Comunicação: Veredas Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação ADMINISTRAÇÃO SUPERIOR DA UNIVERSIDADE DE MARÍLIA Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva Vice-reitora Profa. Regina Lúcia Ottaiano Losasso Serva Pró-reitor de Pós-graduação Prof. José Roberto Marques de Castro Pró-reitora de Ação Comunitária Profa. Maria Beatriz de Barros Moraes Trazzi Diretora da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo Profa. Dra. Suely Fadul Villibor Flory Comunicação: Veredas / Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, SP: Ed. Unimar, 2002. V.1, n.2, 2002 ISSN 1678-7536 1. Comunicação Social: Periódicos 2. Jornalismo 3. Publicidade 4. Letras 5. Artes 6. História I. Universidade de Marília II. Revista da Pós-graduação em Comunicação da UNIMAR. CDD- 302.2305 CDU- 659.3 (05) Os artigos são de reponsabilidade dos autores, tanta na forma quanto no conteúdo. Comunicação: Veredas Revista do Programa de Pós-graduação em Comunica Ano II - Nº 02 - Novembro, 2003 CONSELHO EDITORIAL EDITORES Suely Fadul Villibor Flory (Coordenadora) Linda Bulik (Vice-coordenadora) Romildo Sant’Anna (Conselheiro) Jussara Rezende Araújo (Conselheira) MEMBROS Ana Maria Gottardi Anamaria Fadul Carly Batista de Aguiar Elêusis Mírian Camocardi Eugênio Trivinho Fabíola Imaculada de Oliveira Hélio Guimarães Janete El Haouli Jean Mouchon Jorge Pedro Sousa José Marques de Mello Lucilene dos Santos Ganzales Luís de Castro Campos Jr. Luiz Antonio de Figueiredo Maria Aparecida Brando Santilli Maria Cecília Guirado Maria Helena Weber Michel Maffesoli Nícia Ribas D’Ávila Sandra Reimão Sérgio Dayrell Porto Volnei Edson dos Santos Wilson Gomes SUPERVISÃO EDITORIAL Linda Bulik EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E ARTE FINAL Ricardo Cassiolato Torquato CAPA Antonielson Reis Rodrigues EDITOR Rodrigo Rojas Comunicação: Veredas Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação ENDEREÇOS PARA CORRESPONDÊNCIA: Secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo Av. Higyno Muzzi Filho, 1001 - Campus Universitário - CEP 17525-902 - Marília - SP Telefones (014) 421-4075 - Fax: (014) 421-4074 - e-mail: [email protected] Universidade de Marília Av. Higyno Muzzi Filho, 1001 - Campus Universitário - CEP 17525-902 - Marília - SP Telefone: (014) 421-4000 - site: www.unimar.br 4 Sumário/ Contents Editorial .................................................................................................................................... 7 PARTE I - MÍDIA, REGIÃO E GLOBALIZAÇÃO ARTIGOS ORIGINAIS/Original Articles............................................................................................9 Comunicação regional e local na Europa Ocidental: Os casos português e galego Local and regional communication in Western Europe: The cases of Portugal and Galicia Jorge Pedro SOUSA ................................................................................................................... 11 Mídia local , uma mídia de proximidade Local media: A media of proximity Cicilia M. Krohling PERUZZO ................................................................................................ 65 Informação e Nova Ordem: Fluxos e contrafluxos na produção das mídias Information and New Order: Flows and counterflows in the media production Linda BULIK ............................................................................................................................ 91 Aspectos da experiência amazônica frente ao debate sobre fluxos e contrafluxos na comunicação Amazon experiment aspects facing the discussions on flows and counterflows in communication Narciso Júlio Freire LOBO ....................................................................................................... 105 Rede Bahia de Comunicação: Um exemplo de mídia regional Rede Bahia de Comunicação: Regional media example Maria Érica de OLIVEIRA LIMA ............................................................................................ 127 O moderno e o arcaico: O espaço local na produção jornalística na televisão Modern and archaic - the local space inside journalistic production in television Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER..................................................................................................157 Região sudeste: Hegemonia na mídia televisiva Southwest region: Hegemony in the telly media Nícia Ribas D’AVILA .............................................................................................................. 173 Fluxos nacionais e contrafluxos regionais: Anotações sobre a experiência gaúcha National flows and regional counterflows: Remarks on the gaúchos experience Antonio HOHLFELDT .......................................................................................................... 191 5 Contribuições de Luiz Beltrão para o campo comunicacional global Luiz Beltrão´s contributions to the global communication field Maria Cristina GOBBI ............................................................................................................ 233 A comunicação do consenso: mídia e exclusão The consensus communication: media and exclusion Jussara Rezende ARAÚJO ................................................................................................... .....251 Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar Possible globalization genesis: News from the lands on this side and oversea Maria Cecília GUIRADO ..................................................................................................... ...271 PARTE II - MÍDIA E CULTURA ARTIGOS ORIGINAIS/Original Articles........................................................................................285 Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular Caetano, an artist in the media: the sensitive, the erudite man, and the pop star Romildo SANT’ANNA ........................................................................................................... 287 A crônica satírica The satirical chronicle Ana Maria GOTTARDI .......................................................................................................... 323 Recursos poéticos na linguagem publicitária: Polissemia e homonímia Poetic resources in the advertising language: Polysemy and homonymy Lucilene dos Santos GONZALES ............................................................................................ 343 Jards Macalé – música e mídia Jards Macalé – music and media Luiz Antônio de FIGUEIREDO ............................................................................................. 357 O livro, a criança, os meios de comunicação: problemas, passes e impasses de leitura The book, the child, the mass media: problems, entries and barriers to reading Sílvia Craveiro GUSMÃO-GARCIA & Antonio Manoel dos Santos SILVA .............................. 371 Do regional ao existencial: o espaço como personagem em Grande Sertão: Veredas na mídia televisiva From regional to existential: the space as a character in Grande Sertão: Veredas on telly media Suely Fadul Villibor FLORY .................................................................................................... 393 NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS...................................................417 ÍNDICE DE AUTORES/AUTHOR INDEX...........................................................................419 6 Editorial E m 2003, a Universidade de Marília contabilizou um feito acadêmico importante ao realizar, no quadro do seu Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Comunicação, o VIII Colóquio Internacional de Comunicação para o Desenvolvimento Regional – o REGIOCOM-2003 - sob a égide da Cátedra UNESCO / UMESP de Comunicação Regional e com o apoio da CAPES e da FAPESP. Tendo por tema geral Mídia regional em tempo de globalização, durante três dias seus participantes concentraram-se no objetivo específico de “debater como a mídia regional está conduzindo os processos de regionalização, nacionalização e internacionalização, no contexto da globalização da economia, da comunicação e da cultura.” Eram cientistas e pesquisadores da comunicação, professores universitários, estudantes e profissionais da área, que afluíram de Portugal, México e de todos os Estados do Brasil para esse notável encontro, que deixou um saldo positivo de cerca de 200 trabalhos. O Conselho Editorial da Revista Comunicação: Veredas, após uma criteriosa seleção dos artigos, decidiu então dedicar ao REGIOCOM MARÍLIA duas edições temáticas (2003 e 2004) girando em torno de dois eixos: De um lado, Mídia, Região e Globalização; por outro, Mídia e Cultura. Os editores tiveram também a preocupação de alinhar as obras levando em conta as duas linhas de pesquisa, que norteiam o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNIMAR. Na primeira parte desta edição, o leitor observará que encontram-se as análises mais relacionadas à Produção e Recepção de Mídia enquanto na segunda parte perfilam-se as investigações voltadas para a Ficção na Mídia. Todavia, não há como escapar às inegáveis interfaces existentes entre ambas a operar em um caso ou outro o encontro das águas. Aí o critério aplicado foi a pertinência do objeto analisado. Linda BULIK e Suely F.V. FLORY 7 PARTE I MÍDIA, REGIÃO E GLOBALIZAÇÃO Artigos Originais Original Articles COMUNICAÇÃO: VEREDAS 10 Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego Comunicação regional e local na Europa Ocidental: Os casos português e galego Local and regional communication in Western Europe: The cases of Portugal and Galicia Jorge Pedro SOUSA Professor Doutor da Universidade Fernando Pessoa – Porto – Portugal. E-Mail: [email protected] 11 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Neste trabalho apresenta-se a paisagem mediática na Europa Ocidental, dedicando-se especial atenção à comunicação regional local e regional. Considera-se que a riqueza e a diversidade cultural e lingüística da Europa sustentam milhares de organizações mediáticas, o que é importante para a democracia. PALAVRAS-CHAVE: Europa - meios de comunicação - comunicação regional e local. ABSTRACT In this work, we present the European media landscape, in particular local and regional media landscape. We consider that the European cultural and linguistic diversity and richness sustain thousands of media organizations. We also consider that the existence of a very large number of media organizations is important for democracy. KEY WORDS: Europe - mass media - local and regional communication. 12 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego A Europa possui um substrato cultural comum. Atenas, Roma, o Cristianismo, o Renascimento e as Descobertas, as Luzes e a Razão, o Liberalismo, o Capitalismo, o Socialismo e a Democracia fizeram a Europa. A União Europeia intensificou a identidade europeia e forjou o cidadão europeu. Mas a Europa é também um continente onde várias dezenas de países de diferente dimensão, línguas e dialectos subsistem. Um continente onde vários matizes culturais ocorrem. Um continente onde existem nações sem estado e estados com várias nações. Onde a imigração islâmica, africana e asiática provocou choques e complexificou a sociedade e as culturas. Onde os países tentam muitas vezes fazer valer os seus interesses particulares em detrimento do interesse comum europeu, como se viu durante a Segunda Guerra do Golfo, conflito durante o qual os governos europeus se dividiram entre aqueles que apoiaram e os que condenaram a Administração Bush. A variedade europeia observa-se também no mundo dos media. Mas a paisagem mediática europeia é igualmente marcada por semelhanças. Este trabalho visa, precisamente, traçar os contornos do sistema mediático jornalístico regional e local europeu, destacando as grandes diferenças e semelhanças entre os media jornalísticos regionais e locais dos diferentes países e enfatizando as realidades portuguesa e galega. Para cumprir este objectivo, seguir-se-á uma metodologia descritiva e sistemática, ancorada na pesquisa documental (bibliográfica e na Internet). Por outras palavras, pretende-se descrever o panorama mediático país a país, com base nos dados pesquisados pelo autor ou encontrados nos documentos listados na bibliografia. A descrição, contudo, não será exaustiva, centrando-se nos quinze actuais países da União Europeia, na Suíça e na Noruega. Neste contexto, serão realçados os casos português e galego. É de referir que a realidade comunicacional regional e local europeia não pode ser aferida pelos mesmos padrões do que acontece, por exemplo, no Brasil, pois na Europa há países multilinguísticos e multiculturais, com fenómenos 13 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 importantes de imigração, o que não ocorre no Brasil. Na Europa também não existem megalópoles da dimensão de São Paulo, onde quase o dobro da população de países como a Grécia ou Portugal se comprime numa área muito inferior, e encontram-se países que em território e população são o equivalente a menos de um bairro de São Paulo. Há, no entanto, duas ou três excepções, como as regiões metropolitanas de Paris e Londres, que concentram cerca de oito milhões de habitantes cada uma. É ainda de salientar que os media regionais e locais constituem um subsector da comunicação social europeia de difícil descrição. São várias as razões para isso acontecer: 1. Volatilidade paisagística Se a grande realidade mediática europeia já é, por si só, bastante dinâmica, as micro-realidades mediáticas locais e regionais são-no ainda mais. Pode-se mesmo dizer que são relativamente vol teis. Jornais nascem e morrem sem que deles se dê conta, à excepção de uns quantos exemplares conservados nas bibliotecas1 ; rádios e televisões nascem sem audiência e rapidamente vão à falência2 . Ou então surgem ilegalmente e desaparecem quando são confrontadas com a Autoridade3 . 2. Inexistência de informação Apesar dos esforços recentes, faltam estudos sobre os media regionais e locais. Mesmo os dados disponíveis são, em muitos casos, meras estimativas. As pequenas empresas de comunicação por vezes nem sequer dão informações quando são solicitadas para o efeito4 . Obviamente, a situação relatada não é comum a todos os países. Há países onde o subsector é mais estável, outros onde é menos extenso e diversificado e outros ainda onde existem dados mais fiáveis sobre a respectiva situação. Por exemplo, entre as realidades que são mais aprofundadas neste trabalho –a portuguesa e a galega– é inegável que a situação dos media regionais e locais 14 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego galegos se encontra muito melhor estudada, documentada e descrita do que a situação portuguesa, pese embora todo o esforço desenvolvido nos últimos anos em Portugal pelo Observatório da Comunicação (Obercom), pelo Instituto da Comunicação Social (ICS) e pela Associação Portuguesa de Imprensa (AIND). 1. CONCEPTUALIZAÇÃO E PAPÉIS DA COMUNICAÇÃO SOCIAL REGIONAL E LOCAL Antes de se situar o que neste trabalho se entende por comunicação social local e regional é de explicitar que por comunicaÁ„o social aqui se entende a comunicação jornalística ou, pelo menos, a comunicação assente em meios que se podem considerar jornalísticos, sejam eles profissionais ou amadores. O conceito, da forma como é aqui usado, refere-se, assim, ao jornalismo de proximidade e exclui outras estratégias de comunicação em sociedade, como a publicidade ou as relações públicas. Posto este esclarecimento, há que dizer que não é fácil delimitar os conceitos de comunicação social local e de comunicação social regional, apesar de, como se viu, a Lei o procurar fazer, direccionando a explicitação do conceito para a geografia. Xosé López García (1995, p. 12) aponta igualmente a geografia como o determinante da definição de local, mas explicita que ela tem de ser cruzada com o social. Para este autor, o local é um espaço territorial singularizado, sendo que essa singularidade se manifesta em especial no campo social. “Nas sociedade actuais é no âmbito local que se produz [...] a particularidade mais acentuada”, escreve López García (1995, p. 12). Indo mais longe, e reportando-se a Emili Prado e Miquel de Moragas (1991), Xosé López esclarece que por comunicação (social) local se pode considerar “o lugar da mediação técnica onde também é possível a comunicação não mediatizada ou interpessoal”. Carlos Camponez (2002, p.19) põe o acento tónico na territorializaÁ„o da comunicação para delimitar os referidos conceitos. Tentando destrinçar a imprensa nacional da imprensa regional e local, Camponez (2002, p. 19) diz que as características que melhor definem a imprensa regional são “a sua forte territorialização, a territorialização dos seus públicos, a proximidade face aos agentes e às instituições sociais que dominam esse espaço, o conhecimento dos seus leitores e das temáticas 15 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 correntes na opinião pública local. [...] A imprensa local constrói-se [...] nesse compromisso com a região e com as pessoas que a habitam”. A territorialização é, de facto, um conceito chave para se explicitar o que se entende por comunicação social regional e local. O conceito de comunicação social regional e local não abarca as comunidades fisicamente desterritorializadas, como aquelas que se formam no ciberespaço ou no mundo global. Pelo contrário, a comunicação social regional e local tem sempre por referente um território, um espaço físico, uma área geográfica. É aquela que se vincula à realidade regional e local, à vida quotidiana da comunidade onde se insere, à vida comercial dessa comunidade, à dinamização sócio-cultural comunitária, à “necessidade de reafirmar a personalidade própria face aos outros povos” (LÓPEZ GARCÍA, 1995, p. 15). Assim, avançando-se com uma definição, pode dizer-se que a comunicação social local e regional é aquela que se estabelece numa comunidade de vizinhos, atravÈs de meios de comunicaÁ„o que lhe s„o prÛximos. Nesta definição jogam-se vários conceitos relevantes para se entender o que é a comunicação social regional e local. Em primeiro lugar, temos o conceito de comunidade. A comunicação social regional e local estabelece-se numa comunidade, rural ou urbana, porque se desenvolve entre pessoas em interacção próxima, aglutinadas em grupos familiares, que partilham valores, modos de vida, interesses e língua comuns, ou seja, partilham uma cultura comum, e têm raízes na mesma terra. A comunidade de que aqui se fala é telúrica. O seu referente é a terra, o território, mesmo quando as pessoas dele se afastam fisicamente, como acontece quando surgem fenómenos de migração e emigração. Por isso, faz mais sentido falar de comunidade quando o meio em questão é pequeno; faz menos sentido, mas n„o È despropositado, falar de comunidade quando o termo se refere a grandes centros urbanos. O território comunitário é menos abrangente no espaço local, mais abrangente no espaço regional. O espaço regional abarca várias comunidades locais interligadas, enquanto a comunidade local se restringe a ela mesma, sendo a sua célula básica a família. O local é o espaço social a seguir à família (LÓPEZ GARCÍA, 1995, p. 15). Em segundo lugar, temos o conceito de vizinhanÁa. A comunidade estabelece-se