A RESPONSABILIDADE PENAL PELA TRANSMISSÃO DOLOSA DO VÍRUS HIV Camila Rodrigues Santiago Roncalle1 Marcelo Sarsur Lucas da Silva2 RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar se existe responsabilidade penal para quem,conscientemente, transmite o vírus causador da AIDS/HIV através da prática conhecida comobarebacking, onde determinada pessoa consente em manter relação sexual com um terceiro, sem uso de preservativo, sabendo que o terceiro possa ser portador do vírus causador da AIDS, com ointuito de ou adquirir o vírus, ou arriscar-se propositalmente a adquiri-lo,em festa realizada com essa finalidade. O objetivo principal deste trabalho é discutir se o consentimento do ofendido pode ser utilizado como causa de exclusão da ilicitude. ABSTRACT: This study aims to analyze the criminal responsibility of a person who willfully engages in transmitting the HIV/AIDS virus to a consenting sexual partner during bareback (unprotected) sexual acts, practiced among partners who are unaware of their current health status. It concludes that the subject’s consent can be correctly invoked as a clause to exclude criminal responsibility. PALAVRAS-CHAVE: Consentimento do Ofendido; Causa de Exclusão da Ilicitude; Prática do Barebacking;AIDS. KEYWORDS: Consent; Justification clauses; Barebacking; AIDS. SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 AIDS 2.1 Conceito de AIDS 2.2 Do Diagnóstico 2.3. AIDS no Brasil; 3 A Prática do Barebacking 3.1 O que é Barebacking 3.2 Barebacking no Brasil; 4 O Consentimento do Ofendido Como Clausula da Exclusão da Ilicitude 4.1 Conceito de Crime 4.2 O Consentimento do Ofendido 4.3 Responsabilidade Penal; 5 Conclusão; Referências. 1 INTRODUÇÃO A AIDS é uma doença que alcançou um caráter epidêmico na década de 1980, que ataca o sistema imunológico devido à destruição dos glóbulos brancos. É considerada um dos maiores problemas de saúde da atualidade pelo caráter e pela gravidade. A doença não tem cura.Entretanto, os portadores do HIV, chamados de soropositivos, dispõem de tratamento oferecido pelo Governo. A finalidade do tratamento é de prolongar e tentar garantir uma sobrevidacom mais qualidade de vida ao portador, através de uma redução da carga viral e reconstituição do sistema imunológico. Recentemente se noticiou, pelos meios de comunicação (jornal, internet e revistas), que existem determinados grupos de portadores do vírus HIV, em suas maiorias homossexuais, reunindo em festas privadas conhecidas como o “Clube do Carimbo”, em que o objetivo é manter relações sexuais desprotegidas, nas quais os frequentadores podem transmitir ou adquirir o HIV. Trata-se de uma modalidade de sexo sem preservativos ou qualquer cuidado, em que há uma “roleta -russa” na forma de sexo promíscuo, no qual não se sabe quem são os portadores soropositivos e os negativos. O presente trabalho tem como objetivo discutir, no ponto de vista do Direito Penal, se a conduta praticada por quem contamina outra pessoa com o vírus HIV, através do consentimento do ofendido,pode ser considerada como crime. 2 A AIDS 2.1 Conceito de AIDS A AIDS (ou SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é um conjunto de doenças decorrentes da infecção do vírus HIV no corpo, que se encontra presente no sangue, sêmen, secreção vaginal e leite materno, atacando o sistema imunológico responsável pela defesa do organismo, deixando, desta forma, o organismo mais vulnerável e propenso a adquirir doenças. As células mais atingidas são os linfócitos LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685 T CD4 +, ou células auxiliares, que são as responsáveis em organizar o sistema imunológico no enfrentamento de alguns microrganismos, incluindo as infecções causadas por fungos, bactérias e vírus.(DEPARTAMENTO DE DSTs, AIDS E HEPATITES VIRAIS, 2015). O vírus altera o DNA da célula, usando-o para fazer cópias de si mesmo, e, após se multiplicar, rompe os linfócitos em buscas de outras células para continuar a infecção. Com o ataque às células de defesa do corpo, o organismo fica mais vulnerável a diversas doenças, quando, então, um simples resfriado pode se tornar uma infecção mais grave como pneumonia, tuberculose oualgo bem piorde tal forma que o tratamento dessas doenças adquiridas fica bem prejudicado. (DEPARTAMENTO DE DSTs, AIDS E HEPATITES VIRAIS, 2015). 