Relato de Caso: Grave Intoxicação Aguda Por Piperazina em Renal Crônico RESUMO Relatamos um caso de intoxicação aguda por piperazina em paciente renal crônico, em diálise peritoneal ambulatorial contínua, no qual houve desenvolvimento de mioclonia e progressão para estado de mal convulsivo, com complicações infecciosas e conseqüente evolução para óbito, apesar do tratamento dialítico concomitante com hemodiálise convencional e diálise peritoneal. São discutidas a farmacologia e toxicologia da piperazina e as possibilidades de tratamento em casos de intoxicação. (J Bras Nefrol 2004;26(3): 149-152 ) Descritores: Intoxicação exógena por piperazina. Renal crônico. Uremia. ABSTRACT Dênis Rogério Aranha da Silva Ana Maria Marques Fracaro Reynaldo Miguita Jr Vinicius Daher Alvares Delfino Anuar Michel Matni Abel Esteves Soares Adagmar Andriolo Altair Jacob Mocelin Carlos Alberto de Almeida Boer Severe Piperazine Acute Intoxication In A Renal Failure Patient. We report a case of acute intoxication by piperazine in a chronic renal patient in continuous ambulatorial peritoneal dialysis, whom evolved into mioclonia and progressed to a condition of convulsive illness with infectious complica tions and consequent development to death, in spite of dialytic treatment concomitant to conventional hemodialysis and peritoneal dialysis. We dis cuss the pharmacology and toxicology of piperazine and the possibilities of treatment in cases of intoxication. (J Bras Nefrol 2004;26(3): 149-152) Keywords: Piperazine exogenous intoxication. Chronic renal failure. Uremia. INTRODUÇÃO Intoxicações agudas em pacientes com graus avançados de disfunção renal podem ser potencialmente graves, sendo importante orientá-los quanto aos riscos de consumo de certos alimentos, como carambola e alguns medicamentos, os quais podem desencadear quadros de intoxicações graves, por vezes intratáveis e fatais. A piperazina, um anti-helmíntico eficiente e difundido para uso popular como licor fortificante, possui efeitos alérgicos adversos, digestivos e neurológicos, sendo contra-indicada em casos de doença renal, hepática, neurológica (principalmente epilépticos), no primeiro trimestre de gestação e se houver hipersensibilidade à droga. Hospital Evangélico de Londrina, PR, e Departamento de Clínica Médica da UNIFESP (AA), São Paulo, SP. RELATO DO CASO Uma paciente de 68 anos deu entrada no hospital com quadro de confusão mental progressiva, iniciada há cerca de 24 horas, com evolução para movimentos musculares involuntários e repetitivos, principalmente em face e membros superiores. Recebido em 08/12/2003 Aprovado em 06/05/2004 150 Intoxicação fatal por piperazina em urêmico. A paciente tinha história prévia de doença renal policística, bronquiectasias pulmonares, sorologia positiva para hepatite C, câncer de colo uterino com metástase para vagina, diagnosticado um ano antes dessa admissão e tratado com radioterapia. Estava em terapia renal substitutiva há 6 anos, sendo os primeiros 3 anos em hemodiálise (HD) e nos últimos 3 em diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC). Inquerida a família sobre uso de medicações, a filha referiu ingestão de um frasco de xarope vermífugo contendo Rhamnus purshiana e 10g de piperazina; a ingestão havia sido intencional, mas como “fortificante”. Não havia história de vômitos ou broncoaspiração. Na admissão, a paciente apresentava-se afebril, confusa, sonolenta, com abertura ocular espontânea, movimentos clônicos de língua, mioclonias simétricas e bilaterais em membros superiores e inferiores, com hiperreflexia tendinosa, sem deficiência motora focal, sem sinais meníngeos e ausência do sinal de Trosseau. Os exames laboratoriais são mostrados na tabela 1. O quadro de mioclonia se agravou e foi interpretado como estado de mal convulsivo, sendo iniciada fenitoína, e o volume de líquido de diálise peritoneal infundido foi aumentado de 8 para 12 litros/dia. No segundo dia de internação, os abalos clônicos persistiam e um eletroencefalograma (EEG) mostrou sinais de sofrimento cerebral e atividade irritativa difusa, representados por baixa voltagem, interpostos por surtos de poliespículas bilateriais e difusas; a tomografia de crânio mostrou-se normal. Como a paciente continuava em estado de mal convulsivo, considerado como provável resultado de intoxicação por piperazina, realizamos, em concomitância com a CAPD, duas sessões de hemodiálise, no terceiro e no quarto dia de internação, com 6 e 12 horas de duração, respectivamente. A hemodiálise foi realizada com acesso de cateter de duplo lúmen, em veia jugular direita, com capilar de polissulfona F7 (Fresenius ®), fluxos de sangue e de dialisato de 300ml/min e 500ml/min, respectivamente; a