Artigo Obesidade e Câncer: as Doenças do Século Epidemiologia da Obesidade e Câncer surgimento da epidemia da obesidade começa, quase que simultaneamente, na maioria dos países de alta renda, por volta das décadas de 1970 e 1980. Desde então, a maioria dos países de renda média e muitos países de baixa renda também se tornaram vítimas do aumento global da prevalência de obesidade em adultos e crianças1. Atualmente, a obesidade é a desordem metabólica mais comum do Ocidente. Estimativas globais recentes mostram que 1,46 bilhões de adultos estão acima do peso (Índice de Massa Corporal, IMC > 25 kg/ m2) e 502 milhões de adultos são obesos (IMC > 30 kg/m2). Além disso, 170 milhões de crianças e adolescentes (com idade <18 anos) fo- O ram classificados com sobrepeso ou obesidade1,2. Dentre os fatores de risco para o desenvolvimento do câncer que são passíveis de prevenção, depois do tabagismo, o sobrepeso/obesidade parece ser a causa mais importante do câncer que pode ser evitada na população com estilo de vida ocidentalizado3. Fato este que vem sendo comprovado por vários estudos epidemiológicos4,5. Mulheres com excesso de peso têm risco aumentado para o desenvolvimento de câncer do endométrio e câncer de mama após a menopausa5-7. Além disso, evidências crescentes sugerem que o aumento da adiposidade está associado com o aumento da incidência ou morte de uma grande variedade de tipos de câncer, incluindo cólon e reto5, 8, 9, ovário10, endométrio11, ve- Maria Carolina Santos Mendes, Gustavo Duarte Pimentel, Daiane Sofia de Morais Paulino, José Barreto Campello Carvalheira - Departamento de Medicina Interna, Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP. sícula12, esôfago13, pâncreas14, rim15, fígado16-18, próstata10 e certas células hematopoiéticas19. Sabe-se que o excesso de peso em homens e mulheres resulta no aumento de 1,52 e 1,62, respectivamente, no risco relativo de morte por câncer20. E, caso a obesidade fosse prevenida, poderiam ser evitados aproximadamente 10% dos casos de morte por câncer em fumantes e 14 a 20% dos casos de morte por câncer em não fumantes21. Dessa forma, é notável que as dezembro 2011 – ABESO 54 – 7 modificações metabólicas ocasionadas pela obesidade corroboram para a criação de um ambiente favorável que irá promover o desenvolvimento tumoral. Obesidade e Câncer: Unidos pelo Processo Inflamatório Uma vez que a obesidade e o excesso de peso caracterizam-se por um estado de hiperinsulinemia e resistência à insulina, acredita-se que o excesso crônico desse hormônio reduziria os níveis de proteína ligante de IGF (IGFBP1 e IGFBP2), com consequente aumento de IGF1 (fator análogo à insulina-1) livre, o que culminaria com mudanças no ambiente celular, favorecendo o desenvolvimento tumoral5,22,23. Ademais, a obesidade também pode ser definida por um estado de inflamação subclínica ou de baixo grau, o qual envolve a produção de várias citocinas inflamatórias24. Durante a década de 1990, foi descrita pela primeira vez a associação entre obesidade e inflamação, quando foi identificado que o TNF-α é altamente expresso no tecido adiposo de animais obesos25,26. Nesta mesma época, estudos em modelo animal deficiente em TNF-α observaram uma melhora significante na sensibilidade à insulina, tanto em animais geneticamente obesos (ob/ob) como em animais com obesidade induzida por dieta27. Após estes achados, a obesidade foi reconhecida pelo estado de inflamação crônica subclínica (baixo grau), possuindo importante papel na patogênese de diversas doenças metabólicas, incluindo diabetes tipo 2 e o câncer25,28,29. Portanto, há aproximadamente 20 anos, foi esclarecido que a obesidade induz a um microambiente inflamatório e, mais recentemente, esta inflamação 8 – ABESO 54 – dezembro 2011 Figura 1. Obesidade induz um microambiente inflamatório que facilita o desenvolvimento tumoral. foi incluída dentre outras características responsáveis pela manutenção das funções biológicas do câncer30 (Figura 1). A primeira indicação da ligação entre inflamação e câncer foi obtida em 1863 por Rudolf Virchow, que