a pedagogia da tragédia. relações entre o teatro e a educação na

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A PEDAGOGIA DA TRAGÉDIA.
Relações entre o teatro e a educação na Antigüidade.
Resumo
O trabalho mostra alguns resultados de um Programa de Investigação, relativo à
História da Educação na Grécia Antiga. Acentua - já como consciência dos homens dessa
época -, a função da poesia e/ou do teatro na educação e na cultura. Toma a tragédia de
Ésquilo, Prometeu Acorrentado, como recurso para exemplificação desse didatismo que, ao
integrar um mito e/ou valores tradicionais a conhecimentos novos, de cunho positivo,
encaminha reflexões sobre problemas humanos através da crescente racionalidade. Finaliza
estimulando novos trabalhos, embora interrogando sobre a possibilidade de se apreender os
propósitos e/ou os conteúdos da educação grega clássica sob os parâmetros dos próprios
helenos e não sob a perspectiva dos significados da contemporaneidade.
Palavras-chave: Educação - História - Tragédia
1
A PEDAGOGIA DA TRAGÉDIA.
Relações entre o teatro e a educação na Antigüidade.
Um Programa de Pesquisa 1 , sustentando diversas investigações sobre a Grécia
Antiga, busca conhecer a educação focalizando temas pouco tradicionais no campo da
História da Educação. Na perspectiva desse Programa, a História da Educação, tomada
como uma recuperação dos momentos vividos pelos homens, que exigiram reflexões e
ponderações sobre como pensar ou atuar em determinadas circunstâncias sociais, vem
sendo construída a partir de autores clássicos, que nos informam sobre dúvidas, descobertas
ou expectativas que transitaram da gênese da pólis à decadência de Atenas. Nos textos da
época, inclusive e principalmente dos poetas, vistos como educadores, são examinadas
questões problemáticas, estimuladoras das mentes e dos corações dos homens preocupados
com a condição humana e com as relações sociais, que poderiam manter ou não, a vida
concreta em patamares de excelência.
Iniciando esse conjunto de investigações, Homero (Séc. VIII- VII a.C.), revisitado
através da Ilíada, permitiu a percepção da mudança de atitudes ou de comportamentos nos
heróis dos pequenos reinos. Possibilitou reflexões sobre o ser social que entra em
decadência no interior da destruição de valores e de práticas que dão sustentação ao homem
de pensamento mítico. Sinalizou, inclusive, para a contradição educacional vivida no
âmago de formas sociais emergentes face a costumes consolidados pela tradição.
A seguir, Hesíodo (Séc. VII a.C.), quase sempre esquecido nos Manuais de História
da Educação, analisado em sua obra Os Trabalhos e os Dias, ofereceu condições para a
identificação do momento histórico em que não só os homens começam a dar sentido à
própria vida, libertando-se, pouco a pouco, das idéias de destino implacável, como
começam a preocupar-se com a formação intencional, clara e disciplinada dos memebros da
família. O aconselhamento pedagógico, como uma função humana dirigindo-se a um
propósito definido, torna-se consciente e passa a ser visto como uma necessidade
civilizatória.
2
A poesia lírica, a elegíaca e a satírica, em seu conjunto, por outro lado, também,
ofereceram condições para o exame da vontade educativa pertinente ao período Arcaico.
Os desabafos, expressando estados de alma, descrevendo emoções como amor, patriotismo,
tristeza, mesclados ou não de ironia sobre já caducas tradições, entre outros lamentos,
expõem o homem em tensão, face às metamorfoses sociais. Os poetas desse período,
descobrindo e enaltecendo a própria subjetividade, no seio de uma sociedade onde novas
formas políticas, militares e econômicas despontam, oferecem elementos para que sejam
pensadas as possibilidades reais do aconselhamento pedagógico numa fase de crise ou de
transição. A dessemelhança concretizada na complexidade crescente de uma comunidade,
na qual os homens terminam por explicitar os múltiplos interesses em luta, não oportuniza,
na verdade, uma proposta educacional unívoca ou homogênea.
