DIREITO DE FAMÍLIA E DIREITO NATURAL Carlos Aurélio Mota de Souza* I - DIREITO E MORAL 1. Por que o Direito obriga? Por quê, no trânsito, paramos nos sinais vermelhos? Receio de multa? perder a habilitação? provocar acidente? Pode ser tudo isso, mas há algo acima do Código de Trânsito que nos obriga a parar: o dever moral de cumprir as leis. Sócrates morreu ensinando: “É preciso cumprir as leis (sentenças) injustas, para que os cidadãos não se neguem a cumprir as justas”.1 Desde os tempos mais primitivos o Homem teve necessidade de códigos para regular suas condutas. Os primeiros eram religiosos ou morais, mas depois se tornaram leis obrigatórias. Em Roma, antes da Lei das XII Tábuas (450 a.C.), as leis não escritas só eram conhecidas dos sacerdotes e magistrados.2 Há, pois, íntima relação entre Moral e Direito porque ambos derivam do mesmo ramo, que é a Ética, ligada à Axiologia, que cuida dos Valores.3 2. Como se relacionam Ética, Moral e Direito? A Moral aponta para os hábitos de comportamento que uma pessoa se impõe a si mesma, de dentro para fora, de sua subjetividade para a objetividade de sua conduta; à sua vez, o Direito impõe suas normas de agir de fora para dentro, da objetividade para a subjetividade. As regras da primeira se dizem, por isso, autônomas, e as do segundo, heterônomas. Como Moral e Direito se subordinam à Ética geral, pode-se afirmar, sucintamente, que Moral é a Ética Subjetiva objetivada (ESO), enquanto Direito é a Ética Objetiva subjetivada (EOS). 3. Tipos de Moral É a Moral algo absoluto ou ela é relativa? Dizem que varia no tempo e no espaço, segundo variam os costumes sociais. É verdade, em parte, mas devemos distinguir 4 tipos distintos de “moral”: A) A Moral individual - É um código de valores que vamos escrevendo e incorporando dentro de nós mesmos, ao longo da vida, por força da educação familiar, do estudo, das relações sociais, e sobretudo da nossa experiência pessoal, através dos nossos erros e acertos. É resultado de nossa “educação permanente”para a vida em sociedade. 1 . Cfr. Apologia de Sócrates, Xenofonte; e o diálogo Criton, de Platão. . Cfr. Jaime de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos. SP, Melhoramentos, 1964. 3 . De fato, êthos, em grego, e mos, moris, do latim, significam igualmente costumes, regras válidas de conduta, aquilo que vale. 2 2 B) Uma Moral social ou coletiva, que varia no tempo, nos países, nas regiões e sobretudo nas cidades: a moral em São Paulo, Nova York, p.ex., é altamente aberta, permissiva, enquanto nas cidades menores é nitidamente fechada ou restritiva. Pode-se aceitar, para esta, o conceito de “relativa” ou de “mutável”, no tempo e no espaço. C) Moral Filosófica, Política ou Religiosa - É inegável a influência de certas “filosofias de vida”, que ajudam as pessoas a formar seus códigos de ética.4 A política, os partidos, levados a sério em suas ideologias, também influem na conduta das pessoas. Nos anos 20 e 30 este século assistiu ao nascimento de partidos e idéias políticas defensoras de Estados totalitários,5 e que levaram à maior catástrofe da história da humanidade, com a 2a. Grande Guerra. Mesmo em nossos dias, há partidos que obrigam filiados a adotarem condutas explícitas de esquerda ou de direita; alguns, mais radicais no modo de falar, de agir, nos gestos, exigem dedicação à sua causa e até contribuições financeiras.6 Nas religiões, igualmente, sobretudo as chamadas fundamentalistas, em que a crença se mescla com a política, as pessoas dão a vida por uma causa, invocando até mesmo mandamentos religiosos (ex., as lutas no Oriente Médio). D) Mas há uma Moral Humana: enquanto nos três tipos citados há liberdade na escolha de um código de conduta (posso pertencer livremente a um partido, a uma religião, a um pensamento filosófico), há um campo da Ética que é inata no Homem, não depende de nossa vontade livre, cujos princípios nenhuma lei pode revogar: são os fundamentos do caráter e do ser do Homem, entre eles o direito à vida, à liberdade, à razão. 