observou um infiltrado linforeticular como reflexo da origem da neoplasia31. No entanto, essa observação permaneceu negligenciada durante muito tempo. Até que na última década fortes evidências mostraram que a resposta inflamatória favorece a ativação da tumorigênese e carcinogênese32, 33. Estima-se que aproximadamente 10 a 15% de todos os tumores têm evidência de um foco inflamatório anterior à progressão tumoral, como, por exemplo, a esquistossomíase e o maior risco de câncer de bexiga; a doença inflamatória intestinal e o maior risco de câncer de cólon; a gastrite induzida por H. pylori e o maior risco de câncer gástrico; e as hepatites virais B e C e o maior risco de câncer hepático, dentre outros31. Estima-se que no mínimo 20% de todos os cânceres surgem em associação com inflamação crônica e infecção e, mesmo aqueles cânceres que não se desenvolvem como consequência da inflamação crônica, exibem aumentados infiltrados inflamatórios com altos níveis de expressão de citocinas no microambiente tumoral33-35. A produção de citocinas inflamatórias e outros mediadores que interferem na sinalização insulínica pode também ser ocasionada pela infiltração de macrófagos no tecido adiposo, característica da inflamação induzida pela obesidade. Sendo que o principal mecanismo pelo qual os sinais inflamatórios interferem com a ação da insulina envolve modificações pós-traducionais das moléculas dos substratos do receptor de insulina, ativando o IKKβ e JNK, que desempenham papéis-chave na relação entre obesidade, resistência à insulina e carcinogênese32,36. A expressão de diversas citocinas pró-inflamatórias, como TNF-α, IL-1 e IL-8, são reguladas por genes alvo da via de ativação do fator nuclear kappa B (NF-κB) dependente do IKKβ. Além disso, os oncogenes e os carcinógenos também podem provocar a ativação do NF-κB, enquanto que substâncias com conhecidas propriedades quimiopreventivas podem interferir na sua ativação. Estudos em modelo animal trouxeram fortes e diretas evidências genéticas de que a via de ativação do NF-κB é um mediador crucial na promoção tumoral34,36,37. Sendo assim, os processos de proliferação e morte celular são fortemente impactados pela obesidade e citocinas inflamatórias produzidas pelas células imunes que infiltram o tecido tumoral, as quais servem como fatores mitogênicos e de sobrevida para as células pré-malignas ou para as cancerígenas. Nesse sentido, pode-se dizer que obesidade e câncer estão unidos pelo processo inflamatório (Figura 2). Com isso, o processo inflamatório contribui para a sustentação de todo o metabolismo tumoral, tornando-se um importante mecanismo alvo para novas terapêuticas visando o controle do desenvolvimento tumoral. de células cancerosas)39. A partir desses achados, fortes evidências mostraram que a metformina - droga até então utilizada somente para o tratamento do diabetes - também é capaz de inibir o crescimento tumoral. Metformina: Nova Arma Terapêutica para o Câncer? Recentes estudos têm demonstrado que a metformina é capaz de reduzir o risco de câncer38,39. Além disso, Algire et al (2008) observaram que esta substância também é capaz de reduzir o crescimento tumoral em animais induzidos à obesidade por dieta hiperlipídica40. Nesse sentido, um recente estudo do nosso grupo encontrou que a metformina, em associação com o paclitaxel (quimioterápico), é capaz de reduzir o crescimento tumoral via inibição das vias de crescimento celular (mTOR), diminuição da viabilidade e da proliferação celular, inibição do ciclo celular e aumento da apoptose (morte Figura 3. Mecanismos de ação da metformina na inibição do crescimento tumoral. Adaptado de Goodwin et al. 2009. Figura 2. Obesidade e câncer possuem a inflamação em comum. Referências Bibliográficas 1. Finucane MM, Stevens GA, Cowan MJ, Da- 12;377(9765):557-67. 2. naei G, Lin JK, Paciorek CJ, et al. National, regional, and global trends in body-mass index since 1980: systematic analysis of he- 4. Bianchini F, Kaaks R, Vainio H. Overweight, Lobstein T, Baur L, Uauy R. 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