Na seqüência das investigações sobre os conteúdos e/ou as formas educativas da
Grécia na Antigüidade, impossível deixar de lado as tragédias, enquanto literatura
insubstituível para o exame da consciência do povo grego. A dramaturgia possibilita
reflexões sobre as forças universais revelando, de forma muito especial, a lenta e difícil
passagem do saber mítico para o saber racional. Para esse processo de dessacralização do
pensamento, que não é prerrogativa de um único poeta, os atenienses contam com o
orgulho da vitória sobre os persas, com a incorporação da Jônia, (berço da filosofia) à
hegemonia de Atenas (através da Liga de Delos) e com o enriquecimento e
desenvolvimento da pólis sob o governo de Péricles. Nessa conjuntura, os pressupostos da
primeira forma de racionalidade, contraditoriamente convivendo ainda com a trama dos
mitos e/ou com agentes sobrenaturais, podem ser divulgados em festas públicas sendo,
nesse espaço, oferecida ao povo a possibilidade de reflexão sobre as forças da natureza.
Importante salientar que uma nova lógica e a conseqüente ética que a acompanha,
nesse momento, vai sendo induzida, de forma sistemática e crescente, através da
experiência social operada pelo teatro do século V a.C. Sem sombra de dúvida o
desenvolvimento cultural e/ou educacional passa pela poesia, pela tragédia, pela comédia.
1
O Programa de Pesquisa em tela, denominado Revendo a História da Educação, está em execução.
3
Só Ésquilo, Sófocles e Eurípedes escreveram, juntos, cerca de 300 peças. O poder de
formação dos homens através dessa arte só pode ser dimensionado pela importância dada
ao teatro, pela sua larga projeção social entre os atenienses, e, principalmente, pelo fato do
poeta ser reconhecido como herdeiro das musas que tinham por função, segundo Souza
Brandão, presidir ao Pensamento sob todas as formas possíveis: sabedoria, eloquência,
persuasão, história, matemática, astronomia 2 . Na verdade, o teatro grego adquire
historicamente a autoridade de um pedagogo, por levar o público, pela emoção, ao
estabelecimento de novas relações, à novas interpretações, a novos esquemas explicativos e
à nova compreensão de si e/ou de suas próprias crenças e costumes, Como diz Silva,
(...) a tradição entendia como objetivo principal do artista e sua
mais duradoura fonte de glória: o papel didático exercido junto ao
público para quem criava. 3
O fato de que ao poeta era dada a missão de aconselhar e ensinar o povo, pode ser
dimensionado através de As Rãs, datada de 405 a.C. O autor dessa comédia, Aristófanes,
põe Ésquilo e Eurípedes (já mortos nessa data) como personagens centrais da trama. Com
argumentos distintos, esses poetas discutem sobre a qualidade dos conteúdos das tragédias
uma vez que o povo seria, obrigatoriamente, educado por elas, tanto pela melhor como pela
pior peça encenada. Independentemente das posições distintas dos dois interlocutores, o
que aqui interessa é a certeza de ambos, à época, sobre o poder de formação do teatro,
objetivamente uma diversão popular 4 . Citando alguns trechos que permitem perceber a
relevância da arte do discurso em sua finalidade educacional, temos algumas afirmações
dos dois personagens postos em comparação:
Eurípedes:
(...) Além disso ensinei os atenienses a falar.
...
Mostrei o uso das regras mais sutis, das palavras de duplo sentido, a arte
de refletir, de ver, de compreender, de ser esperto, de intrigar, de amar,
de admitir a maldade, de controverter os fatos...
...
Pus em cena os hábitos da vida cotidiana, coisas banais, familiares, sobre
as quais cada espectador estava em condições de julgar. (...)
2
3
4
Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, v. I, 7a ed. revisada. Petrópolis, Vozes, p. 203.
Maria de Fátima Sousa e Silva, Crítica do Teatro na Comédia Antiga, p. 59
Aos cidadãos mais pobres o Estado oferecia meios para adquirirem ingressos
4
...
Foi assim que consegui formar o pensamento deles, introduzindo em
minhas tragédias o raciocínio e a reflexão, de tal maneira que atualmente
eles podem compreender tudo, aprofundar-se em tudo e governar melhor
seus lares, (...)
