Como captar ventos de alegria 110217

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APRESENTAÇÃO:
COMO CAPTAR VENTOS DE ALEGRIA1
JOHN C. DAWSEY2
O livro de Rita de Cássia de Almeida Castro pede para ser lido como uma flor ao vento.
Trata-se de um livro de rara beleza escrito nas interfaces da antropologia e do teatro. O
modo como Roland Barthes define o teatro, como atividade que calcula o lugar olhado
das coisas, também poderia servir como uma definição para a antropologia. No livro de
Rita, acredito, ambos se transformam em atividades que calculam o lugar sentido das
coisas. Em sua busca por conhecimentos da ordem do sensivel Rita explora o universo
do teatro da metrópole paulistana, focando as pesquisas desenvolvidas com técnicas
corporais no âmbito de um imaginário associado à tradição oriental. Seu interesse voltase principalmente para o campo pré-expressivo da atividade do ator. Durante a sua
experiência de pesquisa sobre o trabalho do ator na montagem da peça Hamlet, ela
descobre, por vias do acaso, a prática do seitai-ho e das pesquisas desenvolvidas pelo
mestre Toshi Tanaka. O livro de Rita aflora a partir desse encontro. Ao longo dos anos
de seu aprendizado, a própria pesquisadora se transforma. Na medida em que a pesquisa
exige o exercício de pensar com o corpo, o procedimento clássico da antropologia de
observação participante também reconfigura-se como participação observante. Na
intersecção do inteligível e do sensível, procura-se evocar a própria experiência do
indizível.
Creio que a leitura do livro de Rita sugere um conjunto de questões para a antropologia:
coisas boas para fazer pensar. A seguir, eu gostaria de evocar algumas delas.
O Oriente como espelho mágico. Enuncia-se uma questão inicial: “Que Oriente é esse
que se cria no contexto artístico de uma metrópole como São Paulo?”. Chama atenção,
porém, como esta questão – inspirada nos estudos de Edward Said – modifica-se ao
longo do texto. Creio que Rita explora as margens das discussões de Said. O espelho do
Oriente transforma-se em uma espécie de espelho mágico. Mais do que sua capacidade
para fixar identidades – inclusive a de quem nele procura a imagem de si mesmo como
figura inversa simétrica do outro – ressalta-se sua capacidade de alterar as formas. O
espelho do Oriente também se apresenta como um “vazio criador”, um remoinho onde
se desmancham até mesmo as imagens do orientalismo. Acima de tudo o que move os
pesquisadores do sensível com quais Rita dialoga é a capacidade de ser outro, na
abertura ao estranho e às múltiplas possibilidades do ser.
Um duplo deslocamento. Também chama atenção o foco desta pesquisa: o campo préexpressivo do trabalho do ator. Nas interfaces da antropologia e do teatro, busca-se um
lugar sentido das coisas. Ao passo que Erving Goffman se interessa pelo teatro da vida
cotidiana, Victor Turner procura focar os momentos de interrupção ou suspensão de
papeis, que se configuram como uma espécie de meta-teatro. Em relação à abordagem
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Prefácio do livro Flor ao vento, ser em cena, de Rita de Cássia de Almeida Castro. Brasília: UnB, 2011.
Professor Titular do Departamento de Antropologia e coordenador do Núcleo de Antropologia,
Performance e Drama (Napedra) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da
Universidade de São Paulo.
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de Goffman, os estudos de Turner provocam um deslocamento. Porém, o foco da
pesquisa de Rita – que se inspira em linhagens de pensamento teatral associadas a
figuras como Eugenio Barba e Jersy Grotowski – nos leva a pensar a partir de um
“corpo intermediário”, entre o cotidiano e extracotidiano. Acredito que assim seja
possivel produzir um duplo deslocamento, com efeitos de estranhamento, em relação ao
cotidiano e ao extraordinário também. Um lótus, como Rita evoca em uma de suas
citações, não deixa de ser uma espécie de cebola.
Primazia do sensível. Acima de tudo, o seitai-ho desenvolvido por Toshi Tanaka, que
constitui o centro gravitacional deste livro, nos coloca diante da primazia do sensivel.
