Carlos Freire de Oliveira e Natália Amaral 1. INTRODUÇÃO A definição de cancro do ovário é difícil pela diversidade das suas variantes histogenéticas. Assim, este cancro constitui uma verdadeira família de neoplasias visto que o ovário compreende para além do epitélio germinal, as células germinativas, gonadais e mesenquimatosas, podendo todas estas estruturas sofrer transformação maligna. Os cancros epiteliais do ovário são tumores constituídos por um ou mais tipos de epitélio e estroma em combinações variadas. A maioria destes tumores é derivada do epitélio de revestimento do ovário. Este epitélio de superfície é capaz de se diferenciar em diversas variedades histológicas originalmente oriundas de um precursor embriológico comum, os canais de Müller. Assim, os tumores serosos assemelham-se ao epitélio de revestimento das trompas de Falópio, os tumores endometrióides ao endométrio e os tumores mucinosos ao epitélio endocervical. Os cancros epiteliais do ovário representam aproximadamente 90% de todas as neoplasias invasivas primitivas do ovário. 2. EPIDEMIOLOGIA Nos últimos 30 anos têm sido registados aumentos constantes tanto na incidência como na mortalidade por cancro do ovário em alguns países ocidentais e asiáticos. A incidência é mais elevada nos países ocidentais e mais baixa no Japão. Nos EUA a incidência anual, de acordo com o Globocan 2002, foi de 11,6 por 100.000 mulheres. Na Europa, as maiores taxas de incidência verificam-se na Europa do Norte com 13,3 e variaram entre 10,3 na Finlândia e 17,0 na Islândia, enquanto Portugal regista uma incidência anual na ordem dos 8,6 novos casos por 100.000 mulheres (http://www-dep.iarc.fr/)1. O cancro do ovário é um tumor que preferencialmente atinge as mulheres peri e pósmenopáusicas, sendo de cerca de 54 anos a idade média das doentes aquando do diagnóstico da neoplasia. Em crianças e mulheres jovens, com menos de 20 anos, 60% dos cancros do ovário têm origem nas células germinativas. O cancro do ovário ocupa a posição cimeira no que respeita à mortalidade no grupo das neoplasias invasivas do aparelho genital feminino. Como exemplo, refira-se que nos EUA o número de mortes por cancro do ovário ultrapassa o número combinado de mortes por cancros do endométrio e colo do útero, isto é cerca de 14.500 mortes por cancro do ovário contra cerca de 11.000 mortes por cancro do endométrio e do colo uterino1. De acordo com a base de dados Globocan 2002, a mortalidade anual por cancro do ovário foi de 6,1 por 100.000 mulheres nos EUA, de 7,9 na Europa do Norte, de 4,5 na Europa do Sul e em Portugal de 3,81. Nos EUA, somente 35% de todas as mulheres com cancro do ovário sobrevivem cinco anos após o diagnóstico. De um total de 4.911 doentes, tratadas entre 1999 e 2001, e consignadas no volume 26 do Annual Report, 391 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 24 Cancro do ovário (tumores epiteliais) Na figura 2 mostram-se os dados da sobrevivência estratificados pelos estádios da FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) e relativos ao período de 1999-2001. Sobrevivência aos 5 anos 60 50 40 30 20 10 0 5862 6368 6972 7375 7678 7981 8286 8789 9092 9395 9698 9901 Anos Figura 1. Carcinoma do ovário: sobrevivência aos cinco anos de 1958 a 2001 (volume 26 do Annual Report). % de Sobrevivência 100 IA 90 Ib 80 IC 70 IIa IIb 60 IIc 50 IIIa 40 IIIb IIIc 30 IV 20 10 0 0 1 2 3 4 5 Anos Figura 2. Carcinoma do ovário: % de sobrevivência em função do estádio clínico (volume 26 do Annual Report). 392 Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 a sobrevivência global aos cinco anos foi de 49,7%. Verifica-se, contudo, uma melhoria significativa da sobrevivência nos últimos 40 anos2. A figura 1 testemunha esta evolução favorável. 2.1. HEREDITARIEDADE Do conjunto dos factores de risco associados com o cancro do ovário, a história familiar desta neoplasia sobreleva todos os outros. A existência de cancros do ovário em membros de uma mesma família tem sido descrita em numerosas casuísticas e em estudos casocontrolo. Tais estudos evidenciam aumentos estatisticamente significativos de cancros do ovário, mas também cancros da mama, endométrio e cólon, entre familiares de mulheres com cancro primitivo do ovário3. A caracterização citogenética de peças operatórias com cancros do ovário revela numerosas e complexas anomalias estruturais cromossómicas envolvendo os cromossomas 1, 3, 6, 11, 14 e 174. Estudos genéticos envolvendo famílias com cancros concomitantes do ovário e da mama, apontam para a existência de um locus de susceptibilidade para estes cancros, designado BRCA1 e localizado no braço longo do cromossoma 17. O BRCA1 é um gene supressor tumoral e mais de 100 mutações neste gene já foram descritas. Um segundo gene de susceptibilidade para o cancro da mama, BRCA2, foi localizado no braço longo do cromossoma 13. Estima-se que o cancro hereditário do ovário corresponda a 5 a 10% de todos os cancros ováricos. 2.2. PARIDADE As mulheres multíparas apresentam um decréscimo aproximado de 30% de risco para cancro do ovário em comparação com as nulíparas. Num extenso estudo prospectivo, a paridade foi o único factor da vida reprodutiva que mostrou uma associação substancial e independente com o cancro do ovário. As mulheres que conceberam tinham uma diminuição de 45% de risco para este cancro em comparação com as nulíparas. Este risco relativo foi independente da idade aquando do primeiro parto e, além do mais, cada parto esteve associado com um decréscimo de 16% de risco5. Em contraste com o papel protector da gravidez, numerosos estudos não encontraram quaisquer efeitos significativos no que concerne a idade da menarca ou da menopausa, em relação com risco para o desenvolvimento de cancro do ovário. Quadro 1. Factores de risco para cancro do ovário Factor de risco Risco relativo Hereditariedade 17-50 N.o gravidez Idade 1.a gravidez 0 1-2 3-4 4-5 3 1,5 20-24 q 25 1,75 3 Uso de talco Contraceptivos orais Obesidade Raça: branca/negra Cancro do ovário (tumores epiteliais) 3 (> 3-5 anos) 0,5 2 1,5 393 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 Muitos estudos epidemiológicos têm correlacionado alguns eventos da vida reprodutiva da mulher com o risco de desenvolvimento de cancro epitelial do ovário (Quadro 1). O risco acrescido de cancro do ovário nas mulheres nulíparas poderá reflectir uma associação entre este cancro e a infertilidade. Contudo, tal não é unanimemente aceite. Longos períodos (10 a 15 anos) de coito desprotegido podem aumentar o risco de cancro do ovário pelo simples facto de a mulher ser privada dos efeitos protectores da gravidez e/ou contraceptivos orais6. Numa revisão analisando a epidemiologia do cancro do ovário, Harris, et al.7 mostraram que as mulheres inférteis tratadas com «drogas da fertilidade» tinham um risco para cancro 2,8 vezes superior ao das mulheres sem infertilidade. Este risco era consideravelmente maior naquelas que não engravidaram (OR = 27) do que nas que conceberam após a terapêutica (OR = 1,4). Outros estudos8 sugerem que: — O clomifene administrado por um período inferior a 12 meses não aumenta o risco de cancros invasivos ou borderline do ovário. — Tanto a hCG como a hMG não aumentam o risco de cancro do ovário. — Um estudo demonstrou um risco aumentado de cancro do ovário com o uso de clomifene por períodos superiores a 12 meses. — Um outro estudo mostrou um risco acrescido para cancros borderline do ovário após estimulação com a hMG. Mais recentemente, Brinton, et al.9 revendo os estudos clínicos prospectivos nesta área concluem que são limitados e não avaliam outros factores associados ao risco de cancro do ovário, como a paridade, e que apenas estudos pequenos sugerem um ligeiro aumento do risco associado a fármacos para tratamento da fertilidade, nomeadamente o clomifene. efeito protector é um dos achados mais consistentes e melhor estabelecidos na epidemiologia do cancro do ovário. O uso dos CO diminui de 30 a 60% o risco de cancro do ovário, dependendo do tempo da sua utilização. Hankinson, et al.5 estimaram que este risco decresce 11% para cada ano de uso dos CO. Contudo, a partir dos seis anos da sua utilização, o efeito protector adicional é mínimo. Este efeito protector é semelhante tanto para nulíparas como para multíparas3. Um outro estudo10 mostrou que o uso de CO por mulheres nulíparas por um período de cinco anos reduz o risco de cancro do ovário para valores sobreponíveis aos das multíparas. O mesmo trabalho demonstrou que o uso de CO durante 10 anos por mulheres com uma história familiar de cancro do ovário diminui o risco desta neoplasia para valores inferiores aos das mulheres sem história familiar de cancro do ovário. A estimulação gonadotrófica poderá constituir um factor etiológico para o desenvolvimento de cancro do ovário. A terapêutica hormonal de substituição (THS), ao reduzir os níveis elevados das gonadotrofinas hipofisárias da mulher pós-menopáusica, poderia diminuir o risco de cancro do ovário. Embora alguns estudos tenham apoiado tal decréscimo outros assumem posição contrária. Um estudo de coorte, com cerca de 98.000 mulheres, realizado pelo National Institutes of Health, nos EUA, e de publicação recente11 conclui que a THS empregue por períodos longos aumenta o risco de cancro do ovário. No caso de estrogénios isolados, ao fim de mais de 10 anos, o risco relativo foi de 2,95 versus 1,89 no grupo de controlo. Em relação à associação sequencial de estrogénio e progestativo, ao fim de mais de cinco anos de uso, o risco relativo de cancro do ovário foi de 5,68 versus 3,09 no grupo de controlo. 