algumas formulacoes de um estudo realizado sobre anorexia

Propaganda
ALGUMAS FORMULAÇÕES DE UM ESTUDO REALIZADO SOBRE
ANOREXIA.
Alinne Nogueira Silva
Corpo Freudiano do Rio de Janeiro
“É a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa a sua recusa como
desejo (anorexia mental)” (Lacan, 1958/1998, p. 634).
Com as descobertas da psicanálise, surge uma nova concepção de homem a partir dos
ensinamentos de Freud. Habitado por um novo saber do qual ele tem notícias a partir dos
sonhos, atos falhos e sintoma, o homem não possui mais a primazia da consciência,
surgindo uma nova instância psíquica que determina de forma peculiar seus atos e
pensamentos: o inconsciente.
Dando voz às histéricas, Freud vai tomando contato com as leis que regem o inconsciente,
suas características e interferências na origem do sofrimento daquele que fala. O sintoma
passa a ter um estatuto diferente do vigente no saber médico, onde aparece como um sinal
de que algo no corpo não está funcionando dentro do esperado organicamente, com
necessidade de medicação e eliminação imediata. O sintoma freudiano tem o valor de
enigma, sendo uma formação do inconsciente que expressa uma relação de compromisso
entre as exigências pulsionais e o julgamento crítico. É, sobretudo, uma realização
distorcida de desejo onde atuam o deslocamento e a condensação das representações.
Foi através de sua pesquisa sobre a origem dos sintomas e seus processos de formação que
Freud se deparou com concepções que se transformaram em conceitos da psicanálise como:
pulsão, transferência, resistência e sexualidade infantil, dentre outros.
O sintoma sobre o qual nos debruçaremos é a anorexia, aqui definida não como o ato de
não comer e sim, como o ato de comer nada, apontando uma diferenciação no sentido do
objeto aí presente, ou seja, o nada. É necessário colocarmos que o trabalho aqui
apresentado faz parte de uma Dissertação de Mestrado que está sendo elaborada, não sendo
nosso objetivo fechar questões sobre esse tema tão rico e sim, acolhê-las.
A anorexia foi primeiramente definida por Naudeau, em 1789 como “uma doença nervosa
acompanhada de uma repulsa extraordinária pelos alimentos” (apud Bidaud 1998, p.11). Já
entre 1868-73 surge o termo anorexia nervosa nas obras do inglês William Gull “definida
como privação – em caráter privado – do apetite” ( id). É interessante observamos que o
método utilizado como tratamento nesses casos era o isolamento terapêutico. A paciente era
retirada de casa e internada em um quarto onde permanecia sozinha, só tendo contato com o
médico.
Decompondo a palavra anorexia temos a partícula “a” que representa privação e “orexia”
que se origina do grego “orektos”, significando: dirigido a, apetite e desejo. Temos,
portanto, uma patologia que se refere, sobretudo, ao desejo. A anorexia mata 15% dos
jovens acometidos por essa sintomatologia, sendo a doença compulsiva que mais mata no
mundo (Fux, 2002). A compulsão aí presente é emagrecer a qualquer custo, e, muitas
vezes, parece não se constituir como uma mensagem endereçada ao Outro, possuindo a
mudez própria da pulsão de morte. Apostamos, porém, que desse sofrimento pode surgir
uma demanda endereçada ao analista e a questão que colocamos é como dar voz a ela.
A hipótese que irá permear nossa dissertação é a de que o sintoma da anorexia é uma
resposta do sujeito a um Outro que não se apresenta como faltoso, sendo este o único meio
encontrado pelo sujeito para se separar do mesmo. Tal hipótese tem como pressuposto a
afirmação de que é necessário haver uma falta para que ocorra a separação entre o sujeito e
o Outro. A anorexia, com seu desejo de nada, revela ser uma posição que marca o desejo do
sujeito de inserir uma falta nesse Outro e, conseqüentemente, nele próprio. Ressaltamos, a
partir do ensino lacaniano que, na anorexia, o Outro primordial ao ser convocado no lugar
daquele que não tem, responde com a “papinha que sufoca” (Lacan, 1958, p. 634), com
aquilo que tem, ou seja, “confunde seus cuidados com o dom de seu amor” (Lacan, ibid).