Algumas afinidades com a antropologia de Claude Lévi-Strauss são marcantes. A
cultura se apresenta como efeito de superfície. As atenções dirigem-se, nesse caso, ao
exercício de pensar com o corpo. O corpo tem razões que a cultura desconhece. Seria a
cultura uma história que a natureza conta sobre si para ela mesma? Os experimentos de
Toshi com os katas, ou técnicas corporais associadas a um Japão arcaico e rural,
evocam uma questão benjaminiana: ao invés do domínio sobre a natureza, trata-se do
domínio sobre as relações com ela. E sobre as relações com o corpo. Eis possivelmente
o segredo do rigor e da disciplina do seitai-ho. Nos exercícios de katsugen undo
procura-se fazer uma audição do corpo, em sua interação com o mundo, com
possibilidades de ser surpreendido pelo que ele tem a dizer.
Segredo do bricoleur. Assim também se desenvolve uma arqueologia de elementos
sensiveis. As atenções voltam-se aos elementos sutis, aos pequenos gestos que
frequentemente passam despercebidos. De fontes de luz subterrâneas, iluminam-se
paisagens soterradas. Num movimento surpreendente, elementos descartados ou
ridicularizados irrompem com energias de promessas ainda não realizadas. Assim se
produz um efeito de despertar. Talvez seja esse um dos segredos do bricoleur: os restos
e as sobras de estruturas simbólicas que lhe são mais preciosas permanecem às margens
de sua obra, escondidos nas dobras da cultura, em testemunho do inacabamento de suas
“soluções”, configurando um acervo de coisas boas para fazer pensar.
Ventos, velas e conceitos. Retornamos ao título do livro: flor ao vento – ser em cena.
Num ensaio sobre pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral,
Richard Schechner inicia sua discussão falando sobre as transformações do ser. A
imagem da flor ao vento capta algo da impermanência das coisas – a fragilidade da vida
em meio às transformações. Neste relato chama atenção a transformação da própria
pesquisadora ao longo de seu percurso. Também chama atenção a transformação do seu
livro. Citando o mestre do zen-budismo Daisetz Suzuki, Rita nos lembra que quando se
aprisiona o vento em uma caixa, ele vira ar estagnado. Haveria no início do livro de Rita
o risco recorrente do ofício de quem escreve livros de aprisionar o vento em uma caixa
conceitual? Na virada de suas folhas, como flor ao vento, creio que os próprios
conceitos se transformam. Apresentam-se, acredito, como velas capazes de captar as
energias dos ventos. Há barcos capazes de levantar vôo.
Observa-se um percurso. O movimento do livro evocaria uma estética? E, quem sabe,
uma estética do jo-ha-kyu? No início, a experiência de retenção do vento (jo).
Nascimento. Riscos de que o vento venha a se aprisionar. A seguir, a experiência de
algo que se liberta. A ruptura (ha). O encontro com o seitai-ho. O aprendizado com
Toshi Tanaka, Ciça Ohno e colegas de pesquisa. A etnografia adquire dimensões de
uma experiência marcante. Configura-se uma espécie de etnografia do corpo em suas
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relações com o mundo. Na recriação da performance do FuGaku, o texto de Rita ganha
velocidade (kyu). E leveza. Talvez surpreenda que isso venha a acontecer justamente
quando as atenções se voltam para os passos mínimos e movimentos demorados da
performance FuGaku. Assim, num lampejo. Ou sopro de vento.
Configura-se um processo de criação. Ventos soprando sobre as águas. O nome do
espaço de experimentação elaborado por Rita com o artista Carlos Prande é propício:
Canto das Ondas. Também é propício seu experimento mais instigante: o teatro do
instante. Leveza de vento. Ser levada pelo vento com o vento. Rita virando vento. Ou
respiração. O próprio texto parece pulsar.
Ao longo de seu percurso, Rita elabora uma antropologia generosa, um jeito de fazer
antropologia característico, também, de sua colega e orientadora, Sylvia Caiuby Novaes,
e dos membros do Grupo de Antropologia Visual (Gravi) da USP. O Núcleo de
Antropologia, Performance e Drama (Napedra), que Rita ajudou a criar, também leva as
marcas de sua passagem. Em seu texto ressoam as vozes e imagens dos outros. Em seu
fundo ecoam suas conversas com os sujeitos de sua pesquisa, mestres, atrizes, atores e
colegas de antropologia e teatro. Rita se coloca no texto como uma pesquisadora entre
pesquisadores fazendo uma audição do corpo e do ser. Como atriz e antropóloga,
transitando entre mundos, ela busca com rigor uma espécie de conhecimento que se
revela ao mesmo tempo inteligivel e sensivel. Ali, onde as coisas afloram. No instante.
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