...
[O que torna um poeta trágico digno de admiração são, pois,] as sábias
lições que tornam os homens melhores.
....
Ésquilo:
...
(...) Veja, por exemplo, os serviços prestados desde o princípio pelos
poetas mais ilustres: Orfeu ensinou os Mistérios sagrados e o horror a
violência; Museu, os remédios para as doenças, e os oráculos. Hesíodo
ensinou a agricultura - a época das colheitas e da semeadura. E o divino
Homero, de onde lhe veio tanta honra e glória senão por haver ensinado
melhor que todos os outros as virtudes marciais, a arte das batalhas e a
profissão das armas? 5 (As Rãs, pp 259-263)
Sob tais ponderações, não se pode pensar a educação grega apenas sob os limites da
música, da dança, da ginástica, do alfabeto, da gramática, da retórica, da sofística ou da
filosofia. Tampouco pode ser examinada por espectros ideológicos comparativos, entre
Esparta e Atenas, por exemplo. Isso porquê, nessa redução, perder-se- ia a possibilidade de
examinar como se dão os processos de transformação no pensamento, no comportamento,
nas atitudes ou
nos hábitos; perder-se-ia, em síntese, a possibilidade de examinar a
educação do Século de Péricles em sua essencialidade, ou seja, enquanto acompanha e
sistematiza o conteúdo próprio do desenvolvimento da sociedade em seu desenvolvimento
ético e político. Perder-se-ia, enfim, a possibilidade de expor a educação como mutação,
como fenômeno que se objetiva nos processos de transformação da sociedade religiosa em
sociedade considerada apanágio da democracia .
Por outro lado, compreender a educação enquanto expressando as necessidades
sociais é tão ou mais um ato necessário quanto mais queiramos captar o homem grego da
Antigüidade, pois este é, como diz Aristóteles, naturalmente cívico 6 . A experiência
comunitária ou a vivência política por ser a grande característica da cultura, leva-nos a
reafirmar não só a grande força dos espetáculos públicos como a admitir a estreita ligação
entre os nexos, intrínsecos aos problemas humanos, estabelecidos pela poesia, sua
5
Aristófanes, As Rãs, pp.259-263
5
publicização e a autoconsciência de um povo. Nessa esteira, examinamos trechos de
Prometeu Acorrentado, 7 cuja temática põe em cena a punição, por Zeus, desse Titã 8 ,
culpado de haver roubado o fogo dos deuses para dar aos homens, privados da "luz e da
capacidade técnica de transformação".
O que primeiro chama a atenção nessa tragédia é o fato do princípio da justiça
divina não [ser] afirmado nem mesmo confirmado, como diz Romilly 9. Os personagensPrometeu, benfeitor da raça humana, e Io, amada por Zeus, são atormentados durante toda a
trama da peça. Ao leitor não é dada aquela sensação de probidade, típica do Canto I da
Ilíada quando fica descrita a peste que se abate sobre os aqueus, mandada por Apolo, por
ter seu chefe, Agamenon, desrespeitado a tradição de resgate, permanecendo com a cativa
Criseis, independentemente das demandas de seu pai, um sacerdote. Reafirmando a
equidade dos deuses, no mesmo Canto I, Homero nos faz ver Tétis, mãe de Aquiles,
recebendo de Zeus a promessa de que os aqueus só seriam vitoriosos quando Agamenon
devolvesse a seu filho, o que lhe era devido pela participação no butim.
Atravessa e permanece no tempo a idéia dos deuses como fonte de retidão
asseguradora da ordem hierárquica e, assim, nos é apresentada por Sólon (640-560). Diz
ele :
(...)as obras da injustiça são duradouras para os mortais.
Zeus está atento a tudo o que sucede e, rapidamente, do
mesmo modo como as nuvens são dispersadas em breve
espaço de tempo pelo vento da primavera (...) desta mesma
maneira é o castigo de Zeus; ele não se irrita facilmente ante
cada delito como um homem mortal; porém , com o tempo,
aquele que tem o coração pecador não passa sempre
inadvertido e o castigo, bem certo, ao fim se faz bem visível;
apenas, um paga sua culpa imediatamente, outro depois; e se,
por acaso, alguém ficar isento de penalidade esta chega, sem
6
Aristóteles, A Política, p. 4.
