Mude de cérebro, mude de vida - FINAL.indd

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Mude de Cérebro,
Mude de Vida
DANIEL G. AMEN
Mude de Cérebro,
Mude de Vida
Um método revolucionário
para ultrapassar a depressão, a ansiedade
e o comportamento compulsivo
Tradução de:
Susana Serrão
Pergaminho
Capítulo 1
A QUEM TEM OLHOS, DEIXAI VER
Imagens com Vista para a Mente
O que é a SPECT? Acrónimo de «single photon emission computerized
tomography», é um sofisticado estudo de medicina nuclear que «olha»
diretamente para a corrente sanguínea cerebral e indiretamente para
a atividade cerebral (ou metabolismo). Neste estudo, um isótopo radioativo (o qual, como veremos, equivale a uma miríade de focos de
energia ou luz) é combinado com uma substância prontamente assimilada pelas células cerebrais.
Injeta-se por via intravenosa um pouco deste soluto, o qual passa
na corrente sanguínea e é captado por certos recetores no cérebro.
A exposição à radiação é semelhante à de uma TAC à cabeça ou uma
radiografia abdominal. O doente depois fica deitado cerca de quinze
minutos, enquanto a câmara «gama» da SPECT roda lentamente à
volta da cabeça dele. A câmara dispõe de cristais especiais que detetam
onde foi assimilado o soluto (assinalado pelo isótopo que se comporta
como um foco de luz). Em seguida, um supercomputador reconstrói
imagens dos níveis de atividade cerebral. Os elegantes instantâneos
que daí resultam mostram-nos um sofisticado mapa da corrente sanguínea/do metabolismo do cérebro. Com estes mapas, os médicos têm
podido identificar certos padrões de atividade cerebral que se correlacionam com doenças psiquiátricas e neurológicas.
Os estudos SPECT pertencem a um ramo da medicina denominado
medicina nuclear (refere-se ao núcleo de um átomo instável ou radioativo). A medicina nuclear recorre a solutos radioativamente identificados (radiofarmacêuticos). Os átomos instáveis emitem raios gama
quando entram em degenerescência, e cada raio gama parece um foco
de luz. Os cientistas sabem detetar estes raios com película ou cristais
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especiais e sabem registar uma acumulação do número de focos que
degeneraram em cada área do cérebro. Estes átomos instáveis são,
essencialmente, mecanismos de localização – localizam quais as células
mais ativas e com mais corrente sanguínea, e as que estão menos ativas
e com menos corrente sanguínea. Os estudos SPECT até mostram as
partes do cérebro ativadas quando nos concentramos, rimos, cantamos,
choramos, visualizamos ou executamos outras funções.
Os estudos de medicina nuclear medem o funcionamento fisiológico
do corpo, e podem ser usados para diagnosticar uma miríade de problemas médicos: doença coronária, certas formas de infeção, o alastrar
do cancro, doenças ósseas e na tiroide. A minha área de especialização
em medicina nuclear, o cérebro, recorre aos estudos SPECT para diagnosticar traumatismos cranianos, demência, distúrbios de humor atípicos ou não reagentes, AVCs, ataques, o impacto do consumo de droga
na função cerebral, crescimento agressivo atípico ou não reagente.
Em finais dos anos 70 e durante os anos 80, os estudos SPECT
foram substituídos em muitos casos por sofisticados exames TAC e,
mais tarde, por ressonâncias magnéticas. A resolução destes estudos
era amplamente superior à da SPECT no apuramento de tumores,
quistos e coágulos sanguíneos. Aliás, quase se eliminou por completo
o recurso à SPECT. Não obstante, e apesar da sua clareza, os estudos
com TAC e ressonância magnética só podiam mostrar imagens de um
cérebro estático e sua anatomia; poucas informações davam sobre a
atividade de um cérebro em funcionamento. Era análogo à observação
das peças do motor de um automóvel sem as poder pôr a funcionar.
Na última década, tem-se vindo cada vez mais a reconhecer que muitos distúrbios neurológicos e psiquiátricos não são distúrbios da anatomia cerebral, mas sim problemas de funcionamento.
Houve dois avanços tecnológicos que encorajaram o recurso, mais
uma vez, aos estudos SPECT. Inicialmente, as câmaras SPECT tinham uma só
cabeça, e demoravam muito tempo – até uma hora – a ler o cérebro de
uma pessoa. As pessoas tinham dificuldade em ficar quietas tanto tempo,
e as imagens resultavam tremidas, difíceis de interpretar (tendo a medicina nuclear sido apelidada de «medicina pouco clara»3) e não davam
grandes informações sobre o funcionamento no mais íntimo do cérebro.
Depois desenvolveram-se câmaras multicabeça que podiam captar imagens cerebrais muito mais depressa e com resolução melhorada. O avanço
na tecnologia informática também permitiu melhor aquisição de dados
3
Trocadilho com a palavra no original «unclear/nuclear». (N. da T.)
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por parte dos sistemas multicabeça. Os atuais estudos SPECT de alta
resolução conseguem ver as áreas mais profundas do cérebro com maior
clareza e mostrar o que exames TAC e RM não conseguem: como é que
o cérebro funciona mesmo.
Os estudos SPECT podem ser apresentados de uma variedade de
maneiras. Tradicionalmente, o cérebro é examinado num de três planos diferentes: horizontal (corte de cima para baixo), coronal (corte
da frente para trás) e sagital (corte de um lado ao outro). O que é que
os médicos veem quando olham para um estudo SPECT? Examinamos
a simetria e os níveis de atividade, indicados por tons de cor (em escalas de cor diferentes consoante a preferência do médico, incluindo
gradações de cinzento) e comparamos com o que sabemos ser um
cérebro normal. As imagens a preto e branco deste livro são, maioritariamente, dois tipos de imagens tridimensionais do cérebro.
Um dos tipos é a imagem de superfície tridimensional (3D), que
observa a corrente sanguínea da superfície cortical do cérebro. São
imagens úteis para captar áreas de boa atividade e áreas hipoativas.
Ajudam a investigar, por exemplo, AVCs, traumatismos e o efeito do
consumo de drogas. Um exame de superfície 3D normal mostra atividade boa e simétrica em toda a superfície cortical do cérebro.
A imagem cerebral 3D ativa compara a média da atividade cerebral
com os melhores 15 por cento de atividade. São imagens úteis para
captar áreas de hiperatividade, como se vê, por exemplo, em crises
ativas, distúrbios obsessivo-compulsivos, problemas de ansiedade e
certas formas de depressão. Um exame 3D ativo normal mostra atividade acrescida (a cor mais clara) na parte de trás do cérebro (o cerebelo
e córtex visual ou occipital) e atividade média nos restantes quadrantes (a grelha).
Regra geral, os médicos são alertados de que algo errado se passa
de uma de três maneiras: veem demasiada atividade em dada área;
veem pouquíssima atividade em dada área; veem assimetrias em áreas
de atividade que deveriam ser simétricas.
No resto do livro, entrarei em pormenores quanto ao modo como
esta tecnologia notável afetou positivamente a vida das pessoas. Por
agora, todavia, adianto somente uma amostra de cinco maneiras simples como os estudos SPECT são usados em medicina.
1. Para viabilizar intervenções atempadas. Ellen, de sessenta e três
anos, ficou subitamente paralisada do lado direito do corpo. Sem conseguir sequer falar, entrou em pânico e a família estava preocupadíssima.
Por mais drásticos que estes sintomas parecessem, duas horas depois
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Estudos SPECT em 3D a um cérebro normal
Trás
Cimo
Frente
Frente
Vista de superfície
de cima para baixo
Fundo
Vista de superfície
de frente
Trás
Vista de superfície
por baixo
Cimo
Cimo
Fundo
Vista de superfície de lado
Fundo
Vista ativa de lado
Frente
Trás
Cimo
Frente
Frente
Vista ativa de cima a baixo
Fundo
Vista ativa de frente
Trás
Vista ativa por baixo
Nas últimas quatro imagens, a grelha de contorno indica atividade média
no cérebro; a cor mais clara indica os 15 por cento mais ativos.
A parte de trás do cérebro é normalmente a parte mais ativa.
de acontecer, a TAC ainda registava uma situação de normalidade.
