
com a rede familiar de forma diferente, onde essas diferenças formam o todo.
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Desse modo, a família caracteriza-se como o núcleo fundamental para a
formação de indivíduos saudáveis. No Brasil, há vários tipos de composição familiar,
definida na Constituição Brasileira de 1988, Art. 226, parágrafo 4: como “entidade familiar
a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes”. (BRASIL, 1997).
Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Art. 25, define como família
natural “a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”.
(BRASIL, 1991, p. 99).
No entanto, estudiosos afirmam que há diversos arranjos familiares possíveis,
além de pai, mãe e filhos; e o que caracteriza a família, é a união de duas ou mais pessoas
que podem cuidar umas das outras de muitas formas.
Os vários tipos de família que se apresentam atualmente foram se modificando a
partir das mudanças ocorridas de geração para geração. Essas mudanças têm
possibilitado ao longo dos anos a formação do indivíduo, influindo em seus aspectos
psicológicos, cognitivos, físicos, psicológicos e sociais. Colaboram na interação do sujeito
no contexto familiar, bem como favorece ou não seu acesso à cultura e aos
conhecimentos sistematizados. “De modo geral, a transmissão do conhecimento de uma
geração a outra era garantida pela participação familiar das crianças na vida dos adultos”.
(ARIÉS, 1981, p. 158).
Analisando criticamente, esse processo percebe-se que tais influências
diferenciam-se segundo as classes sociais, e até mesmo na questão de gênero. Haja vista,
que este sistema é aplicado em primeiro plano aos meninos de famílias mais abastadas.
Alcançando depois as meninas e posteriormente todas as classes sociais. ”A família quase
não existia sentimentalmente entre os pobres, e quando havia riqueza e ambição, o
sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relações de
linhagem”. (ARIÉS, 1981, p. 159).
Esta sistematização veio substituindo o antigo sistema de aprendizagem em que
as crianças eram retiradas do seio familiar, geralmente aos sete anos de idade,
permanecendo de sete a nove anos no convívio com outras famílias no intuito de educálas, isto não favorecia o desenvolvimento de vínculos afetivos entre filhos e pais. “A
família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental”. (ARIÉS, 1981, p. 158).
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transtornos mentais
A partir dessa visão compreende-se que o ambiente familiar se constitui como
espaço de aprendizagem e desenvolvimento humano. A psicologia enquanto ciência traz
importantes indicações a esse respeito:
a psicologia sócio histórica traz em seu bojo a concepção de que todo Homem se
constitui como ser humano pelas relações que estabelece com os outros. Desde
o nosso nascimento somos socialmente dependentes dos outros e entramos em
um processo histórico que, de um lado, nos oferece os dados sobre o mundo e
visões sobre ele e, de outro lado, permite a construção de uma visão pessoal
sobre este mesmo mundo. (MARTINS, 1997, p. 111-122).
As transformações ocorridas no papel das crianças e adolescentes dentro da
família foi uma das conquistas mais visíveis dos últimos anos. A contribuição da
pedagogia, da psicologia, das ciências sociais e da legislação de proteção à criança e
adolescente oportunizou o entendimento destes como sujeitos de suas histórias.
Em função disso, as crianças que antes não tinham vez, nem voz dentro da
família passaram a ser valorizadas como nunca, até então. Assim, a família vista
primitivamente como fenômeno biológico de conservação e produção, ganha status de
fenômeno social.
Conforme já citado, desde os primórdios de sua constituição a família vem
sofrendo fortes transformações.
Com o desenvolvimento da sociedade e, principalmente com a Revolução
Industrial, período este em que a mulher adentrou o mercado de trabalho, observou-se
que a família modificou o status que anteriormente tinha. A mulher também passou a
contribuir para a vida doméstica e, recentemente, ganhando igualdade jurídica com o seu
cônjuge ou companheiro. Os filhos antes tidos como ilegítimos, por serem concebidos
fora do casamento, agora são iguais aos tidos dentro do matrimônio, tendo igual direito à
proteção, aos cuidados e, inclusive ter reconhecido a filiação no registro civil.
É válido pontuar a nova ordem constitucional, com diversos direitos que foram
conquistados, conforme pode ser observado no art. 227, caput, da Constituição Federal,
que dispõe:
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É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (BRASIL, 1997).
O vislumbramento é que, esses direitos sejam de fato garantidos rumo a novos
aspectos que imprimam caráter de cidadania, aos componentes da família alcançando
especialmente a criança e o adolescente, que estão em processo de desenvolvimento.
Neste contexto, a família é de fundamental importância, pois, também cabe a ela
oferecer um ambiente acolhedor e de respeito mútuo à criança e ao adolescente, além de
possibilitar o desenvolvimento na dimensão das relações interpessoais.