Nos ateremos apenas ao exame da própria tragédia tal como foi conservada, não entrando no mérito de
qualquer discussão sobre sua autenticidade, sobre a provável data de sua elaboração/ representação ou sobre a
possível trilogia a qual teria pertencido.
8
Titãs, nome genérico dos seis filhos de Urano e Géia: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto e Crono.
Prometeu seria filho de Jápeto e, portanto, primo de Zeus.
9
Jacqueline de Romilly, A Tragédia Grega, 1998, p. 56
7
6
falta, mais tarde: sem culpa pagam aqueles pecados os filhos
ou os descendentes mais remotos. 10
Poucos anos separam a morte do homem de Estado, Sólon, do nascimento do poeta
Ésquilo, no entanto, essa pequena diferença é muito significativa no processo cultural de
renovação religiosa, jurídica, política, captada pelo primeiro dos grandes trágicos. Pelas
falas dos principais personagens de Prometeu Acorrentado, temos o primeiro sinal do
repasse didático da nova compreensão sobre as forças divinas ao público, ávido de teatro.
De imediato, logo que a trama da peça inicia, nos marcos da mitologia,
manifesta-se, Hefesto, deus do fogo, dos metais e da metalurgia, filho de Zeus, que
prendendo Prometeu nas rochas do Cáucaso, nos encaminha para duas questões. A
primeira, expondo a impiedade ou inflexibilidade de Zeus e, a segunda, relacionando, de
modo original, a intensidade do poder com uma determinada temporalidade ou
durabilidade. A noção de poder, sinalizada em separado da qualidade de Zeus em sua
intransigência intrínseca e permanente, é, inversamente ao caráter divino, associada à sua
possibilidade de transformação. A força opressora é afirmada, desse modo, não como uma
decorrência natural do divino mas como um movimento que, correndo em paralelo, não
consegue manter uma estabilidade ou uma ascendência coercitiva permanente. A opressão
maior ou menor responderia, assim, a um movimento próprio. Zeus não apareceria mais
como capaz de garantir a justiça e tampouco reproduzir uma regularidade na sociedade
por determinação própria.. Nas frase de Hefesto, dirigida à Prometeu, e na voz do Coro,
nosso entendimento:
Hefesto: (...) Debalde exalarás gemidos e ais sem fim, porque
inexorável é o coração de Zeus; todo o poder recente é
implacável. (Grifos nossos)
...
Coro:(...) Zeus exerce um poder arbitrário, inovando leis,
e aniquila hoje os potentados de ontem. (Grifos nossos)
...
[Ele] subjuga a raça celeste e não cessará antes de saciar seu
coração, ou até que alguém, num golpe feliz, lhe arrebate o
poder inexorável. (Grifos nossos) 11
10
Solon, Líricos Gregos, 1956, p. 182/183
7
Ao lado do tradicional conhecimento sobre o comandante supremo do Olimpo, vai
sendo articulado, em paralelo, um dado novo: a noção de movimento, independente da
vontade divina. Prometeu deixa isso claro no texto em tela, quando, no discurso sobre a
inflexibilidade de seu carrasco, afirma que novo decreto do destino, arrebatará o cetro e a
majestade de Zeus 12.
Nessa afirmação, já se esvazia do religioso o poder exclusivo de explicação da
ordem. O ciclo do tempo, no qual se realiza um processo, torna-se independente da vontade
divina, favorecendo que as coisas sejam percebidas como ligadas muito mais à mutação, à
transformação natural, do que ao divino. Abre-se ao público a possibilidade para sondagens
e investigações não costumeiras. Os homens são convidados, pelo teatro, a fazer novas
perguntas e a dar novas respostas, sem medos e Io faz esse papel de interrogante junto a
Prometeu. Acompanhemos o diálogo entre esses dois alvos da cólera divina:
Io: É possível que Zeus caia do poder algum dia?
