O CINEMA NO ENSINO DE FILOSOFIA: mais que um recurso pedagógico Rodrigo Cássio Oliveira* [email protected] O uso de filmes nas salas de aula, destacadamente no Ensino Médio, tornou-se um procedimento pedagógico bastante comum. Em geral, uma observação dessa prática mostra que a entrada do cinema no universo escolar representa a opção por uma metodologia de ensino diferente, menos tradicional, cujo principal objetivo parece ser um sucesso maior na tentativa de despertar o interesse dos alunos para as disciplinas, as quais utilizam os filmes como uma ilustração de seu conteúdo programático. Assim, o cinema torna-se uma estratégia, um recurso utilizado pelos professores para uma aproximação com os alunos, e, principalmente, uma aproximação desses com a disciplina ministrada (ainda que tal aproximação ocorra, curiosamente, pela inserção de um novo mediador – o próprio cinema). Diante desse quadro, pergunta-se: Seria esse mediador neutro? É acertada a postura pedagógica que destina ao cinema uma função instrumental, tal como a lousa ou o giz? Para responder a essas questões, convém começar pelos motivos que ocasionaram a entrada dos filmes nas escolas. As diversas possibilidades de tratamento desse tema certamente convergem para uma conclusão ampla e dificilmente contestável, que expõe os traços próprios da cultura contemporânea, marcada pela presença efusiva das imagens. No estágio atual do desenvolvimento tecnológico e das transformações culturais, vivencia-se a elevação de uma peculiar “cultura visual”, um predomínio do “ver” como sentido humano de maior importância, o que se torna evidente na convivência intensiva dos indivíduos com as imagens, sejam elas geradas por câmeras fotográficas, circuitos internos de TV, pela exploração do “ver” na publicidade, pelas inovações que potencializam a comunicação visual via internet, ou, * Concluinte do curso de Comunicação Social (Bacharelado em Jornalismo) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e graduando do curso de Filosofia (Licenciatura) da Universidade Católica de Goiás (UCG). 1 finalmente, mas não menos importante, pela quase onipresença da televisão no dia-a-dia das pessoas 1. Essa cultura visual, na qual, “através do olhar, comunicamos, julgamos, classificamos, [...] comemos com os olhos, acreditamos só no que vemos e nosso desempenho social depende de sermos homens de visão” (Zucolotto, 2002), possui sua origem na formação dos valores modernos, no tratamento que a imagem passa a receber em um contexto novo, marcado pela perspectiva e pelo modelo espacial abstrato de representação do real. Entre esses valores, que, segundo Ben Singer, reconfiguraram a vida social, destacase a concepção de um “bombardeio de estímulos”. Explicando melhor, “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana” (Singer. In: Charney; Schwartz, 2001, p.116). Tais condições, somadas ao ritmo frenético das invenções tecnológicas e suas conseqüências, preencheram a vida do homem moderno com velocidade, tensão e medo, propiciando o surgimento e desenvolvimento do sensacionalismo, do entretenimento e, junto com eles, do cinema. Assim, como um produto característico de seu contexto, o cinema logo traduziu em sua linguagem, seus princípios narrativos e sua estrutura, a essência da modernidade que nascia. Não é por acaso que os primeiros filmes a ganharem popularidade significativa se prestam a uma “estética do espanto” (Singer. In: Charney; Schwartz, 2001, p. 136), para a qual a agitação, as perseguições, a superabundância visual, o grandioso e o espantoso possuem uma função primordial, obtendo presença garantida. Tal maneira de fazer cinema, que responde nos filmes aos anseios do indivíduo submerso em uma coletividade extremamente ansiosa, impulsionou o enraizamento do cinema na sociedade urbana, consolidando uma de suas funções sociais mais relevantes. Função que continua a ser cumprida, como mostra o vínculo psicológico dos espectadores com os filmes, estudado por Hugo Mauerhofer. Instaurando o conceito de situação cinema, o psicólogo alemão se refere à maneira como o 1Segundo Maria Aparecida Baccega, no livro “Televisão e Escola: Uma Mediação Possível”, de 2003, são 38 milhões de lares brasileiros com televisor, o que corresponde a 90% do total. 2 cinema se volta para o inconsciente individual, estabelecendo uma experiência psicoterapêutica: Um dos elementos essenciais da situação cinema é o que podemos chamar de sua função psicoterapêutica. A cada dia, ele [o cinema] torna suportável a vida de milhões de pessoas. [...] Trata-se de uma necessidade moderna [...] Alivia o fardo da vida cotidiana e serve de alimento à nossa imaginação empobrecida (MAUERHOFER. In: XAVIER, 2003, p. 380). As motivações ligadas a uma certa “função social” do cinema, como a que aponta Mauerhofer, acompanham outras motivações, de natureza diversa, que também contribuem para a entrada dos filmes nas salas de aula. Estatisticamente, por exemplo, é notável que mais de dois terços do público de cinema no Brasil é composto por estudantes universitários 2, isto é, jovens recém-egressos do ensino médio, um indicador de que tal fase, precisamente, é a que impulsiona a formação do indivíduo como espectador, aproximando-o dos filmes e acentuando o possível interesse pelo cinema. Em suma, o cinema está presente de forma considerável na vida das pessoas, e, seja pela valorização das imagens pela cultura atual, seja pelo papel dos filmes no ordenamento da vida, ou por sua apresentação às novas gerações – vale dizer, por uma indústria cultural que dita estilos de vida, comportamento e gostos – não é possível negligenciar essa presença como parte integrante da socialização dos educandos. Ao contrário, é exatamente por tudo isso que o cinema deve integrar a educação formal, com ainda mais intensidade, de uma forma tão proveitosa quanto possa ser. Essa é uma das conclusões a que chega Rosália Duarte, no livro “Cinema e Educação”, dedicado especificamente ao tema. Partindo da concepção durkheimiana de educação como um processo pelo qual o indivíduo recebe os valores e hábitos necessários para a plena realização da vida social, Duarte reencontra esse conceito mais à frente, desenvolvido na teoria de Georg Simmel, para quem a socialização não pode abdicar da participação ativa do indivíduo socializado, ou seja, os educandos devem se 2 Dado colhido na obra “Cinema e Educação”, de Rosália Duarte, a qual será mencionada novamente a seguir. 3 perceber, ao mesmo tempo, como “agentes e produtos da interação social” (Duarte, 2006, p. 16). Em outras palavras, as relações educativas não se restringem à reprodução de uma realidade social (um sujeito passivo que recebe esses valores de um sujeito ativo), mas englobam também a própria produção dessa realidade (o sujeito que recebe os valores sempre é, ao mesmo tempo, ativo no seu meio). Realidade essa que se desdobra em diferentes instâncias, abrangendo as produções artísticas e culturais mais diversas. Parece indiscutível que o cinema é um produto contemporâneo que atua na formação dos indivíduos, e, mesmo fora da educação formal, os filmes cumprem uma função relevante na educação informal. Ver filmes é conhecer cinematograficamente acompanhar esses identidades componentes e culturas, da e, realidade de forma refletidos especial, na tela; concomitantemente, ver filmes é perceber o próprio cinema como um componente dessa realidade, tornando-se necessário, para que o indivíduo se situe como sujeito ativo na cultura, o melhor domínio sobre a linguagem cinematográfica. Contudo, não é muito rara a aceitação acrítica de que os filmes são subprodutos em relação a outros bens culturais 3, o que atribui ao cinema, irrefletidamente, o rótulo de “mero entretenimento”, negando aos filmes o mesmo valor social dos livros literários, por exemplo. Ora, se há incontestável valor em apreender as normas que regem o uso da linguagem escrita, possibilitando a apreciação dos principais autores da literatura, por que haveria de ser diferente em relação à linguagem cinematográfica e os principais autores do cinema, sendo a sociedade atual uma sociedade do “ver”, em que essa linguagem está profundamente arraigada? “Embora valorizado, o cinema ainda não é visto pelos meios educacionais como fonte de conhecimento”(Duarte, 2006, p. 87), o que 3 Um dos legados da Escola de Frankfurt, citada indiretamente no conceito “indústria cultural”, é a idéia de ilegitimidade das produções culturais realizadas na “era da reprodutibilidade técnica”. Outro exemplo de resistência ao cinema como bem cultural, cujo valor histórico é mais forte do que a sua atualidade teórica, é a obra Mass Civilisation and Minority Culture, de Frank Leavis, a qual procura defender a cultura tradicional das novas expressões surgidas com o desenvolvimento do capitalismo, especialmente o cinema – outros exemplos podem ser conferidos em Mattelart (1999, 73 - 111). 4 impede a sua utilização plena em prol de uma educação mais completa e coerente com o meio cultural em que se estabelece. Além da resistência que enfrenta nos modelos tradicionais de educação, que privilegiam certos bens culturais a outros, como mencionado, o cinema também encontra dificuldades para se afirmar na própria formação dos educadores, que, fruto dessa mesma concepção tradicional, prescinde de conhecimentos necessários para a valorização do cinema. Certamente não há nenhum problema em utilizarmos filmes em nossas aulas. O problema consiste em ignorarmos o valor e a importância deles para o patrimônio artístico e cultural da humanidade (DUARTE, 2006, p. 87). Com o problema enunciado pela autora em mente, é facilmente constatável a deficiência de apenas levar os filmes às salas de aula, como ficções que exemplificam, ao seu modo, algum conteúdo disciplinar. Nesse intuito, são ignoradas as características próprias do medium, inclusive a maneira como ele problematiza os seus conteúdos, o que é fundamental para o objetivo de ilustrar, com os filmes, algum tema ou conceito próprio de uma disciplina, qualquer que seja. Tal como se perguntava antes: o cinema é neutro na mediação entre alunos e conteúdos disciplinares? Sem dúvida, não é, e nem poderia ser. Em todo caso, não necessita dessa neutralidade para ser integrado às salas de aula, sendo essa uma exigência irrelevante, ou uma crença equivocada que pode ser explicada pelo próprio desenvolvimento do cinema hegemônico desde suas origens, fundado em uma pretensão de transparência e representação objetiva do real 4. Cinema e Filosofia Uma certa aproximação entre cinema e filosofia tem sido explorada nos últimos anos, motivando publicações de diferentes formatos e intenções, muitas delas livros de relativo sucesso. A maioria dessas obras, como a série coordenada pelo professor norte-americano Willian Irwin, abordam temas 4 Sobre esse tema, conferir Ismail Xavier (1984, p. 31 – 35). 5 filosóficos usando como pano de fundo obras audiovisuais. É o caso também de obras como “Lo que Sócrates diría a Woody Allen”, do espanhol Juan Antonio Rivera, livro de ensaios no qual o autor se dedica a interpretar filmes à luz de filosofias tradicionais, ou também à luz de conhecimentos teóricos de outras áreas, como no texto em que disserta sobre “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1971) e os experimentos de psicologia comportamental empreendidos por John B. Watson e Rosalie Rayner. Os filmes figuram, nessas obras, como motes para a discussão de algo externo a eles, ou seja, a filosofia é levada ao filme pelo espectador, e o filme, por sua vez, serve de ponto de partida para a reflexão filosófica, oferecendo conteúdo para que ela se realize. A orientação dessas obras não deixa de ser coerente com algo que o cinema pode oferecer, tanto como bem cultural quanto por suas características definidoras. Se o espectador está habituado a encontrar, nos filmes, a representação cinematográfica de fatos históricos (nos chamados “filmes épicos”, notadamente) ou as relações subjetivas que determinam a existência social dos indivíduos (como a idéia de amor romântico, as noções de certo e errado, os valores morais), não é algo surpreendente que o cinema possa se referir, de algum modo, ao conhecimento filosófico que a cultura humana produziu e produz. Mais precisamente, a interpretação dos filmes, ato sempre tão aberto a possibilidades, pode levar o intérprete/espectador, a partir dos dados que a própria obra oferece, a reconhecer nela a “presença” da filosofia. Essa presença pode estar vinculada ao comportamento de uma certa personagem, aos conflitos articulados pela trama, ao resultado de uma meditação sobre o significado da narrativa, ou a qualquer outro elemento fílmico. Os filmes, nesses casos, não precisam necessariamente tratar da filosofia como um tema; ela é reflexão sobre um mundo de coisas dado ao homem, e, mesmo se tratando de abstrações, não perdem a sua relação com esse mundo. A Lógica, por exemplo, ao estudar o funcionamento do pensar, prendendo-se à forma, e não ao conteúdo do pensamento, ainda assim se vincula, de algum modo, a um mundo representável no cinema. Ora, quem pensa logicamente é o homem, e este pode ser representado em um filme, ainda que um silogismo ou uma tautologia, obviamente, não possam. Logo, 6 nessa leitura, não são as concepções filosóficas que são representadas no cinema, mas as realidades às quais se referem, de alguma forma, essas concepções. Um parênteses deve ser aberto, já que a realização desse ato interpretativo (a ser analisado melhor, mais a frente) não esgota a questão sobre o tipo de relação que pode haver entre cinema e filosofia. Uma outra possibilidade, pelo menos, é indicada pelo filósofo argentino Julio Cabrera, autor do livro “O Cinema Pensa – Uma Introdução à Filosofia através dos Filmes”. Nessa obra, a relação entre cinema e filosofia é de tal maneira que o cinema aparece como um complemento do filosofar. Filosofar, nesse caso, tem um significado preciso: não é um ato que ocorre plenamente quando pretendido com a exclusividade da razão, ou, usando termos gregos, quando produto de um logos organizador de conceitos racionais, separado de qualquer afetividade. A esse raciocínio lógico deve se somar à sensibilidade, o pathos 5, elemento responsável por uma experiência emotiva do problema filosófico, tornando o filosofar mais completo. É esse pathos que o cinema oferece à filosofia, na experiência do espectador com o filme, originando uma maneira de filosofar denominada logopática. As duas dimensões igualmente valorizadas por Cabrera são tidas como opostas por grande parte da tradição; o pathos é totalmente dispensável no racionalismo, por exemplo, o qual é absolutamente confiante no poder cognitivo da razão. Para uma corrente filosófica como a de Descartes, chega a parecer absurda a pretensão de integrar a emoção ao método do conhecer. A filosofia logopática, em contraposição a essa tendência, se concretiza na atuação de um espectador que interpreta logicamente (e filosoficamente) o filme, assim como interage com ele por outra via, a da emoção, sendo importante notar que essa via possui, também, uma função cognitiva. Ainda que seja bastante original o lugar destinado ao cinema em sua proposta, Cabrera não se apresenta como o primeiro filósofo a considerar a paticidade como um elemento necessário ao filosofar. Essa é uma tendência que desponta 5 Pathos e Logos são termos gregos que expressam, respectivamente: “Sentimento, sensação, disposição, ânimo”, e “palavra, verdade, razão anunciada”. 7 na própria história da filosofia, representada, por exemplo, em autores como Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger. Na obra deste último, a valorização do pathos pode ser conferida quando o autor destaca os sentimentos de “alegria pela existência de um ser querido” e de “profundo tédio” como duas formas de manifestação “do ente em sua totalidade” (Heidegger, 2000, p. 55 – 57). Cabrera acrescenta-se à tendência logopática, destacando-se nela ao encontrar no cinema um instrumento para a realização de sua filosofia. Para se apropriar de um problema filosófico não é suficiente entendê-lo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas radicalmente (CABRERA, 2006, p. 16). Como se vê, a justificativa que funda a teoria de Cabrera está na necessidade de sentir os problemas filosóficos, e não apenas de pensar sobre eles, o que é significativo em relação ao ensino da filosofia, pois sugere que o cinema não pode ser um instrumento de pouca importância nessa prática, pois nem mesmo é pouco importante para o próprio filosofar. Os filmes são fontes de experiências impactantes que desalojam o espectador, forçando-o a se sentir imerso em uma realidade diferente da que está habituado (por convenção, nas teorias do cinema, essa realidade instaurada pelo filme é chamada de impressão de realidade). É exatamente pela maneira como admite a interpretação do espectador, no entanto, que a teoria de Cabrera se distancia pouco de propostas como a de Juan Antonio Rivera, que utilizam os filmes como ponto de partida para discussões que, se não deixam de ser interpretativas, deixam de penetrar nas características peculiares do cinema. É certo que Cabrera conseguiu destinar ao cinema um lugar singular, e seria incorreto afirmar que na logopatia os filmes são apenas ilustrações de teorias filosóficas. Porém, nos catorze exercícios realizados em “O Cinema Pensa”, ainda que em certas ocasiões sejam mencionados os princípios de um movimento cinematográfico, como o Neo-Realismo italiano, ou o problema das soluções morais dos filmes de Hollywood, esses temas são secundários para os exercícios logopáticos, assim como tudo o que possa indicar uma diferenciação 8 estética entre as obras em análise. O próprio Cabrera rejeita a interferência do valor estético no valor filosófico de um filme; para a logopatia, essas são duas questões de ordem diversa. Assim, há nesta teoria um significado de cinema que não se prende efetivamente à linguagem cinematográfica, tampouco ao que resulta do seu uso na história pelos diversos cinemas existentes, mesmo que Cabrera reconheça que a linguagem do cinema contribui para a pertinência dele no tipo de filosofia que anuncia 6. De um ponto de vista pedagógico, portanto, a necessidade de desenvolvimento do “olhar”, como visto, exige um contato com os filmes que destaque o uso da linguagem cinematográfica e a estrutura deles. Nesse sentido, obras como a de Cabrera ou Rivera, ricas em conteúdo filosófico, podem ser incrementadas com conhecimentos específicos do cinema, qualificando as interpretações, e, conseqüentemente, o trabalho pedagógico. Ora, a interpretação do filme é o ato que fundamenta o desenvolvimento do “olhar”; à medida que se aprimora, depara-se com o que há de dissimulado na linguagem do cinema, a qual, como toda linguagem, possui “elementos óbvios, explícitos, de fácil compreensão, e elementos sutis, semânticos, que são muitas vezes só percebidos pelo subconsciente” 7. O que se torna problemático, e que deve ser evitado, é que o cinema seja indiferente na interpretação dos filmes, de forma que o fato de o filme ser um filme torne-se irrelevante (pois podemos começar a refletir a partir de qualquer coisa, como de uma música ou da observação das pessoas na rua, por exemplo). Um cinema, qual cinema? 6 Cabrera justifica a escolha do cinema pela logopatia com dois argumentos: um, pelo forte impacto emocional que ocasiona a impressão de realidade produzida pelo filme, o outro, pela particularidade da linguagem cinematográfica. Esse segundo argumento, no entanto, é apenas comentado brevemente pelo autor, e quase desaparece na obra, ao passo que a primeira característica predomina nas análises dos filmes. Essa construção teórica se explica pela ênfase que Cabrera concede, de maneira “natural”, ao cinema narrativo-clássico, e também pela desimportância do valor estético dos filmes, assumida pela logopatia. 7 Essa citação foi extraída do texto de apresentação do Cineduc, publicado na internet (www.cineduc.org.br). O Cineduc é uma instituição não-governamental fundada em 1970, que promove atividades na educação formal focalizando o ensino da linguagem cinematográfica. 9 Uma das primeiras imagens do curta-metragem Ilha das Flores ( Jorge Furtado, 1989), é a de um agricultor de tomates. À medida que a câmera se aproxima da personagem, em um movimento de travelling para frente, a voz off descreve a localização geográfica do local, revelando também que se trata de uma plantação de tomates, e que o agricultor é um ser humano. Nessa passagem, são três tipos de informação oferecidas pelo filme, cada uma significativa, ao seu modo, para o desenvolvimento da trama. A montagem dispõe as imagens de forma que, se consideradas isoladas, elas se apresentam desconexas, desprovidas da continuidade clássica; a voz off, porém, representa o fio condutor que concede essa continuidade ao que é visto, descrevendo as imagens e atribuindo a elas uma organização lógica. O resultado é uma narrativa que pode despertar ironia, revolta, ou até mesmo a impressão de que há ingenuidade demais em seu discurso (afinal, quem não sabe o que é um ser humano?). Aristóteles, em sua Metafísica, constata: “foi pela admiração que os homens começaram a filosofar” (982b, 15). O Estagirita se refere, com isso, não apenas ao espírito grego que deu origem às especulações filosóficas, mas ao “olhar” próprio que todo filósofo lança ao mundo, espantado com ele e consigo mesmo. No processo de socialização, é normal que o homem abandone esse olhar, que a tudo considera misterioso, inexplicável, e que, por isso, é próprio da criança 8; retomá-lo é o que origina a filosofia, é o marco inusitado do seu princípio. Por isso, filosofar, não poucas vezes, é se perguntar sobre as coisas mais óbvias e banalizadas pelo cotidiano, realidade que oferece as suas próprias explicações, assumidas pelo senso comum, ou que, simplesmente, leva os homens a não se preocuparem com essas questões, contentando-os 8 Explorar essa idéia no ensino de filosofia a crianças e jovens parece algo bastante proveitoso, principalmente se o que se pretende é transmitir uma noção de filosofia como prática, como postura questionadora, e não como a atividade de comentar as concepções de autores consagrados, o que é próprio de uma história da filosofia, cuja importância é inegável, mas não é filosofia. Sobre esse tema, escreve Armijos Palacios: “Por que não se faz filosofia como se fazia na antiga Grécia? Porque entre os filósofos e seus problemas ninguém se interpunha. Hoje, em muitos lugares, parece que é proibido ter problemas filosóficos próprios. Entre o aprendiz de filósofo e a filosofia se interpõe um número interminável de leituras secundárias, de especialistas, de comentadores” (2004, p. 18). 10 com as atividades normais do dia-a-dia. Essas perguntas são, por exemplo, “o que é o homem?”, o que nos remete diretamente a Ilha das Flores. Essa questão fundamental, quase ridícula, é motivadora de séculos de inquietação filosófica, tanto nas ocasiões em que está presente – como em Sócrates, para quem perguntar sobre o homem é o ato fundamental de investigação da psique – quanto nas ocasiões em que é negligenciada, como em Hegel – para quem o “indivíduo não passa, reduzido a si mesmo, de uma abstração” (Hyppolite, 1988, p. 17) – o que motivou duras críticas de Kierkegaard ao filósofo alemão. Como se vê, a pergunta em que toca Ilhas das Flores, logo de início, acarreta uma problematicidade enorme quando situada no