entre pessoas próximas umas das outras. A proximidade é aqui a noção chave. A comunicação social local e regional ocorre prÛxima das pessoas em interacção. Esta proximidade é, normalmente, física e mental. A segunda assu16 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego me mais importância do que a primeira quando ocorrem fenómenos de migração e emigração, mas normalmente caminham a par. Em terceiro lugar, temos a ideia de que a comunicação social local e regional se desenvolve através de meios de comunicaÁ„o que s„o prÛximos das pessoas que os usam. Aqui há que distinguir dois aspectos. O primeiro é a de que quando se fala de comunicação social se fala necessariamente de estratégias de comunicação mediada em sociedade. O recurso a meios de comunicação capazes de atingir muitas pessoas é um elemento chave da definição que propomos. O segundo aspecto a relevar é que os meios de comunicação usados numa comunidade tendem a revestir-se de formas de comunicação caracterÌsticas das comunidades em geral e dessa comunidade em particular. Os próprios meios locais –imprensa, rádio, televisão, meios on-line– são o primeiro sintoma desta asserção. A imprensa local, por exemplo, é uma forma de comunicação característica das comunidades locais, repetindo-se pelo mundo fora. Mas essas formas de comunicação características estendem-se aos conteúdos e respectivos referentes discursivos, à recuperação e reformulação discursiva da memória colectiva, às maneiras específicas de utilização da língua, às formas de contar histórias, à organização da informação, etc. Isto não exclui o uso de formatos consagrados fora da comunidade (por exemplo, os géneros jornalísticos dominantes são, de algum modo, universais), ou as referências discursivas a elementos fora da comunidade. Tão somente explicita que cada comunidade tem referentes específicos, apresenta algumas formas peculiares de contar histórias, particularidades linguísticas, etc. que ocorrem na comunicação social comunitária. Aclarado sinteticamente o conceito de comunicação social regional e local, cumpre colocar a questão: que papéis cumpre ela num tempo de globalização e desterritorialização? A comunicação social local e regional cumpre, antes de mais, as funções clássicas da comunicação social: informar, formar, entreter, etc. Mas é também um espaço convivial e de conivências. Entre todas essas funções, a mais importante e característica é a função informativa e utilit ria, na medida em que a comunicação social regional e local é ou deve ser, em primeiro lugar, um útil veículo de informação. Obviamente, a troca de informações cria vÌnculos entre os que nela se envolvem, pelo que a troca de informação contribui para a integração e reintegração constante dos membros da comunidade. A comunicação social local regional e local tem também uma importante função de produÁ„o simbÛlica comunit ria. Este papel é o que mais 17 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 contribui para a integração, socialização e aculturação dos membros da comunidade, pois agudiza o sentimento de pertenÁa (vd. Correia, 1988: 158) e permite ver o “outro de fora” como genericamente diferente, enquanto o “outro daqui” como genericamente semelhante (CAMPONEZ, 2002, p. 69). A esse nível, a comunicação social regional e local pode também ser um veÌculo de resistÍncia às pressões globalizadoras e desterritorializadoras mas igualmente um veÌculo de projecÁ„o do local no global –de glocalidade–(beneficiando dos novos meios), como muito bem explana Camponez (2002). A comunicação social regional e local funciona muitas vezes como veículo de petiÁ„o e de representaÁ„o ou de sectores da comunidade ou de toda a comunidade perante terceiros, sobretudo quando se envolve num jornalismo de causas. A comunidade real (ou sectores dessa comunidade) metamorfoseiase em comunidade de interesses. Em certos casos, as funções de representação e petição podem transbordar para a excomunh„o (CAREY, 1998), funcionando o medium como o representante do(s) excumungador(es) ou assumindo mesmo a função de excumungador. Como não podia deixar de ser, a comunicação social regional e local é também um espaÁo simbÛlico onde se desenvolvem competiÁões, principalmente entre os detentores do poder político local. Noutras ocasiões, a comunicação social regional e local contribuirá para o aparecimento de espirais do silêncio a nível regional e local, quando, como identificaria Noelle-Neumann, a opinião veiculada pelos media é confundida com a opinião maioritária ou única e as eventuais minorias (ou maiorias que julgam estar em minoria) se calam. Esta situação poderá ocorrer quando os media regionais e locais, em vez de assumirem uma condição de espaço público polifónico, são concentraccionários e controlados por poderes (e muitas vezes pelo poder unipessoal do cacique local). Noutras ocasiões ainda, a comunicação social regional e local poderá contribuir para formar e solidificar consensos. 2. PORTUGAL Portugal é um país de média dimensão (à escala europeia), linguística e culturalmente homogéneo, com cerca de dez milhões de habitantes, dos quais cerca de 5% são imigrantes, maioritariamente provenientes do Brasil e dos restantes países de língua portuguesa (Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné, São Tomé e Prín18 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego cipe, Timor-Leste). Com excepção das regiões autónomas atlânticas da Madeira e dos Açores, que possuem governos e parlamentos regionais, em Portugal não existe qualquer patamar intermédio entre o poder central (governo central) e o poder local (municípios). Existem regiões administrativas, mas não são sede de poder político, esgotando-se as suas funções nos estudos e planeamento. Portugal é um dos países europeus mais antigos (a fundação do Reino de Portugal remonta a 1143) com fronteiras mais cedo definidas: desde o século XIII que se mantêm praticamente inalteradas. 2.1 IMPRENSA REGIONAL E LOCAL (OU IMPRENSA DE PROXIMIDADE) ENQUADRAMENTO A imprensa regional e local portuguesa tem raízes na explosão de liberdade que resultou do triunfo da Revolução Liberal de 1820 e da consequente promulgação da Carta Constitucional. Desde essa época que proliferaram no país centenas de jornais locais e regionais, em alguns casos ligados à Igreja Católica e noutros casos ligados a tipografias ou a pequenas empresas de comunicação e mesmo a autarquias. É de realçar, porém, que o apetite recente de grandes oligopólios mediáticos sobre alguns títulos de expressão regional e local é grande. Prova-o, por exemplo, a aquisição dos jornais AÁoriano Oriental (o mais antigo jornal português) e Jornal do Fund„o pela Lusomundo, grupo da Portugal Telecom integrado na PT Multimédia. A imprensa regional tem sido definida de diferentes maneiras. De acordo com a Lei de Imprensa de 1971, podia considerar-se imprensa regional aquela que era “constituída pelas publicações periódicas não diárias que tenham como principal objectivo divulgar os interesses de uma localidade, circunscrição administrativa ou grupos de circunscrições vizinhas”. A Lei de Imprensa de 1975 inflecte o articulado, passando, por exclusão de partes, a circunscrever a imprensa regional àquela que não era posta à venda na generalidade do território nacional, uma vez que a Lei enunciava apenas o seguinte: “As publicações periódicas podem ser de expansão nacional e regional, considerando-se de expansão nacional as que são postas à venda na generalidade do território”. Em 1988, o Estatuto da Imprensa Regional define-a como “todas as publicações periódicas, de 19 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 informação geral, conformes à Lei de Imprensa, que se destinem predominantemente às respectivas comunidades regionais e locais, dediquem, de forma regular, mais de metade da sua superfície redactorial a factos ou assuntos de ordem cultural, social, religiosa, económica e política a elas respeitantes e não estejam dependentes, directamente ou por interposta pessoa, de qualquer poder político, inclusive o autárquico”. Finalmente, a Lei de Imprensa de 1999 define as publicações de âmbito regional como as “que pelo seu conteúdo e distribuição se destinem predominantemente às comunidades regionais e locais”. Apesar das tentativas de delimitação do território da imprensa regional, o facto é que sob o guarda-chuva do conceito cabem, segundo o Anurio da ComunicaÁ„o 2000/2001 (pg. 189), “publicações de ordem religiosa, títulos com forte influência do poder local e regional (existindo mesmo publicações com participações maioritárias das autarquias) até empresas e grupos de comunicação regional e por fim, nos últimos dois anos, títulos adquirido por grupos económicos nacionais”. Seja como for, o Estado reconhece à imprensa regional, conforme é explícito no respectivo Estatuto, um “papel altamente relevante, não só no âmbito territorial a que naturalmente diz respeito, mas também na informação e contributo para a manutenção de laços de autêntica familiaridade entre gentes locais e as comunidades locais e as comunidades de emigrantes dispersas pelas partes mais longínquas”. O Estado não faz mais, aliás, do que expressar o sentimento de muitos portugueses, que reconhecem na imprensa regional vários papéis: – ser um veículo de informação; – ser um meio de promoção e mobilização local; – ser um meio de chamada de atenção para os anseios e projectos locais; – ser um elo social e identitário, um elemento socializador e agregador; – ser um amplificador do espaço público local. PAISAGEM MEDIÁTICA DO SUBSECTOR Os registos (obrigatórios) de publicações do Instituto da Comunicação Social indicam que em Portugal há cerca de quatro mil títulos registados, dos quais cerca de novecentos (22,5%) são da imprensa regional 20 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego e local. Sabendo-se que em Portugal há 22 distritos, isto significa que, em média, cada distrito conta com 41 títulos da imprensa regional e local, embora os distritos do litoral Norte e Centro tenham bastantes mais publicações do que outros, conforme se observa na tabela 1. Tabela 1 Jornais regionais por distrito (Portugal Continental) Distrito Aveiro Beja Braga Bragança Castelo Branco Coimbra Évora Faro Guarda Percentagem 11 0,9 9,4 1,4 2,1 6 3 4,6 5,4 Distrito Leiria Lisboa Portalegre Porto Santarém Setúbal Viana do Castelo Vila Real Viseu Percentagem 7,1 12,4 2 10,7 6,7 3,7 6,4 2,3 4,8 Fontes: IPOM/Instituto da Comunicação Social. Segundo Assis Ferreira (1999), os registos do Instituto da Comunicação Social e da antiga Direcção-Geral da Comunicação Social permitem observar que entre 1991, ano em que o Estado começou a subsidiar a imprensa regional e local, e 1998 o número de jornais regionais e locais aumentou quase 50%, passando de 615 para os cerca de 900 actuais. Porém, segundo o mesmo estudo, a circulação apenas aumentou cerca de 11%. Ou seja, os incentivos à modernização tecnológica e outros pouco contribuíram para o sucesso da imprensa regional e local, antes serviram para mais pessoas deitarem mãos aos apoios estatais e criarem pequenos jornais, em muitos casos assentes em estruturas incapazes de sustentar projectos profissionais e empresariais. Esta fraca aposta na profissionalização dos projectos é também identificável na política de recursos humanos: segundo o Anu rio da ComunicaÁ„o 2001/2002 (pg. 169), o subsector da imprensa regional e local emprega apenas cerca de 2 136 trabalhadores, o que dá uma média de cerca de apenas 2,4 profissionais por cada título registado. Inclusivamente, de 1999 para 2000 registou-se um decréscimo de quase 18,1% no número de empregados do subsector. 21 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Um estudo de Março de 2000, desenvolvido pelo ICOM para a AIND, mostrou que das 275 empresas jornalísticas regionais e locais que responderam a um inquérito 23,4% não tinham qualquer jornalista ao seu serviço e entre os jornalistas contratados para a imprensa regional e local 52,4% eram contratados a tempo parcial, contra 47,6% contratados a tempo inteiro. Dessas empresas, só 15,8% integra mais de três jornalistas. Além disso, 73,8% das empresas respondentes não tinham trabalhadores comerciais e de marketing a tempo inteiro. Estes dados revelam o amadorismo de muitos dos projectos de imprensa regional e local em Portugal. Os dados preocupantes sobre a política de gestão de recursos humanos na imprensa regional e local dizem também respeito a uma realidade mais comum: o número de contratados. 64,1% das empresas não tem contratados efectivos e 80% não tem sequer contratados a prazo. Isto revela que as empresas vivem essencialmente da carolice e do trabalho ocasional remunerado e não do profissionalismo. Aliás, mais de 27% das empresas tem um montante de encargos anuais com trabalhadores nulo. Não existem dados fiáveis sobre a circulação e tiragens de jornais regionais e locais. Dos cerca de 900 títulos registados, apenas dez (1,1%) aderiram à Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens. Entre estes nove, o panorama varia. Há títulos que conquistaram leitores e títulos que perderam leitores, conforme se pode constatar pela tabela 2. 22 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego Tabela 2 Circulação dos jornais regionais auditados pela Associação Portuguesa de Controlo de Tiragens Diários 1998 1999 2000 2001 2002 Variação 1999 Variação 2002 /2001 /2000 Açoriano Oriental 5 162 4 824 4 475 4 547 4 182 - 7,2% - 8% Diário de Notícias da Madeira 14 394 14 996 15 992 16 152 16 393 + 6,6% + 1,5% DiáriodoMinho n/d n/d 6 279 7 350 5 583 – - 24% A Capital – – 15 629 11 501 4 182 – - 27,9% OComérciodo Porto n/d 11 827 9 777 7 561 7 203 - 17,3% - 4,7% Semanários Badaladas 11 286 11 277 11 199 11 192 10 920 - 0,7% -2,4% Jornal do Fundão n/d 17 182 17 665 18 273 19 906 + 2,8% 8,9% O Mirante 19 617 21 900 22 362 22 873 22 010 + 2,1% - 3,8% Reconquista – 10 828 11 320 11 711 11 939 + 4,5% 1,9% Região de Leiria 15 867 15 766 15 168 14 873 15 428 - 3,8% 3,7% Fonte: Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragens Quanto à situação geral, conforme se observa na tabela 3, os dados do Instituto da Comunicação Social indicam que na imprensa regional a tiragem média por edição mais frequente situa-se entre os mil e os três mil exemplares. Apenas 8,5% dos jornais regionais e locais têm tiragens superiores a 10 001 exemplares. Destes, segundo o Instituto da Comunicação Social, apenas oito jornais têm tiragens superiores a doze mil exemplares. Estes dados demonstram a vocação especificamente local da maior parte da imprensa dita regional. No entanto, são dados pouco fiáveis, pois as tiragens da imensa maioria dos jornais regionais e locais não são auditadas. Tabela 3 Até 500 1,5% 501- 1001- 3001- 5001- 70011000 3000 5000 7000 10000 7,7% 46,2% 21,7% 7,4% 8,1% Mais de 10001 8,5% Tiragens médias por edição Fonte: Instituto da Comunicação Social. 23 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 As tiragens dos diários regionais também não são grandes, conforme se observa pelos dados da tabela 4. Tabela 4 Diários regionais por distrito e respectiva tiragem Diários regionais por distrito Distritos Tí t ulos Angra do Heroísmo Diário Insular A União Aveiro Diário de Aveiro Braga Correio do Minho DiáriodoMinho Coimbra As Beiras DiáriodeCoimbra Évora Diário do Sul Funchal DiáriodeNotícias Jornal da Madeira Horta Correio da Horta OTelégrafo Leiria Diário de Leiria Ponta Delgada Açoriano Oriental CorreiodosAçores DiáriodosAçores Porto O Primeiro de Janeiro OComérciodoPorto Lisboa A Capital Setúbal Correio de Setúbal Viseu DiárioRegional Tiragens 3 200 1 410 6 000 5 000 5 583 11 500 15 000 10 000 16 393 6 000 1 410 2 200 4 000 4 182 4 500 3 650 21 000 7 203 4 182 5 000 3 000 Fonte: Instituto da Comunicação Social e Obercom. Nota: algumas das tiragens anunciadas merecem reservas, pois não são auditadas. A circulação auditada dos jornais não é, porém, o único indicador susceptível de dar uma imagem do impacto da imprensa de proximidade. Um estudo de 2000, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa (AIND), mostrou que a 60,1% dos portugueses adultos lê a imprensa de proximidade, sendo que 54,9% o faz semanalmente. Este último dado está relacionado com o facto de a imprensa regional e local ser, predominantemente, semanal. A macro-temática a que os leitores da imprensa 24 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego regional e local mais dão importância é a Educação e Cultura (64,4%). Saúde e Segurança Social (60,9%) constitui a segunda temática mais referida em ordem de importância, logo seguida pela Política (49,7%), Desporto (41,4%) e Economia, Negócios e Empresas (25,9%). Porém, o que é bastante significativo, 43,6% dos inquiridos considera que a imprensa de proximidade tem contribuído pouco para o desenvolvimento da sua região. Além disso, a maioria dos leitores quer que os jornais locais ultrapassem a vocação de “jornais da terra”, assumindo uma dimensão regional (68,9%). Esta pretensão vai, aliás, no mesmo sentido dos estudos que têm sido realizados e das directrizes emanadas pelos sucessivos Governos – a imprensa de proximidade, para ter sucesso, deve estruturar-se em empresas de média dimensão que editem órgãos de comunicação com vocação regional. As políticas governamentais para o sector têm, em consequência, procurado incentivar a fusão da miríade de jornais que constituem a imprensa local portuguesa, no sentido de constituir empresas mais sólidas com arcaboiço suficiente para contratar jornalistas profissionais, mas sem grande sucesso. No que respeita à periodicidade, o subsector da imprensa regional e local é essencialmente constituído por semanários, quinzenários e jornais mensais, conforme os indicadores constantes da tabela 5. Tabela 5 Periodicidade Diário 1,8% Bi/tri-semanal 0,7% Semanal 37,6% Quinzenal 23% Mensal 36,1% Trimestral 0,4% Anual 0,4% Fonte: Instituto da Comunicação Social. O volume de negócios da imprensa regional e local portuguesa tem evoluído negativamente. Como se pode constatar pela tabela 6, o volume de negócios decaiu entre 1999 e 2001, decaindo igualmente a importância do sector no negócio dos media: 25 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Tabela 6 Evolução recente do volume de negócios da imprensa regional e local portuguesa 1999 Total (mEsc) 12,713,672 2000 Total (mEsc) 10.800.000 Variação em relação ao ano anterior 15,05% % no sector % no sector da comunicação da comunicação 6,2 5 (-1,2) 2001 Total (mEuros) 47 Variação em relação ao ano anterior -13% % no sector da comunicação 3,4 (-1,6) Fonte: Obercom/Anuário da Comunicação 2001/2002 e Obercom/Anuário da Comunicação 2002/2003. O fraco desempenho económico da imprensa regional e local portuguesa tem explicação: a maior parte da comunicação regional e local portuguesa não tem uma forte dinâmica empresarial. Outros indicadores corroboram essa ideia. Segundo Assis Ferreira (1999), o número de jornais regionais e locais portugueses com contabilidade organizada era de apenas 23% em 1998. Um outro estudo, desta feita de Março de 2000, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa de Opinião e Mercado (IPOM), a pedido da Associação Portuguesa de Imprensa (AIND), demonstrou que cerca de 2,3% dos jornais regionais e locais portugueses têm