8. Anízio José do Carmo Júnior - V Congresso Internacional de

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O ALCORÃO NA HISTORIOGRAFIA
Anizio José do Carmo Júnior (Universidade Federal de Goiás)
1. Introdução
Até o ano de 2001, o mercado editorial de livros no Brasil sempre careceu de
publicações referentes à história, sociedade e cultura islâmicas. Os livros publicados até
então resumiam-se a livros paradidáticos escritos por historiadores, sociólogos e
jornalistas brasileiros; e pouquíssimas tradições de obras de autores estrangeiros; além
de obras referentes à teologia islâmica. Analisando essas publicações em conjunto –
salvo pouquíssimas exceções –, elas caracterizam-se por certos problemas. O primeiro é
a falta de rigor quanto a conceitos e categorias, possibilitando ao leitor confundir os
significados de termos como "islã", "islamismo" e "arabismo", e também termos como
"islâmico", "muçulmano" e "árabe" (NUNES, 2002, pp. 190-191).
O segundo problema é a diversidade de categorias para classificar o espaço
geográfico ocupado pelos povos islâmicos, tais como: "Oriente Médio", "Crescente",
"Levante", "Mundo Islâmico", "Casa do Islã", etc.
O terceiro problema é a caracterização do islamismo e dos povos islâmicos como
elementos homogêneos, não considerando a grande heterogeneidade existente no
"mundo islâmico": heterogeneidade existente entre os próprios "fiéis" (árabes, turcos,
iranianos, etc); cristãos que vivem entre a imensa maioria de muçulmanos; e problemas
como as querelas e os conflitos entre israelenses e palestinos pelo "direito de posse" da
Terra Santa.
Contudo, após os atentados de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos,
o interesse por história, sociedade e cultura islâmicas aumentou e editoras de todo o
mundo passaram a publicar vários livros de vários autores. No Brasil, muitas editoras
seguiram o mesmo caminho, publicando livros de autores – na maioria estrangeiros –
que estudam e escrevem sobre o islamismo. E esses livros publicados são de autores de
várias áreas do conhecimento – História, Sociologia, Filosofia, etc. –, que têm por
objeto o Islã e temas correlatos.
Se aumentou a quantidade, aumentaram também a qualidade e a diversidade das
publicações. Um número maior de sínteses de história, sociedade e cultura islâmicas foi
publicado, onde os autores delimitaram melhor seus temas, expondo os problemas de
pesquisa e os limites de seus conhecimentos. Publicaram também obras que abordam
aspectos específicos, como: a biografia do profeta Maomé, as raízes cristã e judaica da
tradição islâmica, a compilação das suras (capítulos) do texto definitivo do Alcorão, as
origens do fundamentalismo islâmico, etc.
Delimitando nosso trabalho, temos por objetivo analisar os textos que tratam da
origem e da história do Alcorão, abordando seus aspectos e seus problemas mais
discutidos. Mas, que importância tem um estudo sobre esse tema?
Não podemos mais ignorar o Islã. Foi-se o tempo em que bastava para nós
sabermos que o Alcorão era o livro que havia fundado uma das três grandes religiões
monoteístas do mundo. O interesse pelo livro ultrapassa o campo da cultura geral e
integra-se à atualidade política, sendo que é difícil passar um dia sem que o noticiário
internacional mencione o Alcorão: seja no Irã, onde os aiatolás1 afirmam obedecer o
Alcorão quando impõem o chador2 às mulheres; seja no Paquistão, onde um grupo de
jovens extremistas invade uma mesquita, mantendo os ocupantes reféns, e exigindo a
renúncia do presidente do país, pois, segundo os extremistas, o presidente não está
respeitando os mandamentos do Alcorão. Devemos considerar também que, nos últimos
anos, assistimos ao renascimento de um islamismo militante que, também invocando o
Alcorão, está transformando as feições e reorientando as vidas de muitos países, desde o
norte da África até o centro e o sul da Ásia (CHALLITA, s.d., pp. 15-16).
Além disso, o historiador não pode ignorar os problemas teológicos e filosóficos
do Islã, nem o direito e a sociologia muçulmana; os conhecimentos estão longe de ter
sido bem explorados (NUNES, 2002, p. 189).
2. Discutindo os problemas das fontes históricas do Islã
Dentre as obras que analisamos, a maioria discute pouco ou quase nada sobre as
fontes históricas referentes à Arábia pré-islâmica e ao surgimento do Islã. Nessas obras,
os autores citam os fatos a partir da tradição islâmica, mas não indicam de onde
1
Dentro do xiismo, o principal grupo dissidente da ortodoxia islâmica, “aiatolá” é o título que se dá ao
penúltimo estágio na hierarquia xiita, é o doutor da lei islâmica, e tem atribuições de juiz na comunidade;
também é o principal líder espiritual dos xiitas.