interior da história da filosofia, além de constituir, por si só, uma pergunta filosófica das mais relevantes. Para chegar a essa pergunta, no entanto, assim como para compreender a maneira como o filme a trabalha, relacionando-a com outras perguntas fundamentais, o espectador precisa penetrar na sua proposta, na linguagem pela qual ele apresenta suas respostas, o seu discurso, pois Ilhas das Flores, como uma narrativa que é, não faz perguntas; em vez disso, responde a elas. As perguntas devem ser feitas pelo espectador, a partir da construção da fábula 9 , processo mental que pode ser associado à interpretação do filme. A montagem frenética de Ilhas das Flores acentua a impressão de que há, no filme, muito a ser dito. De fato, a voz off “dialoga” com as imagens, respondendo, de forma provocadora, as perguntas que uma interpretação do filme pode formular. Não apenas “o que é o homem?”, mas também “o que é o lucro?”, “o que é o conhecimento?”, ou, entre outras, “o que é a liberdade?”. 9O formalismo russo, como recorda Bordwell (In: Ramos, 2005, p.278), usa esse termo para denominar o constructo da história pelo espectador. A pergunta que surge, a partir disso, é: Onde está o filme? Como ele ocorre? Da teoria de Munsterberg, sobre o ato de atenção no cinema, “que se dá dentro da mente” (In: Xavier, 2003, p. 34) ao debate recente sobre o “imaginar ver” proposto por Walton (In: Ramos, 2005, p.105 – 125), há uma vasta corrente de pensamento que se ocupa dos processos mentais pelos quais os filmes ganham existência no interior do indivíduo. Essa tendência especulativa permite que Paulo Filipe Monteiro (1996) organize uma “fenomenologia do cinema”, a partir de diversos autores, concentrada sobre duas perguntas: a) como o filme se relaciona com a realidade?, e b) qual o tipo de experiência que o espectador tem ao assistir a um filme? 11 A obviedade dessas perguntas, e, mais ainda, a estranheza produzida pelas respostas – igualmente óbvias – organizadas imageticamente e verbalmente na montagem, parecem intencionar um deslocamento do espectador; o mesmo deslocamento que Julio Cabrera considera essencial para a compreensão de um problema filosófico. O espectador é apresentado, assim, a um absurdo: o absurdo de uma realidade sustentada por frágeis verdades, tão frágeis que surpreendem o espectador quando a voz off as pronuncia em contraste com a imagem. Seria essa percepção a abertura de um caminho para outra percepção, cuja carga ontológica é ainda mais essencial, o conceito sartreano de náusea? Não se afirma aqui, obviamente, que Ilha das Flores é uma versão cinematográfica desse conceito, nem que os filmes coincidem com filosofias, expressando com exatidão os conceitos filosóficos. Porém, quem poderia negar que a interpretação de um filme, assim como, por exemplo, de um livro ou de uma peça de teatro, pode colocar o espectador em contato com percepções do mundo que motivam a reflexão filosófica? Parece aceitável que a interpretação de Ilha das Flores pode conduzir o espectador, orientado filosoficamente, ao “sentimento que nos invade quando descobrimos a contingência essencial e o absurdo do real” (Antiseri; Reale, 1990, p. 606). É necessário notar, contudo, que cada uma das formas de expressão citadas possui uma linguagem própria, a qual determina a interpretação de seus produtos, inclusive sendo parte dessa interpretação o ato de apreender o próprio uso da linguagem; no caso do cinema, apreender a maneira como o filme utiliza a linguagem cinematográfica, com o intuito de significar algo. Nas palavras de Marcel Martin, “tudo o que é mostrado na tela tem um sentido e, na maioria das vezes, uma segunda significação que só aparecem através da reflexão” (2003, p. 92). Refletindo, assim, sobre Ilha das Flores, um dos recursos explorados com certa ênfase na montagem é o efeito Kulechov, princípio desenvolvido pelo cineasta e teórico russo de mesmo nome. Segundo ele, a mesma imagem, quando intercalada por imagens diversas, ocasiona uma reação diferente do espectador, que confere significado à imagem em questão situando-a no contexto maior, estabelecido pela montagem – teoria que prova o poder dessa técnica no cinema, o que a justifica como principal 12 objeto de estudo da corrente teórica clássica, da qual faz parte Kulechov 10 . Em Ilha das Flores, esse princípio pode ser observado várias vezes. A própria imagem inicial, do agricultor na plantação de tomates, se repete momentos seguintes, quando a definição de japonês (o agricultor é um japonês) é acrescida de outras informações que vão alterando, pouco a pouco, o significado desse conceito. Um melhor exemplo, porém, é o que se refere à imagem da dona de casa e vendedora de perfumes