4. O que é ser “digno”? Em que consiste a “dignidade” do homem? Porque o homem é um ser diferenciado de todos os demais seres da natureza, porque é o único dotado de liberdade, inteligência e vontade, esta diferença nos faz “dignos” da condição humana. O ser humano não é apenas um indivíduo, é uma pessoa, “substância individual de natureza racional”. 7 4 . O Positivismo filosófico de Augusto Comte, que negava a religião, passou a cultuar a Razão, de tal forma que se converteu em outra Religião, haja vista os Templos Positivistas da Razão. Atualmente assiste-se a um recrudescimento das filosofias esotéricas ou orientais, sobretudo a Gnose, New Age, etc., com forte influência sobre a conduta das pessoas. 5 . Fascismo, nazismo, franquismo, comunismo; na América, o peronismo, o getulismo, etc. 6 . Os movimentos guerrilheiros e os reivindicatórios de direitos, v.g., implicam em profunda modificação dos comportamentos pessoais. É o caso da brasileira presa 11 anos em Israel, por lutar na guerrilha palestinense, por suas atividades políticas. 7 . Conforme clássica definição de Boécio. De fato, dignitas, dignitatis, significa decoro, qualidade superior, nobreza, excelência, como aparece na expressão verdadeiramente digno e justo, eqüitativo e salutar, lembrando Cícero que a idéia de dignidade está associada à de justiça e eqüidade (Retórica, II, 53). Na Mater et Magistra, João XXIII refere-se à “sagrada dignidade da pessoa”; já Sêneca clamava: “o homem, coisa sagrada para o homem”. João Paulo II: “O Homem é livre porque possui a faculdade de determinar-se em função da verdade e do bem. A liberdade, em sua essência, é interior ao homem, conatural à pessoa 3 O que distingue o Homem dos demais seres é este aspecto, e nele se fundamenta sua dignidade. São princípios naturais que o Homem não pode abolir, sob pena de destruir a si próprio, à sua família, à comunidade, à própria humanidade: não matar, não roubar, não mentir (fraudar, adulterar...), etc. A síntese de todos esses tipos da Moral se concretiza numa regra universalmente aceita, nunca contestada por código algum, reconhecida por todos os povos: “fazer o bem e evitar o mal”, mais tarde completada pela regra de ouro “fazer aos outros tudo aquilo que gostaríamos que também fizessem a nós mesmos”. II - OS DIREITOS NATURAIS DO HOMEM Estes fundamentos perenes, imutáveis em todos os códigos, Cícero explicou que se tratava de “uma lei verdadeira, norma racional, conforme à natureza, inscrita em todos os corações, constante e eterna, a mesma em Roma e em Atenas; tem Deus por autor; não pode, por isso, ser revogada nem pelo senado nem pelo povo; e o homem não a pode violar sem negar a si mesmo e à sua natureza, e receber o maior castigo” (República, II, 22). É o mesmo princípio que Sócrates aplicava ao homem: “conhece-te a ti mesmo”; e mais tarde Santo Agostinho: “não saia fora de ti, entra em ti mesmo, pois no interior do homem habita a verdade”.8 1. Lei Eterna, Natural e Humana São Tomás, a propósito das leis, distinguiu Lei Eterna, Lei Natural e Lei Humana. Lei Eterna é a inteligência divina, identificada com sua vontade, que eficazmente dirige todos os entes criados a participar e manifestar seu ser. 9 Lei Natural e Eterna não são diferentes: a Lei Eterna é imanente ao espírito do Supremo legislador; e a Lei Natural se considera promulgada no espírito do homem; é a participação da Lei Eterna na criatura racional, segundo Santo Tomás. 10 humana, sinal distintivo de sua natureza. A liberdade humana encontra seu fundamento em sua dignidade transcendente”. Mensagem de Paz, 1º/1/1981. 8 . Da verdadeira religião, I, 39, 72. V. Ismael QUILES, La interioridad agustiniana, 1989. 9 . Aquí o jurista encontra o fundamento último das leis humanas. Cfr. Ylves José de Miranda GUIMARÃES. Direito Natural. Visão Metafísica & Antropológica, SP, Forense Universitária, 1991, p.180. Cfr. ainda Miguel REALE, Direito positivo/Direito natural; José Pedro Galvão de SOUSA, Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito (1977). 