166 Nietzsche: liberdade, tragédia e destino Eder David de Freitas Melo* RESUMO A partir da análise nietzscheana da tragédia grega e do fenômeno dionisíaco, pretendo abordar nesta comunicação um possível sentido trágico para a existência, tendo como eixo argumentativo a particular relação que Nietzsche faz entre os conceitos de liberdade e destino. Tanto na estética trágica como no êxtase dionisíaco, Nietzsche argumenta que a mensagem transmitida é a sabedoria da natureza, da vida, do deus Dioniso. Essa sabedoria ensina que o indivíduo não está desprendido do mundo; o dualismo homem/natureza é abolido pelo frenesi dionisíaco o qual proporciona um sentimento de unidade no homem tornando-o capaz de reconhecer-se como natureza, como parte integrante do mundo. Dessa forma, o destino do homem e do mundo estão ligados, são um; a liberdade deixa de ser encarada como um posicionamento solipsista do homem ante ao mundo, passando a um novo estatuto. Nele, uma aceitação e afirmação das contingências e necessidades da existência configura-se como um ato de fidelidade à terra no qual o homem experimenta o sentimento de liberdade; nesse ato o homem sente-se livre quando deixa de agir arbitrariamente e passa a fazê-lo harmonicamente às pulsões terrestres. Assim, Nietzsche faz uma espécie de amálgama entre a liberdade e o destino. O resultado disso é uma existência consciente de sua tragicidade, da fragilidade que permeia tanto a fortuna como a má sorte. PALAVRAS-CHAVE: tragédia, dionisíaco, destino e liberdade. Introdução A ação humana pode ser examinada sob várias perspectivas e por diferentes modos. Entre eles, as tragédias gregas podem se destacar de mera referência para um modo de pensar, * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação da Prof.ª Dr.ª Adriana Delbó. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 167 representar e avaliar o drama da ação no mundo dos assuntos humanos (Cf. VERNANT, 1990, p 342-3). Sensível a essa possibilidade, Nietzsche desenvolve em sua filosofia uma estética e uma ética trágicas. Entretanto, apesar da importância da estética trágica na obra nietzscheana, neste trabalho o caminho investigativo privilegiará uma parte da reflexão ética, o que mais adiante será identificado com o conteúdo da tragédia ática. A particular perspectiva da ética esboçada aqui constitui-se na relação do indivíduo consigo mesmo, em que ele, como avaliador, pondera acerca dos motivos, propósitos, conseqüências e resultados de sua ação, ou seja, o que doravante será nomeado simplesmente de relação agente/ato. Relação esta que de forma alguma é algo simples para Nietzsche, pois como diz em um fragmento póstumo: “Que o gato humano sempre torne a cair sobre [...] sua única perna ‘eu’, é somente um sintoma de sua ‘unidade’ fisiológica, ou melhor, ‘unificação’: nenhuma razão para acreditar em uma ‘unidade anímica’” (NIETZSCHE, 2002, p. 63 [FP 1(72)]). Desenvolvimento “Os gregos, que nos seus deuses expressam e ao mesmo tempo calam a doutrina secreta de sua visão de mundo” (NIETZSCHE, 2005b, p. 5 [§1]), elegeram para suas artes dois deuses: Apolo e Dioniso. O primeiro está associado às artes figurativas, plásticas, dotadas de medida, tais como a pintura e a escultura. Já o segundo refere-se à arte não figurada e desprovida de medida, ou seja, a música. Dessa forma, os helenos dividiram as artes como oriundas de dois tipos de pulsões da natureza. Enquanto Apolo representa a tendência ética dotada de medida, conformadora (dar forma) do indivíduo; Dioniso, o intenso e incerto jogo de forças da natureza. (NIETZSCHE, 2007, p. 24-39 [§1-§4]). Esses impulsos normalmente encontram-se em contraposição e discórdia, entretanto a vontade helênica foi capaz de reconciliá-los por um certo tempo, e conjugados eles se tornaram aptos ao parto da tragédia. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 168 Ambos os impulsos [Apolíneo e Dionisíaco], tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum ‘arte’ lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática. (NIETZSCHE, 2007, p. 24 [§1]). Nessa união que deu origem à tragédia, tanto o impulso apolíneo quanto o dionisíaco estão presentes, porém há a possibilidade de reconhecer uma certa prevalência de Dioniso nessa aliança. Como mostra Roberto Machado, na arte trágica, a cena e a palavra são instâncias apolíneas, já a música é uma instância dionisíaca (2006, p. 224). E mais, a tragédia, como descrita por Nietzsche, é a “transformação de um ‘fenômeno natural’ em um ‘fenômeno artístico’ [sendo que o] fenômeno natural é o dionisíaco puro, selvagem, bárbaro e titânico; o fenômeno artístico é a arte trágica, o teatro, a tragédia.” (MACHADO, 2006, p. 224), ou seja, a tragédia grega é o fenômeno dionisíaco posto em cena, música e palavra. A tragédia possui como origem o ditirambo dionisíaco, afirma Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, mas quando ela deixa seu estado inicial de proto-tragédia e consolidase em uma fase madura, a esse ditirambo uni-se o mundo apolíneo da cena. Mas com este fato a mensagem transmitida por essa obra de arte não muda, visto que em seu novo estado podemos compreendê-la “como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mudo de imagens apolíneo” (NIETZSCHE, 2007, p. 57 [§8]), assim, a tragédia ática é interpretada como um fenômeno artístico formado por um coro satírico que utiliza imagens apolíneas para cantar e encenar a sabedoria do deus Dioniso (Cf. MACHADO, 2006, p. 224-234). É o fato de Nietzsche explicar a arte trágica como ato transfigurador da sabedoria dionisíaca, que possibilita examinar o mundo dos assuntos humanos, particularmente a relação agente/ato, e conferir o adjetivo “trágico” a essa relação. A pedra de toque dessa questão encontra-se em Dioniso e em seu canto trágico, visto que esse canto fala justamente de sua sabedoria. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 169 A sabedoria de Dioniso é a fala da própria natureza, apesar de estar ligado à embriaguez, a vertigem provocada por esse deus desvela em vez de velar. Em confronto com a arte apolínea que representa representações, ou seja, imita a aparência fenomenal das coisas; o ritual dionisíaco, com seu êxtase, expressa a verdade que está por trás dos fenômenos, “nele a natureza se desvelou e falou de seu segredo com uma terrível clareza, com o tom diante do qual a aparência sedutora quase perdeu seu poder” (NIETZSCHE, 2005b, p. 19 [§2]). O indivíduo destruído na tragédia alude ao consolo de que em confronto com a totalidade das coisas, o individual deve ser censurado. (NIETZSCHE, 2007, p.36-39, 48-53 [§4, §7]; MACHADO, 2006, p. 202-224). [...] a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem, por assim dizer, indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que a despeito de toda mudança de gerações e das vicissitudes da história dos povos, permanecem perenemente os mesmos. (NIETZSCHE, 2007, p. 52 [§7]). É graças à indestrutibilidade e vigor da vida que Édipo, apesar de sua desmesurada sabedoria, não consegue se livrar do próprio destino. As ações planejadas por sua sabedoria não conseguem driblar o insondável jogo da natureza, o que torna seus atos cúmplices do destino e inimigos de sua vontade e sabedoria. Essa inimizade não é resultado de uma rixa, mas de um descompasso entre a capacidade humana e o poder da physis, por isso, na relação que o agente estabelece com seu ato pensando sobre os possíveis resultados dele, algo sempre escapa e o inesperado acontece. O indivíduo, ante à natureza, é somente um fio trançado pelas Moiras. 1 Por isso Édipo enreda no parricídio e uni-se em um matrimônio execrável com sua mãe. E Prometeu, apesar de seu amor pelos homens, de sua sabedoria e do dom da vidência, também não escapa ao destino, pois é a vida em sua totalidade que deve ser afirmada, não o indivíduo. 1 A palavra moira, de origem grega, quer dizer “destino, fado”. Mas também, quando escrita no plural “Moiras”, é o nome de três irmãs que, na mitologia grega, teciam em seu tear o fio da vida dos deuses e homens. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 170 O que Nietzsche diz ser o segredo da natureza falado pelo boca de Dioniso — no caso da tragédia é o coro formado por sátiros que canta esse segredo, essa sabedoria —, é perceptível através de um duplo sentimento de unidade que o ditirambo provoca. O primeiro refere-se à afirmação da existência em sua totalidade, quando o homem se vê unido ao mundo; o segundo diz respeito à natureza dessa existência. Nos cultos a Dioniso, o indivíduo é conduzido a um poderoso esquecimento de si acompanhado de um sentimento sobrenatural de unidade com os outros homens e com a natureza, onde “cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só [com o mundo]” (NIETZSCHE, 2007, p. 28 [§1]). Dessa maneira, o êxtase dionisíaco configura-se como um instrumento desvelador e afirmativo da unidade partilhada por todas as coisas, com o que deduz-se que homem e mundo partilham o mesmo destino, são um. Na embriaguez dionisíaca, no impetuoso percorrer de todas as escalas da alma, por ocasião das agitações narcóticas ou na pulsão de primavera, a natureza se expressa em sua força mais elevada: ela torna a unir os seres isolados e os deixa se sentirem como um único (NIETZSCHE, 2005b, p. 12 [§1]). Dioniso também é relacionado à metamorfose que está na essência da vida — lembremos do segundo sentimento de unidade provocado pelos rituais dionisíacos o qual alude à natureza da existência —. Esse símbolo é responsável pela afirmação do devir como princípio que conduz tudo à mudança, a uma transformação que condiciona a criação e a destruição. Com esse princípio, o novo surge a partir da destruição do velho, não se cria sem destruir, assim como não há superação sem obstáculo a ser transposto. Esse fluxo incessante do devir conduz os fenômenos em um caminho sem fim. Nele, as ações enredam-se por uma teia de aniquilamento e fecundidade com um imbricamento tal entre necessidade e contingência, que o imenso caráter ocasional de todas as combinações [da ação humana] tem uma influência ilimitadamente grande sobre todo o vindouro. O mesmo temor reverencial que [o homem], olhando para trás, dedica a todo o destino, ele Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 171 precisa dedicar também a si mesmo. Ego fatum (NIETZSCHE, 2008, p. 41 [FP 25 (158)]). Ou ainda, o “que faço ou deixo de fazer agora é tão importante, para tudo o que está por vir, quanto o maior acontecimento do passado: nesta enorme perspectiva do efeito, todos os atos são igualmente grandes e pequenos” (NIETZSCHE, 2001, p. 178 [§233]). E de forma bem semelhante em um fragmento póstumo da primavera de 1884, assim diz Nietzsche: “Útil é apenas um ponto de vista para o que está próximo: todas as conseqüências longínquas não são previsíveis, e toda ação pode ser taxada igualmente como útil e como prejudicial” (NIETZSCHE, 2008, p. 35 [25 (128)]). Nessas passagens em que Nietzsche examina o caráter da ação humana, percebe-se o quanto a ele é sensível um sentido trágico da ação, visto que esta se desencadeia de forma imprevisível, fortuita e com desdobramentos tais que permitem avaliá-la tanto como um destino como algo bom e/ou ruim. Semelhantemente, a relação indivíduo/ato se dá também de maneira diversa, com influências longínquas e dispersas, passível de ser examinada em várias perspectivas. [...] aprendi a diferenciar a causa do agir da causa do agir de tal e tal modo [...]. A primeira espécie de causa é um quantum de energia represada, esperando ser utilizada de alguma forma, com algum fim; já a segunda espécie é algo insignificante comparado a essa energia, geralmente um simples acaso, segundo o qual aquele quantum se “desencadeia” de uma maneira ou de outra [...]. Entre esses pequenos acasos [...] incluo todos os pretensos fins [...]: são relativamente fortuitos, arbitrários, quase indiferentes, em relação ao enorme quantum de energia que urge, como disse, para ser de alguma forma consumido. [...] O “objetivo”, o “fim”, não seria freqüentemente um pretexto embelezador, um posterior fechar de olhos da vaidade, que não quer admitir que o barco segue a corrente na qual fortuitamente caiu? Que ele “quer” ir para lá porque — tem de ir? (NIETZSCHE, 2001, p. 262 [§360]). A esse modo trágico de ser da ação humana, Dioniso canta uma melodia harmônica, com a qual ensina esses saberes por meio de um pathos ritualístico, mas também filosófico, afirma Nietzsche. Esse pathos ocorre no cortejo dionisíaco, quando a natureza (incluso o Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 172 homem) sensível ao toque do deus é arrebatada em um frenesi fecundo, clarividente e desconcertante. Também filosófico, pois nesse ritual a sabedoria trágica ensina segredos do mundo ao homem: que homem e mundo são um só e partilham o mesmo destino; que no fluxo do vir-a-ser está enredado tanto o homem quanto as coisas; que a direção do caminhar humano está amalgamado ao fluxo do devir, ao jogo de forças da natureza, sendo que estas ganham em potência quando comparadas ao indivíduo; que o homem, tomado como causa exclusiva de seu ato, é uma ilusão e um desconsiderar o imbricamento de inúmeras coisas; que a vida, em uma perspectiva macro, continua a pulsar no sofrimento e aniquilamento do indivíduo; que a ação provém de um impulso mas seu modo é influenciado por diversas variáveis. Nessa crença dionisíaca, tocado pelo êxtase, o homem “acha-se com alegre e confiante fatalismo no meio do universo, na fé de que apenas o que está isolado é censurável, de que tudo se redime e se afirma no todo” (NIETZSCHE, 2006, p. 99 [Incursões de um extemporâneo, §49]). Com o elogio ao indivíduo que se redime e afirma no todo, percebemos a crítica de Nietzsche ao argumento racionalista que cria um sujeito isolado, capaz de escolher e agir independente do curso do mundo, decidindo entre o bem e o mal, criando com solipsismo seu destino. Esse tipo de arbítrio, que se pretende desprendido do mundo, é um engodo fruto “da fantasia orgulhosa de que somos diferentes da natureza, de que podemos impor nossas forças à cega mobilidade do devir” (BARRENECHEA, 2008, p. 25). A compreensão da liberdade humana tomada como uma capacidade de escolha independente da dinâmica do universo, ou seja, o que é comumente conhecido como livre-arbítrio, em uma “superlativa acepção metafísica” constitui-se em uma autocontradição. O indivíduo como responsável último por suas ações é um homem causa de si mesmo, causa única e suficiente de todo seu agir. Assemelha-se, como nos lembra Nietzsche, ao barão de Münchhausen, que tenta livrar-se do pântano puxando os próprios cabelos (NIETZSCHE, 2005a, p. 25-26 [§21]). Essa compreensão da conduta humana não partilha do sentimento de unidade que é exalado por Dioniso, nem considera a dinâmica essencial das forças do vir-a-ser, por isso ela não é trágica. O canto trágico, entoado pelos acompanhantes de Dioniso, ou seja, a sabedoria dionisíaca colocada em cena na tragédia, é um conclame à fidelidade terrena. Aquele que Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 173 atende a esse chamado e ousa buscar em si uma continuação do mundo, não se coloca em uma posição desprendida, mas integra-se voluntariamente às necessidades e contingências da existência. Ele encontra em suas entranhas pulsões terrestres, em seu íntimo ele vê devir e vida. O resultado da harmonia entre as vísceras desse homem e os impulsos terrestres é um poderoso sentimento de liberdade. No §213 de Além do bem e do mal Nietzsche discorre sobre isso utilizando como paradigma a criação artística. Segundo ele, ao deixar de criar arbitrariamente, mas fazê-lo acatando as forças terrestres, surge no artista, em plena intensidade, a sensação de liberdade. Os artistas talvez tenham um faro mais sutil nesse ponto: eles, que sabem muito bem que justamente quando nada mais realizam de “arbitrário”, e sim tudo necessário, atinge o apogeu sua sensação de liberdade, sutileza e pleno poder, de colocar, dispor e modelar criativamente — em suma, que só então necessidade e “livre-arbítrio” se tornam unidos neles (NIETZSCHE, 2005a, p. 108). Do mesmo modo que a tragédia só é possível a partir da união dos impulsos apolíneo e dionisíaco, a liberdade humana é entendida por Nietzsche como o resultado da união voluntária do homem ao mundo. A desmesura dionisíaca e a medida apolínea se complementam e se limitam na tragédia: nela, a sabedoria dionisíaca ganha forma, aparência, se transforma em drama, graças a Apolo; já o apolíneo louvor ao indivíduo, transfigura-se na afirmação do todo, na destruição do indivíduo, “na fé de que apenas o que está isolado é censurável”, graças a