Dona Anete, quando joga no lixo um tomate que constata impróprio para o consumo de sua família. Essa imagem se repete seis vezes durante o filme, e, a cada nova aparição, o significado do que é mostrado no enquadramento está enriquecido pelo trecho do filme que o sucedeu; assim ocorre com o tomate, o lixo, e também o comportamento de Dona Anete (o que inclui a sua maquiagem, seus brincos, seu cabelo, sua roupa, enfim, todos os caracteres que contrastam com as pessoas miseráveis vistas momentos antes da última vez em que a cena aparece). De que maneira esse recurso contribui para a eficácia do discurso do filme? Essa é uma pergunta relativa à interpretação da obra, e pode ser desdobrada de diversas maneiras, encontrando-se com a filosofia. O enriquecimento dos conceitos expostos pelo filme, como no exemplo acima, é uma constante na narrativa. A cada ocasião em que a voz off ou a imagem de um cérebro humano relembram que o homem se diferencia dos outros animais por possuir o “telencéfalo altamente desenvolvido”, a ironia trágica dessa descrição é acentuada, em vista da irracionalidade das situações mostradas pelo filme (do massacre dos judeus na Segunda Guerra à própria “Ilha das Flores”, onde homens são tratados como porcos por não terem lucro, nem donos, apesar de, em tese, não serem menos homens por isso). Em uma entre várias interpretações possíveis, a irracionalidade do homem, apresentada ironicamente por Ilha das Flores, condiz com a percepção de realidade que marcou uma nova tendência na filosofia, desde Nietzsche ou Kierkegaard, atacando duramente a confiança moderna na razão, o progresso iluminista, que postula o “brilho” da racionalidade como a pedra de toque da filosofia. 10 O efeito Kulechov obteve grande repercussão e aceitação quando foi proposto, no entanto, perdeu força com o tempo, como explica Ismail Xavier em “O Discurso Cinematográfico” (1984, p. 38). 13 Essa nova abordagem deixa à mostra, no lugar dessa confiança, uma grande desconfiança que reformula metodologias e confirma a irracionalidade como algo constitutivo do homem. Certamente, muitos caminhos filosóficos se abrem a partir dessa interpretação. A percepção do irracional também é um mote para pensar questões ligadas ao próprio cinema, desde a sua origem. Lembrando Ben Singer, a modernidade criticada pelo existencialismo é a mesma que viu nascer o cinema em meio a uma explosão de estímulos, e para a qual os filmes possuem o papel social de “tornar suportável a vida de milhões de pessoas”, como constatou Mauerhofer. De que maneira essas características do cinema estão relacionadas ao próprio conteúdo crítico de Ilha das Flores? Essa questão, importante por si só, permite ainda um encaminhamento para outra questão, essencial para os alunos: Ilha das Flores é diferente dos filmes que costumam ser exibidos na televisão? Permanecendo em uma análise da montagem do filme, é possível encontrar as suas raízes na vanguarda russa, cujo principal expoente foi Eisenstein. Uma das principais contribuições teóricas deste cineasta e pensador do cinema foi o desenvolvimento de uma técnica de montagem, a qual denominou montagem de atrações 11 , cujo objetivo, mais que iludir, é expressar; mais que produzir uma impressão de realidade, como no cinema clássico que florescia nos EUA com David Griffith 12 , é a criação de um imaginário. Com isso, a noção de cinema clássico vem à tona. Obviamente, o tema é tão extenso quanto essencial para uma maior compreensão do cinema, 11 O tipo de montagem desenvolvida por Eisenstein foi denominada, também, de montagem dialética. Seu objetivo é levar o espectador a “pensar por imagens”, notando-se a influência direta da teoria marxista na produção cinematográfica e teórica de Eisenstein, que defendeu e justificou a Revolussão Russa em seus filmes. O conceito filosófico “dialética”, aplicado no nível da estrutura do filme, mostra que a relação do cinema com a filosofia não precisa se limitar ao âmbito da fábula, isto é, da história do filme. 12 D. W. Griffith (1875 – 1948), cineasta norte-americano, lançou as raízes do cinema clássico ao contribuir com o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, no primeiro quarto do século XX. Uma de suas principais contribuições pode ser identificada na técnica da montagem paralela, desenvolvida por Griffith para narrar duas ações simultâneas, objetivando, entre outras coisas, uma elevação da tensão dramática, e, conseqüentemente, do envolvimento catártico do espectador com os filmes. 14 especialmente quando se tem em vista a sua inserção nas salas de aula, já que o contato com filmes, da maioria dos alunos, obtido no dia-a-dia, normalmente se restringirá ao cinema derivado dos princípios e normas narrativas desse cinema hegemônico. Assim, o reconhecimento da linguagem clássica é um dos principais objetivos a serem visados pelo desenvolvimento do “olhar”, quiçá o mais importante deles. Em linhas muito gerais, essa linguagem diz respeito à adoção de princípios que acentuam a impressão de realidade. Uma “imitação da vida” é proposta, a partir da opção pelo ilusionismo, o naturalismo e por gêneros narrativos tradicionais, como o melodrama. Somam-se a essa orientação a prioridade da ação, o estabelecimento de conflitos por meio do envolvimento das personagens entre si, e a articulação da trama em relações de causa e efeito, deixando explícita a problemática do conflito a ser resolvido, distinguindo as fases da narrativa em um “estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação do elemento perturbador” (Bordwell. In: Ramos, 2005, p. 279). As obras que analisam filmes à luz de filosofias, como foram citadas, aqui, as de Juan Antonio Rivera e Julio Cabrera, tendem a priorizar em suas análises as produções que se filiam a esses princípios. Porém, quando Cabrera encontra no cinema de Antonioni a melhor representação do conceito heideggeriano de angústia por algo indeterminado – o que faz do cineasta italiano um “Heidegger da imagem” (Cabrera, 2006, p. 315) – essa interpretação não está acompanhada de uma discussão mais aprofundada sobre os filmes. Em forma de comentário, Cabrera se refere às narrativas de Antonioni como experiências aborrecidas, entediantes e fastidiosas para os espectadores que estão acostumados com os filmes hollywoodianos, repletos de ação. Assim, apesar de chegar muito perto de uma discussão do próprio cinema, o filósofo deixa de estudar verdadeiramente as relações de ruptura que os filmes de Antonioni estabelecem com o cinema clássico, especialmente no que diz respeito à “estética do espanto” citada por Ben Singer. Caberia ao professor acrescentar essas noções, numa possível apresentação do filme aos alunos. Assim, é possível incrementar a interpretação filosófica de um filme com os conhecimentos específicos da área do cinema, qualificando essa interpretação 15 e abrindo caminho para que sejam apresentados aos alunos usos da linguagem mais complexos, desenvolvendo no aluno uma percepção crítica do audiovisual, e também a apreciação de obras fundamentais da história do cinema, as quais, em muitos casos, se contrapõem, de alguma maneira, ao modelo hegemônico. O próprio curta-metragem Ilha das Flores apresenta elementos que o distancia desse cinema, assim como, em certa medida, também absorve os seus princípios 13 . Vale dizer que a interpretação do filme, nesse texto, deve ser entendida como um breve exercício de comentador, ficando muito aquém de uma análise pormenorizada da obra, a qual, com certeza, muito pode acrescentar às idéias enunciadas. No entanto, a escolha de Ilha das Flores já aponta alguns aspectos de uma metodologia possível para o uso dos filmes na sala de aula. Por ser um curtametragem, a sua duração não é um problema em vista da duração média de uma aula (50 minutos), evitando que o filme seja “quebrado” em uma exibição pausada entre uma aula e outra. Os curta-metragens permitem, também, que a análise comparada de dois filmes seja realizada na sala de aula, ou que o mesmo filme possa ser visto mais de uma vez, o que torna a interpretação mais rica. Assim, a exibição dos filmes, acompanhada de uma abordagem do professor que atenta para a linguagem cinematográfica – para a maneira como o filme conta a sua história – somada ao que pode haver de referente à filosofia no filme (tanto na história quanto na forma), impede que uma falsa neutralidade seja atribuída ao cinema. Ao contrário dessa visão, bastante arraigada no espectador comum, o cinema passa a ser reconhecido como uma representação, uma linguagem que deve ser explicitada, a fim de que a sua interferência no real não se estabeleça de forma invisível, e nem deixe de ter reconhecida a potencialidade que tem para expressar temas e problemas filosóficos à sua maneira. 13 Conceitos como os de “cinema clássico” não devem ser “absolutizados”, procurando suas exemplificações perfeitas em um ou outro filme. Em vez disso, devem ser entendidos como formulações teóricas que permitem a compreensão do cinema, identificando as características que marcam certas práticas, como, nesse caso, a do cinema hegemônico. Nesse sentido, em relação a Ilha das Flores, é curiosa a brincadeira que o filme faz com os conceitos de cinema de “ficção” e cinema “documentário” nos letreiros do começo e do final do filme. Estes são dois conceitos bastante discutidos nas teorias do cinema, cujo limite é de difícil demarcação. 16 17