2
Lenço que as mulheres muçulmanas usam para cobrir os cabelos e o pescoço.
extraíram os fatos. Esses autores acabam por incorporar aos seus textos citações de
outros autores que consultaram fontes, porém não indicam as referências.
Dos autores que estudamos, apenas dois indicam e discutem as fontes referentes à
Arábia pré-islâmica e ao surgimento do Islã. São dois historiadores: o inglês de
ascendência libanesa, Albert Hourani; e o espanhol Juan Vernet.
Albert Hourani, cuja obra centra-se no estudo da história e da cultura dos povos
árabes, cita apenas documentos da época do surgimento do Islã, no século VII. O autor
cita as fontes árabes que narram a vida do profeta Maomé e a formação de uma
comunidade em torno dele, e comenta que essas fontes surgiram entre cem e duzentos
anos após a época do profeta. Hourani também cita fontes escritas em outras línguas –
grego e persa médio – que atestam plenamente a formação de um império pelos árabes,
e comenta a discordância entre essas fontes e aquelas referentes à vida de Maomé. O
autor também argumenta que existem poucas dúvidas quanto ao Alcorão ser um
documento da Arábia do século VII (HOURANI, 2001, p. 32).
Juan Vernet é o autor que melhor problematiza as fontes da Arábia pré-islâmica e
do surgimento do Islã. Devemos considerar, é claro, o próprio recorte do autor, que se
propõe a estudar as origens do Islã, enquanto Albert Hourani estuda a história dos povos
árabes, do advento do islamismo até a década de 1960.
Vernet divide as fontes em dois grandes grupos, e dentro deles, o autor caracteriza
as origens das fontes. O primeiro grupo é classificado como “fontes referentes à Arábia
pré-islâmica”, e subdivide-se em três tipos: (1) textos dos povos da Antiguidade
próximos à Arábia (Assíria, Pérsia, Grécia, Roma, Egito e Abissínia); (2) achados
arqueológicos (ruínas e inscrições epigráficas); (3) textos árabes escritos posteriormente
ao surgimento do Islã, e com freqüência não concordam com os dois primeiros tipos de
fontes (VERNET, 2004, pp. 12-13).
O segundo grupo é classificado como “fontes referentes ao nascimento do Islã”, e
também subdivide-se em três tipos: (1) testemunhos escritos (o próprio Alcorão); (2)
crônicas árabes escritas dois séculos após os fatos relatados; (3) alguns papiros e
referências de autores não-muçulmanos e escritos em outras línguas – grego, armênio e
persa médio (VERNET, 2004, p. 7).
Juan Vernet explica o tipo de fonte que mais usou, e argumenta o porquê. O autor
utilizou, na maior parte de seu estudo, os cronistas, analistas ou historiadores árabes que
escreveram pelo menos dois séculos após os fatos narrados. Esses cronistas redigiram
seus relatos tendo como fontes a transmissão oral, geração após geração, que vinha
desde os tempos de Maomé até a época da redação dos relatos. Vernet argumenta que a
transmissão oral, geração após geração, é muito mais fiel do que supomos; contudo,
quando praticada em meios que ignoram ou utilizam pouco a escrita, ela incorre
frequentemente em erros, e desses erros, nascem as lendas, e essas lendas serão
referências de grande parte da tradição. Como exemplo, o autor cita um historiador e
teólogo chamado al-Tabarî (m. 310/923)3. Em seus Anais, al-Tabarî recolhe para
determinado fato todas as versões – embora sejam contraditórias –, uma após a outra,
que chegaram até ele, e sempre que pode tem o cuidado de anotar a cadeia ou a sucessão
de transmissores desse fato. Assim, ele nos fornece o material em estado bruto, tal como
lhe chegou e o que parecia falta de sentido histórico, caracteriza-se por um alto rigor
histórico (VERNET, 2004, p. 7, 12-13).
Por isso, nossa principal obra de referência será a de Juan Vernet, que será
confrontada com as obras dos demais autores. Optamos por Vernet pois ele foi o autor
que melhor discutiu as questões referentes ao Alcorão – origem, evolução temática e o
estabelecimento do texto atual.