2.2. Do diagnóstico A forma de constatar se uma pessoa possui o vírus HIV seria através darealização do teste diagnóstico, geralmente por meio de amostra de sangue. Entretanto, Ninguém pode ser obrigado a fazer o exame. Nos Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) do Ministério da Saúde, o teste diagnóstico é gratuito e anônimo. O exame também pode ser feito em outras unidades de saúde e por laboratórios particulares, sempre respeitando as normas definidas pelo Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O tratamento com antirretroviral é bastante complexo, podendo ocasionar efeitos colaterais, e deve ser assistido por uma equipe multidisciplinar de profissionais de saúde, que oferece atendimento integral ao paciente: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, entre outros. Além disso, os exames que acompanham o estado de saúde do paciente devem ser feitos periodicamente. 2.3 A AIDS no Brasil O SUS – Sistema Único de Saúde– fornece os medicamentos 62 CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA chamados antirretrovirais gratuitamente desde 1996, distribuídos em diversas unidades de saúde, sempre sob acompanhamento profissional, que impedem a multiplicação do vírus no organismo atuando em várias etapas de seu ciclo reprodutivo. O HIV não é eliminado, mas é fundamental o tratamento por diminuir a carga viral, aumentando o tempo de vida do portador, como também reduzindo o risco de desenvolver as doenças relacionadas a AIDS, como a tuberculose e a pneumonia, por exemplo. O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids) reconhece o Brasil como referência mundial no controle da epidemia, tendo em vista que foi o primeiro a derrubar as patentes dos medicamentos e a fornecê- los gratuitamente à população. 3 A PRÁTICA DO BAREBACKING 3.1 O que é o Barebacking O barebacking surgiu nos rodeios norte-americanos como uma modalidade de esporte sem proteção, significando, literalmente, cavalgar ou montar sem cela. Tal denominação, posteriormente, passou a ser usado no contexto da comunidade gay(norte-americana), em meados de 1990, de forma analógica, para designar o sexo sem preservativo (LÉOBON, FRIGAULT, apudSILVA). Nessa modalidade de sexo, existe uma experiência corporal, sensorial, que se concretiza a partir de um contato mais intenso com o parceiro, causando um prazer excedente que surge pela expansão e transgressão das fronteiras e limites do próprio corpo. Com a realização desse prazer, as pessoas parecem adquirir, ou pensam adquirir, mais autonomia e liberdade frente às normas e discursos socialmente estabelecidos. 3.2 Barebacking no Brasil No Brasil existem determinados grupos de contaminados, em sua maioria homossexuais, com o vírus HIV, se reunindo, secretamente, em festas denomidas “bare”, organizadas com o intiuto de difundir o Barebacking, pelos seus participantes.Seus adeptos, soropositivos ou não, “brincam de roleta- russa”. A roleta-russa é uma modalidade de aposta na qual o objeto em disputa é a própria vida. Nessa “brincadeira macabra “utilizandose de um revólver, os apostadores colocam apenas uma munição no tambor do armamento, fechando-o aleatoriamente. A partir desse momento, realiza-se o disparo, comumente com o cano da arma apontado para a cabeça, até a ocorrência da percussão da munição. Vence aquele que sobreviver (FERREIRA, 2011). No caso do barebacking, a munição nessa espécie de “roleta- russa” é a iminente possibilidade em adquirir o vírus causador da AIDS, sendo que os participantes praticam sexo sem preservativos ou qualquer outro cuidado, com o intuito de se tornar soropositivo, ou assumindo conscientemente o risco de contrair o vírus. Os adeptos desses “Bares” alegam que, em função dos avanços atuais relacionados ao tratamento anti-HIV e à facilidade de acesso a ele, caso sejam contaminados não perderão em qualidade de vida. As consequências, no entanto, relacionadas à prática nem sempre se traduzem de forma positiva, como supõem seus praticantes. Antirretrovirais não são os únicos responsáveis pela qualidade de vida de um HIV. A prática do sexo sem o uso de preservativo continua cada vez maisa conquistar novos adeptos. As campanhas realizadas pelo Ministério da Saúde sobre o tema não têm sido eficazes como deveriam. Apesar de o Brasil ser pioneiro no combate à doença, cada vez mais tem surgido novos infectados, em sua maioria homossexuais. O conceito de barebacking é associado a orgias frequentadas LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685 por homens que praticam sexo com outros homens, entre qualquer pessoa, independentemente de orientação sexual, e que buscam o prazer sem se preocupar em utilizar qualquer tipo de preventivos. 