A importância da família no contexto social está expressa no artigo 226, da citada
Carta Magna. “Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. (BRASIL,
1997). Portanto, reconhecendo o valor da família na vida social, o Estado deve se
apresentar como assegurador de direitos no processo de proteção das famílias brasileiras
ampliando a sua participação no campo da proteção.
Assim sendo, qualquer que seja sua estrutura, na figura tradicional paterna e
materna, recaem responsabilidades referentes aos direitos e aos deveres para com os
filhos, principalmente àqueles cuja saúde requer um cuidado especial como o portador de
transtorno mental.
De acordo com Rosa,
Prestar cuidados às pessoas enfermas traduz uma das obrigações do código de
direitos e deveres entre os integrantes da família consangüínea. Mesmo que
redunde, em algum ganho ou prejuízo econômico, prover cuidados, figura como
uma das atividades inerentes a tarefas familiares ou domésticas que, da
perspectiva do grupo familiar, foram “naturalizadas” como próprias da família.
(T. Mental e o C.na Família) (ROSA, 2003, p. 277).
Nesse prisma, a família representada como uma instituição que conserva prática
e valores mesmo que nem sempre modernos, se constitui também como agente de
mudanças societárias. Daí a importância de pensar na qualidade da sociabilidade, para
conhecer e compreender as mudanças sociais, em especial, a família e suas relações com
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
a saúde mental.
Desde os primórdios os homens têm necessidade de se agruparem, pois já ao
nascer necessitam de cuidados. A família é o primeiro grupo social de interação dos
indivíduos, e a partir dela a criança e o adolescente percebem e convivem com outros
grupos sociais. Assim, é fundamental criar um ambiente familiar em que os indivíduos se
sintam seguros e possam crescer e se expressar livremente. Conforme o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, família; “é um conjunto de pessoas ligadas por
laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, todos residentes
na mesma casa”. (IBGE, 2008).
Nesse sentido, com o intuito de minimizar as dificuldades existentes na
convivência familiar com o PTM, e de envolver esta família no tratamento, torna-se
indispensável compreender a necessidade do enfrentamento de questões expressadas
por estes, já que é perceptível que os mesmos necessitam de esclarecimento a respeito
de doença mental.
Outro ponto a salientar, é que o familiar ao conviver diariamente com o PTM, é o
primeiro a perceber mudanças no comportamento e atitudes do indivíduo, contudo,
muitas vezes mesmo reconhecendo os primeiros sintomas da patologia, não conseguem
por si mesmo um enfrentamento dessa natureza. Já que muitas famílias demonstram não
estar preparadas para conviver e ajudar no tratamento dos seus entes adoecidos, por
falta de informação e conhecimento sobre a doença mental em si.
No contexto dessa discussão, os profissionais de saúde mental, não devem estar
preocupados somente em estudar e tratar os sofrimentos da pessoa doente, mas levar
em consideração a dificuldade da família para manter a sua própria saúde mental e ainda
o quanto a presença da doença afeta as lutas emocionais de seus membros, assumindo
uma nova postura diante desta questão. Assim, passar a oferecer suporte emocional é
relevante tanto para o portador de transtorno mental, quanto para a família que cuida do
mesmo. “A construção de vínculos fortes é parte essencial dos processos de mudança,
implicando uma relação contratual, de direitos e deveres, entre todas as partes
envolvidas”. (MELMAN, 2006, p. 95).
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Com isto, quer se destacar que em muitos municípios do país, o processo de
desinstitucionalização vem produzindo mudanças importantes na rede de saúde e
especialmente na rede de atenção à saúde mental. O Município de Imperatriz, no Estado
do Maranhão vem experimentando este processo. E ainda, dentro dessa estratégia se
constrói como um espaço substitutivo tendo a família como parceira importante no
tratamento do seu usuário.
Por conseguinte, acredita-se ter a família do portador de transtorno mental, um
papel fundamental na construção de uma nova trajetória para seu ente enfermo, embora
se ressalte que seus recursos emocionais, econômicos, e culturais devem ser
redirecionados, pois geralmente quando a família não consegue resolver um problema
internamente cabe então uma orientação, partindo de diversos profissionais que atuam
nos serviços psiquiátricos, como o CAPSij, dentre os quais o Serviço Social.
Um dos principais problemas no âmbito social e familiar é o preconceito com
relação à doença mental; que o rótulo de “louco” muitas vezes é utilizado pela sociedade
em relação ao PTM, que a família além de ser estigmatizada ainda tenha dificuldades de
compreender e responder as demandas de provimentos ao familiar doente.
Desse modo, para intervir nesses conflitos, há a prerrogativa da presença de
profissionais capacitados no redimensionamento de instrumentais e técnicas, no
processo de assistência psiquiátrica. Assim, a figura do assistente social se faz
indispensável para que haja uma maior interação entre instituição, familiar e o próprio
serviço social. A atuação deste profissional no campo da saúde mental é um aspecto a
ser tratado a partir de um delineamento mais específico.