3. A origem do Alcorão
Segundo a tradição islâmica, as idéias que o Alcorão apresenta só podem ser
explicadas pela "revelação divina". Nós, porém, temos que trabalhar com a hipótese de
que as idéias apresentadas pelo Alcorão podem ser explicadas por outros meios que não
sejam pela revelação.
Será que o ambiente de Meca forneceu a Maomé os elementos necessários para a
elaboração do Alcorão? Os autores que estudamos e que consideram a questão, são
unânimes em afirmar que na cidade de Meca não se encontrava nada que apoiasse tal
opinião. Um desses autores, Helmi Nars, afirma que os árabes eram pagãos e sua
sociedade estava contaminada por determinados vícios incontestáveis: infanticídio,
prostituição, incesto, consideração da mulher como parte da herança, opressão aos
órfãos, confrontos permanentes entre as tribos, etc (NARS, 1972, p. 30).
3
“As citações cronológicas, a partir do momento da Hégira, se expressam, sempre que possível, na
forma: ano da Hégira/ano cristão” (VERNET, 2004, p. 9).
A segunda hipótese seria os meios cristão e judaico. Quanto ao meio cristão,
viviam nos arredores de Meca cristãos de origem abissínia e romana, vendedores de
vinho e habitantes de certos "bairros excêntricos", onde haviam alguns "cabarés".
Porém, Helmi Nars descarta essa hipótese pois "nem pelas tradições, nem pela sua
nascença e nem pelo itinerário de suas ocupações se pode imaginar Maomé como
hóspede de ambientes licenciosos" (NARS, 1972, pp. 31-32). A hipótese mais aceita é
de que Maomé, durante as viagens que fazia com seu tio, Abu Talib, para a Síria, teve
contato com comunidades cristãs pelas cidades nas quais passava.
Quanto ao meio judaico, a hipótese mais aceita é a dos contatos entre Maomé e a
numerosa comunidade judaica de Yatrib (Medina), antes e após a Hégira (HOURANI,
2001, pp. 35-36).
Segundo a tradição islâmica, durante as revelações, Maomé entrava em uma
espécie de "transe", havendo momentos em que até entrava em convulsão. A partir
disso, Karen Armstrong argumenta que
"Maomé percebera os grandes problemas que seu povo enfrentava num nível mais
profundo do que a maior parte de seus contemporâneos, e que enquanto 'ouvia' os
acontecimentos, a sua necessidade era mergulhar profunda e dolorosamente em seu
ser interior para encontrar uma solução que fosse não só politicamente viável, mas
espiritualmente iluminadora" (ARMSTRONG, 2001, p.43).
Ou seja, Maomé, diante dos problemas de sua sociedade e inspirado nas idéias
propostas pelas crenças cristã e judaica, teria criado, num estado de subconsciência,
aquilo que ele denominou de "revelação" e, acreditando veementemente que havia
recebido a revelação divina, conquistou, através da prosa rimada que recitava, seus
primeiros convertidos. Daí, Maomé acreditou ser o último de uma série de profetas que
iria trazer a última etapa da revelação de Deus. Isso começou a acontecer no ano de 610
d.C..
Juan Vernet tem um argumento semelhante, e utiliza como principal fonte para
estudar a "revelação" o próprio Alcorão que descreve, com alguma detalhe, as primeiras
comunicações de Maomé com a divindade. Quando recebia a revelação, Maomé parecia
um possesso, e durante o momento de crise percebia palavras, e raramente visões, que
talvez tivesse ouvido pronunciar em estado de vigília sem prestar atenção. Esse pode ter
sido o modo pelo qual se introduziram na nova religião as influências cristãs e judaicas,
devidamente reelaboradas em seu subconsciente pela vontade divina. Esse mecanismo
explica a sinceridade da pregação de Maomé e sua convicção de ser o Enviado de Deus
para os árabes, pois de modo geral a revelação divina coincide com as recebidas por
outros profetas (VERNET, 2004, pp. 59-60).
4. A evolução temática do Alcorão
Os tratadistas do Alcorão se depararam com grandes dificuldades para estabelecer
uma sucessão cronológica dos versículos ao longo de todo o processo da revelação,
pois, por algum motivo desconhecido, nem os versículos dentro das suras, nem as suras
dentro do livro, foram colocados por ordem cronológica ou temática, sendo que certos
assuntos repetem-se em diversas suras. Ademais, alguns versículos revelados em Meca
foram incluídos em suras reveladas mais tarde em Medina (VERNET, 2004, p. 91;
CHALLITA, s.d., p. 17).