Dioniso. Outrossim, o homem experimenta sua liberdade, tornando-se complemento ao mundo e sendo limitado por ele. Mas ainda sim uma liberdade, mesmo que trágica. Apesar de paradoxal, essa união de impulsos distintos, onde cada um deles limita o outro, mas também complementa, proporciona uma criação nova, uma liberdade outra. Esta, não é nem o livre-arbítrio solipsista de Münchhausen, nem uma ausência absoluta de escolha em um determinismo extremo. Mas sim, uma atitude de integração do homem ao cosmos, em que se tem entre os resultados, a sensação de liberdade, o sentimento de poder. Ambos são Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 174 ressonâncias da harmonia entre o homem e o mundo, são símbolos da fecundidade dessa união, resultados de uma experiência trágica. Que nos rituais dionisíacos esse fato é expresso a partir de um pathos religioso, não implica a necessidade da religião para a vivência dessa unidade. O que Nietzsche faz não é doutrinamento religioso, mas sim a construção de uma filosofia a partir da transposição do dionisíaco em um pathos filosófico, tendo a sabedoria trágica como fundamento. Conclusão Portanto, o aprendiz da sabedoria trágica de Dioniso, aquele que aprende a organizar seus ímpetos integrando-os na totalidade do cosmos, é capaz de dizer “ego fatum”, pois não há mais que ver oposição entre a liberdade humana e o destino do universo, ao contrário, faz-se um amálgama entre eles. Entretanto, vale aventar que o indivíduo se redime no todo, o que confere ao mundo dos assuntos humanos uma fragilidade intrínseca devido ao caráter trágico da existência. Por isso, no desenrolar da vida humana, a fortuna e a desventura dependem de uma relação contingente e frágil entre o homem e o mundo, onde mesmo o sábio não é capaz de se livrar das infortunas provocadas por suas ações, pois não há areté capaz de controlar aquilo que escapa ao humano e que garanta a fortuna ao seu possuidor (Cf. NUSSBAUM, 2009, cap. 1, passim). Lembremo-nos de Édipo. Em que medida encontrei com isso o conceito de “trágico”, o conhecimento final sobre o que é a psicologia da tragédia [...]: “O dizer-sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a vontade de vida, alegrandose no sacrifício de seus tipos mais superiores à sua própria inexauribilidade — foi isso que denominei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psicologia do poeta trágico. [...] para [...] ser ele mesmo o eterno prazer do vira-ser — esse prazer que encerra em si até mesmo o prazer pelo aniquilamento...”. Nesse sentido, tenho o direito de entender-me como o primeiro filósofo trágico [...]. Antes de mim não há essa transposição do Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 175 dionisíaco em um páthos filosófico: falta a sabedoria trágica (NIETZSCHE, 2000, p. 47). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a Liberdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Representação do Dionisíaco. In:______. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 202-246. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ______. Além do bem e do mal. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras [Bolso], 2005a. ______. A Visão Dionisíaca do Mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. ______. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ______. Fragmentos finais. Trad. Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. ______. Fragmentos do espólio: primavera de 1884 a outono de 1885. Trad. Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. ______. Obras incompletas. Col. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, seleção de Gérard Lebrun. São Paulo: Nova Cultural, 2000. ______. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras [Bolso], 2007. NUSSBAUM, Martha C. Fortuna e Ética. In:______. A Fragilidade da Bondade: Fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Trad. Ana A. Cotrim. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 1-18. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011) 176 VERNAN, Jean-Pierre. Aspectos da pessoa na religião grega. In: VERNAN, Jean-Pierre; VIDALNAQUET, P. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)