Prometeu: Gostarias, creio, de ver o acontecimento.
Io: Como não, se é por causa de Zeus que padeço?
Prometeu: Pois, bem; assim será, podes estar certa.
Io: Quem lhe há de arrebatar o cetro da realeza?
Prometeu: Ele mesmo o fará com seus caprichos insensatos.
Io: De que maneira? Dize-o, se não há perigo.
...
Prometeu: (...) dando a luz a um filho mais forte do que o pai.
Io: E não há como arredar dele esse destino?
Prometeu: Não, (...)
Io: Quem há de te soltar, se Deus assim não quer?
Prometeu: Um dos teus descendentes, como querem os fados.
Io: Que dizes? Um filho meu te livrará dos males?
Prometeu: Após dez outras gerações, uma terceira. 13
No diálogo estabelecido, um convite à busca de novos significados, uma demanda
para a exploração e desenvolvimento da inteligência, do raciocínio, assim como um novo
entendimento das relações em sua dinâmica, enfim, uma grande mudança. Esse estímulo à
uma inteligência ativa e à nova forma de apreender a realidade configura-se, de fato, como
11
12
Ésquilo, Prometeu Acorrentado, p. 20-22-23
Esquilo, Prometeu Acorrentado, p. 23
8
a compreensão mais avançada, nesse momento, do modo pelo qual o mundo se realiza. A
sabedoria, como sabedoria, instaura-se
quando, ao romper com os cânones do mero
espanto, dos mistérios ou da religiosidade, ao liberar os homens das explicações
sobrenaturais leva-os a introduzirem no seu cotidiano as noções de tempo, mutação,
contradição, gênese, decadência, regularidade, necessidade, determinação, princípio. E,
para isso, nada melhor do que a tragédia.
O convite ao exercício de raciocínio, no entanto, não se impõe como um forçoso
rompimento com a tradição de respeitar e honrar as divindades através de cultos. Em tais
costumes acopla-se, agora, apenas um saber desembaraçado, atuante, que se propõe, não só
a retirar dos sujeitos o temor da divindade, o medo de pagar por culpas suas ou a de seus
ancestrais, como a extinguir a credulidade passiva ou indolente. A proposta pedagógica
nova, nesse sentido, é a de incitar o povo a reflexões mais aprofundadas sobre os processos
da vida em comunidade. É, pois, de, reeditar, didaticamente, aquele espanto típico do
grego que busca e cria significados diante de paradoxos, agora, entranhados nas forças
vivas da materialidade. Limitação de poder, intransigência, inconstância, conseqüências de
ações destrutivas, vão subindo ao palco com o homem que já pensa o aparente e o oculto.
A tragédia, fornece aos seus espectadores, uma possibilidade para admirarem-se
com as ações e/ou os processos de relacionamento dos homens entre si, fornecendo
estímulos pedagógicos para pensar o mundo sob os canônes do racional. Coloca ao grande
público (sem sistematizações acadêmicas) a condição humana de precariedade e de
angústia pelo desconhecido, em uma visibilidade mais concreta. Mobiliza para a
observação e interpretação de princípios naturais, de necessidades internas dos fenômenos
com seus nexos, ligadas, fundamentalmente, ao ciclo de vida, ou seja, ao nascimento &
crescimento & realização & decadência & dissolução de todos os seres. Exerce, assim, um
papel imprescindível na compreensão de um mundo movido por leis, basilar para o
aprimoramento da auto-consciência que passa a reconhecer a diferença entre destino e
necessidade.
13
Ésquilo, Prometeu Acorrentado, p. 35-36
9
A tragédia, no caso Prometeu Acorrentado, induz à percepção das conexões
objetivas, emancipadas das conhecidas e clássicas predeterminações sobrenaturais. Por isso
mesmo, conclama, através de linguagem própria, os espectadores ao desdobramento de
conceitos ou à busca de abstrações que correspondam implicitamente à organização ou às
posições na estrutura dos processos em sua materialidade. Os novos significados, os novos
conhecimentos, implicam em novas atitudes, novos comportamentos, novos hábitos, novas
práticas sociais. Uma consciência avivada mobiliza e se desenvolve na pólis. O poeta, nesse
momento, consolida-se e consolida sua missão didática, civilizadora, posto que uma
global aprendizagem, induzida pela tragédia, expressa e direciona uma nova prática
interessada na melhor realização das possibilidades de vida na coletividade.