Ao considerar esses problemas, Juan Vernet utiliza uma ordem cronológica,
mesmo que duvidosa, para estudar a evolução temática no Alcorão. Entretanto, o autor
não cita de onde extraiu essa ordem cronológica, e não discute a interferência dos
lugares - Meca e Medina - na análise dos temas abordados no Texto Sagrado, ou seja,
Vernet, não discute se foram as circunstâncias de Meca e Medina que influenciaram
certo dogma ou tal preceito comportamental (VERNET, 2004, pp. 91-95).
Portanto, baseados na ordem cronológica utilizada por Vernet, faremos uma
síntese dos principais temas expostos no Alcorão, que vão desde os "dogmas do Islã"
até os preceitos comportamentais que deveriam ser seguidos pelos muçulmanos.
O primeiro tema é a "unicidade e onipotência de Deus", que foi transformado
principal dogma do Islã, e do qual derivou a shahada, ou declaração de fé – literalmente
"testemunho" –, que é a aceitação da Alá como Deus único e todo-poderoso e de
Maomé como seu profeta (VERNET, 2004, pp. 91-93; LEWIS, 1996, p. 208).
O segundo tema é o da existência de profetas anteriores a Maomé, como Abraão e
Noé. Um tratamento especial é dado a Jesus, considerado o maior dos profetas
muçulmanos que vieram antes de Maomé (VERNET, 2004, pp. 93-94).
O terceiro tema é a ratificação da sexta-feira como dia da prece pública e o
estabelecimento das regras de ablução, que correspondem à limpeza dos braços e do
rosto antes da oração (VERNET, 2004, p. 96).
O quarto tema refere-se aos ritos a serem observados durante o jejum do ramadãn
e durante a peregrinação (VERNET, 2004, p. 96).
O quinto tema é a manutenção da pena de talião, por exemplo: no caso de
assassinato, se o acusado fosse condenado, ele seria executado; o acusado de roubo, se
condenado, teria as mãos cortadas (VERNET, 2004, p. 102).
Quando da morte de Maomé já se encontravam solidamente estabelecidos os
fundamentos das cinco obrigações do muçulmano: (1) acreditar na unidade de Deus; (2)
cumprir as orações prescritas, que são cinco orações por dia; (3) pagar o imposto (zakat)
destinado aos muçulmanos pobres; (4) observar o jejum no mês do ramadãn; e (5)
realizar a peregrinação (hajj), pelo menos uma vez na vida, até Meca, desde que o fiel
tenha condições para isso (VERNET, 2004, pp. 106-107).
Vernet ainda observa que a evolução das linhas mestras da nova religião na
direção do que até quase nosso dias se consolidou como dogmas do Islã e que se
fossilizou em diferentes credos foi obra humana, de um grupo de teólogos e de juristas
de ideologia muito concreta (VERNET, 2004, p. 107).
5. O texto atual do Alcorão
Segundo a etimologia árabe, a palavra Alcorão, entre outras interpretações,
combina os significados de "leitura" e "recitação" (LEWIS, 1996, pp. 59-60). Conforme
a tradição islâmica, Maomé recebia o Alcorão através do anjo Gabriel, que era o
intermediário entre o profeta e Deus. Haviam momentos em que Maomé recebia a
revelação de suras (capítulos) inteiras, e haviam também momentos em que recebia
apenas alguns versículos. Após receber a revelação, o profeta a transmitia aos seus
seguidores que, apesar de analfabetos – na maioria –, eram possuidores de uma
memória notável, e decoravam de imediato o que lhes era transmitido. Os poucos que
sabiam ler e escrever, escreviam as revelações em couros de animais, fragmentos
planos de pedra e em omoplatas de camelo.
O Alcorão foi revelado aos poucos, começando por volta de 610 d.C. e
perdurando por vinte e dois anos, até a morte de Maomé. O período da revelação é
dividido em dois períodos: mequinense e medinense, ou antes e depois da Hégira. O
primeiro momento teve a duração de doze anos e o segundo de dez. Daí se compreende
a razão pela qual onze capítulos são denominados de "medinenses" e os outros de
"mequinenses".
O Alcorão não foi revelado com o objetivo de ser reunido em um único volume.
Essa reunião foi empreendida por seus seguidores, que depararam-se com dois grandes
problemas: a morte gradual dos "portadores do Alcorão"4 e o surgimento de muitas
variantes das suras – devido à interpretação dos que as memorizavam; e também devido
às variações dialetais da língua árabe. Por esses problemas, Omar sugeriu ao primeiro
califa, Abu Bakr, a reunião das suras em uma só coleção, cujas partes se ligassem pela
ordem já fixada nas memórias e determinada por Maomé.