Desta forma, o sujeito massacrado pelos cuidados do Outro, recusa o objeto oral, o esvazia
e diz a esse Outro que busque um objeto de desejo além dele, fora dele, além do próprio
sujeito porque assim, este encontrará a via rumo ao desejo. Recusar o alimento é, assim,
uma forma de assegurar que, ao Outro, algo lhe falta; é um modo de sair da posição de
tampão dessa falta e uma tentativa de se perguntar sobre o que quer o Outro, ou seja, sobre
o seu próprio desejo do qual depende do desejo do Outro.
Mesmo sabendo que na anorexia a mãe é colocada como não faltosa, supomos que, em
algum momento, sua castração apareça. Partindo dessa premissa, nos perguntamos por que
o sujeito constrói a crença de que a mãe é plena, se essa posição gera tanta angústia e é
capaz de fazer com que o anoréxico acredite que cabe a ele cavar essa falta nela com sua
recusa a comer. Apostamos que se deparar com a castração do Outro traz um horror tão
grande que o sujeito constrói a fantasia de que ao Outro nada falta para não ter que se
deparar com isso. Nesse processo complexo que envolve, ao mesmo tempo, o satisfeito e o
insatisfeito, o cheio e o vazio, o total e o faltoso, resta sabermos por que o objeto oral foi
privilegiado nessa postura, qual o lugar do Outro para esse sujeito e por que essa separação
teve que ser estabelecida através do ato de não comer e não através de outro recurso.
Freud, inventando a psicanálise, falou sobre a anorexia, sem que tenha escrito nenhum texto
dedicado exclusivamente ao tema. Sempre que o aborda, coloca-o na vertente do sintoma.
Ou seja, fala sobre o sintoma anoréxico e não, sobre as anoréxicas.
Desde suas correspondências com Fliess, Freud se interroga a respeito desse sintoma,
dizendo que “a neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia
nervosa (...) é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu. (...) Perda do
apetite – em termos sexuais, perda de libido” (Freud, 1895/1996, p.247). Relacionando a
perda de apetite e a perda de libido com uma perda objetal encontramos o caminho pelo
qual Freud articulou a anorexia à melancolia. Ambos seriam resultado de uma dificuldade
do sujeito de lidar com a perda do objeto. O processo anoréxico revela uma dificuldade em
relação à perda, à realização de um luto. Nesse momento de sua obra, essa perda de libido
pode ser entendida como uma deserotização da atividade oral, já que aqui Freud relaciona a
anorexia com a melancolia. Em nenhum outro momento, porém Freud fará esse paralelo,
passando a relacionar a anorexia com a histeria e, conseqüentemente, com um aumento da
erotização na zona oral que perturba as atividades aí situadas.
Ao se deparar com os sintomas histéricos e com a eleição da associação livre como método
de tratamento, Freud constatou que há um desejo na origem desses sintomas, uma idéia
superinvestida de conotação sexual que foi impedida de chegar à consciência pela ação do
recalque. Intrigado com as artimanhas que a sexualidade é capaz de fazer para obter
satisfação começa a pesquisar sobre a sexualidade humana e, sobretudo, a infantil, que vai
aparecendo nos relatos de seus pacientes. Além disso, como explicar a resistência de seus
pacientes? De onde ela se originava? Como explicitar o conflito que faz com que o sujeito
queira e, ao mesmo tempo, não queira alguma coisa? A partir dessas questões, Freud se
depara com o conflito, com o desejo inconsciente e com a pulsão.
É nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) que a pulsão sexual faz sua
entrada formal na obra de Freud. Em um primeiro momento, não fica claro se a pulsão é
psíquica ou somática, pois Freud afirma, ao mesmo tempo, que ela resulta de estímulos
constantes oriundos do corpo e que ela também é um representante psíquico. É em 1915,
em um acréscimo no texto de 1905, que Freud delimita a pulsão como um conceito que
articula o psíquico e o somático. Localiza a fonte da pulsão em processos excitatórios nos
órgãos corporais, sua força como constante e seu objeto como o mais variável possível na
finalidade de obter satisfação. A vida sexual se coloca a partir de organizações que
privilegiam zonas corporais como a boca, o ânus e o genital. Esses meios de obter
satisfação são independentes entre si e buscam um alvo sexual exclusivo. Uma questão
permanece: a excitação sexual se origina de onde? Além de estar metapsicologicamente
localizada no corpo, a excitação sexual também se localiza na tentativa de reviver uma
satisfação com a estimulação da zona erógena (Freud, 1905).