4 O CONSENTIMENTO DO OFENDIDO COMO CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE 4.1 Conceito de Crime Para se analisar se há ou não uma conduta criminosa é necessário primeiramente definir o que é previsto, no direito brasileiro, como crime. O Código Penal brasileiro não fornece um conceito específico do que seria crime;contudo, aduz, no artigo 1° da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto- lei nº 3.914/1941), que para o crime é reservada uma pena de reclusão ou detenção, podendo ser cominada alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Desta forma, o conceito de crime que adotamos é decorrente da doutrina. Diversos doutrinadores,durante anos, vêm fornecendo seus conceitos de crime. Os mais difundidos até hoje são os conceitos formal, material e analítico, sendo este último adotado pela maioria dos estudiosos brasileiros.Neste trabalho, lança-se mão do conceito analítico de crime aceito pela doutrina jurídico-penal brasileira. O conceito analítico de crime, como já diz o nome, tem a função de analisar todos os elementos ou características que integram o conceito de infração penal, verificando se há existência ou não de infração, através de uma análise criteriosa da conduta, da tipicidade e da culpabilidade. Nesse sentido nas lições de Francisco de AssisToledo: “O crime é um fato humano que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos (jurídico- penais) protegidos. Essa definição é, porém, insuficiente para a dogmática penal, que necessita de outra mais analítica, apta a pôr à mostra os aspectos essências ou os elementos estruturais do conceito de crime. Dentre as várias definições analíticas que têm sido propostas por importantes penalistas, parece-nos mais aceitável a que considera as três notas fundamentais do fato crime, a saber: ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade). O crime, nessa concepção que adotamos, é, pois, ação típica, ilícita e culpável. ”(TOLEDO, 2008:80). Diante do conceito analíticode crime, o que importa para o foco da discussão sobre a transmissão dolosa do vírus causador da AIDS é a ilicitude. O conceito de ilicitude, segundo Francisco de Assis Toledo,“é a relação de antagonismo que estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado” (TOLEDO, 2008:163). Quando se fala em ilicitude, é preciso haver uma contrariedade da conduta a uma norma jurídica anteriormente imposta. Contudo, o artigo 23 do Código Penal previu expressamente quatro causas de exclusão da ilicitude. Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. O Estado de necessidade é a situação de perigo atual, para interesse legítimo, que só podem ser afastadas por meio de lesão de interesse de outrem, igualmente legítimo. A legítima defesa éo uso moderado dos meios necessários, para 63 CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA ADQUIRIDA). VÍTIMA CUJA MOLÉSTIA PERMANECE ASSINTOMÁTICA. DESINFLUÊNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA UM DOS CRIMES PREVISTOS NO CAPÍTULO III, TÍTULO I, PARTE ESPECIAL, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. SURSIS HUMANITÁRIO. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DAS INSTÂNCIAS ANTECEDENTES NO PONTO, E DE DEMONSTRAÇÃO SOBRE O ESTADO DE SAÚDE DO PACIENTE. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DENEGADO.1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 98.712/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (1.ª Turma, DJe de 17/12/2010), firmou a compreensão de que a conduta de praticar ato sexual com a finalidade de transmitir AIDS não configura crime doloso contra a vida. Assim não há constrangimento ilegal a ser reparado de ofício, em razão de não ter sido o caso julgado pelo Tribunal do Júri. 2. O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida não é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do Código Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no julgamento do HC 98.712/RJ, o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte, naquele caso, conferir ao delito a classificação de “Perigo de contágio de moléstia grave” (art. 131, do Código Penal), esclareceu que, “no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art. 131”.3. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a conduta deverá será apenada com mais rigor do que o ato de contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme previsão clara do art. 129, § 2.º inciso II, do Código Penal.4. A alegação de que a Vítima não manifestou sintomas não serve para afastar a configuração do delito previsto no art. 129, § 2, inciso II, do Código Penal. É de notória sabença que o contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante acompanhamento médico e de administração de remédios específicos, o que aumenta as probabilidades de que a enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento não enseja a cura da moléstia. 5. Não pode ser conhecido o pedido de sursis humanitário se não há, nos autos, notícias de que tal pretensão foi avaliada pelas instâncias antecedentes, nem qualquer informação acerca do estado de saúde do Paciente. 6. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado. (HC 160.982/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 17/05/2012, DJe 28/05/2012). (grifo nosso) reprimir injusta agressão, ou iminente, a direito próprio ou de outrem. O estrito cumprimento de dever legal ocorre quando o sujeito se desincumbe de uma conduta que lhe é imposta por norma legal, sem extrapolar os limites que lhe são inerentes. O exercício regular do direito é aquele que se contém nos limites impostos pelo fim econômico ou social do direito em causa, pela boa fé e pelos costumes. 4.2 O Consentimento do ofendido A doutrina italiana sempre adotou o consentimento do ofendido em seu ordenamento jurídico-penal, sendo invejada por inúmeros outros doutrinadores. O artigo 50 do Código de 1930 estabelece: “Não é punível quem ofende ou põe em perigo direto, com o consentimento da pessoa que dele podia validamente dispor”.(Pirangeli, 2001, p. 81) No projeto original do Código Penal de 1940, havia uma previsão do consentimento do ofendido como uma das causas de exclusão da ilicitude.Entretanto, a comissão Revisora do Código de 1940, excluiu o dispositivo no fundamento de ser supérfluo. Com a reforma ocorrida na Parte Geral do Código Penal, o artigo 23 também não incluiu o consentimento do ofendido entre as causas de exclusão da ilicitude. O consentimento é adotado, no ordenamento jurídico brasileiro, como causa supralegal de justificação, contudo, somente terá validade conforme o critério de Welzel, na teoria da ação jurídica, quando a conduta estiver em conformidade com o consentimento. O consentimento deve corresponder à verdadeira vontade daquele que consentiu, pois o mesmo é caracterizado pela renúncia à tutela que a norma penal outorga a ele, devendo ser afastado os consentimentos obtidos mediante ameaça, por fraude ou engano, como também aquele dado pelos ébrios. (Pirangeli, 2001: 80). Parte da doutrina entende que o consentimento do ofendido exclui tão somente a ilicitude (antijuridicidade), outra parte entende que não só exclui a ilicitude como pode constituir também causa de exclusão da atipicidade. Contudo, o entendimento que tem prevalecido é que o consentimento deve excluir somente a ilicitude. O consentimento pode excluir tanto a ilicitude, quanto a tipicidade, sendo que, nesse último caso, só quando o tipo penal depende de um dissenso entre a vontade do agente e a do ofendido, isso ocorre como por exemplo no crime de invasão de domicílio, em que a pessoa éconvidada a adentrar a residência de uma determinada pessoa e, após se encontrar no local torna inconveniente sua permanência no local, passando a ocorrer o crime de invasão de domicilio. Neste caso estamos diante de causa de exclusão da tipicidade, pois houve um dissenso entre as partes. Trazendo o consentimento do ofendido ao contexto da transmissão do vírus causador da AIDS, nas festas chamadas “bare” – termo diminutivo de barebacking- surge a seguinte dúvida: Existe responsabilidade penal para aqueles que transmitem o vírus da AIDS a outra pessoa que sabia e provavelmente queria recebe-lo? A resposta a essa pergunta deve passar por uma análise do contexto em que ocorreu a transmissão do vírus. O primeiro ponto a ser analisado e levado em consideração seria se houve realmente o conhecimento e a permissão do parceiro. O segundo ponto, principal foco da discussão, é se houve o consentimento e interesse da pessoa ao querer adquirir o vírus. No primeiro ponto levantado, aquele que transmitiu o vírus causador da AIDS sem o consentimento deve responder por crime de lesão corporal gravíssima, tipificado no artigo 129, § 2°, inciso II, do Código Penal, sendo este o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme in verbis: HABEAS CORPUS. ART. 129, § 2.