O médico das Urgências desconfiou de um AVC e pediu um estudo
SPECT ao cérebro que mostrou uma lacuna de atividade no lobo fron32 | Daniel G. Amen
Cérebro de Ellen afetado por um AVC
Vista 3D de superfície do lado esquerdo
Repare-se no enorme buraco, que indica um AVC no lobo frontal esquerdo.
tal esquerdo, um coágulo impedira o fluxo sanguíneo àquela parte do
cérebro. A partir destas informações, ficou claro que Ellen tivera um
AVC, e os médicos puderam tomar medidas para limitar a extensão dos
danos. Os exames TAC geralmente só mostram anomalias vinte e quatro horas depois de um AVC.
2. Para avaliar o doente em rigor de modo a prevenir doenças futuras.
Nancy, de cinquenta e nove nos, sofria de uma depressão grave que não
reagia a tratamentos. Deu entrada num hospital psiquiátrico, onde
fizeram um estudo SPECT para a avaliar. Dado que ela não tinha quaisquer sintomas que apontassem para isso, fiquei admirado ao ver que
ela tivera dois grandes AVCs. Quase de imediato, a depressão não
reagente começou a fazer sentido para mim. Sessenta por cento das
Cérebro de Nancy afetado por dois AVCs
Vista 3D de superfície
de cima para baixo
Vista 3D de superfície
do lado direito
Repare-se nos dois grandes buracos que indicam dois AVCs
do lado direito do cérebro.
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pessoas que têm AVCs nos lobos frontais sofrem depressões graves nesse
ano. Em resultado do estudo SPECT, pedi uma consulta imediata com
um neurologista, que avaliou as possíveis causas do AVC, como, por
exemplo, placas nas artérias do pescoço ou ritmos cardíacos anómalos.
Ele achava que o AVC surgira de um coágulo sanguíneo e receitou-lhe
medicamentos para fluidificar o sangue e prevenir futuros acidentes
vasculares.
3. Para ajudar o médico a despertar a compreensão e a compaixão da
família do doente. Quando Frank, um homem saudável e educado,
entrou nos setenta anos, começou a ficar esquecido. A princípio, eram
apenas pequenas coisas, mas, com o passar do tempo, as falhas de memória aumentaram a ponto de se esquecer de factos da vida essenciais: onde
morava, o nome da mulher, o próprio nome. A mulher e os filhos não
compreendiam esta mudança de comportamento e estavam aborrecidos
com a distração dele e zangavam-se. O estudo SPECT de Frank mostrou
uma acentuada supressão em todo o cérebro, mas especialmente nos
lobos frontais, parietais e temporais. Era o padrão clássico da doença
de Alzheimer. Ao mostrar as imagens à família e ao salientar a causa
fisiológica do esquecimento de Frank, ajudei-os a compreender que ele
não queria ser aborrecido, que tinha um problema de saúde grave.
Por conseguinte, em vez de o culparem pelas falhas de memória, a
família de Frank começou a mostrar compaixão e a desenvolver estratégias para lidarem melhor com os problemas de viver com alguém
que sofre de Alzheimer. Além disso, receitei a Frank tratamentos que
pareceram abrandar o avanço da doença de Alzheimer.
Cérebro de Frank afetado pela doença de Alzheimer
Vista 3D de superfície
de cima para baixo
Vista 3D de superfície
por baixo
Repare-se na acentuada supressão geral, especialmente nos lobos parietais
(setas, imagem da esquerda) e lobos temporais (setas, imagem da direita).
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4. Para distinguir entre dois problemas com sintomas parecidos.
Conheci Margaret quando ela tinha sessenta e oito anos. Tinha uma
aparência desleixada. Ela vivia sozinha e a família estava preocupada,
pois ela aparentava ter sintomas de demência grave. Finalmente deu
entrada no hospital psiquiátrico onde eu trabalhava, depois de quase
pegar fogo à casa por deixar um bico do fogão aceso. Quando consultei a família também descobri que Margaret se esquecia dos nomes dos
próprios filhos e se perdia muito a conduzir. Os seus comportamentos
na estrada deterioraram-se de tal modo que a DGV teve de lhe tirar a
carta, após quatro acidentes menores em seis meses. Quando os familiares de Margaret me consultaram, havia alguns deles já fartos e que
a queriam entregar aos cuidados de alguém. Contudo, outros eram
contra e queriam interná-la para uma melhor avaliação da situação.
Apesar de à primeira vista parecer que Margaret sofria da doença
de Alzheimer, o resultado do estudo SPECT mostrou que havia atividade completa nos lobos parietais e temporais. Se tivesse Alzheimer,
deveria haver provas de diminuição do fluxo sanguíneo nessas áreas.