2.4. CONTRACEPTIVOS ORAIS E TERAPÊUTICA HORMONAL DE SUBSTITUIÇÃO 2.5. TALCO Os contraceptivos orais (CO) combinados reduzem o risco de cancro do ovário, e este O uso de talco cosmético no períneo, seja em loções de higiene íntima, pensos higiénicos, 394 Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 2.3. INFERTILIDADE E TERAPÊUTICA MÉDICA DA INFERTILIDADE 2.6. OBESIDADE Num estudo caso-controlo realizado na Austrália, mulheres com índice de massa corporal (IMC) superior ao percentil 85 tinham um risco duplo de cancro do ovário em comparação com mulheres com um IMC no percentil 30. Este risco em relação com o IMC mantinhase significativamente elevado mesmo em análise multivariável12. Visto que uma relação cintura-ancas elevada pode estar associada a hiperandrogenemia e síndrome dos ovários poliquísticos, estes factores podem ser responsáveis pelo risco acrescido observado3. 2.7. RAÇA Nos EUA, a incidência de cancro do ovário é significativamente mais elevada entre as mulheres de raça branca e havaianas, intermédia entre as negras, hispânicas e asiáticas, e mais baixa nas mulheres nativas americanas. Entre 1986 e 1990, a taxa de incidência era 50% mais elevada para as mulheres brancas em comparação com as mulheres americanas de origem africana3. Estas diferenças raciais muito provavelmente reflectem diferenças também em relação a outros factores de risco. 3. ETIOPATOGENIA DO CARCINOMA DO OVÁRIO As várias teorias que tentam explicar a etiopatogenia do cancro epitelial do ovário baseiam-se em observações epidemiológicas. Cancro do ovário (tumores epiteliais) Paridade elevada, uso da pílula contraceptiva e amamentação (três causas major de anovulação), e em menor grau, aborto de repetição, menopausa precoce e menarca tardia, são tudo elementos protectores contra o desenvolvimento de cancro do ovário. Fathalla foi o primeiro a sugerir que o factor fundamental na etiopatogenia do cancro epitelial do ovário era a rotura deste epitélio por ocasião da ovulação. O traumatismo continuado seria responsável pela transformação maligna, a chamada «ovulação incessante»13. A superfície ovárica sofre um pequeno traumatismo aquando da ovulação. O efeito cumulativo desta repetida agressão poderia contribuir para o desenvolvimento da neoplasia ovárica. Um estado de hipergonadotrofismo foi também postulado como possível factor na etiologia do cancro do ovário. Foi demonstrado que a supressão gonadotrófica protege contra o cancro do ovário14. Zajicek postulou que os tumores epiteliais do ovário podem surgir a partir de inclusões epiteliais da superfície ovárica que frequentemente ocorrem após a ovulação15. Casagrande, et al. sugeriram que a «idade ovulatória» (número de ciclos ovulatórios entre a menarca e a menopausa aos quais são subtraídos o tempo de protecção proporcionado pela gravidez e CO) é directamente proporcional ao risco individual para cancro do ovário16. Cramer e Welch propuseram um modelo para a cancerização ovárica que tenta conciliar os actuais dados epidemiológicos e patológicos17. De acordo com este modelo, o primeiro passo da carcinogénese ovárica consiste na formação de um quisto de inclusão pela oclusão ou invaginação do epitélio de superfície no estroma ovárico, rompendo o tecido conjuntivo que separa o epitélio do córtex, e deste modo, colocando as células epiteliais em íntima proximidade com células produtoras de esteróides sexuais. Tudo isto provavelmente ocorre como uma sequela da ovulação ou estimulação indirecta através de processos inflamatórios devido a irritantes químicos ou carcinogénios. O segundo passo 395 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 preservativos ou diafragmas contraceptivos, foi incriminado como possível factor de risco para o cancro do ovário. É possível que o talco possa ser transportado e alcançar os ovários. O talco pode estar contaminado com quantidade significativa de asbestos. Tal facto conduziu ao estudo de grupos de trabalhadores que lidam com asbestos e foi assinalado um risco acrescido de cancro do ovário nesses grupos3. 4. RASTREIO Enquanto a mortalidade por cancro do ovário se mantiver elevada, a detecção precoce de cancros iniciais constitui um enorme de- 396 safio. A probabilidade de doença, mesmo em mulheres com risco elevado (história familiar de cancro do ovário), é estimada corresponder a somente 0,4%. Os testes actualmente disponíveis para identificar pequenos cancros do ovário carecem de sensibilidade e especificidade adequadas. O exame ginecológico é incapaz de detectar pequenos tumores. A ecografia é suficientemente sensível para detectar aumento do volume ovárico na mulher pós-menopáusica, mas geralmente esta patologia é benigna. O marcador tumoral sérico para o cancro do ovário, CA 125, encontra-se elevado em muitas pacientes com este cancro, mas em só 50% das doentes com tumores no estádio I. Os estudos prospectivos demonstraram que o CA 125 associado à ecografia transvaginal pode detectar um número significativo de cancros do ovário numa fase pré-clínica. Há já evidência de que o rastreio pode melhorar a sobrevivência, mas o impacto do rastreio na mortalidade por cancro do ovário está ainda por provar. De momento, o uso combinado da ecografia com sonda vaginal e do CA 125, como métodos de rastreio do cancro do ovário, está em avaliação através de estudos clínicos randomizados. No Reino Unido decorre um estudo prospectivo randomizado envolvendo 200.000 mulheres pós-menopáusicas, desenhado para documentar o impacto do rastreio na mortalidade20. Avanços tecnológicos recentes no âmbito da proteómica parecem oferecer a oportunidade para a identificação de novos biomarcadores com maior sensibilidade e capacidade de detecção mais precoce do que o CA 12521. 5. HISTOPATOLOGIA Cerca de 85% dos tumores primitivos do ovário tem origem no epitélio celómico que cobre os ovários. Os tumores epiteliais do ovário podem ser benignos, de baixo potencial de malignidade (borderline) ou malignos e classificam-se conforme se apresenta no quadro 2. Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 consiste na estimulação directa ou indirecta do epitélio sequestrado por estrogénios intra ou extraglandulares, factores de crescimento, fluido folicular ou, ainda, gonadotrofinas condicionando diferenciação, proliferação e eventual transformação maligna desse epitélio ovárico. Contudo, o estímulo final e decisivo para a transformação maligna permanece desconhecido18. Recentemente Kurman, et al.19 propuseram um novo modelo para a carcinogénese ovárica baseados em estudos de biologia molecular e nos dados clínicos e histopatológicos. Consideram os tumores epiteliais do ovário divididos em dois grupos. No tipo I os tumores apresentam-se frequentemente no estádio I, são de baixo grau com uma progressão lenta e desenvolvem-se a partir de lesões precursoras bem reconhecidas; são os carcinomas serosos micropapilares de baixo grau, o carcinoma mucinoso, o carcinoma endometrióide e o carcinoma de células claras. No tipo II, pelo contrário, os tumores apresentam-se normalmente em estádios avançados, são tumores de alto grau extremamente agressivos; incluem-se neste tipo o carcinoma seroso de alto grau, os tumores malignos mesodérmicos mistos e os carcinomas indiferenciados. Para além das diferenças clínicas e patológicas há também, entre os dois tipos, diferenças genéticas