A primeira expressão da sexualidade ocorre através da oralidade experimentada no ato da
alimentação que traz consigo a marca de uma experiência prazerosa onde os lábios
comportam-se como uma zona erógena, área do corpo que é capaz de ser investida
libidinalmente. Em um primeiro momento, a satisfação da zona erógena fica associada ao
alimento. “A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à
preservação da vida, e só depois se torna independente delas” (Freud, 1905, p.171). Freud
afirma ainda que os órgãos responsáveis pela alimentação e excreção “têm particular
facilidade de se tornarem veículos de excitação sexual” (Freud, 1917 [1916-17]b, p.361).
A partir dessa experiência prazerosa com o objeto da alimentação, há um deslocamento de
sugar um objeto externo para sugar uma parte do próprio corpo, instalando-se o que Freud
denomina de chuchar sensual. Ele, porém, faz uma ressalva de que esse comportamento não
é observado em todas as crianças, mas naqueles em que “a significação erógena da zona
labial for constitucionalmente reforçada” (Freud, 1905, p.171).
As diversas organizações sexuais geram um prazer parcial e local, assim denominado por
não haver ainda a unificação das pulsões para a obtenção do prazer genital. Quando esse
prazer é intenso, há o risco de que algo que seria um meio de se obter prazer de excitação se
transforme no alvo em si. Para que isso aconteça, é necessário que já durante a infância
tenha ocorrido uma obtenção de prazer incomum. Nesses anos anteriores à organização
genital, a escolha de objeto toma a direção do primeiro objeto do prazer oral, ou seja, o seio
e, conseqüentemente, a mãe. “A mãe é o primeiro objeto de amor” (Freud, 1917 [191617]b, p.385).
A satisfação mais primitiva, apesar de ser auto-erótica, tem como objeto o seio. Isso ocorre
porque a criança não consegue diferenciar o seio como sendo dela ou do outro. A perda do
seio é efetivada com a representação da imagem daquele que vem satisfazer a criança, ele é
perdido a partir da separação entre o sujeito e o outro. A perda desse objeto que satisfaz é
fundamental para que outras zonas e outros objetos sejam investidos, deixando marcas que
vão aparecer na relação do sujeito com o outro através dos processos de identificação,
ambivalência e diferenciação. A partir daí, poderíamos falar que, desde o início, é o seio,
associado com a alimentação, que traz a primeira marca de separação entre o sujeito e o
Outro e que, em um momento posterior, a cada ativação dessa marca entre em jogo um
movimento de separação em torno do alimento.
“Sugar ao seio materno é o ponto de partida de toda vida sexual, o protótipo inigualável de
toda satisfação sexual ulterior, ao qual a fantasia retorna muitíssimas vezes, em épocas de
necessidade” (Freud, 1917 [1916-17], p.367). Ainda em relação ao seio, Freud afirma que
“para a criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar para todos os
relacionamentos amorosos. O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (Freud,
1905, p.210). As escolhas amorosas futuras estão apoiadas nos modelos infantis primitivos
como tentativa de recuperar a felicidade perdida, movimento de reinvestimento no traço
deixado pela primeira experiência de satisfação.
Além da amamentação, a relação da criança com a mãe é uma fonte de excitação e
satisfação sexual. A mãe toma a criança como objeto sexual, acariciando-a e beijando-a,
despertando no filho sua pulsão sexual. Afirmamos assim, que o ato de alimentar é um ato
marcado pela sexualidade, pelo desejo da mãe em relação à criança e, o alimento é o objeto
que encarna o investimento materno.
Freud ressalta que o excesso, tanto pelo lado da criança que se mostra insaciável à ternura
dos pais, como também destes que exibem um cuidado desmedido em relação ao filho,
serve de prenúncio à instalação de uma neurose na vida adulta. Isso porque há uma elevada
adesividade das impressões deixadas pela vida sexual infantil. Elas podem agravar-se tão
profundamente “a ponto de produzirem uma repetição compulsiva e poderem prescrever
por toda a vida os caminhos da pulsão oral” (Freud, 1905, p.228). Podemos afirmar que,
nos sujeitos que desenvolvem a anorexia, houve uma fixação na satisfação oral que faz com
que haja uma relação entre a comida e a satisfação sexual.
Além de fazermos esse retrospecto da pulsão em Freud, principalmente a pulsão oral, temos
que tocar em outro ponto fundamental para entendermos o estatuto da anorexia: o desejo.
Buscando a origem desse conceito em Freud, a partir da experiência de satisfação, Lacan
toma um sonho relatado na “Interpretação dos sonhos” (1900, p.180) como modelo para
analisarmos a estrutura do desejo.