um volume de negócios anual que varia apenas entre cinco e vinte e cinco mil euros, enquanto somente 6% têm uma facturação superior a 500 mil euros. Esta estrutura pouco profissional resulta em dificuldades acrescidas para captar publicidade. O investimento publicitário líquido na imprensa regional e local também tem decaído, como se observa na tabela 7. A isto acresce, comparando com os dados da tabela 6, que o investimento publicitário não cobre as despesas do sector, que será suportado essencialmente pelas vendas e, por que 26 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego não dizê-lo, pela carolice dos animadores da imprensa regional e local. Tabela 7 Captação de investimento publicitário pela imprensa regional e local portuguesa Investimento publicitário 1999 Total (mEsc) 7 246 191 % no sector da % no sector da comunicação 5,4 2000 2001 Total (mEsc) 6 700 000 Variação em relação ao ano anterior Total (mEsc) 5 829 000 Variação em em relação ao ano anterior - 7,53% % no sector da comunicação 4,7 - 13% % no sector da comunicação 4,3% Fonte: Obercom/Anuário da Comunicação 2001/2002 e Obercom /Anuário da Comunicação 2002/2003. Embora não existam dados seguros, um inventário feito pelo Obercom permite concluir pelo menos cerca de 150 jornais regionais e locais portugueses (16,7%) têm edições on-line. Em alguns casos são edições concebidas especificamente para a Internet, com conteúdos próprios, inquéritos aos leitores, etc., mas a situação mais habitual é que a edição on-line seja uma mera transposição da edição em papel para a Internet. Normalmente os conteúdos on-line são de acesso livre, mas um número reduzido de jornais, como o Jornal do Fund„o, já possui uma zona de conteúdos pagos. A migração para a Internet contribui para sedimentar uma vocação dos jornais regionais e locais portugueses: servir de elo entre os emigrantes e entre os migrantes internos e as suas localidades de origem. A migração para a Internet também pode significar uma maior visibilidade glocal da imprensa regional e 27 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 local portuguesa. Há também projectos jornalísticos regionais e locais nascidos exclusivamente para a Internet, como o Set­bal na Rede e o Azores News. Este último revela uma nova tendência: a oferta de informação regional e local em inglês, evidenciando que a visibilidade global dos conteúdos na Rede depende muito do idioma em que são redigidos. Para completar a panorâmica da imprensa regional e local, há ainda a registar o florescimento dos jornais regionais e locais de distribuição gratuita (free papers) e grande tiragem, de que o Jornal da Regi„o é exemplo. Normalmente, tratamse de jornais pertencentes a grandes grupos mediáticos, que inserem pouca informação (para a qual aproveitam muita matéria de outras publicações do mesmo grupo, embora reduzida a notícias breves) e muita publicidade. Mas há casos diferentes, onde os conteúdos jornalísticos se sobrepõem à publicidade e onde a informação não se resume a meia-dúzia de notícias breves, como acontece com a revista portuense Viva!. PERSPECTIVAS Para subsistir, a imprensa regional enfrenta vários desafios, mas perante ela também se abrem várias oportunidades. O principal desafio é a promoção da qualidade dos conteúdos. Trata-se, efectivamente, de um subsector onde a quantidade é grande mas a qualidade é pequena. Um segundo desafio prende-se com a definição do seu papel num mundo em que a dinâmica da globalização contrasta paradoxalmente com o recrudescimento da importância do local. A glocalidade é, pois, o novo espaço da imprensa regional e local e esta tem de o ocupar, designadamente através da migração para o ciberespaço e do aproveitamento das potencialidades do on-line (actualização, interactividade, multimédia, possibilidades de personalização para o usuário, etc.). Um terceiro desafio é a competição gerada pela regionalização da imprensa nacional. São já vários os jornais nacionais que possuem edições regionais – P­blico, Jornal de NotÌcias, Di rio de NotÌcias. Outros inserem suplementos que variam consoante a região (como o Expresso). Esta tendência relativamente recente no panorama editorial português, sustentada por estudos de mercado 28 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego que provam o interesse das populações pelo jornalismo de proximidade, constitui, provavelmente, uma ameaça para os pequenos jornais regionais que se baseiam mais na carolice do que no profissionalismo e que têm grandes dificuldades na captação de investimento publicitário. Mas, simultaneamente, é também um factor de concorrência susceptível de promover mais rapidamente a reconversão dos jornais regionais em projectos solidamente profissionais. Outro dos desafios concorrenciais tem a ver com a emergência dos free papers. Porém, a concorrência destas publicações só se verifica nos grandes centros urbanos, capazes de gerar um afluxo publicitário suficiente para sustentar essas publicações. Um quarto desafio está na profissionalização e desenvolvimento empresarial. As empresas de imprensa regional e local devem articular-se ao redor de projectos estratégicos que, assentes no respectivo corebusiness, integrem as políticas editoriais com as políticas comerciais e de marketing e instituam uma política de recursos humanos baseada na contratação de profissionais, em especial de jornalistas, designers, técnicos de marketing e vendas, gestores, etc. Não podem mais alicerçarse em projectos pessoais, de escassos recursos e de reduzida dimensão. Uma das soluções para este problema é a concentração e fusão de jornais regionais e locais. Um quinto desafio reside na salvaguarda da independência da face aos poderes político e religioso, em especial na salvaguarda da independência face ao poder autárquico. Será provavelmente difícil para muitas pequenas publicações regionais e locais abandonarem a situação financeiramente confortável de dependência das autarquias locais, mas o melhor caminho para garantirem vendas, leitores e afluxo publicitário é o da independência. Um sexto desafio assenta na capacidade de gerar leitores e receitas num sector onde o mercado é, por natureza, limitado, o que implica capacidade de comunicar e de vender o produto e de mudar os fracos hábitos de leitura. Um sétimo desafio tem a ver com a capacidade da imprensa regional e local captar publicidade e ganhá-la à televisão e à imprensa nacional. Finalmente, entre os desafios que se colocam à imprensa regional não se pode ignorar a tendência recente da concentração. Já há vários grupos de media regionais. Um pequeno número de publicações também foi adquirido pelos grupos mediáticos de expressão nacional. A concentração é, obviamente, ao mesmo tempo uma oportunidade e uma ameaça. Uma ameaça porque torna a imprensa regional e local dependente do grande poder económico, pode colocar em causa o 29 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 pluralismo, pode dificultar a autonomização dos conteúdos regionais e locais face às políticas editoriais dos grandes grupos (com as consequentes perdas para as comunidades locais) e pode dificultar a obtenção de empregos por jornalistas descontentes com as políticas editoriais. Uma oportunidade porque pode sanar os problemas financeiros das publicações, promover a qualidade do jornalismo praticado, permitir o aproveitamento de sinergias entre as empresas do mesmo grupo (nomeadamente no que respeita à produção de conteúdos de qualidade) e solidificar a independência face aos poderes políticos e religiosos locais. Para responder aos desafios, a imprensa regional e local portuguesa tem várias oportunidades que pode aproveitar, como o aproveitamento do sistema de incentivos do Estado, a assunção do papel que pelo Legislador lhe foi reconhecido, conforme se expressa no Estatuto da Imprensa Regional, a fusão e concentração de jornais, a aposta no jornalismo profissional, a introdução da figura do provedor do leitor, etc. Uma derradeira oportunidade consiste nas possibilidades de aproveitar a relativa incapacidade de penetração da imprensa nacional fora dos grandes distritos, em especial fora de Lisboa e Porto. Ao fim e ao cabo, as oportunidades são quase infinitas, pois tudo ou quase está ainda por fazer ou reconverter no mundo da imprensa regional e local portuguesa. POLÍTICA DO ESTADO Ciente do papel informativo, formativo e de elo entre os emigrantes e o seu país natal da imprensa regional, o Estado Português tem um sistema de incentivos à imprensa regional e local que assenta em seis pilares: 1) Porte pago – comparticipação estatal nas despesas de envio de exemplares pelo correio, para assinantes, instituições, etc. Em 1999, 665 jornais regionais e locais beneficiaram de porte pago (cerca de 73,5%), tendo esse número subido para 714 (cerca de 79,3%) em 2000. 2) Modernização tecnológica – comparticipação estatal nas despesas com a reconversão tecnológica de jornais regionais e locais. Até 2001, 787 publicações regionais e locais (87,4%) beneficiaram deste apoio, que já custou ao Estado cerca de 15 milhões de euros desde 1986. 3) Publicidade institucional – Inserção obrigatória de determinado tipo e quantidade de anúncios publicitários institucionais na imprensa regional e local, para 30 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego apoiar a subsistência dos mesmos. Na actualidade, 15% da publicidade anual gerada pelos organismos de Estado deve ter os jornais regionais e locais como destinatários. Não obstante, este apoio é relativamente reduzido, tendo-se ficado por cerca de 215 mil euros em 2000 e em 2001. 4) Criação de novos postos de trabalho para jovens à procura do primeiro emprego – Co-financiamento estatal das despesas iniciais e dos salários de jovens à procura do primeiro emprego admitidos pelas empresas da imprensa regional e local, durante um ou dois anos. 5) Iniciativa e desenvolvimento empresarial – Apoio estatal aos projectos inovadores de empresas da imprensa regional e local. Trata-se de um incentivo recente que beneficiou poucas empresas (apenas três em 2001), num montante de cerca de 40 mil euros. 6) Criação de conteúdos na Internet – Apoio estatal às edições on-line das publicações regionais e locais e à criação de novas publicações regionais e locais on-line. Pode assim dizer-se que, apesar da crise económica e financeira que neste momento Portugal atravessa, o Estado tem mantido a sua aposta na promoção da imprensa regional e local e que cumpre agora a esta corresponder positivamente a essa aposta. ASSOCIATIVISMO Reflectindo o carácter fragmentário do mercado e a personalização de muitos dos projectos de comunicação social regional e local, os jornais regionais e locais agregam-se em nada mais nada menos do que seis associações, o que lhes tira força. São elas a Associação Portuguesa de Imprensa (AIND); que agrega cerca de 256 títulos; a Associação da Imprensa Diária (AID), que junta 13 dos 18 diários regionais; a Associação Portuguesa de Imprensa Regional (APIR), que reúne 215 títulos; a União Nacional de Imprensa Regional (UNIR), que tem 66 associados; a Associação da Imprensa Regional Algarvia, que tem 40 títulos associados; e ainda a Associação de Imprensa de Inspiração Cristã, ligada à Igreja Católica. 31 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 2.2 RÁDIOS REGIONAIS E LOCAIS ENQUADRAMENTO Os primeiros passos da rádio em Portugal, nos anos vinte do século passado, foram marcados pelo carácter local e amador das primeiras experiências. Porém, a instituição da Ditadura (1926), legitimada pela Constituição de 1933, e a fundação da rádio estatal (Emissora Nacional) modificaram o panorama. Os projectos privados profissionalizaram-se e, em grande parte dos casos, as rádios privadas passaram a ter cobertura nacional, concorrendo com a Emissora Nacional. Foi o caso, por exemplo, da Rádio Renascença – Emissora Católica Portuguesa. Estas transformações, porém, não impediram o florescimento de projectos de rádio regionais, como a Rádio Porto (Porto) ou a Rádio Altitude (Guarda). A Revolução Democrática do 25 de Abril de 1974 trouxe à rádio tempos conturbados. Algumas das rádios privadas foram nacionalizadas. Outras desapareceram. Mas no início dos anos oitenta o panorama estava novamente estabilizado, com três rádios nacionais (Emissora Nacional, que se veio a metamorfosear na Radiodifusão Portuguesa – RDP, Rádio Renascença e Rádio Comercial) e várias rádios regionais. Porém, a segunda metade da década de oitenta viu emergir um novo fenómeno: o das “rádios livres” ou “rádios piratas”, associadas a projectos privados, associativos, cooperativos, religiosos e mesmo autárquicos. A irrupção de centenas de emissoras à margem da Lei obrigou o Estado a intervir para regulamentar o sector. Assim, a 30 de Julho de 1988 foi promulgada pela Assembleia da República a Lei da Rádio (Lei 87/88), que foi substituída pela Lei 2/97, e esta, por sua vez, foi substituída pela Lei 4/2001. A anterior versão da Lei da Rádio previa que a actividade de radiodifusão pudesse ser exercida por entidades públicas, privadas ou cooperativas, podendo as rádios ser de cobertura nacional, regional e local. A nova Lei da Rádio mantém a divisão em rádios nacionais, regionais e locais, mas prevê que a actividade de radiodifusão seja exercida por pessoas colectivas, com excepção de autarquias locais, sindicatos, organizações patronais ou profissionais, directa ou indirectamente. O elevado número de rádios locais permitiu a algumas delas que pre32 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego tendiam ter cobertura regional ou nacional sem possuírem alvará para o efeito associarem-se em cadeias de rádios. Algumas emissoras locais passaram a funcionar apenas como meras retransmissoras da rádio-mãe. Por isso, a versão de 1997 da Lei da Rádio impôs que as rádios locais generalistas deviam transmitir, no mínimo, seis horas de programação própria, a emitir entre as 7 e as 24 horas. Além disso, a mesma Lei obrigava a que cada pessoa singular ou colectiva só pudesse deter participação num máximo de cinco operadoras de radiodifusão. A nova Lei da Rádio aumentou para oito horas o período mínimo diário de emissão própria, ou seja, como diz a Lei, o período de emissão de conteúdos produzidos e difundidos a partir das instalações de radiodifusão que têm licença ou autorização para emitir e usando os recursos técnicos e humanos que lhe estão afectos. As rádios também são obrigadas por Lei a um mínimo de horas diárias de emissão. As rádios nacionais não podem emitir menos de dezasseis horas diárias, as rádios regionais não podem emitir menos de dez horas diárias e as rádios locais não podem emitir menos de oito horas diárias. A legislação também tipifica as rádios quanto aos conteúdos, dividindo-as em generalistas e temáticas. As primeiras são aquelas que têm uma programação diversificada e genérica e as segundas centram-se em conteúdos específicos, como a música ou a informação. A Lei explicita, porém, que só podem ser autorizadas emissoras temáticas desde que cada concelho possua pelo menos uma estação generalista. Nos finais dos anos oitenta, algumas estações –nacionais, regionais e mesmo locais– começaram a operar com um novo sistema, o Radio Data System (RDS), acompanhando a oferta de receptores por parte das grandes marcas. Foi o primeiro passo em direcção à rádio digital com integração de serviços. A rápida difusão de emissoras a operar em RDS obrigou, mais uma vez, o Estado a correr atrás da sociedade civil. Assim, em 1995 foi publicado um Decreto-Lei que visou regulamentar a instalação e operação de sistemas de transmissão de dados em radiodifusão. Em 1999, foi publicada a Portaria n.º 96/99 que definiu as aplicações do RDS, as suas especificações técnicas e os procedimentos necessários para a obtenção de autorização para o usar. O novo passo da digitalização da rádio está a ser dado com a tentativa de 33 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 implantação do Digital Audio Broadcasting (DAB). Porém, os vultuosos investimentos necessários, quer por parte dos emissores, quer por parte dos consumidores, têm travado a sua implantação, pelo que o futuro do DAB em Portugal tem, para já, prognóstico reservado. As regras de acesso ao DAB foram definidas em 1998. Como o DAB obriga à existência de uma rede emissora dedicada, o Governo abriu concurso público para a atribuição de licenças para o estabelecimento e fornecimento das redes T-DAB. O concurso foi ganho pela Radiodifusão Portuguesa (RDP), que obteve licença para a distribuição de sinal de rede de cobertura nacional com uma capacidade para seis canais – os três da RDP (Antena 1, Antena 2 e Antena 3) e outros três canais para operadores privados. Porém, até ao momento não se registam movimentações de privados para a migração para o DAB. O Legislador previu uma segunda rede de DAB, vocacionada para as rádios regionais, mas estas, provavelmente, terão ainda mais dificuldades para investirem no sistema. Esta segunda rede ainda nem sequer foi concessionada. Para finalizar, apenas uma chamada de atenção para a existência de rádios universitárias locais, reconhecidas pela Lei da Rádio, que podem candidatar-se a frequências locais especiais. PANORÂMICA DO SUBSECTOR Dados do Instituto da Comunicação Social, do Instituto Nacional de Estatística e do Obercom permitem concluir que o número de emissoras de rádio regionais e locais portuguesas tem sido relativamente estável desde 1998, embora se note, em alguns casos, tendência para um ligeiro aumento do número de emissores em FM, manutenção do número de emissores em onda média (OM) e para a diminuição dos emissores em onda curta (OC). Os mesmos dados mostram que a maior parte dos emissores emite em FM e se concentra nas regiões do Norte, do Centro e de Lisboa e Vale do Tejo, por razões de desenvolvimento sócio-económico. 34 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego Tabela 8 Emissores licenciados por região Regiões 1999 OM OC FM Portugal 53 12 497 Continente 40 12 432 Norte 14 148 Centro 16 106 Lisboa e Vale do Tejo4 9 95 Alentejo 3 3 47 Algarve 3 36 Açores 7 31 Madeira 6 34 2001 OM 55 42 16 16 4 3 3 7 6 OC 3 3 2 1 T 562 484 162 122 2000 OM 53 40 14 16 108 53 39 38 40 4 3 3 7 6 FM 536 458 157 120 94 51 36 44 34 T 594 503 173 136 100 55 39 51 40 2002 OM 54 42 16 16 4 3 3 7 5 OC 3 3 143 110 FM 492 427 157 126 T 548 470 2 1 - 94 44 36 31 34 100 48 39 38 40 OC FM T 3 595 652 3 502 547 168 184 129 145 2 100 106 1 65 69 40 43 53 60 40 45 Fontes: Instituto Nacional de Estatística, Instituto da Comunicação Social e Obercom. Os dados expostos na tabela 9 indicam que a audiência global da rádio em Portugal tem diminuído e que a audiência relativa das rádios regionais e locais também sofreu uma diminuição entre 1999 e 2001, havendo a registar uma ligeira recuperação de 2001 para 2002. Embora o dado seguinte não conste da tabela, registe-se que as rádios nacionais, em especial a Rádio Renascença (com os seus dois principais canais – Canal 1 e RFM) dominam a audiência, conquistando quase 30% dos ouvintes. 