moleculares. Nos tumores de tipo I registam-se mutações nos oncogenes K-ras, BRAF, ERB2 e B-catenina, com activação de uma proteinoquinase com actividade mitogénica (MAPK). Também se registaram mutações no supressor tumoral PTEN e instabilidade de microssatélites. Nos tumores de tipo II identificamse a sobreexpressão da p53, as mutações de TP53 e grande instabilidade genética. I – Tumores serosos II – Tumores mucinosos III – Tumores endometrióides IV – Tumores de células claras (mesonéfricos) V – Tumores de Brenner (de células transitórias) VI – Tumores mistos VII – Tumores indiferenciados VIII – Tumores não classificados e miscelânea 5.1. TUMORES SEROSOS Os tumores serosos são as neoplasias primitivas do ovário mais frequentes, geralmente bilaterais e representando 50 a 60% de todos os casos. Os carcinomas serosos são habitualmente constituídos por estruturas sólidas, mas também quísticas, com extensas vegetações. As células epiteliais assemelham-se, em graus variáveis, às células das trompas de Falópio. Papilas, psamomas e células ciliadas são frequentemente encontrados. Os psamomas podem estar presentes em grande profusão, enquanto as células ciliadas são raramente encontradas nos carcinomas serosos. Uma variante papilar do carcinoma seroso do ovário é caracterizada por um padrão de crescimento exofítico, ovários de tamanho normal ou pouco aumentado, bilateralidade do tumor e habitualmente disseminação intra-abdominal da doença com ascite. A sua histogénese exacta é obscura, assim como a sua incidência. 5.2. TUMORES MUCINOSOS Os carcinomas mucinosos compreendem unicamente 10 a 15% dos carcinomas do ovário. Aproximadamente metade é diagnosticada em estádios iniciais. Os carcinomas mucinosos são usualmente multiloculares e frequentemente contêm nódulos ou outras Cancro do ovário (tumores epiteliais) áreas sólidas. As neoplasias mucinosas tendem a atingir dimensões superiores às das neoplasias serosas. O epitélio dos tumores mucinosos do ovário pode assemelhar-se ao epitélio do endocolo ou do intestino. Em estudos ultra-estruturais, é sugestiva a presença de um epitélio do tipo intestinal em alguns destes tumores, o que reflecte um processo de metaplasia do epitélio de superfície à medida que sofre transformação maligna. 5.3. TUMORES ENDOMETRIÓIDES O carcinoma endometrióide do ovário representa aproximadamente 10 a 15% dos cancros do ovário. Um carcinoma endometrial concomitante tem sido encontrado em 15 a 30% dos casos, enquanto menos de 5% de todos os cancros do ovário se associam a cancro do endométrio. Aproximadamente 10% dos carcinomas endometrióides estão associados a endometriose ovárica. Contudo, é raro encontrar áreas de transição entre endometriose e carcinoma. Os carcinomas endometrióides são tipicamente quísticos com áreas sólidas que podem adquirir o aspecto de papilas. Os quistos estão preenchidos por um fluido mucóide ou semelhante a chocolate. Do ponto de vista microscópico, o componente epitelial é indistinguível do carcinoma endometrial e a metaplasia é comum. 397 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 Quadro 2. Classificação dos tumores epiteliais do ovário O carcinoma de células claras deveria ser classificado, segundo alguns autores, como um subtipo de neoplasia endometrióide do ovário. Aproximadamente 2 a 5% dos cancros epiteliais do ovário são tumores de células claras. Estes tumores são geralmente quísticos, frequentemente uniloculares e com um ou mais nódulos sólidos fazendo protusão para a cavidade. Áreas de hemorragia e necrose são comuns. Os tumores mesonéfricos são constituídos por células claras contendo glicogénio e assemelhando-se ao carcinoma de células renais. Estas células epiteliais são volumosas com abundante citoplasma claro. Um aspecto particularmente interessante do carcinoma de células claras do ovário é que, apesar da sua raridade, é o tumor ovárico que mais frequentemente se associa a síndromes para-endócrinas com hipercalcemia. 5.5. GRAU TUMORAL O cancro epitelial do ovário é classificado em função do seu grau de diferenciação. Os tumores bem diferenciados (G1) mantêm o seu aspecto glandular. Os tumores pouco diferenciados (G3) perdem as suas características glandulares e os tumores moderadamente diferenciados (G2) apresentam ambas as características. Todos os carcinomas de células claras são considerados G3. O grau histológico é particularmente importante nos tumores nos estádios iniciais dado que tem impacto no prognóstico e na conduta terapêutica. 5.6. TUMORES BORDERLINE DE BAIXO POTENCIAL DE MALIGNIDADE Em 1929 foi descrito um grupo especial de tumores epiteliais do ovário com quadros histopatológicos e comportamento biológico intermédios entre tumores claramente benignos e tumores francamente malignos. 398 Estes tumores foram designados como «semimalignos» ou «tumores de baixo potencial de malignidade». Em 1971 este grupo foi aceite pela FIGO e em 1973 pela Organização Mundial da Saúde como tumores borderline. Presentemente a discussão centra-se no conceito de que a maioria destes tumores é verdadeiramente benigna e que um pequeno grupo é de facto maligno com capacidade para invadir e metastizar22. O diagnóstico histológico dos tumores borderline é baseado: na proliferação celular epitelial, estratificação do epitélio das papilas, hiperplasia, actividade mitótica e atipia nuclear sem invasão do estroma. Os tumores borderline são comuns, representando 10 a 20% de todas as neoplasias epiteliais do ovário. A sobrevivência global é excelente, com uma taxa aos cinco anos de 80 a 90% e os mesmos valores para a sobrevivência sem doença. A maioria das doentes é diagnosticada no estádio I. As mulheres com tumores borderline são mais jovens em comparação com as pacientes com carcinoma invasivo. A idade média é de aproximadamente 45 anos para as primeiras e 60 para as segundas. Existe pouca informação no que respeita aos factores de risco para o desenvolvimento de um tumor bordeline. Mulheres com história de infertilidade ou nulíparas têm um risco aumentado, enquanto a gravidez, amamentação e o uso de CO mostrou ter efeito protector. Os tumores borderline serosos constituem 10 a 25% de todos os tumores serosos do ovário e 55% de todos os tumores borderline. Os tumores borderline mucinosos representam aproximadamente 10 a 15% de todos os tumores mucinosos do ovário, e os tumores borderline mucinosos (40%) são menos comuns do que os serosos. O prognóstico destes tumores é muito bom, embora 10 a 15% das mulheres com estas neoplasias possam ter recorrências e venham a morrer da doença. Parâmetros geralmente aceites capazes de influenciar o aparecimento de recorrências e Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 5.4. TUMORES DE CÉLULAS CLARAS 6. DIAGNÓSTICO E ESTADIAMENTO Os sinais e sintomas de cancro do ovário não são específicos. Sintomas gastrointestinais, genito-urinários e pélvicos só ocorrem quando se desenvolvem tumores volumosos e/ou surge disseminação intra-abdominal da doença. Por esta ocasião, sintomas relacionados com a compressão provocada por tumores pélvicos ou sintomas abdominais relacionados com a ascite são comuns. Um exame ginecológico cuidadoso pode detectar um ovário aumentado de volume ou uma nodularidade no fundo-de-saco de Douglas no toque rectal e/ou vaginal. Nas mulheres pós-menopáusicas, o ovário normal involui e mede 1 a 2 cm na sua maior dimensão, tornando-se não palpável. Portanto, um ovário palpável numa mulher pós-menopáusica deverá ser investigado, embora, possivelmente, somente 10% corresponderão a um cancro do ovário. Nas mulheres mais jovens, um ovário quístico com diâmetro superior a 5 cm deverá também ser investigado. Tanto a ecografia como a tomografia axial computorizada (TC) não são úteis no diagnóstico precoce do cancro do ovário. A ressonância magnética nuclear (RM) parece prometedora para a detecção de lesões pequenas quando a ecografia e a TC se mostram incapazes da sua detecção. Contudo, a RM, como a ecografia e a TC, têm como função principal a avaliação pré-cirúrgica e monitorização da terapêutica. A laparoscopia ajuda a estadiar doentes com cancro do ovário e permite verificar se nos estádios mais avançados é possível uma cirurgia de redução óptima, com lesões residuais microscópicas. Níveis séricos elevados de CEA são úteis na vigilância da resposta à terapêutica. O CA 125 sérico tem um valor muito limitado na Cancro do ovário (tumores epiteliais) identificação de neoplasia ovárica na mulher pré-menopáusica porque a sua elevação pode ser provocada pela presença de endometriose, adenomiose, leiomiomatose, gravidez e doença inflamatória pélvica. Um valor sérico de CA 125 superior a 35 U/ml na mulher pós-menopáusica com uma massa pélvica tem um valor positivo preditivo de 85%. Fácil é concluir que o uso combinado do CA 125 e ecografia melhora consideravelmente a eficácia diagnóstica. Quando se suspeita da existência de um cancro do ovário, vários estudos devem ser realizados para avaliar, nomeadamente, a extensão da doença intra-abdominal. A rectossigmoidoscopia e a colonoscopia podem identificar os tumores primitivos do cólon. Estudos imagiológicos do tracto genito-urinário permitem a identificação de adenopatias retroperitoneais, obstrução uretral ou compressão da bexiga pela massa pélvica. As classificações TMN e da FIGO (Quadro 3) descrevem os estádios do cancro do ovário, que se correlacionam intimamente com o prognóstico. O cancro do ovário é um tumor cujo estadiamento pode ser alterado durante o tratamento ou após o estudo histológico. O estádio baseia-se nos achados cirúrgicos (aspectos macroscópicos) e anatomopatológicos (microscópicos). 