10. O Direito natural compendia um conjunto de normas (ou leis naturais) obrigatórias e universalmente aceitas. Em sentido objetivo, são todas as leis morais naturais (Moral humana) que se referem à vida social dos homens, resumidas nos citados preceitos de dar a cada um o que é seu (deveres jurídicos positivos) e a ninguém lesar (deveres jurídicos negativos). Deles se deduzem necessariamente os preceitos não matar, não roubar, não cometer adultério, não falsear, pagar as dívidas, devolver os depósitos, cumprir as promessas, obediência à autoridade legítima, etc. Além de um dever ser, o Direito natural é também um direito verdadeiro, existente; é universal, válido para todos os homens; é necessário, imutável e invariável. Cfr. Victor CATHREIN, Filosofia del Derecho. Madrid, Reus, 1950, pp.196ss. Em sentido subjetivo, compreende o conjunto das faculdades jurídicas que cabem a cada homem por sua própria natureza: direito à vida, à inviolabilidade, à liberdade, à 4 Não é fácil precisar os limites do Direito Natural, porque não é um conjunto de princípios ou normas escritas, mas estando na natureza do Homem, são-lhe conaturais, estão em seu íntimo e ele pode descobri-los com a razão e com o sentimento, sobretudo os princípios de Justiça.11 Platão ensinou que os três grandes valores que o homem deve buscar sempre são o Justo, o Belo e o Bom, sendo Deus o Bem Supremo, síntese de todos os valores. E estas coisas são inatas e estão permanentemente inscritas no coração do homem. Dentre elas, a Justiça é uma das virtudes naturais da pessoa humana, das mais importantes para o Direito, como forma de promover a ordem e a paz entre os homens, proclamando o que é justo ou afastando as injustiças. 2. Direitos humanos Em sua feição moderna, os direitos naturais (subjetivos) se chamam Direitos Humanos. Em termos constitucionais, traduz-se em Direitos e Garantias Fundamentais, sejam individuais, sejam coletivos ou sociais (art. 5º a 7º da CF 88). Em termos religiosos, o ponto mais importante se denomina fraternidade, que é, socialmente, a mesma solidariedade. Poderíamos sintetizar que, hoje, direitos naturais, que sempre foram humanos,12 se concretizam na Solidariedade, expressão coletiva do “amar ao próximo como a si mesmo”. Enquanto o Direito natural, em sua essência, apresenta características de imutabilidade, através dos tempos e lugares,13 estes princípios e regras precisam ser explicitados ou expressos, para que os cidadãos saibam o que podem ou não fazer. Daí as leis escritas, os Códigos e as Constituições, como existem em todas as nações democráticas. Embora variem no tempo ou dentro de um mesmo país, são temperadas pelos costumes e pela interpretação dos Tribunais. 3. Direito positivo São necessárias leis escritas para que o cidadão goze de segurança jurídica. Segurança e Justiça são faces da mesma moeda: não há Segurança sem Justiça e viceversa. E ambas constituem o Bem comum, pois visam o bem-estar e a paz da sociedade. propriedade, etc, Idem, p.204ss. Podemos dizer, hoje, que constituem os Direitos Fundamentais das Constituições democráticas. 11 . Como a lei natural é apreendida pelos homens? Pela faculdade natural da inteligência prática de julgar com retidão, conhecida por sindérese. Esta contem os primeiros princípios de ordem teorética ou especulativa, a saber: 1) princípio de identidade: o que é, é; 2) princípio da não contradição: o ser não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo; 3) princípio da razão suficiente: tudo tem sua razão de ser. Cfr. Ylves José de Miranda GUIMARÃES, op. cit., p. 183. 12 . “Todo direito foi constituído por causa do homem”. Justiniano, D., 1,5,2. 13 . “...o justo natural é imutável e tem em todas as partes a mesma força, como o fogo que arde igualmente aqui como na Pérsia”. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Cap.V, II,1134b, 25. 