composição eletrolítica final do dialisato era a seguinte: sódio 138mEq/L, potássio 2mEq/L, cálcio 3,5mEq/L, magnésio 1mEq/L, cloro 112mEq/L, osmolaridade 310mOsm/L e com tampão bicarbonato, sendo colhidas amostras de sangue, antes e após a primeira sessão de hemodiálise, para dosagem sérica de piperazina. Não foram realizadas outras sessões de hemodiálise devido ao choque circulatório e à não melhora do quadro neurológico. No terceiro dia de internação, a paciente persistia com crises convulsivas intratáveis e em ventilação mecânica. Nesta etapa, houve aparecimento de febre e imagem de condensação pulmonar bilateral, conduzida como pneumonia associada à ventilação mecânica e iniciadas ceftriaxona e clindamicina. Sobreveio parada cardiorrespiratória revertida inicialmente, mas seguida por piora do choque circulatório, hipotermia e anisocoria, evoluindo para óbito no sexto dia de internação. Tabela 1. Exames laboratoriais da admissão à UTI e dosagem sérica de piperazina pré e pós diálise. Hematócrito (%) 32 pH sangüíneo arterial 7,427 Hemoglobina (g/dL) 10,7 PO2 (mmHg) 115,2 Leucócitos totais (cels/mm 3) 4300 PCO2 (mmHg) 42,1 Neutrófilos (%) 80 27,2 Glicemia (mg/dL) 130 Creatinina (mg/dL) 7,52 Bicarbonato (mEq/L) Saturação de O 2§ Hidrogênio (nEq/L) Uréia (mg/dL) 124 Sódio (mEq/L) 141 Plaquetas (cels/mm3) 98.000 Potássio (mEq/L) 4,2 Cálcio (mg/dL) 8,9 Líquor Fósforo(mg/dL) 3,9 Células (por mL) 1 Hemácias (por mL) 3 Glicose (mg/dL) 66 Proteínas (g/L) 18 Nível sérico de piperazina Pré-diálise Pós-diálise no terceiro dia de internação* 24,4mg/dL 17,09mg/dL 98,3% 37 Método de análise de teor de piperazina hexa-hidratada, com ácido Pícrico, álcool etílico absoluto p.a. e ácido sulfúrico 1N, conforme Farmacopéia Britânica, 4a edição, 2002. § Com máscara comum de oxigênio a 3L/min. J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 3 - Setembro de 2004 DISCUSSÃO O caso mostra uma paciente com doença renal terminal (DRT) desenvolvendo quadro agudo de mioclonia, confusão mental e sonolência, evoluindo para estado de mal convulsivo e óbito. O diagnóstico diferencial foi feito em relação à intoxicação, distúrbio eletrolítico e acidente vascular cerebral, principalmente ruptura de aneurisma cerebral, que pode ocorrer em doença renal policística; não havia sinais focais de localização e tampouco sinais meníngeos, o evento não foi súbito, a pressão arterial estava normal, o líquor não era hemorrágico e a tomografia de crânio afastou esta hipótese; como não havia distúrbio eletrolítico, intoxicação exógena se tornou o diagnóstico mais provável, principalmente com história de ingestão recente de xarope anti-helmíntico. A paciente havia feito uso de xarope anti-helmíntico contendo Rhamnus purshiana (Cascara) e piperazina (100mg/mL, 100ml contendo 10g). Em revisão da literatura, encontramos somente casos de hepatite colestática, hipertensão portal 1 e asma ocupacional em humanos 2 devido ao uso ou contato com Cascara sagrada e redução na absorção de drogas com uso de Rhamnus purshiana; portanto, não podemos atribuir o quadro clínico a este componente do xarope. No entanto, a piperazina provoca quadro de intoxicação com manifestações neurológicas muito semelhantes às desenvolvidas pela paciente. As manifestações neurológicas são muito variadas, a mioclonia é mais intensa em membros superiores, ela se contrapõe a movimentos voluntários, impossibilita a marcha e se acentua com emoções ou tentativas de gestos finos, os movimentos são contrapostos por grupos musculares antagonistas, há movimentos de face, cabeça e protusão de língua, intermitentes e não rítmicos3; manifestações neuropsiquiátri-cas, como alucinações e delirium tremens; tremores, convulsões e coma também podem ocorrer4, mais comumente em casos de insuficiência renal e hepática4. Manifestações elétricas ao eletroencefalograma (EEG) podem existir sem quadro clínico, mas os sinais neurológicos de intoxicação sempre se acompanham de alterações ao EEG. Há um traçado disrítmico, lentificado e aumento de amplitude, com localização em todo o córtex cerebral no pico da intoxicação e somente na região occipital no final do curso, o qual é descrito ocorrer no máximo uma semana após a interrupção da piperazina5. Não há definição quanto à fisiopatologia da intoxicação neurológica pela piperazina, os mecanismos são desconhecidos, mas há fatores predisponentes como insuficiência renal, epilepsia e antecedentes psiquiátricos5. Piperazina e insuficiência renal 151 Até um terço das desordens neuropsiquiátricas nos pacientes com insuficiência renal são causadas por drogas; em um estudo, dentre 50 casos de intoxicação medicamentosa em pacientes com insuficiência renal, 3 deles foram causados por piperazina, todos de baixa gravidade6; outro artigo relata uma intoxicação com severas manifestações neurológicas em paciente com DRT; nesse caso, ele havia ingerido 30mg/kg de citrato de piperazina e houve boa evolução com a suspensão do medicamento7. Farmacologia da piperazina A piperazina foi empregada inicialmente em 1880 como hipouricemiante para o tratamento da gota; as propriedades anti-helmínticas foram descobertas por Boinnare e introduzidas na terapia anti-helmíntica por Faynard em 1949 8, sendo, atualmente, mais utilizada no tratamento de infestações por Ascaris lum bricoides e Enterobius vermicularis. A piperazina é uma amina cíclica secundária, com peso molecular de 86 daltons, é rapidamente absorvida após uma dose oral, metabolizada no fígado e 20% são excretados inalterados na urina 8; seu mecanismo de ação é através de inibição irreversível da transmissão neuromuscular no verme, com efeito anti-colinérgico 8. Apesar da descrição de excreção urinária de 20% da droga de forma inalterada, em um estudo em adultos caucasianos saudáveis, a excreção urinária variou de 8 a 30% e com baixa reprodutibilidade quando administrada uma segunda dose separadamente 9. A dose recomendada no frasco é de 5g por dia para adultos com função renal normal, que não deve ser repetida antes de 7 dias; no entanto, há também recomendação de dose terapêutica no adulto de 3,5g/dia e referência quanto à menor dose tóxica oral em homens como 150mg/kg por 5 dias; a dose letal em crianças é de 260mg/kg por 3 dias10. A paciente havia feito uso de 100mg/kg/dia por 2 dias; portanto, menor que a dose tóxica para adultos saudáveis. Não encontramos dados na literatura médica sobre ligação protéica, meia-vida e volume de distribuição da piperazina. A intoxicação neurológica por piperazina geralmente é relatada como sendo potencialmente grave, mas de bom prognóstico; não há definição de dose letal em adultos e não encontramos relato de caso de óbito por intoxicação com piperazina. A hemodiálise e a suspensão da droga são descritas como sendo medidas eficientes no manejo da intoxicação7. No entanto, em nosso caso, observamos um caráter progressivo dos sintomas neurológicos, mesmo após a interrupção da droga e a não melhora dos sinais de intoxicação com intensificação de CAPD e associação de hemodiálise. 152 Intoxicação fatal por piperazina em urêmico. O nível sérico caiu de 24,4mg/dL para 17,1mg/dL após 6 horas de hemodiálise com capilar F7 (Fresenius®) em concomitância com diálise peritoneal, ou seja, a taxa de redução foi de somente 29,9%, diminuta para uma subs-tância de baixo peso molecular, a sugerir grande ligação protéica. Foi cogitada a hipótese de hemoperfusão com filtro de carvão ativado; no entanto, tal filtro não se encontra mais disponível para comercialização no Brasil. A causa direta do óbito em nossa paciente foi pneumonia, com choque séptico refratário ao tratamento; porém, a infecção pulmonar foi complicação da entubação orotraqueal e da ventilação mecânica necessárias no manejo do quadro neurológico descrito. CONCLUSÃO O uso da piperazina é descrito como causa de intoxicação, mas geralmente de bom prognóstico, com boa resposta à interrupção do uso da medicação e ao tratamento com hemodiálise em paciente renal crônico. No entanto, alertamos para o fato de que a intoxicação por piperazina em pacientes renais crônicos pode ser grave e progressiva, pode não responder à interrupção da droga e à hemodiálise, podendo evoluir para o óbito. Somente obtivemos o nível sérico de piperazina no terceiro dia após a interrupção da droga, e sugerimos que, se o mesmo estiver ao redor de 24mg/dL, a intoxicação pode ser fatal. São necessárias medidas para advertir os pacientes renais crônicos quanto ao risco de intoxicação grave relativo ao uso de medicações e da importância de seu uso somente com receita médica. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao senhor Masami Fujii pela quantificação laboratorial de piperazina. REFERENCIAS 1. Nadir A, Reddy D, Van Thiel DH. 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Molinoff PB, Ruddon RW. Fármacos usados no tratamento das helmintíases. In: Hardman JG, Limbird LE, editores. Goodman & Gilman’s As Bases Farmacológicas da Terapêutica. 9ª edição. Santiago: McGraw-Hill, 1996. p. 742-53. 9. Fletcher KA, Evans DAP, Kelly JA. Urinary piperazine excretion in healthy caucasians. Ann Trop Med Parasitol 1982;76(1):77-82. 10. United States Pharmacopeia Convention USP DI. Massachussets 1998, v 1. Drug Information for Health Care Professional: p. 3365. Endereco para correspondência Altair Jacob Mocelin Serviço de Nefrologia Hospital Evangélico de Londrina Av. Bandeirantes 618 86010-010 Londrina, PR E-mail: [email protected]