º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. PACIENTE QUE TRANSMITIU ENFERMIDADE INCURÁVEL À OFENDIDA (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685 No segundo ponto, que trata da transmissão com o consentimento do parceiro e vontade em adquirir o vírus, não deve haver responsabilidade penal ao transmissor da doença, uma vez que quem recebeu o vírus consentiu, de forma livre e consciente, sabendo de todas as futuras consequências desse fato. José Henrique Pierangeli dispõe, em seu livro, que o consentimento do ofendido é clausula de exclusão da ilicitude, nos delitos em que o único titular do bem é a pessoa que consentiu, conforme litteris: “(...) O consentimento do ofendido pode se constituir em causa de exclusão da antijuridicidade unicamente nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce (“acordo” ou “consentimento”) e que por livremente dele dispor. De uma maneira geral, estes delitos podem ser incluídos em quatro grupos diversos (...) b) delitos contra a integridade física (...)” (PIERANGELI,2001:98) 64 CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA A dúvida que surge nesse aspecto é, se quem adquirir (por consentimento) o vírus da AIDS, essa pessoa estaria dispondo do seu direito à vida? A resposta mais plausível a essa pergunta é que NÃO, tendo em vista que ser portador do vírus HIV não significa ter seu atestado de óbito assinado, pois,com o avanço da medicina, existem diversos tratamentos para a doença, permitindo queo portador tenha uma vida normal, assim como diversas outras pessoas que são portadoras de doenças crônicas e continuam tendo uma vida normal. A Constituição Brasileira traz como princípio fundamental, no artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana; igualmente, o artigo 5°, “caput”, da Constituição resguarda os direitos à vida e à liberdade, além de trazer, no inciso X do mesmo artigo, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Entretanto, o Código Civil de 2002, no artigo 13, limita o direito a uso do próprio corpo, proibindo as disposições corporais que não se pautam por necessidades médicas, ou que afrontem os ditos “bons costumes”. A importância da discussão sobre a autonomia do corpo vai muito além do que apenas os “bons costumes”. Questões como aborto, eutanásia, venda de órgãos e tantas outras são reguladas pelo direito. Mas, afinal, no que se baseiam os “bons costumes”? Fundamenta-se na vontade – e nos preconceitos – da maioria, numa tentativa de impor uma visão única e suprema do que seria o “bem viver”. Se formos levar em consideração os “bons costumes”, por que é permitido que os indivíduos façam mal a si mesmos? Por que há liberdade para fumar ou beber – e com isso destruir seus órgãos ao longo do tempo –, mas não há para que o indivíduo conscientemente realize a prática do Bareback? Dois pesos, duas medidas. Logo, o Código Civil estaria em contrariedade com a Lei Fundamental, uma vez que se um sujeito de direito considera que para ter uma vida digna é necessário ser portador do vírus HIV, por que aquele que transmitiu a doença a ele deve ser responsabilizado penalmente? Não existe um crime especifico, tipificado no Código Penal ou na legislação extravagante, que defina o crime de transmitir, dolosamente, o HIV a terceiros, existindo vários entendimentos doutrinários a esse respeito. Porque punir aquele que transmitiu o vírus causador da AIDS, e não punir as lesões nos esportes violentos, tais como,por exemplo,Boxe, Muay Thai, luta livre, Karatê. Qual a diferença entre essas lesões ao bem jurídico? A única diferença que existe é que, nos esportes violentos, o Estado lucra com altos impostos, como também com o alto público que esses tipos de esporte atraem, já a prática do barebacking ocorre somente entre particulares. A pessoa que luta, sabe que pode morrer (tanto que assina um termo de responsabilidade) e conscientemente e com autorização da sociedade entra no ringue para apanhar, bater, arriscar a matar, apenas para divertir e ganhar dinheiro. Existe aqui, uma violação do princípio da isonomia, quando o Estado limita determinadas condutas e