5 Sociedade sem leis é sociedade insegura e anárquica. Assim, enquanto os princípios essenciais de Direito natural são imutáveis,14 as normas escritas do Direito positivo são variáveis. Assistimos, hoje, no Brasil, à sucessão interminável de leis que mais confundem e geram insegurança do que esclarecem. No campo da Família, muitos dispositivos do Código Civil foram revogados (arts.336, 337, 355, etc.), e inúmeras leis sucessivas vêm acarretando insegurança e incerteza no Direito Familiar (v.g., Leis 8.971/94, 9.278/96, Projeto de Lei 2.686/96, sobre a União Estável; sem contar os Projetos tentando instituir a união de pessoas do mesmo sexo...). Na prática os juristas devem ter dois olhares: um para cima, que o leve a considerar o que há de transcendental na Justiça (a natureza do homem, os princípios de Direito natural) e outro olhar para baixo, descendo à consideração das condições sociais (na consulta aos Códigos, na natureza das coisas).15 III - NATUREZA DA PESSOA HUMANA (Vista pela Ética e pelo Direito Natural) 1. Valor da vida humana e sua inalienabilidade A vida é o bem supremo da pessoa humana. Tal relevância exige condições para se conservar, para se desenvolver e para maturar a vida. As Constituições democráticas garantem o direito à vida, e a nossa inscreveu em seu artigo 5º que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Grifamos). Inúmeros dispositivos reconhecem que a vida está intimamente relacionada com a família, como causa e condição de procriação dos filhos, assegurando-lhes defesa e proteção. Assim enfatizam os artigos 227 e 230: Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Art. 230 A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. 2. Nascer com dignidade 14 . Este ponto é objeto de profundas discussões: qual o limite desta imutabilidade? . Cfr. Antonio HERNÁNDEZ-GIL, Conceptos Jurídicos Fundamentales, Madrid, Ed.Rev.Der.Privado, 1981, p. 26. 15 6 (Proteção à maternidade dentro da família) Pela natureza do homem, sempre que uma vida principia ali há uma família, legítima ou natural, permanente ou eventual, acima do que a lei humana disponha. Por tais condições, toda criatura tem o direito de ter um pai conhecido e uma mãe certa, e, no momento oportuno saber quem são eles.16 Os direitos do nascituro não são apenas econômicos, mas morais, como a gestação assistida, o nascimento confortável, sem comprometer o pleno desenvolvimento físico-psíquico. Obstáculos ao direito de nascer se multiplicaram neste século, atingindo limites de barbárie: o aborto, a fecundação in vitro, a manipulação genética, e agora a clonagem. O Código Penal prevê apenas duas hipóteses para o aborto legal: estupro e perigo de vida à gestante.17 Projetos inúmeros pretendem ampliar estas hipóteses: uma delas, a malformação do feto: a mulher alega, uma junta médica decide, algum hospital pratica... Num tempo de extremo mercantilismo, qual código de ética resistiria a um laudo médico de encomenda? As outras ameaças ao nascimento com vida digna dizem respeito não mais à vida intra-uterina, mas à engenharia da vida extra-uterina, ainda que a geração se desenvolva no seio de uma mãe. A ciência moderna tudo pode, até mesmo gerar clones como Dolly, a ovelha, mas NÃO DEVE provocar a natureza, quando se trata do homem. A criação do homem está na sua originalidade, em sua natureza dualista, em que corpo e espírito se criam num mesmo ato. Trata-se de bem superior indisponível para experiências científicas, ainda que sob elevados propósitos de suprir a dor, a doença, a esterilidade ou o aperfeiçoamento da espécie. Portanto, compete aos operadores do Direito, sobretudo na área do Direito Familiar, concentrar estudos, promover discussões e intervir politicamente para esclarecer a opinião pública, nossos governantes e legisladores, que uma lei positiva com poder ofensivo a qualquer aspecto da geração da vida contraria frontalmente o Direito natural, que é o Direito do Homem, já garantido pela Constituição (art. 5º, caput). 