6.1. ESTADIAMENTO CIRÚRGICO A melhor abordagem cirúrgica consiste numa incisão mediana estendendo-se do púbis ao apêndice xifóide, o que permite uma inspecção adequada da cavidade peritoneal e diafragma. O estadiamento cirúrgico inclui a inspecção dos ovários, trompas, útero e cavidade abdominal (peritoneu parietal, diafragma, superfície hepática, cólon e mesocólon, mesossigmóide, goteiras parieto-cólicas, intestino, mesentério, fundo-de-saco de Douglas, bexiga). Inclui também biopsias de lesões suspeitas, excisão selectiva ou sistemática de gânglios para-aórticos, ilíacos externos 399 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 a sobrevivência incluem o volume de tumor residual após a cirurgia, estádio da doença, tipo histológico, idade e a presença de focos tumorais com características invasivas. 7. FACTORES DE PROGNÓSTICO E PREDITIVOS O cancro do ovário é caracterizado por uma grande diversidade de comportamento biológico, desde tumores com um excelente prognóstico e grande probabilidade de cura, até tumores que rapidamente progridem com um prognóstico muito mau. Este 400 largo espectro clínico é parcialmente reflectido por vários factores clinicopatológicos de prognóstico que incluem o estádio, tipo e grau histológico, volume do tumor residual após cirurgia, estado geral e idade da doente. Devem ser feitos esforços para identificar novos factores de prognóstico que tenham significado biológico. Trata-se de um área em rápida expansão onde se assiste a um conhecimento mais aprofundado das alterações moleculares que presidem à carcinogénese ovárica e à progressão tumoral. A importância de um estadiamento meticuloso deve ser sublinhada visto que a terapêutica pós-operatória é, actualmente, baseada nesta classificação por estádios. O sistema de estadiamento da FIGO permite uma comparação entre diferentes séries publicadas e representa actualmente um auxiliar indispensável na planificação terapêutica. O tipo histológico do carcinoma do ovário representa para muitos um factor com importância prognóstica. Tem sido referido que os adenocarcinomas endometrióides e mucinosos têm um prognóstico relativamente bom, e que os carcinomas serosos têm habitualmente um mau prognóstico, enquanto o prognóstico dos adenocarcinomas de células claras estará ente estes dois extremos. O valor prognóstico do grau histológico do carcinoma do ovário, particularmente na doença precoce, tem sido geralmente aceite, mas não existe consenso quanto aos critérios que permitem definir o grau histológico destas neoplasias. O factor de prognóstico mais importante, e provavelmente o único, dos tumores epiteliais do ovário com baixo potencial de malignidade (borderline), consiste na presença de lesões extra-ováricas. Hoje, muitos ginecologistas oncologistas concordam que a cirurgia com máximo esforço citorredutor constitui um objectivo a alcançar. Os dados sugerem que as pacientes com doença residual mínima têm uma melhor sobrevivência em comparação com aquelas cuja doença residual é igual ou superior a dois centímetros. Tal facto é Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 e comuns (com base na palpação), e ainda, histerectomia total e anexectomia bilateral. A omentectomia infracólica é também recomendada, visto que podem existir metástases num omento macroscopicamente normal. A apendicectomia deverá também ser realizada embora o envolvimento do apêndice seja excepcional. É recomendada sobretudo nos tumores de tipo mucinoso. Na ausência de lesões visíveis, biopsias ao acaso, interessando o hemidiafragma direito, goteiras parieto-cólicas direita e esquerda, fundo-de-saco de Douglas, superfície hepática e mesentério, devem ser realizadas. Mesmo antes da inspecção da cavidade abdominal, deve-se aspirar fluido do fundo-desaco de Douglas ou, na sua ausência, realizar um lavado peritoneal com 500 ml de soro fisiológico, para estudo citológico. Os tumores ováricos devem ser excisados evitando-se a sua rotura. Finalmente, deve ser feita a avaliação no final da intervenção cirúrgica de eventual doença residual, considerando o número das lesões, suas maiores dimensões e localização. O estádio final só é definido após realização do estudo histopatológico. Se se realizarem biopsias múltiplas e linfadenectomia os tumores clinicamente no estádio I correspondem, de facto, a estádio I cirúrgico/patológico em somente 60% dos casos. No estádio II, a disseminação oculta e desconhecida da neoplasia é estimada ser muito mais elevada. Os gânglios retroperitoneais estão invadidos em 40% dos casos, e em somente 20% das situações a doença permanece confinada à pélvis. de pequeno volume, tratadas com ou sem cisplatina, parece que o seu estado geral não desempenha um papel significativo como factor de prognóstico. Em contrapartida, em pacientes com cancro avançado do ovário com doença residual de grande volume, o estado geral representa um dos factores major e independentes de prognóstico. Neste grupo de doentes, a idade (superior a 65 anos) é também um factor independente de prognóstico que influencia a sobrevivência. Quadro 3. Classificação TNM e da FIGO para os cancros do ovário TNM FIGO Categorias Estádios Características Tx O tumor primitivo não pode ser avaliado T0 Não há evidência de tumor primitivo T1 I Tumor limitado aos ovários T1a Ia Tumor limitado a um ovário; cápsula intacta; ausência de tumor na superfície ovárica; ausência de ascite com células malignas T1b Ib Tumor limitado a ambos os ovários; cápsula intacta; ausência de tumor na superfície ovárica; ausência de ascite com células malignas T1c Ic Tumor limitado a um ou a ambos os ovários com: cápsula rota e/ou tumor na superfície ovárica e/ou células neoplásicas na ascite ou no lavado peritoneal T2 II O tumor envolve um ou ambos os ovários com extensão pélvica T2a IIa Extensão e/ou implantes no útero e/ou trompa T2b IIb Extensão a outras estruturas pélvicas T2c IIc Tumor nos estádios IIa ou IIb com tumor na superfície de um ou dos dois ovários; ou com cápsula rota; ou com ascite com células tumorais ou lavagem peritoneal positiva O tumor interessa um ou ambos os ovários com metástases peritoneais confirmadas fora da pélvis e/ou metástases nos gânglios regionais. Metástases superficiais no fígado. Tumor limitado à pélvis mas com metástases no intestino delgado ou omento T3a IIIa Metástases peritoneais microscópicas para além da pélvis e gânglios negativos T3b IIIb Metástases peritoneais macroscópicas fora da pélvis a 2 cm na sua maior dimensão e gânglios negativos IIIc Metástases peritoneais fora da pélvis q 2 cm na maior dimensão e/ou metástases nos gânglios regionais T3e/ou N1 III T3c e/ou N1 M1 IV Metástases à distância (metástases peritoneais excluídas) Metástases na cápsula hepática correspondem a T3/estádio III, metástases no parênquima hepático representa M1/estádio IV. Para poder ser considerado como M1/estádio IV o derrame pleural deverá ter uma citologia positiva. Cancro do ovário (tumores epiteliais) 401 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 aparentemente verdadeiro, mesmo não entrando em consideração com os regimes de quimioterapia após a cirurgia. As doentes que sofrem uma citorredução completa aquando da cirurgia inicial têm uma melhor sobrevivência. Também a experiência do cirurgião na realização de uma correcta e completa