Em face do exposto, Vasconcelos (2002, p. 271), coloca ainda que,
O transtorno mental também traz para a família a vivência com o estigma, já que
é associada à imprevisibilidade de ações e à conduta perigosa. Em decorrência
disso, seu portador padece de uma discriminação social que é extensível à sua
família.
Além dessa justificativa, destaca-se que o profissional que lida com as expressões
da questão social deva ser altamente qualificado estando capacitado a ultrapassar o
processo da simples reprodução. Ter um bom suporte teórico-metodológico, uma ação
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
emancipatória, pautada num processo de auto valoração humana onde valores éticos,
morais, políticos e culturais, possibilite uma leitura crítica do seu campo de ação e do seu
objeto de intervenção, viabilizando sua prática.
Para que tal prática se efetive deve se levar em conta a totalidade do ser social
em questão. Que envolve não somente o PTM, mas toda sua família, assim, suas crenças e
valores serão considerados, além da própria constituição familiar, quando esta pode se
apresentar positiva ou negativamente.
Pois, mesmo sendo a família constituída das particularidades que a compõe, a
singularidade dos sujeitos, implica-lhes uma atenção personalizada dirigida à construção
de um atendimento que envolva estas particularidades em cada situação. Visto que cada
sujeito pode ser descrito como um subsistema com diferentes níveis de poder e
habilidades úteis às funções que cada um ocupa garantindo o pertencimento a um
sistema maior que é a estrutura familiar.
As pessoas se acomodam caleidoscopicamente para atingir a mutualidade, que
torna possível a relação humana. A criança tem que agir como um filho,
enquanto o seu pai age como um pai: e quando a criança o faz, pode ter que
ceder ao tipo de poder que aprecia, quando em interação com seu irmão mais
moço. A organização dos subsistemas de uma família fornece treinamento
valioso no processo de manutenção do ‘eu sou’ diferenciado, ao mesmo tempo
em que dê exercício de habilidades interpessoais em diferentes níveis.
(MINUCHIM, 1990, p. 58).
Evidenciando-se, que esse processo requer uma estreita relação entre os atores
sociais que o compõe, cabe-nos, pois, pontuar o binômio serviço social/saúde mental
compreendendo esta profissão como de importância fundamental no atendimento ao
PTM.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, ficou claro que o modelo de assistência proporcionado aos
indivíduos com transtornos mentais não é somente inadequado, como também precário
e insuficiente, principalmente quando se analisa a realidade brasileira e das cidades em
processo de desenvolvimento.
Viu-se também que a família pode desempenhar um papel importante nesse
contexto, já que a participação da mesma no cuidado dispensado aos indivíduos com
transtornos mentais tem resultados notadamente positivos.
Portanto, faz-se indispensável um processo de construção de um novo modelo
de assistência que envolva este familiar, já que, ao subsidiá-lo, conscientizá-lo e capacitálo, proporcionar-se-á um melhor enfrentamento de situações adversas na rotina de
cuidados dispensados a este membro da família que demanda tais desvelos, também no
que condiz aos próprios sentimentos pessoais de cada um desses cuidadores. O que
ocorrerá com uma estreita relação entre instituição/família.
Assim sendo, é essencial reinterpretar o doente mental sob uma nova óptica.
Contudo, para interpretar esse doente e sua forma de atendimento na sociedade, num
contexto em que hoje ele se encontra dentro de uma perspectiva de saúde, precisa-se
levar e reportar ao próprio processo de interpretar a própria saúde também.
Nesse sentido, a família do portador de transtorno mental exerce papel
fundamental na construção de uma nova trajetória para seu ente enfermo. Por isso, a
família necessita participar ativamente do tratamento e do processo de recuperação do
portador de transtorno mental, como núcleo de suporte fundamental do indivíduo.
Porém, para que a família venha cumprir suas obrigações enquanto responsável
pelos cuidados da criança e do adolescente necessita-se de aportes institucionais, de
esclarecimentos e orientações profissionais, tendo em vista a sobrecarga de conviver
cotidianamente com a pessoa em situação de sofrimento psíquico.
Trata-se, portanto, de um quadro que ainda possui um longo caminho a
percorrer, necessitando ser trabalho acuradamente e com urgência, para que se possa
transformar a realidade dos indivíduos com transtorno mental e de suas famílias.
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A família como elemento significativo no tratamento do paciente com
transtornos mentais
Assim, espera-se, mediante o presente trabalho, contribuir para uma maior
conscientização acerca do papel desempenhado pelas famílias que convivem nesta
situação para que possa haver uma ênfase sobre esse elemento-chave, além de servir
como possível base para que novas pesquisas sejam realizadas com maior profundidade.
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