3. Formação da personalidade 16 . Daí derivam as ações de investigação de paternidade e maternidade. Os interesses morais são o nome e a tradição. Os econômicos, são a herança e sua justa partilha. 17 . C. Penal, art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário - I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 7 O homem é um todo harmônico e integral (Maritain), formado de um corpo material espiritualmente “animado”. O filósofo Batista MONDIN aponta as várias dimensões do homem, que nele se apresentam e se realizam ao mesmo tempo: homo somaticus (em sua dimensão corpórea), homo vivens (vida humana como existência vivida), homo sapiens (o conhecimento sensitivo e intelectual, que o torna sábio), homo volens (vontade, liberdade, amor), homo loquens (a linguagem como originalidade de comunicação), homo socialis (dimensão social e política), homo culturalis (a cultura desenvolvida pelo homem), homo faber (o trabalho e a técnica), homo ludens (o jogo e o divertimento), homo religiosus (a crença do homem).18 Qual desses traços é mais proeminente no Homem? Nenhum, pois em sua integralidade o Homem não pode abdicar de qualquer deles. Há uma vocação, contudo, um chamamento interior, pelo qual o Homem desenvolve mais alguns aspectos do que outros. Mas é pela educação permanente que forma sua personalidade. Até a hora da morte o homem está em formação constante, em aperfeiçoamento permanente. Além da educação básica e profissional, é o trabalho o grande dom que faz o homem digno.19 A economia gerada pelo trabalho transformou o mundo e as civilizações. Todos os homens devem ter seu emprego garantido, com salários dignos para manter uma família. Toda lei ou toda prática contrária à igualdade econômica entre os homens é iníqua e deve ser denunciada. Os juristas do trabalho têm, neste campo, excelente oportunidade de protegerem o trabalhador contra manipulações que não distribuam a riqueza com justiça. Nas atividades governamentais assiste-se ao descalabro financeiro, na dilapidação dos dinheiros públicos, seja desviando verbas destinadas às pessoas necessitadas (escola, saúde, assistência social...), seja investindo grossas verbas para obras não prioritárias, com destinações duvidosas desses recursos. A Constituição Federal impôs o princípio da moralidade e transparência dos atos públicos. Em sua dimensão social e política, além da liberdade de expressão e de filiação partidária, compete aos destinatários do Direito denunciar, pelos meios legais, e exigir que os governantes se atenham às necessidades prioritárias da sociedade, prestando contas de seus atos. Para tanto, a Família constitui o núcleo privilegiado para o cultivo dos princípios morais não relativos, o relacionamento Ser Para, a prática existencial contra todo abuso e violência. O exercício da ética como hábito de vida na família, como código moral, implica no exercício da justiça em todos os setores da comunidade social. Por fim, mas não menos importante, a família é o lugar privilegiado em que se permite ao homo religiosus manifestar seu direito de crença, exercitar sua vida espiritual, como uma das dimensões mais dignas do homem, aquela que o “religa” ao Absoluto. 18 . Batista MONDIN, O homem, quem é ele? SP, Paulinas, 1982. . João Paulo II. Laborem exercens. 19 8 4. Morrer com dignidade Tem o homem um “direito a morrer”? A escolher uma morte indolor? O suicídio não é punido pela Lei Penal, apenas o auxílio ao suicida; mas procurar a morte é, pelo menos, um grave dano à família, à sociedade e ao gênero humano. Único ser consciente de sua vida, cujo valor é inestimável, é inconcebível que procure a não-vida pelas próprias mãos ou com auxílio de quem se disponha a fazê-lo, salvo casos de demência evidente.20 Na família, qualquer membro que falte (até por morte natural), gera vazios crescentes: a ausência do membro ativo que sustentava a casa (pela presença, pela comunicação, pelo trabalho, pela cultura), é insuprível. A perda de um cidadão pela sociedade; a empresa, um talento gerador de economia; o mundo se apequena. É uma vileza. A eutanásia ativa, sobretudo visando o lucro, é ignomínia maior, desrespeita o ser, ultraja os códigos de ética, médica e sanitária, afronta o Direito, burlando as normas penais.21 Admite-se a passiva, que não alcança os limites da ética, por deixar os pacientes ao influxo da natureza, para um decesso natural, com dignidade. A pena de morte é mais grave ainda. Mata-se o homem para punir os crimes que cometeu. É a vingança estatal. A lei que admitir ou adotar tal pena, pode satisfazer a sociedade, num dado momento, por causa da extrema violência que se registra, mas jamais serão justas, porque o direito à vida é da natureza do homem, e não depende da opinião de alguma maioria ocasional. Ademais, em nenhum país que a adota decresceu o índice de criminalidade violenta, pela simples existência da pena de morte. A III Idade. Antes de morrer, contudo, as pessoas ficam idosas, envelhecem, não podem trabalhar, causam problemas de toda ordem à família, e esta recorre aos asilos, onde acabam esquecidos, e muita vez ali mesmo terminam sua vida. No entanto, é da natureza humana nascer e morrer no seio de uma família. O idoso tem o direito de ficar com a família: C.F. Art. 230 A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. C.C. Art. 399. Par. único. No caso de pais que, na velhice, carência ou enfermidade, ficarem sem condições de prover o próprio sustento, principalmente quando se despojaram de bens em favor da prole, cabe, sem perda de tempo e até em 20 . Em Campinas, psicólogo tetraplégico de 35 anos diz que não quer passar o resto da vida preso a uma cadeira de rodas e pede na Justiça o direito à morte (O Estado de S.Paulo, 3.3.95). 21 . A primeira lei de eutanásia foi adotada em 1994 no Estado do Oregon (EUA): a medida permite a pacientes com menos de seis meses de esperança de vida pedir ao médico dose letal de drogas para evitar sofrimento provocado pela doença. Em 1993 a Holanda aprovou a primeira legislação autorizando médicos a assistir o suicídio de pacientes (O Estado de S.Paulo, 13.4.94). 9 caráter provisional, aos filhos maiores e capazes, o dever de ajudá-los e ampará-los, com a obrigação irrenunciável de assisti-los e alimentá-los até o final de suas vidas. (A Lei 8.648, de 20.4.93, acrescentou o parágrafo único). Doação de órgãos dos mortos. Cabe lembrar a recente lei sobre transplante de órgãos, mais de expropriação pelo Estado que doação propriamente (Lei Nº 9.434, de 4.2.97, dispondo sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento). Já não se trata de “morrer com dignidade”, mas ter o corpo respeitado após a morte. Antígona enfrentou um tirano, Creonte, porque ousou enterrar seu irmão Polinice. Por sua boca, compilando tradições longevas, Sófocles nos legou um testemunho dos mais antigos sobre o Direito natural.22 Mesmo após a morte, o corpo humano guarda uma sacralidade digna de temor reverencial. O significado de um homem morto transcende ao conhecimento, entra pelo campo da sensibilidade e só obtem resposta na metafísica e no sobrenatural. Assim como o homem vive como um todo, orgânico e espiritual, assim o corpo deve ser respeitado e dignificado. Ainda que altamente louváveis os propósitos da lei, não tem as salvaguardas necessárias e indispensáveis para proteger os recém-mortos de uma desapropriação privada, com escusas intenções. O sublime pode ser sacrificado pela ganância. Ademais, penalmente poderia caracterizar destruição de cadáver.23 IV - VALORES QUE INFORMAM A VIDA FAMILIAR Ao perscrutarmos os abismos da eternidade, descobrimos que sempre existiu uma Pessoa que é o Pai, alguém que é o Filho, e alguém que é o Amor entre Pai e Filho, e que, portanto, existe uma comunidade que sempre viveu de forma trinitária, em atitude de amor recíproco. A família humana é, também, uma realidade, na qual o Pai está relacionado ou voltado para outra realidade, a Mãe, e de cujo amor mútuo nasce a realidade Filho(s), constituindo a comunidade familiar, tal como é e sempre foi conhecida através dos tempos. 1. Relações éticas entre Pais e Filhos Qual a origem desta comunidade, fundada na natureza da pessoa humana? Quando se fala “Pai”, de imediato pensamos em um “Filho”, e também pensamos em uma “Mãe”, pois ninguém é “Filho” sem uma “Mãe” e um “Pai”. Vemos, então, que a realidade Pai é essencialmente relacionada com a realidade Mãe. “Relacionado” significa estar voltado para outra realidade, enfim, é SER PARA alguém.24 22 . “ ...as leis divinas, não escritas, mas intangíveis, não é desde hoje, ou de ontem, mas desde a origem de tudo que essas leis estão em vigor, e ninguém as viu nascer”. Sófocles, Antígona. 23 . C. Penal, art. 211. 24 . Cfr. D. Joel Ivo CATAPAN, Fundamentos Cristãos da Política, v.1, S.Paulo, Cidade Nova, 1992, pp. 13ss. 10 Do mesmo modo, ninguém pode ser Mãe sem a realidade de outra pessoa, que é o Pai. A Mãe está, pois, em relação ao Pai, e este em relação mútua com aquela. Esta é a primeira realidade “essencialmente relativa” ou “relacionada em essência”, entre duas pessoas. E mais, ninguém é Filho, se não tiver alguém que seja seu Pai e sua Mãe. Assim, “ser filho” é ser “relação”, é SER PARA alguém que é Pai ou Mãe. Ora, a relação Pai-Mãe ou Pai-Mãe-Filho é sempre uma realidade amorosa. Assim, também o amor entre as pessoas é “relação”, é um “estar relacionado”, é o SER PARA da pessoa que ama à pessoa amada. Este relacionamento essencial, entre Pai, Mãe e Filhos, tem por finalidades se realizarem, primeiramente como Pessoas, como Comunidade familiar, e depois Comunidade social, e constituem os valores fundamentais que informam a vida familiar e comunitária em geral. 2. Formação da Comunidade familiar Observa-se que em todo relacionamento do homem como um SER PARA, há o sentido da reciprocidade: desde a criação de Eva a partir da “costela” de Adão (Gn 2,21), dá-se a atração recíproca entre Homem e Mulher para reconstruir a unidade perdida.25 A primeira das condições do matrimônio, não única, é a atração física de corpos; mas esta entrega recíproca não se plenifica se Homem e Mulher permanecem no nível do instinto; na verdade, o amor humano emerge a nível de espírito, transcende do plano da necessidade para o da liberdade, do sentido e dos valores, inclusive para o Absoluto. Família é, pois, um dom mútuo do esposo e da esposa, dos pais e dos filhos, dos irmãos entre si, dos parentes em geral, criando laços de solidariedade: cada membro cresce em dignidade humana na medida em que se empenha na valorização do outro; daí dever ser a família um modelo para as sociedades. Trata-se aqui, tanto da comunidade familiar restrita, como o seu desdobramento, a comunidade social, mais ampla. Podemos dizer que a trindade familiar, Pai-MãeFilho, é essencialmente SER PARA uns aos outros, necessária, imediata e mutuamente, bem como para todos os parentes, ascendentes e colaterais.26 25 . Como se vê, não há primazia histórica nem ontológica do Homem sobre a Mulher: “Eis aqui agora o osso dos meus ossos e a carne de minha carne” (Gn2,23). Cfr. Pierre BIGO, SJ; Fernando Bastos ÁVILA, SJ. Fé Cristã e Compromisso Social. SP, Paulinas, 1982, p.229. 26 . Não por acaso, a palavra parente, em inglês, é relative... CC Art.330 São parentes, em linha reta, as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes. (Art.397 O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros). 11 Onde houver o SER PARA de uma pessoa para a outra, ali haverá “comunidade” familiar. Portanto, só há comunidade onde cada pessoa está voltada para atender aos desejos e necessidades das demais pessoas.27 “Se numa comunidade, cada pessoa se fecha em si mesma, se isola, se separa das demais, como formará comunidade? Imagine-se uma família onde o pai não dá atenção aos filhos nem à esposa, e onde a esposa não se incomoda com o esposo nem com os filhos, e onde os filhos não se comunicam e nem conversam com seus pais. Tal família nem de longe é comunidade. Imagine-se outra família, onde o pai é todo voltado para os filhos e para a esposa (é um SER PARA os filhos e a esposa), a esposa é toda voltada para o esposo e para os filhos, (é um SER PARA o esposo e os filhos), e os filhos são todos voltados entre si e para os pais (são um SER PARA entre si e com os pais), ali teremos uma família que é também verdadeiramente comunidade”.28 O mesmo se dará com qualquer grupo de pessoas, restrito ou amplo, pois as famílias se unem para formar a grande família, a comunidade social. Onde houver “comunidade” haverá também VIDA, pois onde uma pessoa “é para” a outra, haverá comunhão, comunicação, convivência, em suma, haverá “vida”, onde não houver o estar voltado para o outro, aí não haverá vida, mas MORTE.29 Numa família, onde houver “comunidade” e “vida”, haverá também “Felicidade”. 3. A Comunidade social e política Ora, o SER PARA é a base de qualquer comunidade. Sendo o SER PARA inseparável do ser humano, segue, como conseqüência, que toda pessoa humana tende, por natureza, à sua realização através da comunidade. A primeira, básica, é evidentemente a família.30 Podemos concluir que SER PARA entre as pessoas organiza e convoca a comunidade, cria vida e faz nascer a felicidade. Mais ainda. Podemos dizer que estas três realidades, comunidade, vida e felicidade, em sua essência são uma e a mesma coisa. É o que se pode chamar de sinonímia interna entre comunidade, vida e felicidade. Como é evidente, a proteção, a conservação, o desenvolvimento e a maturação da vida humana, em todas suas fases, depende da vontade dos governantes. Mas cabe às comunidades, e com maior relevância aos juristas e operadores do Direito, empenhar-se em que os políticos não se omitam frente a medidas contrárias à proteção da vida e de sua dignidade, em suas variadas manifestações. 27 . C.Civil, art. 231. Deveres entre os cônjuges: fidelidade recíproca, vida em comum, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos. 28 . Cfr. Joel Ivo CATAPAN, Op.cit., p. 19. 29 . As justificativas para separações e divórcios geralmente se estribam na insuportabilidade da mútua convivência (art. 5º da L.6515/77); ou seja, não há disposição de um SER PARA o outro. 30 . Mas, ao constituirem uma família, Marido e Mulher trazem as dos respectivos pais. Assim, progressivamente, formam-se os laços de afinidade entre ascendentes, descendentes e colaterais, ampliando-se as comunidades familiares de forma indissolúvel. (Art. 334 Cada cônjuge é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade. Art. 335 A afinidade, na linha reta, não se extingue com a dissolução do casamento, que a originou). 12 “Por isso, - ensina D. Joel Ivo Catapan - criminosa será toda e qualquer política que planeje ou favoreça tudo o que é contra a vida do homem. Péssima será a política que planeje e organize a pena de morte. Abominável é a política favorável ao aborto. Condenável a política em favor da eutanásia. Enfim, inaceitável também a política que prejudique ou diminua a boa qualidade da vida humana. Consequentemente, a política ganha em sentido e cresce na aceitação de todos, quando mais diretamente promove a vida humana, em todas as suas dimensões”.31 *CARLOS AURÉLIO MOTA DE SOUZA é Professor de Direito, membro do Tribunal de Ética da OAB - São Paulo e Juiz de Direito Aposentado. BIBLIOGRAFIA ALVES, João Evangelista dos Santos et alii. Aborto. O direito à vida. Rio, Agir, 1982. ARISTÓTELES Ética a Nicômaco. Ed. Abril Cultural e outras editoras. BASAVE F. DEL VALLE, Agustín Filosofia do Homem. Fundamentos de Antropologia Metafísica. S.Paulo, Convívio, 1975. BIGO (SJ), Pierre; ÁVILA (SJ), Fernando Bastos, Fé Cristã e Compromisso Social. S.Paulo, Paulinas, 1982. CATAPAN, D. Joel Ivo Fundamentos Cristãos da Política. S. 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