cirurgia citorredutora parece ter influência prognóstica. Tanto nas pacientes com cancro inicial como avançado do ovário e com doença residual O objectivo da cirurgia no tratamento do carcinoma do ovário consiste na remoção da lesão primitiva e de todas as metástases da forma mais completa possível. Quando a fertilidade não está em causa, o útero e ambos os anexos deverão ser excisados. O ovário contralateral ao tumor é removido porque: é prescindível, metástases ocultas ou carcinoma primitivo podem estar presentes e, finalmente, poderá existir um risco acrescido de desenvolvimento de carcinoma no ovário, especialmente nos tumores serosos. A remoção do útero é controversa, embora seja recomendada como parte integrante do tratamento do cancro do ovário excisável. O útero pode estar colonizado com células neoplásicas provenientes da disseminação por via linfática. Poderá coexistir um tumor primitivo do endométrio. Poderão existir implantes tumorais na serosa uterina. Este órgão é dispensável quando a fertilidade não está em causa. É geralmente excisado com um risco adicional mínimo. As pacientes com cancro do ovário correm o risco de desenvolverem subsequentemente tumores primitivos müllerianos e, além disso, é mais fácil avaliar a pélvis em exames posteriores de controlo clínico na ausência do útero. A cirurgia representa a primeira atitude de quase todos os protocolos terapêuticos, seja realizada com intuito diagnóstico, terapêutico, ou para remoção tumoral máxima. Deverão ser considerados diversos aspectos na cirurgia do cancro do ovário: estadiamento cirúrgico, tratamento cirúrgico padrão, cirurgia radical, cirurgia citorredutora, cirurgia conservadora da fertilidade, cirurgia paliativa, laparotomia de second-look. 8.1. CIRURGIA PADRÃO O tratamento cirúrgico padrão é praticado durante a laparotomia exploradora e nos estádios iniciais e consiste na histerectomia total com anexectomia bilateral e omentecto- 402 mia infracólica. Associam-se todos os procedimentos, já descritos, que permitem avaliar a extensão do tumor para além dos ovários. 8.2. CIRURGIA RADICAL A cirurgia radical inclui todos os procedimentos da cirurgia padrão bem como a linfadenectomia pélvica e lombo-aórtica. Está, normalmente, limitada aos estádios Ia, Ib, IIa, IIb e III por envolvimento do omento23. 8.3. CIRURGIA CITORREDUTORA O valor da cirurgia citorredutora no tratamento do cancro do ovário tem sido debatido ao longo dos anos. Uma verdadeira cirurgia citorredutora implica a remoção de mais de 90% da massa tumoral. Contudo, deve ser referido que tal cirurgia só é possível em aproximadamente 40% das doentes com doença peritoneal no estádio III. A cirurgia citorredutora deverá ser realizada sempre que possível. Tanto os tumores volumosos, com irrigação sanguínea relativamente insuficiente nas suas porções centrais, como as áreas tumorais com crescimento celular reduzido, são insensíveis aos fármacos citotóxicos. Em tumores residuais pequenos e bem perfundidos com acelerado crescimento celular, a difusão dos agentes quimioterapêuticos é maior, o que contribui para o incremento da sua eficácia. A remoção de grandes tumores também reduz a probabilidade de desenvolvimento de clones celulares resistentes aos fármacos como resultado de mutações espontâneas. Aliás, tumores com reduzidas dimensões requerem um menor número de ciclos de quimioterapia, diminuindo, deste modo, a possibilidade de resistência aos fármacos24. Vários estudos não randomizados mostraram uma melhor sobrevivência em pacientes com tumores residuais de maior diâmetro inferior a 1 centímetro, após cirurgia inicial, em comparação com pacientes com lesões residuais com maiores dimensões. Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 8. TRATAMENTO CIRÚRGICO 8.4. CIRURGIA CONSERVADORA DA FERTILIDADE A cirurgia conservadora está raramente indicada. É habitualmente praticada somente em doentes férteis abaixo dos 30 anos de idade com desejo de procriarem. As neoplasias deverão encontrar-se no estádio Ia, serem tumores mucinosos, endometrióides e serosos, bem diferenciados, e sem patologia associada, como miomas uterinos. Uma vigilância clínica adequada e apertada é obrigatória. A cirurgia a praticar consiste habitualmente na anexectomia unilateral, com linfadenectomia pélvica e eventualmente lombo-aórtica, omentectomia, eventual apendicectomia e Cancro do ovário (tumores epiteliais) biopsias múltiplas peritoneais da cavidade abdominal, bem como uma lavagem prévia da cavidade abdominal para estudo citológico. 8.5. CIRURGIA DE REAVALIAÇÃO Doentes submetidas a cirurgia incompleta como consequência de diagnóstico incorrecto, ou insuficientemente operadas após um diagnóstico correcto, deverão ser sujeitas a um estadiamento laparosópico, citológico e radiológico. A cirurgia não é necessária se os exames complementares para estadiamento mostrarem a impossibilidade de ressecção do tumor. A cirurgia é obrigatória em todas as outras situações mesmo quando não haja suspeição de doença residual. 8.6. CIRURGIA PALIATIVA É realizada aquando de oclusão intestinal, uropatia obstrutiva e em metástases isoladas. 8.7. CIRURGIA DE SECONDLOOK O conceito de laparotomia de second-look foi introduzido principalmente para avaliar a presença de doença em pacientes com carcinoma colorrectal tratados cirurgicamente. A cirurgia de reavaliação periódica foi incorporada no esquema terapêutico geral de várias neoplasias abdominais incluindo o cancro do ovário. O reconhecimento de que a doença clinicamente oculta poderá ser frequentemente detectada com o recurso à laparotomia em mulheres que tenham completado a quimioterapia, levantou a possibilidade de que a reavaliação cirúrgica poderia evitar o abandono prematuro da terapêutica adjuvante naquelas pacientes com doença persistente. Pelo contrário, a reavaliação cirúrgica poderá permitir a suspensão da quimioterapia com base em evidência histológica, deste modo minimizando a toxicidade aguda e sequelas potenciais a longo prazo destes agentes citotóxicos25. 403 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 O valor da cirurgia de redução tumoral após quimioterapia de indução é ainda mais difícil de avaliar. Vários estudos indicam que a sobrevivência é aproximadamente idêntica para pacientes com cirurgia citorredutora óptima após quimioterapia de indução e para aquelas em quem a cirurgia citorredutora primária havia sido óptima. Outros estudos, contudo, apresentam resultados diferentes. Deve ser referido que todas estas análises se baseiam num reduzido número de pacientes e com diferentes factores de prognóstico. Em 1987, o Gynaecological Cancer Cooperative Group da EORTC iniciou um estudo randomizado de fase 3 para aquilatar dos efeitos na sobrevivência da cirurgia citorredutora após quimioterapia de indução24. O estudo demonstrou que a cirurgia da redução tumoral aumentou significativamente a sobrevivência global e a sobrevivência sem progressão tumoral. O risco de morte diminuiu 30% após correcção para um conjunto de factores prognósticos. A cirurgia de citorredução óptima implica, para além dos procedimentos da cirurgia radical, a realização de ressecções intestinais e de peritonectomia parcial ou total, com esplenectomia. Este tipo de cirurgia também pode ser designado de supra-radical. 