35 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Tabela 9 Audiências estimadas das rádios regionais e locais (share)* Ano Audiência (%) 1999 31,9 2000 29 2001 24,5 2002 25,2 *Estimavdados da Marktest, do Obercom e do Instituto da Comunicação Social. No que respeita ao volume de negócios das rádios locais, constata-se que tem decrescido em valores absolutos e em peso relativo no sector da rádio em geral, conforme se pode visualizar pela tabela 10. Tabela 10 Volume de negócios das rádios regionais e locais e respectivo peso percentual no sector da rádio em geral Ano Volume de negócios(mEuros) Peso no sector da rádio (%) 1999 64 776,35 38,6 2000 53 767,18 32,7 2001 48 390,46 30,6 2002 41 131,89 27,8 Fonte: Obercom 36 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego As receitas de publicidade (tabela 11) têm tido um comportamento oscilatório desde 1999, mas estão em queda contínua desde 2000. O peso percentual das receitas publicitárias das rádios regionais e locais no sector da rádio também tem sido irregular, mas é de notar que o investimento publicitário nessas rádios tem sido percentualmente superior ao share que conseguiram ter no mesmo período. Tabela 11 Receitas líquidas de publicidade nas rádios regionais e locais e respectivo peso percentual no sector da rádio em geral Ano Receitas de publicidade(mEuros) Peso no sector da rádio (%) 1999 2000 2001 2002 37 979,07 39 144,15 35 414,65 30 102,45 51 45,4 56,3 41,7 Fonte: Obercom. Uma outra tendência que se nota na rádio portuguesa consiste na regionalização das grandes emissoras nacionais e mesmo na criação de canais regionais próprios. É o caso, por exemplo, da Rádio Renascença, que lidera as audiências e que tem canais regionais como a Voz do Porto. A migração para a Internet, na perseguição da glocalidade, também é uma tendência que tem sido seguida pelas rádios portuguesas. Dados do Obercom indicam que, até 2002, 145 rádios regionais e locais tinham já migrado para a Internet, disponibilizando a sua programação em directo ou em MP3. Existem também três emissoras académicas de rádio exclusivamente on-line e outras três ligadas aos grandes grupos (Impresa, MediaCapital) e 37 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 outras empresas de comunicação social. PERSPECTIVAS As rádios regionais e locais sofrem dos mesmos problemas e têm as mesmas oportunidades da imprensa regional e local portuguesa. Os projectos precisam de descartar a fulanização para se centrarem no profissionalismo jornalístico, empresarial, comercial e de marketing, aproveitando as potencialidades trazidas pela proximidade aos seus públicos-alvo e clientes publicitários. As cadeias de rádios são, simultaneamente, uma oportunidade e uma ameaça. São uma oportunidade porque permitem o aproveitamento de sinergias, o enriquecimento trazido pelas experiências profissionais de sucesso e a contenção de custos. São uma ameaça porque podem gerar uma diminuição de conteúdos próprios que, em última análise, pode ameaçar a própria personalidade das rádios locais e regionais. POLÍTICA DO ESTADO O papel informativo, formativo, mobilizador, socializador e agregador das rádios regionais e locais é reconhecido pelo Estado, que possui um sistema de incentivos especificamente orientado para elas. De forma semelhante àquilo que ocorre em relação à imprensa regional e local, esse sistema de incentivos assenta em cinco pilares: 1) Incentivo à modernização tecnológica 2) Incentivo à criação de conteúdos na Internet 3) Incentivo à inovação e desenvolvimento empresarial 4) Incentivo à qualificação e formação de recursos humanos 5) Incentivos específicos 38 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego ASSOCIATIVISMO Tal como acontece em relação à imprensa regional e local, o sector da rádio também se encontra dividido por várias associações, sendo as mais representativas a Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR) e a Associação de Rádios de Inspiração Cristã (ARIC), ligada à Igreja Católica. 2.3 Televisão regional e local Não há muito a dizer sobre televisão regional e local em Portugal. Três tentativas isoladas de desencadear um movimento de “televisões livres” semelhante àquele que ocorreu com as rádios foram infrutíferas. Duas tentativas mais consistentes e profissionais ocorreram, posteriormente, com a criação de dois canais por cabo: o Canal Notícias de Lisboa (CNL) e a NTV (Porto e Norte). O CNL desapareceu. A NTV mantém-se, mas com uma audiência insuficiente para assegurar a sua viabilidade a médio e longo prazo, não obstante os seus índices de audiência entre os canais por cabo (excluindo as grandes estações nacionais RTP, SIC e TVI), na região do Porto, não serem inteiramente desprezíveis (já atingiram cerca de 14% no horário nobre) e revelarem potencial para crescer. A televisão pública –RTP, que detém a NTV, já anunciou a intenção de transformar a estação num Canal Regiões, que deixaria de ser dirigido especificamente ao Grande Porto e ao Norte. Digna de registro é também a regionalização da RTP. A televisão pública possui períodos de emissão informativa exclusivamente regional (meia hora diária), possíveis pela regionalização das próprias estruturas de produção. De registar ainda que um elevado período de programação da RTP é feito a partir dos estúdios regionais do Porto. 3. Espanha e Galiza A Espanha é um país com cerca de 40 milhões de habitantes, maioritariamente concentrados no litoral. Desde a promulgação da Constituição de 1978, existem no país sete comunidades autónomas, entre as quais três são consideradas históricas: a Galiza, a Catalunha e o País Basco (Euskadi). As comunidades autónomas históricas distinguem-se das restantes porque possuem língua e cultura próprias, forjadas muito antes de existir Espanha. O basco, por exemplo, é a língua viva mais antiga da Europa. Os conceitos de identidade e de nação no País Basco são anteriores à própria formação de Espanha, o que estimula 39 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 um movimento independentista que não hesita em recorrer à luta terrorista armada contra o Estado Espanhol. Durante a ditadura franquista (1939-1975), as línguas e culturas históricas de Espanha foram combatidas pelo governo central, mas a situação inverteu-se com a formação das comunidades autónomas, em 1978. A existência de povos históricos, de comunidades autónomas, de duas grandes áreas metropolitanas (a de Madrid, com quase cinco milhões de habitantes, e a de Barcelona, com mais de três milhões de habitantes), de quatro cidades com mais de meio milhão de habitantes e de várias cidades importantes com mais de cem mil habitantes permitiu a formação de uma imprensa espanhola onde os grandes jornais de vocação nacional, como o El PaÌs, o ABC e o El Mundo, competem com os grandes jornais de vocação regional (que não ignoram o que se passa no mundo), como El PeriÛdico de Catalunya (Catalunha), La Vanguardia (Catalunha), El Diario Vasco (País Basco), El Correo (País Basco) ou La Voz de Galicia (Galiza). As estratégias competitivas levaram a várias mudanças na paisagem mediática espanhola. À regionalização dos jornais nacionais (produção de edições regionais, como faz o El PaÌs) seguiu-se a localização dos jornais regionais (produção de edições locais para grandes cidades regionais), como sucede com La Voz de Galicia. Uma segunda estratégia da imprensa regional para vingar consistiu na celebração de acordos de permuta de conteúdos e notícias, mas o mesmo fez a imprensa nacional, que adquiriu jornais regionais e locais ou com eles celebrou acordos de permuta de conteúdos ou até de venda conjunta. Aliás, a imprensa regional espanhola não ficou atrás da nacional e partiu igualmente para a concentração e aproveitamento de sinergias. A formação de grupos de imprensa regional deu-lhe solidez financeira. O Grupo Z, por exemplo, publica El PeriÛdico de Catalunya, La Voz de Asturias, El PeriÛdico de Extremadura e El PeriÛdico de AragÛn. Nas comunidades autónomas, alguns jornais acentuam a sua vocação regional através da língua. Existem jornais publicados exclusivamente nas línguas das autonomias (incluindo sete diários, seis na Catalunha e um no País Basco) e jornais com edições em espanhol e na língua autonómica, como acontece com El Correo Gallego, que tem uma edição em galego (O Correo Galego). A imprensa nacional e regional é complementada com uma activa imprensa local, normalmente semanal ou quinzenal, com centenas de títulos. Durante a ditadura franquista, os meios de comunicação espanhóis foram severamente controlados pelo Estado Espanhol e as línguas e culturas históricas 40 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego foram ignoradas nos media e mesmo reprimidas. A televisão era monopolizada pelo Estado (Televisión Española – TVE) e as rádios privadas eram obrigadas a retransmitir os radiojornais da Rádio Nacional de Espanha (estatal). O regime chegou a fundar jornais estatais nas grandes cidades. Mas a morte do ditador e o processo de abertura do país à democracia, liderado pelo Rei Don Juan Carlos, vieram alterar este estado de coisas. Assim, em 1983 as comunidades autónomas foram autorizadas a criar um canal de televisão. Os novos canais vieram competir com os dois canais da televisão espanhola (TVE). A Televisión de Galicia (TVG) nasceu deste processo. Os canais regionais de televisão cativam cerca de 18% da audiência espanhola, mas os números à escala regional são mais expressivos. Da mesma maneira, as autonomias foram autorizadas a criar e licenciar canais de rádio, como aconteceu com a Rádio Galega. Na paisagem audiovisual há ainda que contar com quase meio milhar de televisões locais, normalmente emitindo via cabo, que em alguns casos formam redes de intercâmbio de conteúdos (como a TVL, sedeada em Madrid, ou a LOCALIA). A maior parte dessas emissoras localiza-se na Andaluzia, na Catalunha e no País Valenciano. Na Galiza existem trinta e dois. As emissoras locais de rádio em Espanha nasceram sem sustentáculo legal em 1979, quando começou a emitir a rádio de Arenas de Mar. O exemplo da pioneira foi seguida por emissoras de Oleiros (em La Coruña, na Galiza), da Andaluzia, de Aragão, de Múrcia, de Madrid, das Canárias, etc. Segundo Merayo Pérez (1994), essas rádios surgiram por abundância de mão-de-obra, em concreto porque algumas pessoas sem ocupação viram nessas iniciativas uma saída laboral. Tal como ocorreu em Portugal, também em Espanha as rádios locais se associaram. A Galiza, a Catalunha e a Andaluzia foram as primeiras comunidades espanholas a assistir ao nascimento de federações de rádios locais. A aparição de uma miríade de rádios locais provocou o ordenamento legal da actividade de radiodifusão em Espanha. A Lei de Ordenamento das Telecomunicações, de 1987, abriu a porta da legalidade às emissoras locais. O Plano Técnico de Radiodifusão Sonora impõe limites de potência às rádios locais, em função da amplitude dos municípios. A Lei das Emissoras Municipais de 1991 abre definitivamente a cada município a possibilidade de dispor de uma emissora de rádio, que se podem sustentar com publicidade e meios próprios (hoje em dia são cerca de 400). Em algumas comunidades autonómicas os órgãos de governo apoiam 41 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 as rádios locais. A Junta da Galiza, por exemplo, apoia financeiramente as rádios existentes e os municípios que desejem instalar emissoras, sobretudo quando estão em causa emissões em galego. Tal como ocorre em Portugal, verifica-se em Espanha uma tendência para a formação de cadeias que associam rádios de diversa índole, o que tira protagonismo às rádios genuinamente locais. 3.1 O caso particular da Galiza Entre as comunidades autónomas espanholas, a Galiza, com cerca de três milhões de habitantes, é a mais relevante para os portugueses e restantes povos lusófonos, devido aos seus laços com Portugal, em especial com o Norte de Portugal. As ligações entre a Galiza e o Norte de Portugal são tão fortes que colocam essa comunidade autónoma espanhola a meio caminho entre a hispanofonia e a lusofonia. Os laços entre a Galiza e o Norte de Portugal provêm das profundezas dos tempos. O mesmo povo que habita(va) o Norte de Portugal habita(va) a Galiza. Os romanos, os primeiros unificadores administrativos, deram à região formada pela Galiza e pelo Norte de Portugal o nome Galaecea, de onde provém a denominação Galicia (Galiza, em português). A região Norte de Portugal/Galiza fez parte do Condado Portucalense, que, por sua vez, esteve na origem de Portugal. Foi apenas com a independência de Portugal, em 1143, que o divórcio entre a Galiza e o Norte de Portugal ocorreu. Ainda assim, a Galiza conserva uma língua própria –o galego– que resulta de uma mescla de português com castelhano (espanhol), havendo, porém, linguistas que consideram o galego uma versão do português (que melhor seria denominado de galego-português). Há linguistas galegos e portugueses que consideram que o galego deve adaptar-se à norma portuguesa. A Galiza é um espaço culturalmente homogéneo. Toda a população se exprime em espanhol e a maioria fá-lo também em galego, usando cada uma das línguas para determinados actos: por exemplo, num banco fala-se espanhol, na Guarda Civil fala-se espanhol, mas nas instituições autonómicas fala-se galego. Nas ruas e na Universidade escutam-se as duas línguas. A percentagem de imigrantes é reduzida. Sondagens recentes revelam que a maioria dos galegos se sentem em primeiro lugar espanhóis e só depois galegos. Existe, no entanto, um forte movimento nacio42 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego nalista –e mesmo independentista– galego. 3.1.1 Imprensa Vista à escala de Espanha, toda a imprensa especificamente galega pode considerar-se regional.A imprensa galega apresenta algumas semelhanças com Portugal. Tendo em conta a dimensão do país e o número de habitantes, o número de títulos impressiona, embora muitos deles não ultrapassem a vocação de “jornal da terra”. É uma imprensa activa e diversificada. Este dinamismo tem raízes no século XIX, século que marca a proliferação da imprensa na Galiza e na Europa em geral. Nos nossos dias, existem ainda quatro diários galegos fundados nesse século: Faro de Vigo (1853), de Vigo; El Correo Gallego (1878), de Santiago de Compostela; La Voz de Galicia (1882), da Corunha; e Diario de Pontevedra (1887), de Pontevedra. As duas primeiras décadas do século XX viram nascer três outros diários: El Progreso (Lugo), La RegiÛn (Ourense), El Ideal Gallego (Corunha). Nos últimos vinte anos, a esses diários juntaram-se mais dois – Atl ntico Diario (Vigo) e Diario de Ferrol (Ferrol) e ainda a versão em galego de El Correo Gallego: O Correo Galego. Finalmente, os feitos vitoriosos dos clubes de futebol galegos permitiram o aparecimento de um diário desportivo galego: Deporte CampeÛn. Nem toda a imprensa galega é escrita em galego. O idioma predominante na imprensa galega é o espanhol (ou castelhano). Os jornais escritos unicamente em galego têm tiragens inferiores, como acontece com o diário O Correo Galego ou o semanário A Nosa Terra. Mas esses periódicos valem pelo exemplo de defesa da cultura e da língua galega. É de realçar, porém, que os jornais galegos predominantemente escritos em espanhol inserem com frequência conteúdos em galego. Dentro da imprensa diária galega há jornais de diferente perfil, mas todos competem com a imprensa espanhola de vocação nacional (El Pais, El Mundo, ABC) e, por vezes, entre si. La Voz de Galicia, principal diário galego, implantado por toda a Galiza (ver tabela 12), em particular no Norte do país, está a procurar implantar-se também em mercados dominados por diários locais galegos, recorrendo a dezasseis edições locais. Por exemplo, La Voz de Galicia – edição Vigo, concorre no mercado local de Vigo, dominado pelo diário Faro de Vigo (que também tem cinco edições locais). Em compensação, o grupo Prensa Ibérica, detentor do Faro de Vigo, lançou o diário La OpiniÛn na cidade sede do seu competidor –Corunha. Outro jornal, o Ideal Galego, lançou um diário irmão na única das principais cida43 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 des galegas que não tinha um diário: Ferrol (Diario de Ferrol). El Correo Galego estabeleceu também uma interessante parceria com o diário nacional espanhol El Mundo: pelo preço de um adquirem-se os dois jornais. A Galiza é, como Portugal, um país de emigrantes. Daí que a imprensa galega não esqueça a diáspora. Às edições locais, La Voz de Galicia junta uma internacional e o mesmo faz La RegiÛn (cuja edição internacional é justamente denominada La RegiÛn Internacional). Tabela 12 Difusão da imprensa diária galega Jornais 1999 2000 La Voz de Galicia El Correo Gallego El Progreso La Región Faro de Vigo Atlántico Diario Diario de Pontevedra La Opinión 108 841 107 850 18 126 18 238 15 104 15 526 12 433 12 844 42 278 42 639 4 146 4 345 S/Contr. 5 582 S/ controlo S/C 2001 Variação 99/01 108 201 - 0,6% 22 735 + 25,4% 15 610 + 3,3% 12 433 0% 42 913 + 1,5% 4 146 0% 6 332 + 13,4% (00/01) – 6 004 Fonte: Oficina de Justificación de la Difusión. Os diários galegos vendem diariamente cerca de 225 mil exemplares (77% do mercado), contra 67 mil da imprensa madrilena (23% do mercado). Segundo Campos (2002: 32), a imprensa diária galega tem anualmente um volume de negócios próximo dos 156 milhões de euros e teve lucros de sete milhões de euros. O principal problema das empresas jornalísticas galegas, normalmente integradas em grupos (Prensa Ibérica, Grupo Voz, etc.), é o endividamento, provocado pelos investimentos necessários num mercado muito competitivo. Entre os jornais galegos, merece destaque o semanário A Nosa Terra, que atinge todo o país e que é o mais antigo semanário escrito em galego e provavelmen44 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego te aquele que tem maior difusão na Galiza. Outras publicações direccionadas para toda a Galiza são ECO e GAM, escritas em espanhol, e Irimia, Tempos Novos, Encrucillada, Grial e A Trabe de Ouro, todas escritas em galego.A vitalidade da imprensa diária galega, em conjunto com outros meios, foi suficiente para permitir a aparição da Axencia Galega de Noticias. Hoje em dia, todos os diários galegos têm edições na Internet, tal como acontece com a rádio e a televisão autonómicas. Mas também existem vários diários digitais nascidos exclusivamente para a Internet (além de portais que fornecem conteúdos informativos), de que são exemplo Xornal.com, Todovigo.com, etc. Há ainda que contar com a versão galega do diário digital madrileno La Estrella Digital ñ Galiciaestrella.com. Na Internet, é ainda de realçar a presença da edição internacional de La RegiÛn. A imprensa galega conta ainda com uma imprensa local estável, de periodicidade semanal, quinzenal ou mesmo mensal, cujo número ronda quarenta. Entre os jornais locais galegos há alguns com tradição histórica. Xosé López García e Francisco Campos Freire (2000, p. 32-33) referenciam os seguintes: La Comarca del Eo, La Voz de Ortigueira e Heraldo de Vivero. Os mesmos autores registam, igualmente, o aparecimento de novas publicações comarcais, algumas delas escritas, no todo ou em parte, em galego: A Comarca do Morrazo (escrito em galego), Finisterre, A Nova Comarca do Barbanza (escrito em galego), El PeriÛdico de BergantiÒos, El PeriÛdico de las MariÒas CoruÒezas, MiÒo Informativo (este de vocação luso-galega), O SalnÈs-Siradella (escrito em galego), Deza Actualidade (escrito em galego) ou As Comarcas CarballiÒoRibeiro (escrito em galego). O aparecimento de novos títulos mostra bem que a imprensa regional e local tem muito espaço para crescer na Galiza, até porque o número de leitores de jornais é relativamente reduzido face à população do país. Finalmente, é de realçar que, tal como fazem alguns jornais portugueses (de que é exemplo o Falc„o do Minho), também os jornais galegos procuram cobrir cada vez mais a zona da raia fronteiriça. La RegiÛn, de Ourense, por exemplo, mantém uma correspondente em Chaves, enquanto o Faro de Vigo mantém correspondentes no litoral norte português e beneficia da rede noticiosa dos jornais regionais portugueses que pertencem ao grupo Prensa Ibérica – O ComÈrcio do Porto (Porto) e A Capital (Lisboa). 