Uma analisanda de Freud chega contando que não entende como ele pode afirmar que o
sonho é a realização de um desejo se, em seu sonho, justamente o que não se realiza é o seu
desejo. A paciente
queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão
defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então lembrei-me que era domingo
à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns
fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive que abandonar meu desejo de
oferecer uma ceia (Freud, 1900, p. 181).
O desejo que Freud observa nesse sonho é o de ter um desejo insatisfeito. A partir das
associações da paciente, outros elementos vão aparecendo como o pedido que a paciente
faz ao marido para não lhe trazer caviar, apesar de sua enorme vontade de comê-lo. Ou
seja, ela pede que ele não a satisfaça. “O desejo da histérica de ter um desejo insatisfeito é
significado por seu desejo de caviar: o desejo de caviar é seu significante” ( Lacan,
1958/1998, p. 627). Não havia salmão defumado, prato predileto de uma amiga por quem o
marido se interessava, apesar de sua magreza, e que havia expressado o desejo de ir jantar
na casa da paciente.
Sem o prato principal, não havia como realizar o jantar e satisfazer o desejo da amiga.
Manteria a amiga magra para afastá-la de seu marido. O desejo da paciente seria o caviar?
Mas o caviar ela também não quer. “Seu desejo de caviar é um desejo de mulher satisfeita,
e que justamente não quer estar” Lacan, 1958/1998, p. 631). Isso porque Freud diz que essa
mulher é muito satisfeita com o marido “em suas necessidades” (Freud, 1900, p.81).
Observamos que é recusando um alimento que a bela açougueira introduz uma falta nessa
posição em que se encontra, de mulher satisfeita.
O salmão defumado aparece aqui no lugar do desejo do Outro, desejo que a paciente não
quer saber para não se deparar com o seu próprio desejo. O desejo aparece no buraco entre
a demanda que o sujeito faz ao Outro, ou seja, que ele tampone toda a sua falta, e o lugar
desse Outro enquanto falta (1958/1998, p. 633). É justamente essa falta que é dada ao Outro
para que ele preencha o que se chama amor. E é isso que está por trás de toda a demanda,
mascarada no pedido da satisfação de uma necessidade.
Pode ocorrer de o Outro, no lugar disso que ele não tem, que lhe falta, coloque justamente a
comida “empanturra-a (a criança) com a papinha sufocante daquilo que ele tem, ou seja,
confunde seus cuidados com o dom de seu amor. É a criança alimentada com mais amor
que recusa o alimento e usa a sua recusa como desejo (anorexia mental)” (1958/1998, p.
634). Assim, dizendo não à demanda da mãe, a criança pede que ela olhe em outra direção
que não ela própria.
Se a paciente de Freud pede ao marido que não traga caviar para se manter insatisfeita,
mostrando que o seu desejo é de manter o desejo insatisfeito, também na anorexia o sujeito
não come, ou melhor, come o nada, mantendo seu desejo insatisfeito. O desejo presente na
anorexia é um desejo de nada. Recusando o objeto da necessidade, a anoréxica demanda o
amor, ou seja, que o objeto não traga consigo apenas a marca da necessidade, mas, que seja
signo de amor. Amor aqui é definido como falta, como possibilidade de dar o que não se
tem. O nada que faltou a esse esquema, é esse nada que o sujeito anoréxico come quando
não come nada.
Bibliografia:
.
BIDAUD, Eric. (1998) Anorexia mental, ascese, mística.Rio de Janeiro: Companhia
de Freud.
FREUD, Sigmund . (1950 [1892-1899]). “Extratos dos Documentos dirigidos a
Fliess”.Em: Obras Psicológicas Completas, V.I. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.
_______________(1900-1901). “A Interpretação de sonhos”. Em: Obras
Psicológicas Completas, V. V. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
_______________ (1905). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Em: Obras
Psicológicas Completas, V. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
_______________ (1917 [1916-17]). Conferência XX: “A vida sexual dos
seres humanos”. Em: Obras Psicológicas Completas, V. XVI. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996.
_______________ (1917 [1916-17]b). Conferência XXI: “O desenvolvimento
da libido e as organizações sexuais”. Em: Obras Psicológicas Completas, V.
XVI..Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.
_______________ (1932-33 b). “Conferência XXXIII: Feminilidade”
Em:Obras Psicológicas Completas, V. XXXIII. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996.
LACAN, Jacques (1958). “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”.
Em: Escritos .Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Download