permite outras condutas que também dispõem do bem jurídico tutelado. Desta forma, não há de se falar em disposição do bem jurídico relativo à vida humana, tendo em vista que a AIDS não é a doença que possui o maior índice de mortalidade. Segundo levantamento recente do Ministério da Saúde, a doença com maior índice de mortalidade é a diabetes. Se consideramos esse aspecto de mortalidade, dever-se-ia proibir todo produto comercializado com açúcar, uma vez que eles são potenciais causadores de diabetes, que trazem como consequência o óbito, como também deveria ser imputada responsabilidade penal a quem produz esses produtos, assim como aos que comercializam, como se veneno ou droga fossem. Mas o que temos é que as mesmas são legalizadas. LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685 Nesta mesma linha de raciocínio, fazendo uma analogia aos esportes “radicais” ou perigosos, porque o Estado permite uma pessoa a pular de paraquedas ou bungee jumping e base jump, sendo que este último possui um dos maiores índices de mortalidade, o que fez diversos países,como por exemplo Suíça e Noruega, proibirema prática de tal esporte. Encontramos de fato uma controvérsia por parte do Estado, ao permitir determinadas condutas mais gravosas à vida Humana, como a prática do base jump e proíbe outras condutas, como a pratica de sexo sem camisinha, onde ambos versam sobre o mesmo bem jurídico tutelado. Nota aqui uma perda da credibilidade do Estado ao querer determinar quais bens jurídicos são disponíveis ou não. Desta forma podemos concluir que não há que se falarem responsabilidade penal para quem transmite o vírus da AIDS com o consentimento do ofendido, tendo em vista que quem consentiu é único titular do bem juridicamente protegido e, livremente, quis dispor do bem tutelado, para se tornar portador do vírus da HIV. 4.3 Responsabilidade Penal O princípio da legalidade, estabelecido no artigo 1° do Código Penal, estabeleceque não há crime sem lei anterior que o defina. Na conduta de transmitir o vírus da AIDS com o consentimento do ofendido, não existe nenhuma tipificação adequada no Código Penal, nem em qualquer legislação esparsa no ordenamento jurídico punir a prática dessa conduta é fazer uma interpretação extensiva de algum dispositivo da lei penal,e extrapola a vontade do legislador. Não se pode falar em punição para aquele que transmite o vírus,nem para o receptor. O atual ordenamento jurídico não pune a autolesão, sendo considerada conduta atípica. Entretanto, o receptor da doença, ao consentir com a transmissão do vírus, abriu mão da proteção jurídica do bem tutelado pelo Estado. Nesse sentido, quando há uma renúncia do bem tutelado, (FERRARA apud PIERANGELI, 2001:79) afirma que “o proprietário que permite a violação de direito seu, que constitui induvidosamente um caso de consentimento, também renuncia à proteção jurídica” Retomamos novamente a pergunta: Existe responsabilidade penal ao transmissor da doença? Já se respondeu que, em razão do consentimento, não há responsabilidade. Neste sentido, Daniela de Freitas Marques dispõe: Ora, tanto os “doadores de presente” quanto os “caçadores de vírus” agem conjuntamente na violação de um determinado bem: a vida ou a saúde. (...) A alternativa possível, no caso específico do “barebacking”, é a criação de uma figura típica, em razão do conflito existente entre o bem vida ou saúde é o valor liberdade de expressão sexual. (FREITAS,2010: 85) No caso de responsabilização penal, surge mais outra dúvida. Qual seria a ação penal cabível? Ação penal de iniciativa privada? Ação penal pública? Quem tem a legitimidade para propor a ação? Façamos uma breve síntese de ação penal, focando somente na parte em que interessa para a discussão. Nas ações privadas, quem tem legitimidade de propor a ação é aquele que teve seu direito violado, ou seja, o ofendido. Vale ressaltar que o perdão concedido a um dos querelados é extensivo a todos que violaram o direito, não podendo ser oferecido a apena uma determinada pessoa. Nos crimes cuja ação penal é púbica, o órgão do Ministério Público, ao ofertar a denúncia, tem a obrigatoriedade em oferecer em desfavor a todos aqueles que são autores da conduta proibitiva, uma vez que a ação penal e indivisível. A ação privada, aqui, não e razoável, primeiramente por não 65 CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA estar presente uma das condições