Pelo contrário, a única atividade anómala no estudo SPECT de Margaret era no sistema límbico profundo no centro do cérebro, onde
havia atividade acrescida. Este é um aspeto que é habitual encontrar
em quem sofre de depressão. Por vezes, nos idosos, pode ser difícil
distinguir entre doença de Alzheimer e depressão porque os sintomas
podem assemelhar-se. No entanto, com a pseudodemência (depressão
disfarçada de demência), pode parecer-se demente e não o estar de
Cérebro de Margaret afetado por pseudodemência
Vista 3D ativa por baixo
antes do tratamento
Vista 3D ativa por baixo
depois do tratamento
Antes do tratamento, repare-se na boa atividade global, com mais atividade
no sistema límbico profundo (seta do centro); depois do tratamento
com Wellbutrin, o sistema límbico profundo normaliza-se.
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todo. Trata-se de uma distinção importante porque um diagnóstico de
doença de Alzheimer pode levar à prescrição de uma série de estratégias para a família e, possivelmente, novas medicações, ao passo que
um diagnóstico de alguma forma de depressão levaria à prescrição
de um tratamento agressivo de medicação antidepressiva para o doente,
acompanhado de psicoterapia.
O resultado do estudo SPECT de Margaret convenceu-me de que
ela deveria experimentar o antidepressivo Wellbutrin (bupropiona).
Passadas três semanas, Margaret estava conversadora, bem arranjada
e ansiosa por conviver com os outros doentes. Depois de um mês no
hospital, teve alta e foi para casa. Antes de sair, pediu-me para eu
escrever uma carta à DGV de modo a ajudá-la a recuperar a carta de
condução. Visto que eu conduzo nas mesmas estradas que ela, fiquei
algo hesitante. Disse-lhe que, se em seis meses ela continuasse melhor
e a seguir o tratamento, eu escreveria à DGV. Seis meses depois, ela
continuava muito melhor. Repeti o estudo SPECT e estava completamente normal. Escrevi a carta à DGV, e devolveram-lhe a carta de
condução!
5. Discernir quando um problema é resultado de maus tratos e
retirar o doente do ambiente perigoso. Betty era a senhora de oitenta
e oito anos mais bonita que eu já vira. Era muito composta e muito
orgulhosa. Quando era nova, tinha emigrado de Inglaterra depois de
se casar com um militar americano. Não foi o marido, de noventa anos,
que a levou ao hospital à consulta, mas sim a irmã. O marido, longe
de a apoiar, negava furiosamente que a mulher sofresse de problemas
cognitivos graves. Todavia, na avaliação, ficou evidente que Betty sofria
Cérebro de Betty afetado pelo traumatismo
Vista 3D de superfície de frente
Repare-se nas áreas de atividade decrescida no córtex frontal direito.
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de problemas de memória significativos; não sabia onde morava, o
número de telefone, o nome do marido. Pedi um estudo SPECT e este
revelou uma mossa do lado direito do lobo frontal de Betty. Era óbvio
para mim que ela sofrera uma lesão na cabeça em dado momento da
sua vida. Quando lhe perguntei sobre isso, ela não fez mais do que
baixar os olhos e chorar; não soube contar-me o sucedido. Quando
perguntei à irmã, esta revelou-me que Betty e o marido tinham uma
relação difícil e que ele era violento com ela. Por vezes agarrava-a pelos
cabelos e batia-lhe com a cabeça na parede. A irmã queria que Betty
fizesse queixa à polícia, mas Betty dizia que isso só pioraria tudo.
Pouco depois de Betty ser internada, o marido começou a insistir
comigo para a mandar para casa. Continuou a barafustar que não havia
nada de mal com ela, mas eu sabia que Betty tinha de ficar longe do
ambiente doméstico, e contactei os Serviços de Proteção a Adultos. Na
audiência de Betty, usei o estudo SPECT para convencer o juiz de que
a casa dela era um potencial perigo. Ele decidiu que ela deveria ter um
tutor, e Betty foi viver com a irmã.
Ficará claro por estas e muitas outras histórias neste livro que um
médico que saiba fazer um diagnóstico rigoroso poderá ser o melhor
amigo do doente. O leitor já estará a perceber porque é que esta tecnologia chamou a minha atenção a ponto de escrever um livro.
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