Transmissão dolosa de Aids: tentativa de homicídio? Andrei Zenkner Schmidt PORTO ALEGRE - A Aids não tem cura. Ninguém jamais ousou afirmar (e provar) o contrário. Seria correto, entretanto, afirmar que a Aids mata? Poderíamos reconhecer que uma pessoa contaminada pelo vírus HIV irá, com razoável grau de certeza, morrer em razão do vírus? Tais indagações, parece-nos, são relevantes para que possamos enfrentar a intrincada questão penal relacionada à transmissão dolosa do vírus HIV. Temos algumas decisões proferidas por tribunais brasileiros (vide, por exemplo, o HC n° 9378/RS, julgado no STJ) reconhecendo que o tipo penal incidente é o de tentativa de homicídio. Argumenta-se, normalmente, que tal tipificação decorre do fato de a transmissão da doença ser idônea para a caracterização do homicídio na forma tentada. Estaria correto tal entendimento? Será que a possibilidade de uma conduta acarretar a morte de alguém é capaz, por si só, de ensejar tal tipificação? Todos sabemos que a gonorréia e a sífilis, por exemplo, são doenças que, caso não tratadas devidamente, podem até levar o contaminado à morte. Alguém, contudo, teria a coragem de afirmar que aquele que transmite gonorréia a alguém, ainda que com a esperança de que a vítima venha a morrer, responderia por tentativa de homicídio? Ainda são muito precoces as descobertas acerca dos efeitos que o uso dos coquetéis de medicamentos possuem no tratamento da doença. A terapia combinada previne o desenvolvimento das infecções, diminui a carga viral e aumenta a contagem de CD4. Algumas semanas após o inicio do tratamento, muitas pessoas sentem que recuperaram o apetite e o peso e, ainda, sua energia e bem-estar. Pode-se, inclusive, recuperar ou aumentar o interesse sexual. Entretanto, ainda não se sabe com certeza durante quanto tempo a combinação de drogas irá manter seus benefícios: até agora, mostrou-se efetiva por, pelo menos, dois anos (conforme www.aids.org.br/tratamento.asp). Estima-se que em mais da metade dos usuários do coquetel a doença esteja estagnada, embora nada possa garantir que, em alguns anos, a carga viral torne a aumentar ao ponto de os medicamentos tornarem-se ineficazes. Todo esse problema, então, origina duas premissas científicas atuais: a) a AIDS não tem cura; b) o paciente contaminado, não necessariamente, irá sucumbir à doença. Parece evidente que o direito penal não pode permanecer inerte a essas questões. Inicialmente, é importante frisar que não se está mitigando a gravidade e a relevância jurídicopenal da conduta daquele que transmite dolosamente o vírus HIV. O problema, na verdade, é outro: estaria, o direito penal brasileiro aparelhado para tipificar condutas dessa natureza? Penso que a resposta é negativa. Com efeito, não basta, para a tipificação de uma conduta, que a conduta do agente tenha adequação típica subjetiva, até mesmo porque o crime impossível _causa de ausência de tipicidade_ está caracterizado pela intenção criminosa do agente, sendo que sua conduta é tão tosca ao ponto de não ser possível, num caso concreto, a realização do delito. Pense-se, por exemplo, na conduta de alguém que, ao receber um diagnóstico incorreto de HIV positivo, põe-se a tentar transmitir a (falsa) doença a outras pessoas. É evidente que, por força do artigo 17 do Código Penal, não poderíamos falar em qualquer punição ao nosso personagem, e isso por uma singela razão: só a maldade não pode ser objeto de punição. Conseqüentemente, não é o fato de alguém pretender transmitir Aids, ainda que com a intenção de matar alguém, que poderá autorizar, por si só, a adequação típica no crime de tentativa de homicídio. O problema, creio, é de tipicidade objetiva: a) quem transmite Aids não tem o domínio do acontecer causal, ou seja, embora a transmissão da doença seja controlável pelo agente, o mesmo não se pode afirmar em relação ao resultado morte; b) se a ciência não é capaz de afirmar, com relativo e satisfatório grau de certeza, que uma pessoa contaminada pelo vírus HIV irá morrer, parece temerária e precipitada a conclusão no sentido do crime de homicídio tentado. Quando alguém deflagra um disparo de arma de fogo contra um terceiro, pode-se ressaltar que o resultado morte, apesar de não impreterivelmente verificar-se, está dentro de um certo domínio pela conduta do agente. Por outro lado, o grau de letalidade de um disparo de arma de fogo é bastante razoável. Não estamos trabalhando com juízos de certeza, mas sim de probabilidades: aquele que, com a intenção de matar alguém, deflagra um disparo e acerta exatamente o local em que havia mirado, pode contar, com alto grau de probabilidade, que irá atingir o resultado morte. Será que aquele que transmite dolosamente a Aids pode contar com o mesmo grau de certeza? Essas considerações estão a indicar que os problemas de adequação típica (lembre-se de que sequer aventamos a questão da transmissão culposa) da conduta de transmissão dolosa do vírus HIV, bem como a relevância jurídica do tratamento penal da matéria, apontam para a necessidade de um novo tipo penal específico, cuja consumação estivesse associada à mera transmissão dolosa da doença, consignando, com resultado qualificador, a morte da vítima. Sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005