da ação, o interesse de agir, e segundo porque quem tem legitimidade de propor a ação é a mesma pessoa que consentiu manter relação sexual, com intuito de adquirir o vírus. Em razão do princípio da razoabilidade, como também da igualdade, o perdão concedido ao receptor do vírus deve ser extensivo ao transmissor, tendo em vista que, ao consentir que um terceiro lhe transmitisse o vírus causador da AIDS/HIV, este abriu mão do seu direito tutelado pelo Estado, conforme exposto acima, estando ambos nas mesmas condições. Desta forma, no caso de ação penal de iniciativa pública, cabe ao Estado duas hipóteses: a primeira é oferecer a denúncia em desfavor dos dois, e a segunda é estender o perdão concedido ao receptor ao transmissor. Em nosso estudo adotamos a segunda hipótese como forma de defesa, uma vez que o Estado, ao punir a autolesão, estaria indo contra os seus próprios princípios, que são os pilares do ordenamento jurídico. Com relação a pessoa que recebe o vírus causador da AIDS, trazendo no enfoque ao direito da personalidade, entendemos que não há uma renúncia ao direito da personalidade, conforme dispõe o artigo 11 do Código Civil, em que os direitos da personalidade são irrenunciáveis ou intransmissíveis; pelo contrário, temos uma afirmação desse direito, pois quem adquire o vírus entende que ser portador do HIV, faz parte de sua personalidade, de seu conceito de pessoa. Neste mesmo sentido Stanciolie (2010:98) afirma que“uma renúncia ao direito ao direito da personalidade, no plano valorativo, é a afirmação da autonomia da vontade da pessoa natural”. Coibir tais condutas é proibir o livre exercício ao direito da personalidade, afrontando direito fundamental previsto pela Constituição de 1988. SILVA, Luís Augusto Vasconcelos. Práticas e sentidos do barebacking entre homens que vivem com HIV e fazem sexo com homens. Disponível em <http:// www.scielo.br/pdf/icse/2010nahead/aop2210> acesso em 25/08/2015 TOLEDO, Francisco de Assis - Princípios básicos de direito penal/ Francisco de Assis Toledo. – 5. Ed. - São Paulo: Saraiva, 1994. Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel/ Anne Joyce Angher, organização. - 20. ed. – São Paulo: Rideel, 2015. (Série Vade Mecum). Código Penal Brasileiro. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Manual de Direito Penal/ volume I, parte geral / 10. Ed rev. atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. Notas de Fim 1 Acadêmica da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 2 Professor da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva. 5 CONCLUSÃO Para aduzir responsabilidade penal ao transmissor, no caso foco deste estudo, teria-se que haver responsabilidade penal tanto para o transmissor quanto ao receptor, uma vez que, como podemos extrair do trabalho, o adquirente do vírus renunciou ao seu bem jurídico tutelado pelo Estado, ao consentir que um terceiro portador do vírus lhe transmitisse a doença. Não se pune a autolesão no Direito brasileiro, e tal condição deve ser estendida ao transmissor, uma vez que as ações penais são indivisíveis, não se pode punir apenas uma pessoa que pratica um crime em concurso com a outra, e deixar de punir o coautor ou partícipe, sem justificativa legal. Após uma análise detalhada sobre a transmissão do vírus doHIV/AIDS, realizada através da prática do barebacking, concluímos que não existe responsabilidade penal para aquele que transmite o vírus, uma vez que quem recebeu o vírus, valendo-se da autonomia sobre o próprio corpo, como também no exercício de seus direitos inerentes à personalidade, dispôs de seu direito para poder ter sua afirmação como pessoa, assim como também para exercer seus direitos de acordo com seus critérios valorativos. REFERENCIAS DEPARTAMENTO DE DTS, AIDS E HEPATITES VIRAIS. Disponível em <http://www.aids.gov.br/ pagina/o-que-e-hiv> Acesso em 10 de maio de 2015. FERREIRA, Henderson William Alves.O Direito Penal e as festas “barebacking”. Disponível <http://jus.com.br/artigos/19875/o-direito-penal-e-as-festas-barebacking> - acessado em 25/08/2015. MARQUES, Daniela de Freitas.A herança do vento. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n.39, 2001. p. 77-106. STANCIOLI, Brunello. Renúncia Horizonte: Del Rey. 2010. ao exercício da personalidade. Belo LETRAS JURÍDICAS | V. 3| N.2 | 2O SEMESTRE DE 2015 | ISSN 2358-2685 66 CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA