Flávio império: cenógraFo, arquiteto e artista

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Resumo
Este artigo busca analisar a diversidade da obra de Flávio Império e
identificar suas referências, processos de criação e singularidades
em relação a outros artistas e cenógrafos, bem como entre suas
obras que transitam pelos campos das artes plásticas, cenografia,
figurinos e arquitetura. Buscou-se obter as informações necessárias
por meio de referências em livros, desenhos e documentos de
processo e relatos de pessoas que conviveram e trabalharam com
ele diretamente. Foram eleitas três peças com cenários e figurinos
de sua autoria para estabelecer relações entre seus estilos e
maneiras de criar e produzir.
Palavras-Chave: Flávio Império; cenografia; desenho;
artes plásticas; processo criativo
Design, Arte, Moda e Tecnologia.
São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
Introdução
Este artigo é resultado de um projeto de Iniciação Científica sobre o papel e a importância
do desenho no processo de criação e na construção de cenários e figurinos teatrais de Flávio
Império.
Flavio foi um dos maiores cenógrafos brasileiros que produziu entre as décadas de
1950 e 1980, tendo criado cenários e figurinos de peças como Morte e Vida Severina, de João
Cabral de Melo Neto, no Teatro Experimental Cacilda Becker, em 1960; Um Bonde Chamado
Desejo, de Tenessee Williams sob direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina,
em 1962; Roda Viva de Chico Buarque de Hollanda, em 1964; criou também a cenografia de
shows como Rosa dos Ventos, de Maria Bethania, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, em
1971, entre muitos outros.
O artigo busca explicitar, em um primeiro momento, a importância de Flávio Império
no contexto de sua época – um conturbado momento na historia do Brasil, marcado pela
ditadura militar e pela censura acirrada sobre os meios de comunicação e, principalmente,
sobre os artistas. Discorremos também acerca da interdisciplinaridade e do processo criativo
de sua trajetória e, por fim, analisamos três peças afim de identificar elementos desse processo
criativo, enfatizando as singularidades e usos de seu trabalho diante do contexto teatral da
época, especificamente aquela que culminou na criação dos cenários e figurinos das peças
Pano de Boca, Andorra e Noel Rosa: o Poeta da Vila e seus Amores.
A pesquisa foi embasada, principalmente, na análise e na observação de desenhos
realizados para projetos de seus cenários e figurinos. Paralelamente, foram consultados
documentos de projetos tais como fotografias, maquetes e escritos em cadernos pessoais
de Flávio, disponíveis, juntamente com os desenhos, no acervo da Sociedade Cultural Flavio
Império, localizada na casa de sua irmã Amélia Império Hamburger. Um grupo de alunos e
arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo cuida
da catalogação e reorganização deste acervo, que, segundo Amélia, será doado em breve
para alguma instituição ainda não definida. A pesquisa se apoiou ainda em textos autorais
e informativos de comentadores de sua obra que auxiliaram a desvendar o processo e a
construção de seus trabalhos.
Ao observar todo este material podemos entender um pouco como funcionava seu
pensamento, quais eram suas referências e o que ele buscava com suas obras cenográficas.
“O teatro me ensinou a vida, a arquitetura o espaço, o ensino a sinceridade, a pintura a
solidão.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).
Contexto
Arquiteto, artista plástico e professor, Flávio foi um dos cenógrafos mais importantes do
teatro brasileiro. Durante os anos de sua produção, de 1956 a 1985, não se pode pensar a
Design, Arte, Moda e Tecnologia.
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
história do teatro brasileiro sem mencionar Flávio Império. Formado em arquitetura e professor
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo na década de 1950,
Flávio iniciou sua carreira como cenógrafo e figurinista com um grupo de crianças. A partir daí
ingressou em companhias de teatro como o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e Teatro de
Arena. Paralelamente exercia uma produção no âmbito das artes plásticas, produzindo telas
muitas vezes contendo críticas sociais e políticas.
Pouco antes de Flávio iniciar sua carreira, no ano de 1948, o teatro paulista passava
por grandes transformações. Neste ano foi fundado o Teatro Brasileiro de Comédia, TBC.
Nesta época havia apenas três teatros em São Paulo, o Boa Vista, o Santana e o Municipal,
cujas agendas eram preenchidas por bailes, festas e temporadas de companhias de teatro
estrangeiras, ou seja, não havia espaço para os grupos locais. Esta situação criava uma
dificuldade para os grupos amadores de São Paulo alugarem o Teatro Municipal, a fim de se
apresentarem.
Diante disto, o industrial italiano Franco Zampari, que se encontrava em boa situação
econômica em São Paulo, como forma de retribuição ao que a cidade havia lhe proporcionado,
reformou uma garagem localizada na Rua Major Diogo e a transformou em um teatro com
365 lugares, ainda simples, que seria melhorado ao longo do tempo – o TBC. Este espaço
era destinado à apresentação destes grupos amadores. Ainda em 1948 os grupos vão se
revezando com diversas montagens no recém criado TBC.
O TBC inaugura o teatro profissional em São Paulo, em 1949, que nesta época, era o
mais homogêneo do Brasil, sendo todo ele pertencente à uma geração que compartilhava os
mesmos princípios estéticos. Em 1954, o TBC ocupa o Teatro Ginástico do Rio de Janeiro. Em
1955, passa a ser considerado parte integrante da identidade de São Paulo, um bem coletivo
que pertence à cidade, do mesmo modo que “o prédio do Banco do Brasil, o viaduto do Chá,
os nossos museus e o Parque do Ibirapuera” (MAGALDI e VARGAS, 2001, p. 219).
Em 1958 um grupo de estudantes de direito do Centro Acadêmico XI de Agosto, no Largo
São Francisco, começa a reunir-se para fazer teatro. Inspirados pelas idéias existencialistas
de pensadores como Jean Paul Sartre, estes amadores tinham ainda em comum o desejo de
fazer um teatro diferente, que fugisse do caráter burguês do TBC e de seu italianismo. Surge
então o Teatro Oficina. José Celso Martinez Corrêa, um de seus fundadores, é o nome mais
expressivo do Oficina, sendo diretor da maioria das peças. Ele tem uma posição bastante
radical em relação ao TBC:
Foi criado um tipo de teatro que fosse a imagem idealizada de onde o
imigrante deve chegar e do que o brasileiro produtor de café, criador de porco
ou construtor de fábrica devia alcançar como “requinte”, tal requinte era a
cultura européia. Criou-se o TBC que se fechou totalmente ao teatro brasileiro
já existente, para eles, a cultura não poderia nascer no Brasil, tinha que vir
necessariamente de algum lugar da Europa ( CORRÊA Apud STAAL, 2000, p.
18).
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
É importante lembrar que naquele momento o mundo assistia ao auge da Guerra Fria
e o maior receio destes grupos era que o Brasil se inclinasse para o socialismo. O estilo de
governo apresentado por João Goulart causava uma grande preocupação nos EUA que, assim
como os grupos conservadores brasileiros, sentiam-se ameaçados por um golpe comunista.
Este clima de tensão culminou com o golpe político-militar de 1964 que depôs o
presidente João Goulart, obrigando-o a refugiar-se no Uruguai. O general militar Castello Branco
foi eleito pelo Congresso Nacional e, ao contrário do que propunha em seu pronunciamento,
logo que inicia seu governo assume uma postura autoritária que suprimia direitos assegurados
pela Constituição.
O Oficina, assim como toda a classe artística e também os veículos de comunicação, teve
sua liberdade de expressão vigiada pela censura. Intelectuais, estudantes, membros da classe
trabalhadora e todos os que se opunham ao regime militar, eram violentamente reprimidos,
muitas vezes sofrendo perseguição política. Zé Celso e o Oficina tiveram muitas montagens
mutiladas pela censura e, naquele momento, as condições adversas que enfrentavam não os
inibia, ao contrário, fazia com que buscassem expor através de suas montagens sua postura
crítica e insatisfeita com a realidade social em que viviam. Segundo o diretor do Oficina, havia a
necessidade de falar do “aqui e agora”. Flávio era parte desta expressão artística da época, ao
trabalhar em teatros como o Oficina e também o Arena, fundado nos anos 1950, e, ao mesmo
tempo, realizar trabalhos no TBC, o que demonstra sua versatilidade, sua preocupação com
a causa criativa e não apenas política e social.
Produção e processo de criação
Pesquisar a produção de Flávio é uma experiência enriquecedora pela desenvoltura com
que o cenógrafo transita nas diversas áreas e técnicas para construir seus cenários os quais
unem conhecimentos de arquitetura, de artes plásticas e de desenho. O caráter interdisciplinar
do trabalho de Flávio enriquece sua produção e aponta possibilidades de caminhos para
aqueles que a investigam.
Os cenários de Flávio são produções complexas, ricas em experimentações técnicas,
em pesquisas de materiais e de campo. Sua busca por diversas formas de expressão, técnicas
e linguagens faz deste artista, por essência, uma referência nacional nas áreas em que atuou,
principalmente na cenografia.
O desenho é a linguagem comum entre todas as áreas percorridas por Flávio, e, através
dele, pode-se perceber sua diversidade artística. A análise de seus desenhos projetuais para
cenários e figurinos possibilita uma experiência estética que passa pelos campos das artes e
da arquitetura, e atesta que cada cenário seu é fruto da junção da técnica com a sensibilidade.
Na realização dos cenários, Flávio Império é o arquiteto e o mestre de obras. É o
projetista e o executor. Esses trabalhos transcendem o preceito de criação em design, tal
como é identificado na Revolução Industrial com o advento das produções em série, em que
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
um bom projetista é contratado e, executores, sem a noção de todo do processo, cumprem
apenas suas funções definidas e limitadas. “Ele acompanhava todo o processo, ele desenhava,
projetava, depois de projetar ia aos detalhes, ele virava noites e ia ver com as costureiras, e
bordava, ia com os maquinistas [...] ficava extenuado e entregava aquilo [o cenário e figurinos].”
(CORRÊA, Apud STAAL, 2000, p.46).
Flávio projeta, analisa, busca os materiais e executa o projeto. Seu instrumento de
trabalho mais significativo são suas próprias mãos. A tecnologia advém de suas experiências
com materiais e técnicas. A produção que Flávio realiza no plano, ao pintar suas telas, serve
também como base para suas produções tridimensionais. A sofisticação de seus cenários
não se baseia em técnicas revolucionárias e sim na capacidade que ele possui de, com
uma inteligência espacial adquirida pela prática como arquiteto aliada ao senso estético
e conhecimento material obtidos pela prática como artista plástico, encontrar soluções
esteticamente harmoniosas e engenhosamente inovadoras. Pode-se traçar um paralelo do
trabalho de Flávio ao de um artesão que dedica sua vida à criação, cujo trabalho como um
todo, desde o projeto até a execução final, proporciona intenso prazer. Laura Greenhalger
comenta que Flávio Império tinha “[...] mãos de artesão. Curiosas, impacientes, dispostas,
detalhistas” (GREENHALGER, 1997, p.16). Rocha acentua que é possível notar o peso de sua
mão em seus trabalhos (ROCHA, 1997). Mãos que circulavam pelas mais diversas técnicas,
das mais diversas formas. Flávio então se descobria pesquisador de materiais, reciclador,
experimentalista, não tinha preconceito no uso dos materiais. Flávio comenta sobre as técnicas
e materiais que utiliza: “[...] Às vezes é papel, às vezes é pano, às vezes é madeira, às vezes é
serigrafia, às vezes é desenho com a mão, às vezes é pintura com recorte, às vezes é pintura
com pincel” (IMPÉRIO apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).
Durante as experiências iniciais de sua carreira surgiram características de modos de
operar que ele levaria por toda sua trajetória profissional tais como o comprometimento com o
grupo, a habilidade de transformar experiências vividas em linguagem e a capacidade de criar
cenários com recursos ínfimos.
É inevitável, observando panoramicamente a obra de Flávio, pensar nos grandes
artífices da Renascença: homens-artistas-artesãos que dominavam um leque
de atividades complexas cuja dimensão era a resultante de um esplêndido
instinto criador aliado à uma intuitiva posição criativa (RATTO, 1997, p. 41).
A técnica usada também varia de acordo com a peça teatral na qual está trabalhando;
as peças de cunho político geralmente demandavam soluções mais simples e criativas devido
à falta de recursos.
Flávio contemplou a diversidade do contexto teatral da época com técnicas e desenhos
com estilos diferentes. Como já foi dito, o desenho é a linguagem comum entre as áreas
exploradas por Flávio: arquitetura, artes plásticas, cenografia e figurino. Os estilos diversos
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se confundem e se misturam, porém sua precisão técnica e liberdade criativa estão sempre
presentes. O desenho tem várias funções em suas criações: é a parte lógica da criação, é
o projeto de toda obra final e é também o documento de processo. Segundo Cecília Salles,
os documentos de processo são índices do percurso mental realizado durante a criação. A
materialidade destes índices varia de acordo com o artista (SALLES, 2001). Observando os
desenhos de Flávio podemos entender o caminho mental de sua criação. Alguns deles surgem
em papéis de guardanapo e, depois, são desenvolvidos e se tornam parte de seus projetos.
Como diz Renina Katz, Flávio não tem um estilo, ele tem uma marca (KATZ, 1997).
Não persegue estilisticamente nada, tem sim, uma necessidade de experimentação, por isso
transita por diversas técnicas artísticas e faz uso dos mais variados materiais. Flávio é dotado,
segundo Gianni Ratto, de uma polimorfia estética (RATTO, 1997).
Cenografia
“A cenografia pode ser considerada uma composição em um espaço tridimensional
– o lugar teatral. Utiliza-se elementos básicos, como cor, luz, formas, volumes e linhas”
(MANTOVANI, 1989, p.8).
Segundo Beneh Mendes, em uma montagem teatral o texto é o elo fundamental, ainda
que para negar determinadas criações. O cenógrafo propõe ao diretor um determinado cenário,
e guia-se pelo texto, o que não significa que este seja a regra para a criação do cenógrafo. O
artista da cenografia faz sua re-leitura, uma interpretação da história.
No teatro não há uma fórmula, bem como não havia na criação de Flávio. Para uma
montagem realizada em locais como o SESC, era necessário um projeto mais apurado e
detalhado, por questões de aprovação de orçamento. Já em outros teatros sua criação podia
ser mais livre, a exemplo da peça Pano de Boca. Neste caso, Flávio fazia um desenho com
o intuito de passar a noção do projeto, o qual não precisava ter um caráter didático, pois ele
estava presente durante toda a montagem, “criando os figurinos no corpo dos atores, bem
como esticando tecidos para o cenário e criando objetos com um apuro estético e visual
impressionantes” (MENDES, 2010)
O Flávio tinha amplo conhecimento de marcenaria, funilaria, serralheria, pintura,
escultura, serigrafia e outros processos de impressão; ele participava da
execução de fio-a-pavio, pegando em ferramentas, metendo a mão na massa,
enfim, de forma que os profissionais que trabalhavam ali ficavam seguros e
satisfeitos com o trabalho (PAULO, 2010).
O fato de ele estar presente durante a montagem possibilitava executar mudanças não
planejadas, improvisos criativos que surgiam a partir do acompanhamento do projeto.
Alguns cenógrafos constroem maquetes, para facilitar o entendimento da proposta de
forma tridimensional, Flávio tinha este hábito.
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Flávio era um artista por essência, sua formação como arquiteto apurou sua
noção de espaço, proporcionando uma visão do espaço cênico diferenciada.
Ele pensava no todo. Seus cenários eram projetados de modo a facilitar a
marcação do diretor e movimentação dos atores. O desenho da cenografia,
entretanto, não deixa de ser um projeto de arquitetura, porém trata-se de uma
arquitetura efêmera (PAULO, 2010).
Outro aspecto que podemos considerar em relação a diferença entre seus projetos era
a verba disponível em cada montagem.
O cenário pode sofrer alterações durante o processo de construção, adaptações
podem ser necessárias, diferenciando-se, desta forma, do desenho inicial.
Documentos de processo
Ao analisar os cadernos de anotação de Flávio nos deparemos com referências de
todos os tipos, tais como santinhos de campanhas eleitorais, fotos de viagens, cartas de
amigos, desenhos, telegramas, muitas reflexões pessoais, poesias, escritos sobre cenografia
e sobre suas aulas na FAU-USP. A sensibilidade de Flávio se evidencia ao percorrer estas
páginas nas quais é possível se sentir quase em contato com ele. Um de seus escritos em
forma de versos fala sobre seu entendimento sobre a profissão de cenógrafo:
O cenógrafo
Em geral
É pessoa calada
Porque sempre
Tem
Quem
Fale... muito mais,
E,
Antes.
Eu acabei ficando
Com “prisão de boca”
Semelhante a de ventre
Porque,
Ultimamente,
Não tenho ouvido
Nada muito melhor
Do que me vem a cabeça
Flavio Império, São Paulo, 9-9-82.
Optamos por abordar os desenhos relativos aos projetos de cenário e figurino de três
peças criados por Flávio: Andorra, de Max Frisch, encenada no Teatro Oficina em 1964, Pano
de Boca de Fauzi Arap, montada no teatro 13 de maio em 1976 e Noel Rosa, o Poeta da Vila
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
e Seus Amores, de Plínio Marcos, montada no Teatro Popular do SESI, em 1977.
A escolha destas peças deve-se às diferenças encontradas entre elas em termos de
estilo de desenho dos projetos, os quais são compostos por toda a pesquisa de Flávio em
relação ao texto, aos materiais, e pelos próprios desenhos. Cada desenho de Flávio é único
e os realizados para os projetos destas três peças exemplificam muito bem esta afirmação.
Andorra
Percebe-se, nos desenhos de Flávio criados para esta peça, a presença do arquiteto
pela precisão técnica. Não há, entretanto, especificações de medidas ou estruturas, evidência
de que Flávio estava sempre presente durante a montagem do projeto. Os croquis dos
figurinos apresentam alguns detalhes coloridos, entretanto, a maior parte deles é feita apenas
com uma caneta esferográfica resultando em desenhos precisos que, ao mesmo tempo, têm
um estilo próprio e característico, nos quais, aparece, então, o artista. Flávio conta que a idéia
desta peça era realizar um teatro próximo do épico, com uma perfeição estética. Em algumas
de suas anotações encontramos as definições de Flávio para o uso de determinadas cores
e sua relação com a história contada, contextualizada na época do nazismo e que trata de
preconceitos e perseguições. “O branco e o preto eram o preconceito. O marrom e o azul
eram o homem no seu universo complexo e incoerente, esbarrando por todos os lados com o
bloqueio dos preconceitos, tanto brancos como pretos” (IMPÉRIO, 1997, p. 89).
Figs.1 e 2. Desenhos para cenário e figurinos da peça Andorra, de Max Frisch, 1964
Fontes: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 90. Catálogo da Exposição Flávio
Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977, p. 23
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
Pano de Boca
Nos desenhos projetuais da peça Pano de Boca nota-se o contraste estilístico – parecem
até mesmo terem sido realizados por outra pessoa. São esboços menos normatizados, mas
que ainda assim exprimem a desenvoltura técnica de seu criador. Novamente percebemos o
artista presente. Encontramos indicações técnicas em relação a medidas em alguns destes
desenhos. Talvez por serem menos precisos, Flávio sentiu necessidade de colocá-las.
Em meio ao material desta peça, acessível na Sociedade Cultural Flávio Império,
encontram-se folhas de um de seus diversos cadernos de anotações, onde verifica-se a
explicação detalhada de cada etapa da construção dos cenários, bem como listas de compras
de tecidos e materiais para confecção dos figurinos. Tivemos acesso ao texto da peça e a
única referência ao cenário é: “o cenário é um palco cheio de coisas velhas, retalhos de velhos
cenários, roupas jogadas, um baú, muita sujeira”.
Lendo o relato de Flávio entendemos sua interpretação das referências do texto e sua
intenção de fazer com que o palco parecesse um teatro abandonado, situação real do Teatro
13 de Maio quando o cenógrafo o visitou pela primeira vez: “[...] um velho depósito parado,
com um monte de coisa velha, onde se tentava uma nova produção era só uma espécie de
documento do documento” (IMPÉRIO, 1997, p.117). Flávio concebeu elementos cenográficos
com materiais recolhidos em galpões de escola de samba e em depósitos de teatros.
Fig. 3 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976
Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
Fig. 4 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976
Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120
Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores
Investigando a terceira peça escolhida – Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores,
encontramos desenhos nos quais nos deparamos com o arquiteto e o artista em harmonia.
Os desenhos possuem uma perfeição em termos de proporção e espaço. Percebe-se o que
é o projeto de uma construção para o palco, que difere de uma construção real. O espaço
e os materiais são diferentes, o que demonstra a versatilidade do arquiteto ao realizar as
adaptações necessárias. O uso das cores é muito sofisticado, bem como as colagens que
compõem o projeto, conferindo-lhe um aspecto de obra finalizada. A peça, que na verdade é
um musical, conta a história de vida de Noel Rosa, compositor e sambista carioca, que viveu
na década de 1920 no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro. O cenário de Flávio tem como pano
de fundo painéis com desenhos do bairro e as cores conferem uma característica tropical e
um toque da malandragem característica dos sambistas cariocas. Flávio considera todos os
aspectos para a realização da peça, como por exemplo, o espaço que os atores necessitam:
[...] essa (Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores) não é uma peça realista.
Isso é um musical. Então tem que encher de música e o espaço tem que ficar
livre porque não tem jeito de atravancar. Então a narrativa ficou sujeita a um
espaço eminentemente livre como se fosse para a dança e para o canto. E cada
elemento que descia só circunstanciava mais ou menos de forma decorativa,
nem era uma coisa realista. Era para dar um fundo (IMPÉRIO, 1997, p. 69).
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Figs. 5 e 6. Desenhos de cenário e figurinos para a peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio
Marcos, 1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977,
pág. 34
Fig. 7. Desenho de cenário e fotografia da peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos,
1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em
1977, p. 34
Considerações Finais
Os cenários e figurinos criados por Flávio para estas três peças relacionam-se com os
respectivos textos. Entretanto, possuem uma interpretação pessoal, mensagens refinadas de
um entendimento de mundo muito apurado, digno de um verdadeiro artista, no significado
mais profundo desse termo, isto é, uma pessoa com a mente aberta, com um conhecimento
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amplo de técnicas e com maneiras próprias de expressar os significado dos textos teatrais.
Pesquisar os desenhos realizados para a obra cenográfica de Flávio Império é ter a
oportunidade de ampliar a percepção sobre o fazer artístico, de entender a relação constante
entre o conteúdo e a forma – necessárias em uma obra cenográfica – e, ao mesmo tempo,
perceber sua visão de mundo: como se portava diante das dificuldades de uma época de
repressão e censura, período em que uma arte que não fosse política não era considerada
importante. Em sua trajetória, Flávio soube aliar o trabalho direcionado para uma arte social
com produções pessoais, capazes de satisfazer os desejos mais íntimos de um artista, por
exemplo, pinturas sobre telas. Flávio pintava para fugir um pouco do espaço tridimensional do
teatro, para entrar em contato consigo mesmo: “[...] eu pinto toda vez que volto para casa do
palco, e neste caminho de volta do palco para casa é que a minha cabeça vai sintonizando
outra vez o trabalho com a superfície plana, que é muito diferente do trabalho no espaço do
palco.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).
Seus cadernos pessoais revelam suas pesquisas, principalmente de materiais, revelando
seu vasto conhecimento – fundamental para seu processo criativo.
Estas características demonstram o caráter interdisciplinar de seu trabalho e o trânsito
entre territórios diversos – característica que se acentua no trabalho de artistas contemporâneos,
bem como a experimentação de novos suportes, técnicas, temas e espaços. Flávio Império
não só transitava pelas mais diversas áreas, como as praticou com perícia, paixão e primor.
“Flávio Império era um homem livre, um artista livre, um criador, como deve ser, como manda
o figurino” (BETHÂNIA, Maria apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).
Referências
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GREENHALGH, Laura. Flávio Império, setembro de 78, in Flávio Império em Cena, Catálogo
retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997
HAMBURGER, Cao. BENEDETTI, Raimo (dir.) Flávio Império Em Tempo. Documentário. São
Paulo: 1977
IMPÉRIO, Flávio. Escritos presentes no livro Flávio Império: Teatro e Artes Plásticas. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia I. (org). Flávio Império: Teatro e Artes Plásticas.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo. São
Paulo: Editora Senac, 2000.
Design, Arte, Moda e Tecnologia.
São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ed. Ática, 1989.
MENDES, Beneh. Entrevista concedida em seu escritório a Tereza Grimaldi em 05/02/2010.
PAULO, Augusto Francisco. Entrevista concedida por e-mail a Tereza Grimaldi em 24/02/2010.
RATTO, Giani, Flávio Império um homem de teatro, in Flávio Império em Cena, Catálogo
retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997
ROCHA, Paulo Mendes. Depoimento para o documentário Flávio Império Em Tempo, dir. Cao
Hamburger e Raimo Benedetti, São Paulo, 1997.
SALLES, Almeida Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo:
Annablume, 2001.
STAAL, Ana Helena Camargo. (Org.). José Celso Martinez Corrêa – Primeiro Ato:
cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). São Paulo: Ed. 34,1998.
ZAMBONI, Silvio. Pesquisa em Arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores
Associados, 2006. Design, Arte, Moda e Tecnologia.
São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010
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