A tarefa de reunir as suras foi confiada ao jovem Zaid ibn Thabit, que compilou o
texto definitivo ainda no califado de Abu Bakr. Concluído o livro, Zaid ibn Thabit
entregou-o nas mãos do califa, que o guardou consigo. Antes de morrer, Abu Bakr
entregou o livro a seu sucessor, Omar. Este, nos últimos momentos de sua vida,
remeteu-o à sua filha Hafsa, uma das viúvas de Maomé, pois o terceiro califa ainda não
tinha sido escolhido.
O que determinou a publicação do livro foi o fato de os exércitos da Síria e do
Iraque, cada um, seguirem a leitura de variantes da Vulgata5. Temendo divisões
semelhantes às dos judeus e cristãos a respeito do livro (NARS, 1972, p. 30), o califa
Otman ordenou a um grupo de copistas que, a partir do original de Hafsa, redigissem
um número de exemplares proporcional ao número das principais cidades do Califado.
Concluído o trabalho, em 653, os exemplares foram distribuídos e o original foi
devolvido a Hafsa. E as variantes, com o tempo, ou foram destruídas ou foram
esquecidas.
Hoje o Alcorão é apresentado a nós em um só volume, composto por,
aproximadamente, 6236 versículos – de extensão comparável ao Novo Testamento –, e
é dividido em 114 suras. Quase todas as suras, com exceção da sura nº 9, iniciam com o
vocativo "Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso". Salvo a introdução, a sura
nº1, composta por cinco pequenas linhas, as suras são dispostas em ordem decrescente:
as maiores no começo, as médias no meio e as menores no final.
O título das suras procede de uma palavra ou episódio mencionado em seus
4
5
Eram os primeiros seguidores de Maomé e que memorizaram as suras recitadas pelo Profeta.
“Nesse caso, ‘Vulgata’ refere-se à versão definitiva do Alcorão” (VERNET, 2004, p. 113).
versículos. Depois do título, vem indicações gerais: lugar da revelação (Meca ou
Medina), número de versículos, versículos deslocados e título da sura revelada
imediatamente antes (VERNET, 2004, p. 119).
6. Conclusão
No início deste texto, propomos a necessidade de estudarmos história, sociedade e
cultura islâmicas, por considerarmos que o tema ultrapassa o campo da cultura geral e
integra-se à atualidade política. E quando delimitamos o assunto – um estudo sobre o
Alcorão –, nos deparamos com certos problemas.
Nos deparamos com o excesso de “sínteses” que, ao proporem o estudo de
história, sociedade e cultura islâmicas, não discutem problemas como o acesso e uso de
fontes históricas, a difícil delimitação dos temas, nem os problemas de pesquisa e os
limites dos conhecimentos dos autores. A única exceção é Albert Hourani, que, ao
delimitar seu tema à história dos povos árabes, citou as fontes que utilizou, discutindo
as dificuldades de pesquisa e reconhecendo os limites de seus conhecimentos. Além
disso, faz um breve comentário sobre o Alcorão, muito pertinente e que não foi feito por
nenhum outro autor. O argumento é de que há pouquíssimas dúvidas quanto ao fato do
Alcorão ser um documento da Arábia do século VII. Os demais autores consideram este
dado como algo por demais obvio, que não precisa ser discutido.
Outro autor que aborda a questão das fontes é Juan Vernet. Este autor é o que
melhor analisa a difícil questão das fontes, citando-as e dividindo-as em dois grupos:
fontes referentes à Arábia pré-islâmica e fontes referentes ao surgimento do Islã. Após a
caracterização dos documentos, o autor citou as fontes que mais utilizou e justificou o
porquê. Vernet usou, na maior parte de seu estudo, fontes árabes que foram escritas dois
séculos após a morte de Maomé, oriundas da transmissão oral, pois, apesar de certos
problemas, são as fontes que fornecem os fatos em estado bruto, tal como chegaram aos
redatores.
Contudo, quando tentamos relacionar o que os autores que analisamos escreveram
sobre o Alcorão – origem, evolução temática e definição do texto atual – nos deparamos
com o fato de que apenas um autor tentou aprofundar a análise sobre o tema, e o autor
foi Juan Vernet.
Apesar disso, continuaremos a pesquisar sobre o tema, pois consideramos que o
historiador, ao considerar o Alcorão como fonte histórica e ao lançar-se ao estudo
historiográfico sobre o tema, não pode ignorar os problemas teológicos e filosóficos do
Islã, nem o direito e a sociologia muçulmana; os conhecimentos estão longe de ter sido
bem explorados.
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