404 cluído que a intervenção de second-look não influencia a sobrevivência livre de recorrência no cancro do ovário no estádio III. 9. TRATAMENTO MÉDICO 9.1. CANCRO INICIAL DO OVÁRIO Aproximadamente um terço dos cancros do ovário são diagnosticados como doença localizada mas, apesar da ressecção cirúrgica, metade destes tumores sofrem recorrência. Ainda não está esclarecido se a terapêutica adjuvante pode beneficiar estas pacientes. Considerando que a quimioterapia para o cancro avançado do ovário com combinações de fármacos, onde se incluem a cisplatina, aumenta significativamente a sobrevivência, poder-se-ia especular que regimes similares poderiam ter um efeito significativo nas taxas de recorrência em tumores nos estádios I e II. Entre Novembro de 1990 e Janeiro de 2000, o Gynecological Cancer Group da EORTC incluiu num ensaio fase III 448 doentes, de 40 centros europeus, com cancro inicial do ovário, comparando um grupo sem quimioterapia após cirurgia versus um segundo grupo tratado com uma combinação contendo cisplatina, após cirurgia. Depois de um seguimento médio de 5,5 anos não se verificou, em relação à sobrevivência global, diferença significativa. Por outro lado a sobrevivência livre de recorrência foi favorável ao grupo submetido a quimioterapia adjuvante. Verificou-se ainda que no grupo que apenas se submeteu a cirurgia a sobrevivência global e a sobrevivência livre de recorrência foi superior nas doentes submetidas a um staging considerado óptimo e as doentes não beneficiaram da quimioterapia, o que já não se verificou no grupo que fez quimioterapia, onde houve benefício em termos de sobrevivência livre de recorrência27. Também entre 1991 e 2000 decorreu um outro ensaio clínico fase III internacional, designado ICON1, que incorporou 477 doentes, de 84 centros europeus, comparando Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 A laparotomia de second-look compreende uma avaliação completa de toda a cavidade peritoneal incluindo a realização de múltiplas biopsias a nível do diafragma, goteiras parieto-cólicas, peritoneu pélvico, serosa vesical, fundo-de-saco de Douglas, mesentério do intestino delgado e sigmóide e serosa do íleo distal. A colheita de gânglios linfáticos deverá ser realizada, assim como a colheita de fluido ou lavado peritoneal para estudo citológico. A histerectomia, anexectomia e omentectomia deverão ser executadas se omitidas na cirurgia inicial citorredutora. Se for encontrada doença residual, esta deverá ser removida tão completamente quanto possível. Apesar da ausência de tumor identificável em exames imagiológicos após a quimioterapia adjuvante, é reconhecido que a doença persistente pode ser detectada na laparotomia de second-look, em aproximadamente 60% das doentes com cancro do ovário em estádios avançados. Os críticos desta cirurgia argumentam que não há um acréscimo na sobrevivência após a sua realização. O tratamento da doença persistente após a laparotomia de second-look inclui citorredução secundária e/ou quimioterapia adjuvante. Pacientes com cancro do ovário nos estádios III e IV não tratadas, sujeitas a citorredução ou poliquimioterapia tendo por base a cisplatina, apresentaram uma sobrevivência média livre de progressão e sobrevivência global de 14 a 16 meses e 23 a 25 meses, respectivamente. Estes números são similares aos encontrados em pacientes submetidas a operações de second-look e recebendo os mesmos regimes adjuvantes25. Num estudo randomizado fase III (GOG 158)26 com cisplatina e paclitaxel (regime 1) versus carboplatina e paclitaxel (regime 2) em cancros epiteliais do ovário no estádio III, as pacientes foram sujeitas a cirurgia de secondlook ou simples observação, por ocasião da randomização para o regime 1 ou 2. Não se encontrou diferença na sobrevivência livre de recorrência, comparando as pacientes sujeitas a cirurgia de second-look com as que tinham sido somente sujeitas a observação. Foi con- 9.2. CANCRO AVANÇADO DO OVÁRIO Poucas doentes com cancro do ovário nos estádios III e IV permanecem livres de tumor, a longo prazo, apesar das impressionantes respostas à quimioterapia. Esta terapêutica tem vindo a ser usada cada vez mais como tratamento primário dos tumores epiteliais do ovário. Foi demonstrado que os agentes alquilantes foram úteis no tratamento do cancro do ovário. Contudo, as respostas variaram entre 11 e 67%, a sobrevivência média foi de aproximadamente 14 meses e a sobrevivência global aos cinco anos foi inferior a 10%. Vários fármacos não-alquilantes mostraram actividade citotóxica em mulheres com cancro do ovário. Entre estes, a cisplatina parece mais eficaz que os agentes alquilantes, dando respostas na ordem dos 50% ou superiores. Uma quimioterapia combinada sem cisplatina, como tratamento inicial, proporciona respostas variando entre 5 e 50% com uma sobrevivência média de aproximadamente 14 meses. Estes dados sugerem que regimes combinados sem cisplatina não são superiores aos agentes alquilantes. Os regimes de quimioterapia combinada com base na cisplatina produzem respostas de 60 a 80% com uma sobrevivência global média de aproximadamente 20 meses. Antes da introdução do taxol no tratamento de pacientes com cancro avançado do ovário, a cisplatina era considerado o melhor fármaco. Os ensaios do GOG29 e da EORTC30 confirmaram que os melhores resultados foram obtidos quando a cisplatina se associava a outros fármacos, tais como a adriamicina e a ciclofosfamida. Cancro do ovário (tumores epiteliais) O Advanced ovarian cancer trialists group em 199131 reviu todos os ensaios randomizados disponíveis, analisando o papel da cisplatina em quimioterapia combinada no tratamento do cancro avançado do ovário. Não foram estabelecidas conclusões definitivas. Contudo, os resultados sugeriram que, em termos de sobrevivência, as terapêuticas baseadas nos derivados da platina foram superiores aos regimes sem derivados da platina. A cisplatina em combinação mostrou-se superior à cisplatina como agente único quando usado em doses iguais. Finalmente, a cisplatina e a carboplatina apresentaram eficácia sobreponível. Quatro ensaios clínicos randomizados – GONO, 198632; GICOG, 198733; DACOVA, 198734; GOG, 198935 – comparando a ciclofosfamida com a cisplatina (CP) versus ciclofosfamida, doxorrubicina e cisplatina (CAP), foram todos incapazes de demonstrar uma diferença significativa na sobrevivência em pacientes com cancro do ovário. Contudo, estudando 1.194 doentes incluídos nestes ensaios, através de um metanálise, o Ovarian Cancer Meta-analysis Project, em 199136, encontrou um benefício estatisticamente significativo na sobrevivência das pacientes que receberam o CAP e também em termos de achados negativos na laparotomia de second-look neste grupo de mulheres (CAP –30% e CP –23%). Três estudos prospectivos (GOG e SGCSG, 1992; e GONO, 1993) compararam uma dose padrão de cisplatina com a intensificação de dose obtida através do aumento da dose de cisplatina. Para além do estudo de Glasgow, no qual uma diferença significativa da sobrevivência média foi obtida com o aumentando a dose da cisplatina, os dois outros estudos não encontraram qualquer diferença quanto à resposta clínica. Outros ensaios prospectivos, onde a intensificação da dose de cisplatina foi obtida, modificando o intervalo entre doses, não demonstraram também diferença na sobrevivência. Ensaios clínicos comparando a carboplatina com a cisplatina, como agentes isolados ou em combinação, mostraram resultados sobreponíveis. Consideram-se 400 mg/m2 de 405 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 um grupo de doentes com cancro inicial do ovário submetido a quimioterapia adjuvante com cisplatina após a cirurgia versus apenas cirurgia. Os resultados deste estudo sugerem que a quimioterapia adjuvante com a inclusão de um derivado da cisplatina proporciona melhor sobrevivência global e melhor sobrevivência sem doença do que apenas o tratamento cirúrgico28. 406 os dois agentes são equivalentes em termos de sobrevivência e que a carboplatina é significativamente menos tóxico e, portanto, deveria ser preferida. O ensaio 158 do GOG41 comparou a cisplatina (75 mg/m2) associada ao paclitaxel (135 mg/m2, 24 h) à carboplatina (AUC 7,5) mais paclitaxel (175 mg/m2, 3 h) em cancros do ovário no estádio III sem quimioterapia prévia e com tumor residual < 1 cm. Os resultados deste ensaio randomizado (840 pacientes) mostraram: a carboplatina associada ao paclitaxel não é menos eficaz do que a cisplatina associada ao paclitaxel, e a carboplatina mais o paclitaxel é o regime preferido dada a facilidade de administração e a menor toxicidade. Desde os finais do século XX que o regímen standard para o tratamento do cancro avançado do ovário é a associação paclitaxel e carboplatina. Foram desenvolvidos diversos estudos prospectivos comparando este regímen a outros, não se tendo verificado qualquer vantagem. Cita-se como exemplo o GOG-182 e o ICON5 que compararam carboplatina (AUC 6, d 1) + paclitaxel (175 mg/m2, d 1) versus carboplatina (AUC 5, d 1) + paclitaxel (175 mg/m2, d 1) + gemcitabina (800 mg/m2, d 1,8) versus carboplatina (AUC 5, d 1) + paclitaxel (175 mg/m2, d 1) + Caelyx/Doxil (30 mg/m2, d 1) versus carboplatina (AUC 5, d 3) + topotecan (1,25 mg/m2, d 1-3) x 4 ciclos, seguido de quatro ciclos de carboplatina (AUC 6) + paclitaxel (175 mg/m2), versus carboplatina (AUC 6, d 8) + gemcitabina (1 g/m2, d 1,8) x 4 ciclos, seguido de quatro ciclos de carboplatina (AUC 6, d 1) + paclitaxel (175 mg/m2, d 1), não se tendo constatado qualquer benefício, em termos de sobrevivência global, de qualquer regímen em comparação com o standard carboplatina (AUC 6, d 1) e paclitaxel (175 mg/m2, d 1). O interesse por novos fármacos dirigidos a alvos moleculares resulta de um melhor conhecimento da biologia tumoral e do mecanismo de acção dessas novas moléculas. Também no domínio da quimioterapia se procuram desenvolver novos agentes. Diversos ensaios clínicos estão a decorrer com estes novos agentes que se sumarizam no quadro 4. Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 carboplatina como equivalentes a 100 mg/ m2 de cisplatina. O paclitaxel, primeiro de uma nova classe de compostos, os taxanos, provoca excessiva polimerização da tubulina e estabilidade prolongada dos polímeros. A actividade do paclitaxel foi assinalada em múltiplos estudos fase II no cancro do ovário, tendo despertado particular interesse a sua actividade numa população de pacientes com tumores refractários à cisplatina. Subsequentemente, o paclitaxel foi combinado com a cisplatina e este regime não mostrou aumentar a neurotoxicidade37. Fazendo uso deste novo agente, aparentemente desprovido de resistência cruzada com a cisplatina, foram iniciados ensaios clínicos de fase III. O GOG38 conduziu um ensaio randomizado comparando o paclitaxel (135 mg/m2 em 24 h) e a cisplatina (75 mg/m2) (TP) com a ciclofosfamida (750 mg/m2) e cisplatina (75 mg/m2) (CP) em pacientes com cancro do ovário nos estádios III e IV incompletamente excisados (tumor residual > 1 cm) e sem prévia quimioterapia36. Demonstrou-se uma significativa melhoria da resposta clínica no grupo TP (73%) em comparação com o grupo CP (60%). As diferenças nas respostas clínicas completas documentadas cirurgicamente não foram estatisticamente significativas (20% para o CP e 26% para o TP). A sobrevivência média também foi significativamente melhorada no braço TP (24 versus 38 meses, p = 0,001). Assim, o regime TP foi considerado a combinação preferível. Um ensaio clínico confirmativo decorreu na Europa e Canadá39. O GOG publicou os resultados de um estudo interessando o cancro avançado do ovário no estádio III e IV40. Neste estudo, as 615 doentes avaliáveis foram randomizadas para a combinação TP (T = 135 mg/m2, 24 h e P = 75 mg/m2) ou cisplatina como agente exclusivo (100 mg/m2). Os resultados deste ensaio demonstraram melhor índice terapêutico para a combinação TP. Um outro tópico, reporta-se à preferência quanto ao fármaco a prescrever, cisplatina ou carboplatina. Muitos estudos sugeriram que Anticorpos Anti-Epcam, ACA125 EGFR Gefitinib, erlotinib (Tarceva) Antiangiogénese e VEGF Bevacizumab, DXMAA Família c-erb Trastuzumab, pertuzumab, lapatinib FTI Lonafarnib Raf-1 Erbitux Alvos múltiplos Enzastaurina Quimioterapia Epotilonas, pemetrexedo (Alimta) 9.3. QUIMIOTERAPIA INTRAPERITONEAL Embora a quimioterapia combinada proporcione elevadas taxas de resposta clínica, somente 30 a 40% destas doentes se encontram no grupo com remissão patológica completa, evidenciada pela laparotomia de second-look. Dependendo dos factores de risco, 30 a 60% das pacientes com remissão patológica completa, apresentam recorrências nos dois primeiros anos após o diagnóstico. Estas recorrências, após uma remissão patológica completa, dependem de alguns factores de prognóstico: estádio inicial, extensão da doença residual após a cirurgia citorredutora primária e o estado geral da paciente. A doença inicial e os locais de recorrência estão geralmente confinadas ao abdómen, à pélvis ou a ambos, constituindo a terapêutica intraperitoneal uma modalidade terapêutica lógica. As vantagens farmacológicas da quimioterapia intraperitoneal têm sido meticulosamente estudadas e reconhecidas em vários ensaios clínicos. Teoricamente, a quimioterapia intraperitoneal permite uma elevada relação dose/efeito que poderá evitar a resistência relacionada com as doses baixas da quimioterapia endovenosa. As doses elevadas de quimioterapia intraperitoneal tornaram-se um método de intensificação Cancro do ovário (tumores epiteliais) de dose e podem ser comparadas à transplantação de medula óssea ou quimioterapia endovenosa de altas doses com protecção conferida por factores de crescimento hematopoiético. A quimioterapia intraperitoneal no cancro do ovário tem vindo a ser investigada há mais de 30 anos. Um número considerável de ensaios clínicos com quimioterapia intraperitoneal tem sido publicado, indicando que existem subgrupos de pacientes que poderão beneficiar com esta modalidade terapêutica. Howell, et al.42 sumarizaram os resultados de vários ensaios utilizando cisplatina por via intraperitoneal e concluíram que algumas pacientes obtiveram uma sobrevivência prolongada, especialmente quando tratadas por doença residual a 2 cm. Os melhores resultados observados com doença residual pequena (a 2 cm) podem ser explicados pela melhor penetração tumoral da cisplatina administrado na cavidade peritoneal. Um interesse renovado pela quimioterapia intraperitoneal no cancro do ovário deveuse aos resultados de um ensaio randomizado de fase II, que decorreu nos EUA e que mostrou que a via intraperitoneal combinada com a via endovenosa, com a cisplatina e o paclitaxel, estava associada a uma melhor sobrevivência nas situações de cancro avançado do ovário submetidas a uma cirurgia de 407 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 Quadro 4. Novos agentes para o tratamento médico do cancro do ovário 9.3.1. QUIMIOTERAPIA INTRAPERITONEAL COMO TRATAMENTO DE CONSOLIDAÇÃO NA REMISSÃO PATOLÓGICA COMPLETA Não existe consenso quanto a um possível tratamento a instituir a pacientes com cancro do ovário e em remissão patológica completa após cirurgia de second-look. As opções principais são: — Vigilância clínica. — Terapêutica de manutenção usando três a seis ciclos da mesma quimioterapia de indução. — Radioterapia abdominal. — Quimioterapia de altas doses seguida de transplante autólogo de medula. — Quimioterapia intraperitoneal. Nenhuma destas modalidades provou uma clara ou conclusiva vantagem em termos de sobrevivência livre de doença ou sobrevivência global. O Gynecological Cancer Group da EORTC45 realizou, entre 1988 e 1997, um estudo randomizado, fase III, em pacientes com cancro do ovário e em remissão patológica completa após uma quimioterapia de indução, baseada nos derivados da platina, e cirurgia citorredutora, comparando a cisplatina intraperitoneal (quatro tratamentos cada três semanas a 90 mg/m2) com vigilância clínica. Foram incluídas 153 doentes, em ambos os braços. Os resultados após um seguimento médio de oito 408 anos não revelaram diferenças entre o tipo de recidivas nos dois grupos e a sobrevivência livre de doença e a sobrevivência global mostrou um ligeiro benefício no grupo submetido à quimioterapia intraperitoneal que, contudo, não justifica uma alteração da prática clínica com a introdução desta modalidade terapêutica como tratamento de consolidação. 10. RADIOTERAPIA O uso da radioterapia no tratamento do cancro do ovário permanece um assunto controverso. A radioterapia para ser curativa no cancro do ovário deve interessar todos os locais onde a doença poderá eventualmente recidivar após a cirurgia. As técnicas que envolvam toda a cavidade peritoneal, mais do que a pélvis ou a cavidade abdominal baixa, são muito provavelmente mais benéficas. A dose de radiação que pode ser libertada com segurança para toda esta volumosa área é baixa em comparação com a considerada necessária para erradicar muitos tumores sólidos. Por conseguinte, admite-se que a radioterapia abdomino-pélvica poderá beneficiar somente as pacientes cuja doença residual na cavidade abdominal alta, após a cirurgia, seja microscópica46. Vários possíveis mecanismos poderão ajudar a explicar o insucesso da radioterapia no controlo da doença tumoral residual volumosa. O primeiro destes mecanismos será a relativamente baixa dose de radiação que pode ser oferecida com segurança, considerada a tolerância limitada do intestino, rim e fígado. Um segundo mecanismo consistirá no possível desenvolvimento de resistência cruzada à radiação de um tumor residual tratado também com quimioterapia47. 