A transição do pensamento mítico para o pensamento racional, - por muitos
identificada como uma revolução intelectual, uma quebra de modelo e por outros como
uma mera laicização da velha religiosidade, entendida enquanto
uma substituição de
idéias menos precisas por conceitos mais abstratos, mais sofisticados, - traz, no entanto,
uma realidade que precisa ser examinada por quem pretende conhecer as transformações
nos comportamentos humanos e, como tal, as mudanças nas perspectivas educacionais de
uma sociedade.
Sem entrar na discussão sobre a continuidade ou ruptura radical entre o mito e
pensamento racional, o que interessa ressaltar, nesse momento, é o conteúdo educacional
organizado ou repassado pelas tragédias aos atenienses que corriam para assistir Ésquilo,
Sófocles ou Eurípedes. Afinal, essas encenações, no século V a.C., absorviam, em média,
uma platéia de catorze mil espectadores, penetrando, inclusive, nas áreas rurais 14, o que por
si só demandaria uma interrogação sobre quais temas ou questões poderiam causar tanto
interesse na população.
Ora, esses temas de interesse dos gregos, a serem explorados por nós como
conteúdos educativos, não podem ser dissociados do significado de pólis para os próprios
gregos. A cidade é pensada como uma comunidade de hábitos, de normas e de crenças. É
10
percebida como um sistema de vida e não como uma abstração. É assumida como o
concreto de todos os cidadãos e não como uma entidade jurídica, ou como um Estado, visto
em separado dos cidadãos que lhe dão movimento. A pólis é vivida como vontade coletiva
e, só nesses termos, podem ser captados os problemas realinhados ou redefinidos, por nós,
como questões educacionais, questões de aprendizagem coletiva.
Dentro do mesmo espírito de busca de entendimento de certas palavras à época das
tragédias, para uma captação mais qualificada dos conteúdos educativos desse período,
impossível deixar de lembrar, na esteira da recuperação dos significados, a necessidade, de
precisar melhor a compreensão de cidadania e de liberdade dos gregos antigos. Marcados
esses conceitos por grandes diferenças práticas nas ações de homens daquela época em
comparação com as nossas formas contemporâneas de pensar e de agir, cabe rever o que os
gregos entendiam por educação na Antigüidade à época de uma cultura não letrada, nem
movida pela ânsia de alfabetização, tampouco por demandas relativas a especializações do
saber.
Certos de que o mundo grego se movia fundamentalmente por uma densidade
política que desconhecemos, e que costumamos tratar a educação como um campo de
conhecimentos independente, ou como área singular do saber, uma pergunta para
encaminhar novos estudos: até quanto conseguiremos captar histórica e coerentemente as
demandas, os conteúdos e os meios utilizados pelos helenos na busca da auto-consciência
enquanto meta social ou vontade educadora?
14
M.I. Finley, Os Gregos Antigos, p. 87-88.
11
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓFANES. As Vespas. As Aves, As Rãs/ Aristófanes. Tradução do grego, introdução e notas
de Mário Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FINLEY, M. I. Os Gregos Antigos. Lisboa. Edições 70, 1963.
LÍRICOS GREGOS. Elegíacos e yambógrafos arcaicos ( Siglos VII- V A .C).Texto y traducción
por Francisco R. Adrados. Vol I. Barcelona. Publicación subvencionada por el Ministério de
Educacion Nacional. Ediciones Alma Mater, MMCMLVI .
ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. Trad. de Ivo Martinazzo. Brasilia: Editora
Universidade de Brasília, 1998
SILVA, Maria de Fátima Sousa e. Crítica do Teatro na Comédia Antiga. Coimbra. Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1987
TEATRO GREGO. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes. Seleção, introdução, notas e
tradução direta do grego por Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, [s/d]
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