10.1. TÉCNICAS DE RADIOTERAPIA Foram desenvolvidas várias técnicas de radioterapia interessando toda a cavidade peritoneal. As mais usadas compreendem a Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 redução óptima43. Numa revisão crítica recente da literatura, feita por Gadducci e Conte44, os autores afirmam que na metanálise realizada pelo Cochrane a oito ensaios randomizados, incluindo 1.819 doentes, a quimioterapia intraperitoneal empregue em primeira linha melhora a sobrevivência livre de doença e a sobrevivência global em doentes com lesão residual mínima após cirurgia inicial. Porém, acrescentam, as complicações relacionadas com o cateter, a dor abdominal provocada pela perfusão e as toxicidades necessitam de ser consideradas numa decisão individual por parte da doente, devidamente informada. Um grupo dinamarquês realizou um estudo randomizado no cancro epitelial e inicial do ovário (estádios Ib, Ic e II) comparando os efeitos da radioterapia abdominal total com a irradiação pélvica associada à ciclofosfamida49. A sobrevivência global e a sobrevivência livre de recorrências não diferiram significativamente entre os dois grupos. Neste estudo, o volume de irradiação foi exactamente idêntico ao do ensaio de Toronto, de modo que a divergência entre os dois estudos não pode ser explicada por diferenças quanto ao volume irradiado. 10.2. RADIOTERAPIA NO CANCRO INICIAL DO OVÁRIO 10.3. RADIOTERAPIA NO CANCRO AVANÇADO DO OVÁRIO As recorrências frequentes na cavidade peritoneal levaram à utilização de várias terapêuticas adjuvantes, pós-operatórias. Entre as terapias mais frequentemente usadas contam-se a quimioterapia, radioterapia externa a toda a cavidade abdominal e instilação intraperitoneal de um colóide radioactivo. No estudo do Princess Margaret Hospital48, as pacientes com cancro do ovário no estádio Ia foram randomizadas para receber radioterapia pélvica pós-operatória ou simples vigilância. Não houve melhoria na sobrevivência ou prevenção de recorrências nas pacientes que receberam radiação pélvica. A radioterapia abdomino-pélvica não tem constituído objecto de ensaios de fase III em doentes com doença no estádio Ia, embora alguns estudos tenham incluído pacientes nestas condições. Vários estudos foram feitos numa tentativa de comparar a eficácia relativa da radioterapia abdomino-pélvica versus quimioterapia combinada e baseada nos derivados da platina em pacientes com risco intermédio de recorrência. Estes ensaios clínicos randomizados estão incompletos, possivelmente devido a erros metodológicos ou a divergência nos regímenes terapêuticos. O recrutamento de doentes foi difícil e os estudos foram encerrados antes da sua conclusão. O benefício da radioterapia como um adjuvante da quimioterapia no cancro avançado do ovário não está claramente definido. Várias séries publicadas incluem pacientes com diversos tratamentos cirúrgicos e citotóxicos e foram utilizados variados critérios para avaliação da resposta. Além do mais, diferentes técnicas de radioterapia e doses foram empregues. Esta falta de uniformidade, incluindo diferentes sequências das várias modalidades terapêuticas, contribuiu para a existência de variações nos resultados do tratamento. Dois ensaios randomizados tentaram clarificar o papel da radioterapia abdominal total após laparotomia de second-look em pacientes com cancro do ovário que haviam respondido à cirurgia e quimioterapia. Um grupo italiano50 publicou os resultados de um estudo randomizado, onde pacientes com cancro avançado do ovário e com resposta patológica completa ou com doença residual mínima, após o second-look (< 2 cm), foram tratadas com radioterapia abdominal ou com três ciclos adicionais da mesma quimioterapia que tinha induzido a resposta. A quimioterapia revelou-se mais eficaz do que a radioterapia no controlo da progressão da doença. Um outro ensaio randomizado no carcinoma avançado do ovário foi realizado pelo North Cancro do ovário (tumores epiteliais) 409 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 técnica da «faixa móvel» e o «campo aberto». Na primeira técnica, uma pequena parte do abdómen é sequencialmente irradiada cada dia. A duração de todo o tratamento é aproximadamente o dobro do da técnica de «campo aberto» e, teoricamente, esta terapêutica prolongada poderá permitir a proliferação acelerada do tumor com o possível reaparecimento de metástases tumorais a partir das áreas do peritoneu não tratadas para as áreas recente e previamente tratadas. Com a técnica do «campo aberto» toda a cavidade peritoneal é diariamente tratada. 10.4. RADIOTERAPIA PALIATIVA Num estudo realizado no Fox Chase Cancer Center na Pensilvânia52, 33 pacientes com cancro recorrente do ovário foram irradiadas em 47 locais (pélvis, abdómen, tórax, cérebro, etc.). Os campos abdomino-pélvicos não cobriam todo o abdómen mas eram desenhados para incluir a massa tumoral com margens adicionais para que fosse irradiado adequadamente o volume tumoral alvo. Para todo o grupo, a resposta sintomática completa foi de 51% e a resposta sintomática global foi de 70%. Este constitui o primeiro trabalho publicado que avaliou a eficácia paliativa da radioterapia num grupo de pacientes cujo tratamento primário incluía uma cirurgia citorredutora agressiva e quimioterapia baseada na cisplatina. Os autores concluíram que um tratamento paliativo durável pode ser conseguido com a radioterapia em muitas pacientes com cancro recorrente do ovário. 10.5. ISÓTOPOS RADIOACTIVOS O ensaio clínico canadiano, NCIC, que comparou o tratamento adjuvante com radioterapia abdominal ou melfalan ou 32P intraperitoneal não mostrou qualquer diferença, em termos de sobrevivência, entre os três grupos. 410 Um estudo randomizado comparando a cisplatina (50 mg/m2 seis ciclos) com o 32P intraperitoneal versus irradiação abdominal como tratamento adjuvante em pacientes com cancro do ovário (estádios I a III sem doença residual após laparotomia) foi executado pelo Radium Hospital na Noruega53. A sobrevivência global e livre de doença mostraram-se similares para ambos os grupos. Complicações intestinais tardias ocorreram mais frequentemente nas pacientes tratadas com o 32P em comparação com o grupo que recebeu cisplatina. Como consequência deste número elevado de complicações tardias com o 32P, os autores recomendam que a cisplatina deve ser considerada como a terapêutica adjuvante padrão em novos estudos controlados. Num outro estudo realizado no Radium Hospital54, na Noruega, 50 pacientes com achados negativos no second-look foram randomizadas para receberem o 32P intraperitoneal ou vigilância clínica. Não se encontraram diferenças estatisticamente significativas na sobrevivência entre os dois grupos. Bibliografia 1. Cancer Incidence in Five Continents. Volume IX. IARC; 2007. 2. Heintz APM, Odicino F, Maisonneuve P, et al. Carcinoma of the Ovary. Int J Gynecol & Obstet. 2006;95 Suppl 1: S161-92. 3. Daly M, Obrams GI. Epidemiology and risk assessment for ovarian cancer. Semin Oncol. 1998;25:255-64. 4. Phillips N, Ziegler M, Saha B, Xynos F. 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Capítulo 24 Sem o consentimento prévio por escrito do editor, não se pode reproduzir nem fotocopiar nenhuma parte desta publicação © Permanyer Portugal 2011 Thames Ovary Group Study51. O objectivo do estudo consistia em determinar se a terapêutica de consolidação com radioterapia abdominal após quimioterapia melhorava a sobrevivência global e a sobrevivência sem doença em comparação com a quimioterapia (cinco ciclos de carboplatina). Todas as pacientes receberam cinco ciclos mensais prévios de carboplatina. Não foram observadas diferenças significativas em termos de sobrevivência livre de doença ou global entre os dois grupos em apreço. Também não foi encontrada diferença quanto à sobrevivência nas pacientes sem doença residual aquando da laparotomia de second-look. Cancro do ovário (tumores epiteliais) 30 de Oliveira CF, Lacave AJ, Villani C, et al. Randomized comparison of cyclophosphamide, doxorubicin and cisplatin (CAP) versus cyclophosphamide and doxorubicin (CA) for the treatment of advanced ovarian cancer (ADOVCA). A EORTC Gynecological Cancer Cooperative Group Study. Eur J Gynaecol Oncol. 1990;11:323-30. 31. Advanced Ovarian Cancer Trialists Group. Chemotherapy in advanced ovarian cancer: an overview of randomised clinical trials. Br Med J. 1991;303:884-93. 32. Conte PF, Bruzzone M, Chiara S, et al. A randomized trial comparing cisplatin plus cyclophosphamide versus cisplatin, doxorubicin, and cyclophosphamide in advanced ovarian cancer. J Clin Oncol. 1986;4:965-71. 33. Gruppo Interegionale Cooperativo Oncologico Ginecologia. Randomised comparison of cisplatin with cyclophosphamide/ cisplatin and with cyclophosphamide/doxorubicin/cisplatin in advanced ovarian cancer. Lancet. 1987;2:353-9. 34. Bertelsen K, Jakobsen A, Andersen JE, et al. 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