45 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 3.1.2 Rádio A paisagem radiofónica regional e local na Galiza agrupa a Radio Galega (emissora autonómica pública que emite integralmente em galego), as emissoras comerciais locais, as emissoras municipais e os serviços da Rádio Nacional de Espanha. Existe ainda uma rádio dos Jesuítas, que emite a partir de Vigo: a Radio ECCA. É uma emissora sem publicidade e que tem uma programação educativa, cultural e religiosa. A Rádio Nacional de Espanha inclui programação autónoma para a Galiza nos canais RNE1 (rádio convencional) e RNE5 (rádio informativa). Estão implantadas na Galiza 45 emissoras municipais de rádio (emissoras públicas pertencentes aos municípios), 28 das quais integradas na EMUGA (Emissoras Municipais Galegas), e outras tantas emissoras comerciais locais. A entrada das emissoras locais comerciais no mercado (muitas delas ligadas aos grandes grupos regionais de imprensa), em 2001, incentivou a formação da cadeia de rádio Cadena Noroeste, a primeira de âmbito estritamente galego a surgir. Esta cadeia agrupa cerca de vinte emissoras locais, municipais e comerciais, o que constitui uma flagrante violação da Lei. Algumas emissoras nacionais juntaram-se a emissoras regionais, como ocorreu com a fusão entre a Onda Cero (nacional) e a Radio Voz (galega, pertencente ao grupo que edita La Voz de Galicia). Uma experiência local digna de registo é a das rádios Obradoiro (de Santiago de Compostela) e Arzúa (de Arzúa), ambas pertencentes à Editorial Compostela, empresa editora de El Correo Gallego/O Correo Galego. São rádios convencionais locais que emitem 24 horas diárias de programação própria. 3.1.3 Televisão A televisão regional na Galiza é dominada pela estação autonómica pública Televisión de Galicia (TVG), uma televisão convencional, generalista, que emite maioritariamente em galego e tem, actualmente, um share médio de quase de 20%, que chega aos 25% no horário nobre. A paisagem televisiva regional galega é complementada com 32 emissoras de televisão locais, que emitem por via hertziana e por cabo, quer em galego quer em castelhano. Estas emissoras são predominantemente comerciais, são concorrenciais em certas localidades onde existe mais de um canal (Ourense, Ferrol...) e, em alguns casos, são controladas pelos grupos regionais de comunicação, embora os grupos nacionais procurem igualmente implantar-se no mercado (como o grupo PRISA). 46 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego Mesmo as televisões locais que nasceram pela mão dos municípios e se tornaram, inicialmente, meios de propaganda política, tiveram de redefinir parcialmente a sua programação, de maneira a conquistar audiências e publicidade e poderem subsistir. Isto não significou, porém, uma ruptura total com o sistema político. Por outras palavras, a televisão local galega manteve-se parcialmente subordinada às agendas político-institucional e comercial (MARTÍNEZ HERMIDA, 2002, p. 143). O seu grande trunfo é a informação de proximidade. O seu grande problema é a precariedade, sobretudo nas televisões fora dos grandes grupos: “Precariedade tecnológica, precariedade nos recursos humanos, precariedade nos conteúdos e nas possibilidades dum desenho da programação, precariedade organizativa e empresarial na pequena escala” (MARTÍNEZ HERMIDA, 2002, p. 143). Tal como ocorre em Espanha, as televisões locais galegas estão a começar a agrupar-se em redes, que em alguns casos ultrapassam as fronteiras galegas, como é exemplificado pela rede espanhola Localia, que tem 57 emissores de televisão no Estado Espanhol, incluindo a Galiza. 4. Panorama europeu Se excluirmos o audiovisual (televisão sem fronteiras – mercado europeu dos conteúdos; promoção da produção audiovisual europeia; promoção da integração europeia), as telecomunicações e as novas tecnologias, não se pode considerar que exista uma política europeia para a comunicação. As políticas e a regulação da comunicação regional e local ficam, assim, consignadas aos estados. No entanto, isto não significa que as instituições europeias tenham estado arredadas da questão. A Comissão Europeia, por exemplo, já no seu relatório de 1983 sobre as Realidades e Tendências na Televisão Europeia propunha uma política europeia de televisão que, entre outros pilares, assentasse na manutenção do pluralismo das identidades culturais europeias. O Programa MEDIA, estabelecido no início dos anos Noventa, também procura incentivar o pluralismo cultural, visto como estando ameaçado quer pelo mercado único do audiovisual quer pela força da produção audiovisual norte-americana. Mas fora da lista oficial das preocupações não há, como se referiu, qualquer iniciativa política supranacional em favor dos órgãos de comunicação social regionais e locais. Esta realidade obriga assim, neste trabalho, a uma apresentação genérica da situação de alguns países da União Europeia. Esta também é a opção mais lógica quando se pensa que os próprios estados europeus 47 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 são muito diferentes em população, território e indicadores económicos e sociais, o que implica, necessariamente, um tratamento diferenciado para cada caso. Uma característica comum de quase todos os países europeus é a existência de subsídios governamentais ou incentivos fiscais, entre outros, aos media. Os apoios e incentivos são justificados pela necessidade de defesa da língua e da cultura, pela necessidade de informação e formação e ainda pelo papel socializador que possuem. 4.1 Áustria A Áustria é um país de média dimensão, de língua alemã, situado no coração da Europa, fazendo a ponte entre o Leste e o Oeste do continente. Tem cerca de oito milhões de habitantes. Com excepção de Viena, em cada um dos Länder existe um grande jornal regional que quase monopoliza o mercado. A imprensa nacional, em especial o jornal Neue Kronenzeitung, tem procurado furar esse monopólio usando edições regionais, mas com algumas dificuldades. Existem também vários jornais locais. A Lei da Rádio Local, de 1993, possibilita a existência de uma rádio regional em cada um dos Länder, com excepção de Viena, que tem direito a duas. A Lei prevê também a existência de rádios locais, definidas como sendo as rádios incapazes de cobrir todo um Land. As cerca de meia centena de rádios regionais e locais têm, segundo os últimos dados, cerca de 25 a 30% do share. As rádios regionais são, normalmente, dominadas pelos mesmos proprietários dos jornais dominantes de cada um dos Länder. A rádio-televisão estatal ORF também tem emissões regionais de televisão e rádio. A partir de 1999, várias estações locais de televisão por cabo, como a Wien 1, enriqueceram o panorama comunicacional regional e local austríaco, mas sem grande impacto em termos económicos e de audiência. 4.2 Bélgica A Bélgica é um país com cerca de dez milhões de habitantes, que habitam numa área de somente 30528 km2. Quase 10% da população residente é de origem estrangeira. Metade dos imigrantes são europeus ou americanos, devido ao facto de Bruxelas ser simultaneamente sede da União Europeia e da NATO. 48 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego A Bélgica divide-se em duas grandes regiões de língua diferente, a que se acrescenta a bilingue Bruxelas. A maioria da população vive na Flandres, de língua flamenga. Na Valónia, de língua francesa, vivem cerca de 32% dos belgas. No que respeita à imprensa, 26 jornais dominam o mercado, mas destes 16 são edições paralelas dos grandes jornais. A imprensa tende a ser política ou religiosamente orientada. A língua limita a área de implantação dos jornais, razão pela qual se pode considerar, de certo modo, que a grande imprensa belga é uma imprensa de carácter regional. Também existem vários jornais locais de reduzida expressão. Tal como ocorreu em Portugal, também na Bélgica as emissoras locais de rádio surgiram ilegalmente no início da década de Oitenta, normalmente ligadas a grupos activistas, como os ecologistas ou os pacifistas. As emissões decorriam, normalmente, de noite ou de madrugada. Essas rádios romperam com o monopólio das rádios estatais BRTN-RTBF, da Flandres e da Valónia (que já eram regionais, uma vez que serviam comunidades diferentes). O idealismo dos primeiros tempos, porém, rapidamente foi ultrapassado pelos interesses comerciais e as rádios locais sofreram uma transformação que as tornou, predominantemente, em rádios de música pop. A legalização veio cedo, em 1981. À legalização seguiu-se um período de formação de cadeias de rádios locais, mas uma nova lei limitou-as. Este facto, em conjugação com a abertura das cadeias estatais à publicidade, provocou o encerramento de muitas rádios locais. Mesmo assim, existem cerca de 500 rádios locais em todo o país. Na Bélgica existem também, desde 1977, três estações estatais regionais de televisão, uma para a Valónia (RTBF), de língua francesa, outra para a Flandres (BRTN), de língua flamenga, e ainda outra para a minoria de língua alemã (BRF). Desde o final dos anos oitenta, a Lei permitiu as estações comerciais. Por isso, às emissoras estatais começaram a juntar-se as televisões regionais comerciais, como a RTL francófona ou a VTM flamenga (dois canais), que roubaram às estações públicas uma boa dose do share. Já existem 22 estações de televisão regionais em toda a Bélgica. Inclusivamente, existem estações regionais informativas que operam segundo o modelo CNN, o que permite oferecer à audiência informação regional permanentemente actualizada. 49 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 4.3 Dinamarca A Dinamarca tem uma população de 5,2 milhões de habitantes, que habitam um território com cerca de 43 mil quilómetros quadrados.A paisagem mediática da rádio e da televisão foi monopolizada até aos anos Oitenta pela DR (Rádio Nacional Dinamarquesa). Estações locais de televisão e de rádio independentes começaram a ser autorizadas a partir de 1987 e 1983, respectivamente, existindo, hoje, cerca de 250 estações de rádio e 50 de televisão. A DR controla nove estações regionais de rádio e oito estações regionais de televisão. A TvDanmark, privada, formou uma rede de oito estações televisivas regionais. No que respeita à imprensa, existem 39 diários, dos quais dez são de âmbito nacional e publicados na capital, Copenhaga, e 29 de âmbito regional.Recentemente apareceram publicações gratuitas regionais e locais, maioritariamente semanais, cujo número ascende já a cerca 150. Estes jornais e revistas reforçam a comunicação social regional e local, mas também prejudicam o negócio dos jornais tradicionais. 4.4 Finlândia A Finlândia é um país de cinco milhões de habitantes, que habitam um território com 338 mil quilómetros quadrados. O finlandês é a língua maioritária, mas no país vive uma minoria de língua sueca (cerca de 6% da população). Existem, por isso, duas línguas oficiais na Finlândia: o finlandês e o sueco. A imprensa regional e local finlandesa é forte, existindo 56 jornais publicados quatro a sete vezes por semana e 158 jornais locais publicados uma a três vezes por semana. Alguns dos principais jornais regionais e locais são controlados pelos grandes grupos de comunicação, que detêm, igualmente, a propriedade dos principais jornais nacionais, sedeados em Helsínquia. As rádios locais comerciais foram autorizadas a partir de 1985, num cenário até aí monopolizado pela estação estatal YLE, que também domina o cenário televisivo. Não obstante, a YLE possui desde há vários anos uma estação de televisão e uma de rádio que emitem em sueco e são direccionadas para a minoria de língua sueca, e vinte emissoras regionais de rádio que emitem em finlandês e competem com cerca de 70 rádios locais e regionais privadas. 4.5 França A França estende-se por 549 mil quilómetros quadrados e tem cerca de 50 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego 56,6 milhões de habitantes, dos quais cerca de dezoito por cento concentrados na região parisiense. A França tem uma tradição comunicacional regional e local assinalável. Existem no país nada mais, nada menos do que 65 diários provinciais de informação geral, que, dominando cerca de 70% da circulação, enfrentam no mercado os onze diários generalistas de pretensão nacional, sedeados em Paris. O confronto mercadológico é muitas vezes estendido aos conteúdos: os jornais do Sul de França e da Córsega são famosos no combate ao centralismo parisiense. Alguns desses diários provinciais pertencem, porém, a grupos económicos (como o grupo de comunicação regional Ouest-France) ou a cadeias de jornais, o que gera o aproveitamento de sinergias e provoca a repetição de conteúdos. O controle que esses grupos fazem do investimento publicitário dissuade tentativas de penetração de novos concorrentes no mercado. O sistema de televisão agrega emissoras privadas e públicas. A televisão pública agrupa na FR3 doze estações regionais. Existem ainda várias emissoras locais terrestres, como a Télé-Toulouse, a 8 Mont-Blanc e a Télé 30 Lyon Métropole, e cerca de vinte estações televisivas locais por cabo. No que respeita à rádio, também em França o Estado teve de ir atrás dos cidadãos para regular um sector onde, a partir dos anos setenta, começaram a nascer rádios “pirata” como cogumelos. Uma lei de 1981 retirou pela primeira vez ao Estado Francês o monopólio da radiodifusão. Em 1984, as rádios locais e associativas puderam começar a ter publicidade. Em 1986, foram autorizadas a formar cadeias nacionais. Este cenário turbulento permite a coexistência, a nível local e regional, de projectos profissionais com projectos amadores e a coexistência de rádios associativas ou ligadas a grupos de interesse com rádios comerciais. A Radio France (estatal), por sua vez, foi forçada a criar canais regionais para competir com as rádios locais e associativas, cujo número atinge já, segundo algumas estimativas, cerca de um milhar. Apesar da relativa estabilidade linguística do país, o facto de em França existirem várias comunidades de imigrados gerou a proliferação de media em língua estrangeira, como acontece com o português (rádios e jornais). 4.6 Alemanha A Alemanha, que tem cerca de oitenta milhões de habitantes, é um caso de 51 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 sucesso dos media regionais e locais. Cerca de 90% dos 355 jornais generalistas5 , entre os quais 135 diários, tem uma vocação regional e local e tem 55% da circulação (17,1 milhões em 31,1 milhões de cópias diárias). Porém, tal como acontece em França, um grande número desses jornais é controlado por grupos que fomentam o aproveitamento de sinergias, o que gera a repetição de parte dos conteúdos. Apesar de existir uma organização nacional para assegurar o serviço público de televisão, chamada Anstalt, a televisão é regionalizada, uma vez que a Constituição atribui aos Länder (estados federados) a responsabilidade pela teledifusão. Assim, a Anstalt normalmente providencia a cada Land um serviço público de rádio e televisão, como a WDR na Northrhine-Westphalia ou a BR na Baviera. Por vezes, os Länder associam-se para criar televisões, como acontece com a ZDF ou a NDR. As emissoras regionais associaram-se para fundar o ARD, a principal teledifusora e para a qual contribuem com programas.As emissoras de cada Land oferecem ainda cinco canais de rádio à sua região. 4.7 Grécia A Grécia é um dos vários países europeus de média dimensão, tendo cerca de dez milhões de habitantes. A imprensa regional e local grega é liderada pelos três diários de Salónica, a segunda cidade do país, que nessa região dominam o mercado, competindo com os dezasseis diários nacionais publicados em Atenas. Em 1987, um Decreto Presidencial tornou possível o aparecimento de rádios locais comerciais e municipais, que tiveram um sucesso incrível, ascendendo actualmente o seu número a cerca de oitocentas. O mesmo aconteceu com as televisões locais, que começaram com as emissoras de Salónica e do Pireu e que hoje atingem o impressionante número de cerca de 160. É possível às rádios e televisões locais formarem cadeias, desde que a ênfase na programação seja local e o tempo de cadeia não supere as cinco horas diárias. A empresa de rádio e televisão estatal (ERT), além dos dois canais televisivos nacionais, possui um terceiro (ET3) baseado em Salónica, com alcance regional. Possui ainda 21 estações de rádio regionais, que, não obstante, partilham parte dos conteúdos com os canais nacionais da empresa. 52 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego 4.8 Irlanda A Irlanda é uma ilha da periferia europeia. Na República da Irlanda habitam cerca de 3,6 milhões de pessoas ao longo de 70 283 quilómetros quadrados. A Irlanda tem duas línguas oficiais: o inglês e o irlandês (gaélico). O inglês é falado pela totalidade da população, enquanto o irlandês é língua materna para os dois por cento que vivem no Oeste da Irlanda, na região de Gaeltacht, embora seja compreendido por cerca de um terço da população. A preocupação com a língua irlandesa levou a rádio-televisão estatal a inaugurar canais de rádio e de televisão em irlandês, respectivamente em 1972 e em 1996. Apesar de serem meios nacionais, indicam uma preocupação com franjas minoritárias da população que os aproxima dos meios regionais e locais. Um diário regional com aspirações nacionais, The Examiner (inicialmente denominado Cork Examiner), três diários de Dublin com vocação nacional e cerca de 40 jornais regionais e locais constituem o eixo da imprensa irlandesa. Tal como em vários países europeus, as primeiras rádios locais e regionais nasceram ilegalmente ao longo dos anos oitenta, obrigando o Estado a regular o sector no final dessa década. Hoje existem na Irlanda cerca de uma vintena de rádios locais privadas, uma rádio local pública e cerca de 25 rádios locais comunitárias, entre as quais quatro ligadas a grupos de interesse. Não existem televisões locais ou regionais, mas a operadora de televisão por cabo de Cork, a segunda cidade do país, integra conteúdos locais num dos seus canais. 4.9 Itália A Itália tem cerca de 58 milhões de habitantes. A maioria tem por língua materna o italiano, mas existem minorias de língua materna francesa, eslovena e alemã nas fronteiras Norte do país. Apesar de serem apenas cerca de meio milhão de pessoas, estas minorias têm operadoras de televisão e rádio e jornais próprios. A maioria de língua italiana tem ao seu dispor 94 jornais diários, dos quais cerca de 85 têm uma vocação regional (provincial) ou estão sedeados noutras cidades que não Roma. É aqui de realçar que em Itália existem 49 cidades de mais de cem mil habitantes e quatro metrópoles com mais de um milhão de habitantes, Roma, Milão, Nápoles e Turim, o que certamente favorece essa vitalidade da imprensa 53 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 regional. Em termos de circulação, a imprensa nacional é menos lida (cerca de 35% do share da circulação) do que o conjunto da imprensa supra-regional (ou seja, que conquista audiência em várias regiões, como acontece com a imprensa de Milão que tem audiência em todo o Norte do país), regional e provincial, que atingem quase 45% do share da circulação de jornais. Em 1975, uma lei conferiu a exclusividade da emissão de televisão e rádio à estatal RAI, mas permitiu o estabelecimento de canais privados por cabo. Porém, os interesses privados foram tão fortes que um acórdão do Tribunal Constitucional deu às emissoras privadas de rádio e televisão emergentes a possibilidade de emitirem em áreas locais. Desde esse momento, o aparecimento de mais de seiscentas emissoras de televisão e 2500 emissoras de rádio locais transformou a paisagem mediática italiana. Em 1979, a RAI, para contrariar a erosão das suas audiências pela acção das emissoras locais, inaugurou um terceiro canal (RAI 3), que funciona como uma rede de centros de produção regionais. Por sua vez, as emissoras locais de televisão começaram a formar redes que lhes davam um alcance nacional. Silvio Berlusconi, actual primeiro-ministro de Itália, foi um dos quatro empresários que formou uma rede televisiva baseada nas emissoras locais. O falhanço económico das outras três redes levou os seus proprietários a venderem-nas a Berlusconi, em 1983 e 1984, o que consolidou o domínio desse empresário na paisagem audiovisual italiana. Alguns sectores chegaram a dizer que foi o controle de Berlusconi sobre o audiovisual que lhe abriu as portas à formação de um partido (Forza Italia) e à chefia do Governo italiano, tendo-se mesmo falado de um “golpe de estado audiovisual”. Todavia, este extremar de posições nada contribui para se perceber cientificamente qual foi o real efeito do alegado controle dos conteúdos das televisões de Berlusconi sobre a intenção de voto dos eleitores italianos, se é que esse controle e esse efeito existiram e o voto maioritário dos italianos em Berlusconi não resultou de razões exógenas aos media, em concreto o cansaço e a desilusão dos italianos com os políticos tradicionais e com a corrupção que lavrava no país. De qualquer maneira, é importante assinalar que o panorama mediático italiano pós-1976, nos sectores da rádio e da televisão, é caótico e confuso, apesar de uma maior regulação trazida por leis do início da década de noventa que consolidaram simultaneamente o domínio de Berlusconi e da RAI sobre o audiovisual e a rádio. O mercado aberto permitiu, ainda assim, desde 1976 até ao presente, o rápido aparecimento e ainda mais rápida morte de muitas empresas emissoras de rádio e televi54 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego são, embora tenha também contribuído para a liderança do império de Berlusconi. 4.10 Luxemburgo O mais pequeno país da União Europeia reflecte em si algumas das características da Europa. Em apenas 2586 km2 vivem um pouco mais de 400 mil pessoas, que se expressam nas três línguas oficiais do país (luxemburguês, alemão e francês) e ainda nas línguas das comunidades imigradas, em particular português e italiano. Esta diversidade linguística foi resolvida pragmaticamente pelos luxemburgueses: o francês é a língua administrativa, o alemão é a língua dos media e a língua preferida para o dia-a-dia e todos usam, por vezes, o luxemburguês. 31% da população luxemburguesa é estrangeira, embora maioritariamente europeia (portugueses e italianos). Aos imigrados juntam-se diariamente cerca de 50 mil franceses, alemães e belgas que trabalham no Luxemburgo, o que eleva a 52% a percentagem de mão-de-obra de origem estrangeira no país. Os media luxemburgueses estão exclusivamente nas mãos da iniciativa privada. Existem cinco diários nacionais, cinco semanários e um largo número de outras publicações periódicas, ligadas a comunidades e grupos de interesse. A companhia de rádio e televisão que cumpre as vezes de rádio e televisão públicas (apesar de ser privada) é a CLT, que emite maioritariamente em alemão mas que, a partir de 1950, passou a integrar algumas horas de emissão radiofónica em luxemburguês e, a partir de 1970, um programa televisivo semanal na língua própria do país. Em 1992, a Lei permitiu o aparecimento de quatro rádios regionais, que, dada a dimensão reduzida do país, acabam por cobrir quase todo o território. A mesma lei facultou 40 frequências para rádios locais, mas apenas cerca de metade foram ocupadas e parte dessas rádios locais operam apenas algumas horas por dia. 4.11 Holanda A Holanda é um país relativamente pequeno, com cerca de 41 mil quilómetros quadrados, onde vivem cerca de 15,4 milhões de habitantes. A principal língua oficial é o flamengo (ou holandês), também falado na Flandres belga, mas existe uma segunda língua oficial, o frísio, apenas falado na província de Friesland, que tem cerca de meio milhão de habitan55 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 tes. Cerca de 5% da população é estrangeira, maioritariamente não europeia, em particular turcos e marroquinos. A imprensa regional e local holandesa é muito dinâmica e profissional. Há cerca de cinquenta diários regionais na Holanda, que competem com oito diários nacionais. Os diários regionais têm 44% do share de circulação da imprensa holandesa, sendo comum a situação de um único jornal servir uma única cidade (doze diários regionais têm tiragens superiores a cem mil exemplares). O Governo holandês estimulou o aparecimento de rádios e televisões regionais e locais a partir de 1991. Para servir as comunidades existem, assim, cinco canais televisivos regionais públicos, dois comerciais e três que resultam de parcerias público/privado, num total de dez. A estes juntam-se seis canais locais por cabo. Existem ainda 15 estações de rádio regionais e cerca de 450 locais. 4.12 Noruega A Noruega tem cerca de uma centena de canais televisivos locais, a que se associam mais quatro dezenas por cabo e cerca de 400 rádios locais. A televisão e rádio nacional NRK tem vários centros regionais de produção que contribuem para a programação quer do canal de televisão estatal quer de um dos três canais de rádio estatais. Existem ainda na Noruega cerca de 170 jornais regionais e locais. Entre os dez jornais de maior tiragem e circulação, sete são regionais. Estes números dizem bem da importância da comunicação regional e local na Noruega, um dos países mais desenvolvidos do mundo, que tem cerca de 4,5 milhões de habitantes e é relativamente monolítico quanto à etnicidade e à religião. Porém, o relevo conturbado do país, marcado por fiordes, montanhas e zonas geladas, potenciou a existência de várias comunidades locais, com diferentes tradições culturais e dialectos. Existem mesmo duas línguas oficiais: o norueguês, baseado no dialecto burguês de Oslo durante a união com a Dinamarca, e que é muito influenciado pelo dinamarquês, sendo usado por 80 a 90 por cento da população como língua escrita; e o novo norueguÍs, baseado nos dialectos rurais do oeste da Noruega. Esta diversidade regional justifica a vitalidade dos órgãos de comunicação regionais e locais e a abrangência do “sistema do jornal da terra” (um diário por comunidade ou cidade), embora de forma menos acentuada do que na Holanda. 56 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego É de realçar que, tal como ocorreu em vários países europeus, o sistema de rádio e televisão norueguês foi monopolizado pela empresa pública NRK até ao início dos anos oitenta. Porém, o governo conservador eleito em 1981 abriu a televisão e a rádio à iniciativa privada, num processo imparável que levou à aparição de centenas de televisões e rádios. 4.13 Suécia A Suécia é um país escandinavo com cerca de 8,5 milhões de habitantes, dos quais cerca de meio-milhão são provenientes de outro país, em especial da Finlândia, da Jugoslávia e de países não-europeus como a Turquia e o Irão. O fenómeno das rádios-pirata afirmou-se na Suécia ainda na década de sessenta, obrigando a Sveriges Radio, empresa estatal que aglutina a rádio e a televisão públicas, a rever os conteúdos. Uma das novidades residiu na inclusão de conteúdos regionais. Actualmente, cerca de dez por cento dos conteúdos emitidos nos dois canais de televisão pública são produzidos ou dizem respeito a realidades regionais, sendo que nos quatro canais públicos de rádio essa percentagem ascende a quase sessenta por cento. Mas a abertura da rádio à iniciativa privada ocorreu apenas em 1978. Nesse ano, organizações locais foram autorizadas a emitir rádio localmente, desde que a produção de conteúdos fosse local e estes não incluíssem publicidade. Hoje em dia existem quase duas centenas de rádios locais comunitárias na Suécia, nas quais participam quase duas mil organizações locais de distintos âmbitos: partidos, igrejas, associações culturais, etc. A partir de 1993, foram autorizadas rádios locais comerciais, cujo número ascende actualmente a cerca de uma centena. A imprensa sueca pode considerar-se quase toda ela de expressão regional ou local, com excepção de alguns jornais sedeados na capital, Estocolmo. Dos cerca de dez mil jornais e revistas inventariados na Suécia, cerca de cem são diários ou quase-diários e cerca de oitenta são semanários, bi-semanários ou tri-semanários. Ao contrário do que ocorre na generalidade dos países europeus, na Suécia há competição entre os jornais mesmo a nível regional ou local, pois a política de subsídios permitiu manter vários títulos mesmo em áreas geográficas reduzidas. 4.14 Suíça A Suíça é um país tradicionalmente neutral com cerca de sete milhões de 57 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 habitantes, dos quais um sexto é de origem estrangeira. A Suíça é administrativamente dividida em cantões (26), de língua alemã, italiana e francesa, e em municípios (mais de 3000). É ainda, provavelmente, o país onde mais se pratica a democracia directa. Num país assim, é natural que a comunicação social regional e local esteja bem desenvolvida e esteja associada à língua dominante. Assim, a imprensa suíça de informação geral (cerca de 250 jornais, entre os quais uma centena de diários), pode considerar-se regional no sentido de ser escrita numa das três principais línguas oficiais do país, o que a direcciona para cada uma das diferentes comunidades linguísticas, separadas geograficamente. No entanto, alguns dos jornais dessa imprensa, “regionalizada” por força da língua, aglutinam a vocação regional à vocação nacional, como acontece com os jornais francófonos La Tribune de GenËve e Le Matin. A rádio e a televisão foram monopólios estatais até 1983, emitindo nas três línguas principais do país. Porém, a pressão cívica e a proliferação de “rádiospirata”, à semelhança do que ocorreu em muitos países da Europa Ocidental, obrigou a Confederação suíça a abrir mão desse monopólio. Em 1983 já existiam 32 rádios locais na Suíça, emitindo nas três línguas do país, sendo cerca de meia centena hoje em dia. Existem também seis televisões locais privadas em grandes cidades, como Zurique (onde existem três canais privados), Basileia, Berna e Baden. A força das rádios locais obrigou à “regionalização” da rádio nacional, que conta actualmente com cerca de uma dezena de estúdios espalhados pelos principais centros urbanos do país. Da mesma maneira, a SSR - televisão tem estúdios em Genebra, Lugano e Zurique. 4.15 Reino Unido Cerca de 90% dos cerca de 58 milhões de habitantes do Reino Unido vivem em Inglaterra, na região terrivelmente urbanizada que fica entre Londres e Manchester. Quase 97% dos habitantes têm o inglês como língua materna. Esta concentração populacional e relativa homogeneidade linguística não impede, contudo, a existência de uma comunicação social regional e local bastante forte. Aliás, o termo “regional” não dá conta do real panorama mediático do Reino Unido, já que o estado é formado por quatro distintos países, que possuem media próprios: a Inglaterra, o País de Gales, a Escócia e a Irlanda do Norte. Obviamente, existem também meios de comunicação que penetram em todo o Reino, sendo os canais nacionais da BBC 58 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego (rádio e televisão) o exemplo paradigmático. A BBC e a ITV (televisão independente) são fortemente regionalizadas. A BBC, por exemplo, tem meia centena de estações locais de rádio. Mas os jornais também não são excepção, sendo curioso registar que nem todos os media de vocação “nacional” (no sentido de penetrarem nas audiências de todo o Reino) estão sedeados na capital. Por exemplo, o The Times é de Londres, mas o The Guardian é de Manchester, mas ambos são distintos jornais de qualidade que atraem leitores por todo o Reino Unido. Obviamente, isto não impede a existência de jornais regionais e locais fortes, existindo actualmente cerca de 700 diários ou semanários regionais. Desde os anos oitenta, o Reino Unido registou outro fenómeno, limitado aos médios e grandes centros urbanos: o florescimento dos jornais locais gratuitos. Estes são já cerca de mil, tendo, normalmente, uma periodicidade semanal. No que respeita à televisão, pode dizer-se que os principais provedores de televisão local na Grã-Bretanha são as companhias regionais filiadas na network ITV, havendo diariamente meia-hora da programação da ITV que é destinada à emissão paralela de telejornais sobre cerca de trinta regiões do Reino Unido. A paisagem mediática regional e local completa-se com 173 rádios locais hertzianas, normalmente comerciais, a que se juntam mais meia centena por cabo e satélite. CONCLUSÕES O sumário descritivo da paisagem mediática europeia atrás efectuado permite chegar às seguintes conclusões genéricas: • A comunicação social regional e local fervilha em todos os países europeus, reflectindo simultaneamente compromissos de cidadania e a satisfação das necessidades comunicacionais das comunidades regionais e locais. As próprias organizações mediáticas estatais tiveram de se adaptar às solicitações dos cidadãos, que desejam ter informação e jornalismo de proximidade. Pelo menos à escala comunicacional existe uma Europa das Regiões. • Há algumas diferenças nas grandes opções estratégias comunicacionais entre os países da União Europeia. Por exemplo, apesar da existência de políticas e directrizes europeias para o audiovisual (televisão sem fronteiras, incentivos ao audiovisual europeu, incentivos à programação televisiva europeia, 59 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 etc.), os países divergem na autorização ou não da abertura de televisões regionais e locais. Mas há mais semelhanças do que diferenças. • O cenário multilinguístico e multicultural da Europa promove a existência de meios vocacionados para comunidades linguísticas no mesmo estado (ou para nações sem estado integradas num estado multinacional) e dificulta a emergência de meios de comunicação de vocação continental. • A monopolização dos sistemas de rádio e televisão pelos estados europeus prolongou-se, em muitos países, até aos anos oitenta, embora, a partir daí, as directrizes europeias e as pressões internas em cada país tenham alterado profundamente o cenário mediático e aberto a exploração de rádios e televisões aos privados. No entanto, os estados europeus continuam, normalmente, presentes nos cenários da rádio e da televisão e as suas estações públicas aproveitaram, em muitos casos, a abertura da rádio e da televisão à iniciativa privada e à regionalização para se reestruturarem. A aparição de canais e centros de produção regionais das emissoras de rádio e televisão estatais ilustram essa asserção. • A concorrência mediática local e regional é variável. Na maioria das pequenas e médias localidades europeias normalmente existe apenas um único jornal, uma única rádio ou, quando existe, mesmo uma única televisão. É o que acontece em Portugal, onde normalmente existe um único jornal ou uma única rádio por município, o que anula a concorrência. Em Portugal, continuam também a existir muitos órgãos de comunicação regionais e locais fulanizados que sobrevivem mercê unicamente da carolice dos seus animadores, apesar da pressão para a empresarialização do subsector – visível, por exemplo, nas directrizes para a concessão de apoio à modernização tecnológica, etc. O poder do mercado é, porém, crescente, como revela a aquisição de jornais regionais e locais por grandes grupos da comunicação. Noutros países, como ocorre na Galiza, o mercado local é competitivo, sobretudo nas cidades de média e grande dimensão, podendo existir vários títulos locais, várias edições locais ou as duas coisas no mercado. • Os órgãos de comunicação nacionais demonstram cada vez mais apetência pelos conteúdos regionalizados. Assiste-se, assim, à regionalização dos órgãos de comunicação nacional. Estes, no entanto, atentam mais na macro-região do que na localidade. Nos centros urbanos de média e grande dimensão, a imprensa regional e local enfrenta ainda a concorrência dos jornais gratuitos, tal como as rádios e as televisões regionais e locais têm de lutar pelos shares com as 60 Jorge Pedro SOUSA Comunicação regional e local na Europa Ocidental:Os casos português e galego rádios e televisões nacionais. • Em países europeus onde a emigração foi ou é forte, os meios de comunicação regionais e locais desempenham um papel relevante de elo de ligação entre comunidades oriundas da mesma área geográfica mas que devido à emigração andam dispersas pelo mundo. A presença na Internet acentua este papel. • A televisão e a rádio por cabo e por satélite e a Internet potenciam os órgãos de comunicação social regionais e locais, já que permitem o consumo global de conteúdos produzidos localmente. • Quase todos os países europeus subsidiam os seus órgãos de comunicação regionais e locais, reconhecendo as suas virtualidades mas também os riscos que correm. NOTAS 1 Por exemplo, no município português onde o autor usualmente passa férias, que tem cerca de 18 mil habitantes, mantém-se um jornal local quase centenário, mas nos últimos anos já surgiram e desapareceram pelo menos três outros títulos. 2 Foi o que aconteceu, por exemplo, com o canal português por cabo CNL (Canal Notícias de Lisboa), que desapareceu; é também esta a ameaça que paira sobre outro canal por cabo português, a NTV, dedicada ao Porto e ao Norte do país. 3 Por exemplo, entre meados da década de oitenta e o início dos anos noventa (século XX), Portugal foi animado por um movimento extraordinário de “rádios livres”, mas o Estado regulamentou o sector e obrigou a imensa maioria a encerrar. Fizeram-se também pelo menos duas experiências pontuais de “televisões livres”, que operavam com meios amadores ou semi-profissionais, mas os seus animadores depressa desistiram devido aos custos e ao confronto com a Lei. 4 Por exemplo, em Portugal o Observatório da Comunicação – Obercom tem tentado construir bases de dados sobre o sector mediático, mas a taxa de respostas aos seus inquéritos às empresas de comunicação social regionais e locais é muito reduzida. 5 Para um número total de cerca de 1600 jornais. 61 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 REFERÊNCIAS ASSIS FERREIRA, R. Políticas e expectativas do Governo para o sector. In FAUSTINO, P. (Org.) A Imprensa Primeiro ñ Contributos Para a Liderança da Imprensa em Portugal. Lisboa: AIND,1999, p. 187-192. CAMPONEZ, C. Jornalismo de Proximidade. Coimbra: Minerva, 2002. CAMPOS, F. O novo mapa dos grupos de comunicación no século XXI. In LÓPEZ GARCÍA, X. (Coord.) A ComunicaciÛn en Galicia 2002. 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Tem como objetivos analisar os elementos explicativos das configurações atuais da mídia local no Brasil e discutir os conceitos de comunicação de proximidade e de jornalismo cívico. Trata-se de um estudo baseado em pesquisa bibliográfica e na observação assistemática da mídia local. São explicitados os princípios do jornalismo de proximidade, as diversas formas de inserção local, as características e a diversidade de matizes de meios de comunicação que operam local ou regionalmente. Conclui-se que os meios de comunicação local são revitalizados no momento atual como uma demanda social pela diferença e por uma comunicação mais próxima à vida e aos interesses do cidadão, mas que a mídia comercial se interessa por esta modalidade de atuação apenas como um segmento de mercado, sem adentrar na potencialidade de uma comunicação de proximidade e de caráter cívico. PALAVRAS-CHAVE: mídia local – proximidade - comunicação regional questão local - jornalismo público. ABSTRACT This paper considers the growth of media in the context of globalization. Its objectives are to analyze the explicatory elements of contemporary configuration of the local media in Brazil and to discuss the concepts of communication of proximity and civic journalism. The study is based on bibliographical research and non-systematic observation of the local media. The principals of journalism of proximity are highlighted, the several forms of local insertion, the characteristics and the diversity of nuances of the means of communication which operate locally of regionally. The conclusion is that the local means of communication are re-vitalized today as a social demand for difference and for a communication which is closer to the life and interests of the citizen, but also that the commercial media is interested on the form of presence only as a market segment, without exploring the potential of a communication of proximity and of civil character. KEY WORDS: local media - proximity - regional communication public journalism. 66 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade N o contexto de acelerada globalização das comunicações, o mundo assiste à revitalização das mídias locais e regionais. É uma forma de explicitar que os cidadãos reivindicam o direito à diferença. Apreciam as vantagens da globalização, mas também querem ver as coisas do seu lugar, de sua história e de sua cultura expressas dos meios de comunicação ao seu alcance. Em muitos casos, como na Galícia (Espanha), além dessa presença local, procura-se marcar a presença do local no mundo, através das novas tecnologias. É um momento ímpar na história a constituir novas modalidades de comunicação que merecem ser compreendidas. É o que este estudo tenta fazer, ainda de forma embrionária, ao propor analisar os elementos explicativos das configurações atuais da mídia local no Brasil e discutir os conceitos de comunicação de proximidade. Sem pretender esgotar o assunto, explicita-se aspectos teóricos da questão local, os princípios do jornalismo de proximidade, as diversas formas de inserção local, as características e a diversidade de matizes de meios de comunicação que operam local ou regionalmente. O estudo é baseado em pesquisa bibliográfica e em observação assistemática da mídia local, principalmente jornais do Interior e da programação de televisão produzida regionalmente. 1. A questão local O que é o local? Esta tende a ser a primeira pergunta que se faz quando da análise de tema “mídia local”. A resposta não é simples, pois o local não é algo facilmente demarcável. Na verdade, há a impossibilidade de se definir fronteiras precisas entre o regional, o local e o comunitário. Também não se trata apenas de fronteiras territoriais ou geográficas, mas da inclusão de territórios de ou67 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 tros tipos, como os de base cultural, ideológica, de idioma, de circulação da informação etc. Nas palavras de Alain Bourdin (2001, p.53) “não dá para definir um objeto local e principalmente dar-lhe um contorno territorial preciso”. Segundo o autor (2001), a questão local se define como de relação e de inter-relação entre diferentes setores da vida em sociedade, como o econômico, o político, o jurídico e de convivência social. Em outras palavras, o local se constitui num espaço característico constituído por partes que se relacionam, mas que ora se identificam, dependem umas das outras, e ora são excludentes. Por outro lado, tanto o local como o regional só podem ser compreendidos na relação de um com o outro, ou deles com outras dimensões espaciais, como o nacional e o global. Desse modo, o regional pode mudar suas feições, como por exemplo, a região leste de São Paulo, a região sul do Brasil e assim por diante. Já o local pode se configurar como um bairro, um município, uma zona de uma cidade, uma localidade no meio rural; enfim é parte de uma espacialidade mais ampla, mas que congrega características específicas. No entanto, o local ao mesmo tempo em que não permite a demarcação exata de fronteiras, também carrega o sentido de um espaço determinado de um lugar específico ou até mesmo de uma região, no qual a pessoa se sente inserida e partilha sentidos com seus semelhantes. É o espaço que lhe é familiar e congrega identidades. Os acontecimentos dizem respeito mais diretamente à vida das pessoas daquela localidade. Ou seja, embora as demarcações geográficas não sejam determinantes, em alguns casos elas são importantes na configuração do local, já que podem significar uma fonte de significados em comum para um determinado contingente de pessoas, expressos na língua e dialetos, nas raízes históricas, nos costumes e valores culturais, nos aspectos geográficos e de clima, nas crenças religiosas, nos meios usados para a comunicação etc. (PERUZZO, 2003, p.4). Com o advento das novas tecnologias de comunicação, principalmente da internet, há um rompimento da noção de território geográfico como sendo determinante do local e do comunitário. As dimensões de familiaridade (língua, valores, tradições, religião etc.) podem ser partilhadas independente do espaço territorial. As relações podem se estabelecer, com base da proximidade de inte68 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade resses e identificações, através de comunidades virtuais. Importa entender que o local se caracteriza como um espaço vivido em que há elos de proximidade e familiaridade, os quais ocorrem por relacionamentos (econômicos, políticos, vizinhança etc.) e laços de identidades os mais diversos, desde uma história em comum, até a partilha dos costumes, condições de existência e conteúdos simbólicos, e não simplesmente em decorrência de demarcações geográficas. É certo que o local evoca “aquilo que se pode ver, tocar, aprender e, portanto, ser compreendido. Sem dúvida, é desde os espaços locais que se definem os contornos da vida diária, onde se constrói a personalidade social e onde se faz a aprendizagem social” (LÓPEZ GARCIA1 , 1999, p.247). No entanto, o local é inter-relacionável e prescinde da presença física durante todo o tempo. A questão local será melhor compreendia se apanhada em sua dialeticidade: na existência de elementos de proximidade que se inter-relacionam com global e o nacional; na confluência e ao mesmo tempo na recusa de demarcações geográficas; na convergência entre identidades e diferenças que ajuda a reafirmar ou minar especificidades, porém contribui para gerar novas identidades; na configuração do local e do global como pólos, simultaneamente, convergentes e opostos de uma relação. Como diz Milton Santos (2002, p. 321-322), “a localidade se opõe à globalidade, mas também se confunde com ela. O Mundo, todavia, é nosso estranho. Entretanto se, pela sua essência, ele pode esconder-se, não pode fazêlo pela sua existência que se dá nos lugares”. Ou seja, o global “precisa se tornar local para se realizar. Afinal, o ato de consumir é local. A indústria de tênis da marca x só aumenta seu faturamento se o calçado for consumido aqui e ali, em localidades concretas” (PERUZZO, 2003, p.5). Nessa perspectiva, ha que se levar em conta o fator relacional. O local e o regional só podem ser compreendidos na relação de um com o outro, ou deles com outras dimensões espaciais, como o nacional e o global. Há elementos culturais, sociais, políticos e econômicos que se inter-conectam. Há elementos em comum, mas também aqueles que são distintos. Noção válida tanto nas relações local-regional, como entre o local e comunitário. Mas, no fundo o local representa aquilo que está mais próximo do cidadão. Convém, ainda, abrir parênteses para uma palavra sobre o comunitário, 69 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 dada a sua proximidade com a questão local. O termo comunitário por vezes chega a ser empregado como sinônimo de local. Do ponto de vista objetivo comunidade se situa dentro de um espaço local2 , no entanto, o local é sempre mais amplo e diversificado. Na comunidade os vínculos são mais estreitos. Há laços mais fortes de identidades entre as pessoas, os sentimentos de cooperação e de pertença são mais intensos; há participação ativa e mais interação entre os membros de uma comunidade do que no espaço local. Enfim, numa comunidade há uma conjugação de interesses em comum, o que não necessariamente acontece num espaço local. Por exemplo, um bairro, nas grandes cidades, dificilmente se configura como uma comunidade, pois em geral há o individualismo, a dispersão e a ligação entre seus moradores é menos intensa do que numa comunidade. No entanto, pode haver uma comunidade italiana forte numa grande cidade. 2. Mídia local A valorização dos meios de comunicação em nível local ocorre no auge do processo de globalização. Vários autores explicam tal fenômeno como uma reação à globalização e a conseqüente homogeneização que provocaria, contra o interesse em reafirmar as identidades através dos processos locais. Preferimos ver, como Xosé López Garcia (1999), os dois processos, o da globalização das comunicações e o reforço da comunicação local como complementares e interconectados. Ele diz (1999, p.246): passados alguns anos, o “global parece que envolve tudo, mas não para acabar com o local, senão como outro aspecto essencial do fenômeno informativo. Talvez por isso, como resposta no auge da globalização, apareceu o ressurgimento do local. E pouco a pouco local e global se revelam como as duas caras de um mesmo fenômeno informativo que caracteriza as principais tendências no mapa atual de meios e no fluxo informativo que preside a vida dos cidadãos”. A tese da homogeneização já foi fortemente evidenciada como improcedente diante do processo de recriação que as sociedades desenvolvem. Stuart Hall (1998, p.94) mostrou com muita propriedade que a possibilidade é de que a “globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou a produção de novas identidades ao invés de destruí-las”. Paralelamente parece procedente a idéia de que através do comunitário e do local as pessoas podem tomar 70 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade o mundo em suas mãos, podem sentir-se em casa, o que não é possível no espaço globalizado. Nas palavras de Manuel Castells (2000, p.85): “quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais passam a ter como objetivo fazê-lo retornar ao tamanho compatível com o que podem conceber. Quando as redes dissolvem o tempo e o espaço, as pessoas se agarram a espaços físicos, recorrendo à sua memória histórica” [...]. Em suma, a globalização não mata as regionalidades, pelo contrário contribui para sua revalorização. É justamente no momento em que o local e o comunitário se apresentam com uma inesperada vitalidade que a grande mídia passa a aumentar os espaços de regionalização de seus conteúdos e que se desenvolve com mais vigor a interiorização da televisão no País. As evidências estão no aumento de cadernos ou editorias, segmentados por localidades, instituídos por jornais de grandes cidades; na ampliação de programas produzidos regionalmente por afiliadas das grandes redes de TV; e no crescimento das redes regionais de TV. Veja-se, por exemplo, o alcance das redes televisivas regionais do Interior do estado de São Paulo. A EPTV (Emissoras Pioneiras de Televis„o), de propriedade das famílias Coutinho Nogueira e Marinho e afiliada a Rede Globo, congrega 4 emissoras, 3 no Interior Paulista (Campinas, Ribeirão Preto e São Carlos) e 1 no sul de Minas Gerais (Varginha), que alcançam aproximadamente 292 municípios. A TV Tem, afiliada à Rede Globo e de propriedade de J.Hawilla, com sede em Campinas, também atua em forma de rede. Incorporou as antigas TV Modelo (Bauru), a TV Progresso (São José do rio Preto), a TV Aliança (Sorocaba) e a TV Itapetininga (Itapetininga), que hoje adotam o nome de TV Tem. A Rede atinge 318 municípios no Interior paulista, numa extensão territorial de 114 mil quilômetros quadrados. Segundo consta do seu site na Internet, 47% dos municípios do estado de São Paulo estão na área de cobertura da TV Tem3 . No mesmo site a TV Tem chama a atenção para o alto potencial de consumo e riqueza da região. O Interior de São Paulo tem ainda TV Vanguarda, com emissoras em Taubaté e em São José dos Campos, é de propriedade do Boni, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o conhecido o ex-funcionário da Rede Globo, que a inaugurou em setembro de 2003. A TV Vanguarda alcança o Vale do Paraíba, a Região 71 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Bragantina, a Serra da Mantiqueira e o Litoral Norte, num total de 46 municípios. No cenário em que a mídia global vê o fortalecimento daquela de âmbito local, os meios de comunicação de massa locais, no Brasil, têm traçado estratégias básicas visando sua integração nas “comunidades” onde tem suas sedes. Para tanto, procuram preencher parte da programação com conteúdos colados às realidades locais, de bairros, temas culturais, esportivos etc.; em geral auto-denominam-se comunitários como forma de mostrarem-se vinculados localmente e assim desfrutar de credibilidade; desenvolvem campanhas educativas que veiculam na mídia; apoiam iniciativas locais, tais como a realização de eventos educativos, esportivos e culturais4 . No entanto, um tipo de vínculo mais estreito às realidades locais não é predominante nas TV regionais, porém já se verifica uma tendência de aumento da produção de programas localmente. No cômputo geral, o tempo - no caso do rádio e da TV, destinado a matérias jornalísticas e a programas mais comprometidos com temas regionais é pouco em relação ao conjunto da programação. Primeiro, porque o espaço destinado à programação local pelas grandes redes de TV é muito restrito. Além de pouco é pré-determinado. Por exemplo, a Rede Globo reserva os seguintes horários à produção local: de segunda a sexta-feira: de 6:45 às 7:15 horas, das 12:00 às 12:50 horas, das 18:50 às 19:05 horas; sábados: 12:00 às 12:50 horas, das 13:50 às 16:00 horas, das 18:50 às 19:05 horas; domingo: das 7:00 às 7:30 horas e das 23:00 às 24:00 horas. No total são 95 minutos diários durante a semana, 75 minutos aos sábados, e uma hora e meia aos domingos. Segundo, a tendência das redes locais é preencher o tempo no qual lhes é permitido inserir programação própria, com conteúdos mais gerais relativos à cidade e à política, até porque os horários previstos de segunda a sexta-feira são para programas noticiosos. Desse modo, quando há a decisão de se produzir outros tipos de programas locais sobre temas sociais, históricos e relacionados à cultura local, estes ocupam uma parte mínima da programação e são colocados em horários de menor audiência, como sábado pela manhã e de madrugada5 . O segundo aspecto abordado acima também se verifica nas emissoras de rádio e nos jornais das cidades do Interior. Quanto aos jornais, o esquema se repete: cobrem preferencialmente assuntos do cotidiano da cidade, da administração pública e da política local”. Isto é, com o agravante da tendência ao jornalismo 72 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade “chapa branca” e à reprodução dos esquemas dos grandes jornais, priorizando temas de interesse nacional e internacional. Muitas vezes estes jornais até copiam idéias temáticas de reportagens especiais que saem na grande imprensa. . As rádios FMs tocam as músicas de sucesso no momento, seja a tecno, rock, baiana etc, que se supõe serem apreciadas pelos jovens, e não as músicas dos artistas regionais, com exceção das rádios comunitárias. Uma hipótese é que esta estratégia é adotada em decorrência da pressão do mercado publicitário, da falta de disposição à inovação e do descaso com a produção cultural local. Também não pode ser menosprezada a importância dos jornais do Interior6 , meios de comunicação que ao longo dos anos vem persistindo na função de portadores informação local, mesmo expressando algumas contradições, como as a seguir explicitadas: a) Há a tendência de alinhamento às forças políticas locais no exercício do poder, o que lhes compromete a autonomia e os desviam do interesse no aperfeiçoamento da qualidade da informação prestada ao público; b) Em geral a imprensa do Interior não dispõe de infra-estrutura moderna, nem de mão-de-obra qualificada em quantidade suficiente para cobrir os acontecimentos em nível local. Dificuldade que tende a ser usada como argumento para justificar a não cobertura sistemática in loco de acontecimentos da região e do aproveitamento acentuado de press-releases enviados pelos setores governamental e legislativo7 . No entanto, se tal circunstância é estratégica, ou seja se o interesse de seus proprietários é justamente sobreviver usufruindo das verbas públicas, ou se o jornalismo local não comportaria investimentos para se oferecer uma informação de qualidade, dependeria de uma avaliação de cada caso específico. Paralelamente ao crescimento da mídia local, há também o fortalecimento das mídias comunitárias, principalmente através do rádio e dos canais comunitários na TV a cabo. Estima-se que há cerca de 20 mil rádios comunitárias (nem todas com conteúdos condizentes ao nome e maioria funcionando ilegalmente), dezenas de TVs comunitárias (TV de Rua e Canais na TV a Cabo), uma infinidade de pequenos jornais populares (de bairro e de outros tipos) e de outras modalidades de comunicação grupal que ocorrem por fora do eixo midiático tradicional, sob a direção de cidadãos e de associações sem fins lucrativos. Voltando à questão da mídia comercial e tentando responder à indagação sobre porque ocorre o súbito interesse da mídia pelo local: Por um lado, as pessoas, ao mesmo tempo em que curtem as vantagens trazidas pela globalização, 73 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 necessitam de informações e participam dos debates sobre os grandes temas nacionais da política e da economia, também se interessam pelos acontecimentos que ocorrem ao seu redor e que afetam diretamente suas vidas ou a dos vizinhos. Os atores sociais no mundo contemporâneo rejeitam o anonimato, procuram valorizar suas raízes, sua cultura, seu patrimônio histórico e os acontecimentos que envolvem os grupos sociais a que se vinculam. Por outro lado, por parte das empresas de comunicação, o interesse principal é a captação de receitas provenientes da verba publicitária e de outras formas de matéria paga nas pequenas (e às vezes grandes) cidades do Interior ou regiões do País. Ou seja, descobriu-se o local/regional como nicho de mercado, um segmento com potencial de rentabilidade alta e ainda pouco explorado comercialmente. A crise financeira vivida pela mídia contribuiu para empurrar empresas de comunicação em direção da segmentação de mercado, forçando abrir-se mais a regionalização da produção, em detrimento da estratégia anterior na qual a produção de conteúdos era basicamente centralizada nos grandes centros urbanos, como as capitais de São Paulo e do Rio de Janeiro, e distribuída por todo o território nacional. Porém, na mídia de abrangência nacional, a regionalização de parte da programação significa apenas uma ampliação do espaço para produções locais, já que ainda predomina a difusão de programas produzidos nos eixos Rio e São Paulo. Estudos mostram que é mais barato para o anunciante local veicular sua publicidade nos meios de comunicação locais/regionais de comunicação do que nos meios de circulação nacional. Um comercial de 30 segundos no Jornal Nacional da EPTV Campinas pode custar 2.775% menos do que na TV Globo nacional (BAZI, 2001, p.77), por exemplo. Assim sendo, o local representa um grande potencial de investimento e consumo. Por outro lado, além do fator preço alto da veiculação de anúncios, com raras exceções, não interessa ao anunciante local mostrar seu produto ou serviço nacionalmente, já que seu consumidor potencial está localizado na própria cidade sede da empresa ou nas redondezas8 . O que se chama de “Interior Paulista é um território de 232.781 km2, formado por 590 municípios ou 91% das cidades do estado de São Paulo, ficando fora só a capital, Grande São Paulo e o Litoral. Vive nessa região uma população de 17.405.795 habitantes” (UM PAIS... 2004). 74 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade Na outra ponta, há a tendência dos meios regionais de caráter privado em se mostrarem sintonizados com as “comunidades” locais, através da difusão de assuntos e atividades ligadas a promoção e ao desenvolvimento da cidadania. Tal estratégia se explica pelo interesse dos mesmos em corresponder à demanda crescente na sociedade por participação popular e para que os meios de comunicação ocupem mais espaços em suas telas e páginas com mais assuntos de interesse social, o que pode representar uma opção editorial pelo jornalismo cívico. A inserção local por parte das redes de televisão aberta ocorre mais por interesse mercadológico do que por vocação local. Já os jornais do Interior tendem a demonstrar mais vínculo com o local. 3. Particularidades da mídia local Há uma gama imensa de matizes de mídia local. Para melhor compreendêlas é preciso apanhá-las em suas especificidades. No entanto, a mídia local tem características em comum9 , como as seguintes: a) Parte significativa dos conteúdos tende a repetir as mesmas estratégias da grande mídia.Ou seja, trata-se basicamente dos mesmos temas, mas com enfoque local ou regional. Exemplo: CPI na Câmara Municipal da cidade, entrevistas com políticos locais, esporte local, problemas no campo da saúde etc. b) O meio de comunicação local de propriedade privada é uma unidade de negócio que pretende ser rentável, portanto seus interesses mercadológicos estão acima de quaisquer outros. O sistema de gestão é burocrático tradicional. O sistema de faturamento está baseado em venda de espaço para a publicidade privada e para matérias pagas (editais) dos órgãos do poder público. c) É suscetível ao comprometimento político-ideológico com o staff governamental e legislativo no exercício do poder, bem como com as grandes empresas na região10 . Faz parte do prato trivial, por exemplo, a reprodução de releases dos órgãos públicos nas páginas de jornais do Interior; a existência de uma linha editorial comprometida com os interesses das “celebridades” locais (desde que no exercício do poder) e o fato de ter como fonte importante de arrecadação de recursos a publicação de editais do setor público11 . d) Cobre assuntos de foco local e regional que, em geral, não têm espaço na grande mídia, exceto quando envolvem uma excepcionalidade. Exemplos: 75 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 quando ocorrem acidentes de grandes proporções (desastre ecológico), desmandos volumosos da administração pública local (Gafanhotos de Roraima) ou abusos no exercício do poder político (Vereadores em Porto Ferreira-SP) etc., apesar de serem temas locais ganham espaço na mídia nacional. e) Costuma adotar a estratégia de abordar conteúdos ligados às “comunidades” e de promover sua integração local como forma de angariar a credibilidade visando ajudar a consecução dos interesses empresariais. f) Contribui para a difusão e o debate de temas regionais ajudando à compreensão da realidade local e no reforço ou formação de identidades culturais. g) Há uma diversidade de formatos: a mídia local pode ser local tanto no sentido estrito, de pertencer e atuar num dado território, como pode ser exterior a ele e apenas lhe oferecer espaço (para um programa de rádio ou de TV, um caderno especial no jornal ) para o tratamento de questões locais, em geral produzidos por atores locais ou por pessoas com profundos conhecimentos da região. Outra dimensão dessa diversidade é a existência de diferentes tipos de meios de comunicação local e regional, elencados a seguir. 4. Tipos de mídia e diferenças na inserção local Mídia local não é homogênea. As estratégias editoriais são variadas e influenciam o tipo de inserção na cidade ou na região. Há ainda o aspecto da variedade de suportes utilizados, que vão do meio tradicional impresso às tecnologias de radiodifusão e digitais12 . Os tipos mais comuns de meios de comunicação local são os seguintes : a) Emissoras de rádio em AM e FM, sejam comerciais, educativas, religiosas ou de baixa potência. b) Jornais de cidades do Interior dos Estados. c) Jornal de bairro. d) Cadernos ou editorias regionais dos grandes jornais (Ex. o Jornal da Tarde, além da edição que circula na capital e na Grande São Paulo, produz mais duas edições regionais, uma voltada para o Interior Paulista13 e a outra para o Litoral). e) Revistas periódicas de circulação local ou regional. f) TVs regionais afiliadas às redes de TV aberta nacional, nas quais parte da programação é produzida regionalmente. 76 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade g) TVs locais em UHF, retransmissoras de TVs Educativas, nas quais parte da programação é local. h) Canais legislativos na TV a cabo (ligados às Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores) i) Canais universitários no sistema cabo de televisão que operam dentro dos limites municipais, salvo raras exceções. j) Canais comunitários no sistema cabo de televisão que são operados por Associações de Usuários e operam dentro dos limites da concessão de canal obtida pela operadora. k) Programas de conteúdo local transmitidos por televisões afiliadas às grandes redes de TV aberta. Exemplo: o programa “Em Movimento” da TV Gazeta, Vitória - Espírito Santo14 l) Sítios na Internet que tanto podem se caracterizar por abrigar um meio de comunicação local (portal com dados sobre a cidade, uma rádio comunitária etc.), como se constituir em canal de comunicação de entidades locais (página institucional, comunidade virtual etc.) m) Os meios comunitários e sindicais de comunicação: rádio, TV comunitária, TV de rua, jornal comunitário caracterizados pelo engajamento social a “comunidades”, sindicatos, associações, movimentos populares ou entidades sem fins lucrativos. A diversidade de tipos de mídia local mostra que cada um se articula a um projeto editorial específico, e é como tal que vai revelar suas estratégias de inserção regional, seus objetivos e o papel social desempenhado na região. Com base em estudo de 13 (treze) jornais locais da Bélgica e da França, Gabriel Ringlet15 (apud CAMPONEZ, 2002, p.101-102), encontrou diferenças na inserção regional da imprensa classificando-a como: “verdadeiramente local”, “semi-local”, “local comprometido” ou “engajado” e o “falso local”. Com as devidas diferenças, na imprensa regional brasileira estes tipos de inserção também se verificam. Vejamos o significado de cada uma das modalidades de inserção. Para Gabriel Ringlet, nas palavras de Carlos Camponez (2002, p.100-103), o “verdadeiro local” seria quando o local é esmiuçado, detalhado, ou seja quando a política editorial se assenta na tática de ocupação do terreno. As tendências 77 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 jornalísticas, neste tipo de imprensa, podem variar de popular sensacionalista a características de sobriedade, com ênfase em notícias relativas a eventos culturais e políticos. O “semi-local” seria o local hesitante. O local se integra mais como lógica comercial, de busca de públicos mais diversificados, do que de uma verdadeira vocação regional. O público é sobretudo nacional e, por isso, a informação local está subordinada ao restante do conteúdo. Exemplos: no caso português, o jornal “O Público” introduziu na sua edição uma seção “Local” que diferenciava as edições de Lisboa e do Porto16 . O “local comprometido” ou “engajado”, ainda segundo Ringlet, é representado pela imprensa alternativa, partidária e sindical. O ìfalso localî é caracterizado por um tipo de imprensa de caráter sensacionalista ou recreativo, mais preocupada em vender a sua manchete do que o seu local. 5. Mídia local de proximidade: campo potencial para o jornalismo cívico Os meios de comunicação que operam em nível local – incluindo os comunitários – conseguem mais credibilidade quando exploram, direta ou indiretamente, as seguintes dimensões, próprias do local, formuladas tendo por base (mas ao mesmo tempo extrapolando suas demarcações originais)17 os conceitos de Renato Ortiz (1999) e Alain Bourdin (2001) sobre a questão local: a)Proximidade: o sentido de proximidade diz respeito à noção de pertencimento, ou dos vínculos existentes entre pessoas que partilham de um cotidiano e de interesses em comum18 . b)Singularidade: cada localidade possui aspectos específicos, tais como a sua história, os costumes, valores, problemas, língua etc., o que no entanto, não dá ao local um caráter homogêneo. c)Diversidade: o local comporta múltiplas diferenças e a força das pequenas unidades. d)Familiaridade: constituída a partir das identidades e raízes históricas e culturais. Desse modo, quando o meio local de comunicação utiliza como estratégia uma pseudo-inserção local – ou seja, caracteriza-se como “semi-local” ou “falso-local”, no sentido colocado por Gabriel Ringlet, ela não quer ou consegue explorar a potencialidade local expressa nas dimensões acima explicitadas. O resultado é que a maior parte deste tipo de mídia acaba reproduzindo conteúdos da mídia nacional 78 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade e não valorizando os sotaques regionais. O interesse pelo reforço das identidades locais acontece no bojo do processo de globalização, como bem o demonstram autores como Manuel Castells (2000) e Stuart Hall (1998). As identidades giram em torno de raízes e refletem um campo comum de significados a um determinado número de pessoas. Elas podem ser “visualizadas partindo de diferentes esferas, tais como da história, dos valores, das práticas sociais, da língua/dialetos, da religião, tipos de solo e de clima, das tradições etc.” (PERUZZO, 2003, p.68). No Brasil, a mídia local e regional por força de uma conjuntura expressa a partir da globalização e pela crise econômica sofrida pelos grandes meios de comunicação, parece expressar a redescoberta do local (por extensão do regional) como um outro território, um outro mercado, que quer ser respeitado nas suas especificidades. Ou seja, apesar do interesse maior ser a disseminação da produção midiática produzida nos grandes centros para todos os cantos do País, hoje agrega-se a tendência de valorizar a regionalização da produção. Mas, o regional, no caso da interiorização da TV, é visto essencialmente como oportunidade de mercado, como uma alternativa para a geração de renda. Por parte da imprensa das cidades do Interior, esta é tomada como unidade de negócio em que a viabilidade financeira parece estar acima das preocupações com um jornalismo de qualidade e ético. Não é que a mídia comercial não seja legítima. O que se questiona é a prática da subserviência política e econômica em detrimento do interesse público e do jornalismo de qualidade. O tema da regionalização das comunicações tem tido repercussão até no Parlamento Nacional brasileiro em razão dos projetos de leis como o da Deputada Jandira Feghali (PC do B/RJ), já aprovado em primeira instância pela Câmara dos Deputados, que procura instituir a obrigatoriedade de que até 30% dos programas de televisão sejam produzidos localmente19 ; do Senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT)20 propondo que 50% do horário nobre da televisão seja reservado à produção local; e do projeto de lei dos Deputados Ana Corso (PT/ RS) e Walter Pinheiro (PT/BA) visando instituir a obrigatoriedade da inclusão da disciplina comunicação comunitária nos currículos dos cursos de graduação em Comunicação Social21 . O diferencial básico dos meios de comunicação locais é a noção de proximi79 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 dade que eles imprimem em suas práticas e nas políticas editoriais. Proximidade significa ligação, sintonia e compromisso com o mundo vivido pelos receptores.À mídia local comporta expressar uma comunicação que se alimenta dos acontecimentos, temas e elementos da cultura que dizem respeito mais diretamente à vida de um determinado segmento da população ou de uma determinada localidade. Portanto, as mídias local e comunitária reúnem a potencialidade de desenvolver um jornalismo de proximidade e uma TV de proximidade, melhor do que qualquer outro meio de comunicação, porque já estando inseridas no lugar têm condições privilegiadas para captar os processos inerentes aos fatos e aos sentimentos dos cidadãos. Segundo Orlando Raimundo (apud CAMPONEZ, 2002, p.117-118), a noção de proximidade tem como centro o indivíduo e pode se desenvolver em diferentes perspectivas, como a geográfica, temporal, psico-afetiva e social. A proximidade temporal marca a distância do leitor face ao momento em que se deram os acontecimentos (ontem, hoje, na história). A proximidade geográfica começa no acontecimento da rua, do bairro e alarga-se à região, ao país....A proximidade social diz respeito a temáticas relacionadas com a família, a profissão, a classe social, a religião, a ideologia ou a política. Por fim, a proximidade psico-afetiva integra valores como o sexo, a vida e a morte, a segurança, o dinheiro e o destino. Já Teun van Dijk (1996, p.173-180), aponta a proximidade como um dos valores-notícia ao lado de outros como a novidade, a atualidade, pressuposição, consonância, relevância e negatividade. Com a potencialidade de atravessar os outros critérios apontados, a proximidade, para o autor (1996, p.180), pode ser ideológica e local. “A proximidade ideológica resulta dos critérios gerais de consonância [com normas, valores e atitudes socialmente compartilhados]. A proximidade local inclui a pressuposição de conhecimentos e a relevância: sabemos mais sobre a nossa própria aldeia, cidade, país, continente, em parte através de nossa experiência direta e pelas comunicações informais das experiências de outros que conhecemos”. Tendo como parâmetro a realidade da imprensa regional, local e comunitária, a proximidade geográfica, ideológica e local resultam importantes porque podem expressar mais claramente o tipo de inserção e o comprometimento da mídia com as coisas do lugar. Em outras palavras revelam se o meio de 80 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade comunicação possui uma vocação local ou apenas se apropria dele de forma panorâmica e fragmentada. A vocação local como intencionalidade é um dos critérios para definição da imprensa regional sugeridos por Juan Macia Mercadé (apud CAMPONEZ, 2002, p, 109). No conjunto estes critérios são: “o caráter geográfico na definição de informação local; a sede territorial da publicação; o seu âmbito de difusão e cobertura; a vocação e intencionalidade da publicação; o tratamento dado aos conteúdos; a percepção do jornal sobre o leitor; a relação com as fontes de informação institucionais”. Apesar do critério geográfico ter um peso relevante na definição do meio de comunicação local, ele não é determinante. Como foi mostrado na primeira parte deste texto, conceitualmente território no contexto atual extrapola demarcações geográficas e administrativas e incorpora outras dimensões do campo das identidades culturais e das condições de relacionamentos na sociedade. Referindo-se especificamente ao jornalismo, Carlos Camponez (2002, p.129) diz que “proximidade já não se mede em metros. Devemos estar preparados para conceber a produção de conteúdos que, embora longe de nossas casas, nos são próximos, bem como para assistir à produção nas regiões de conteúdos tão homogeneizantes e massificadores quanto os das grandes corporações de media. [...] Não é a proximidade geográfica que, por si só, faz o media regional”. Vários são os critérios que se conjugam na caracterização da imprensa regional, mas um deles é fundamental: possuir uma vocação local como intencionalidade. Há um outro elemento importante que diferencia os espaços comunitário e local do regional e nacional: junto às manifestações através de suportes tecnológicos há também a comunicação interpessoal. O autor que chama a atenção para este aspecto é Xosé López Garcia (1999, p.247). Reportando-se a Emilio Prado e a Miquel de Moragas, ele afirma: “quando falamos de comunicação local, falamos pois, da mediação técnica num lugar em que também é possível a comunicação não mediatizada ou interpessoal. Esta concepção supõe o reconhecimento de uma grande diversidade no mundo local, mas também considera esse espaço, o local, como um espaço indispensável para a participação tanto que permite a difusão de informações necessária e útil para a ação”. 81 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Essa colocação remete a uma questão importante: a possibilidade da comunicação interpessoal e da vivência dos acontecimentos contribuírem para a formação de cidadãos críticos em relação aos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação. Quando se conhece os atores em cena, seus vínculos políticos e intenções; quando se toma parte dos acontecimentos e se conhece suas causas e desdobramentos; quando se discute os assuntos com outras pessoas, torna-se muito mais fácil perceber a omissão ou a manipulação de informações. Está aí um bom motivo para que o meio de comunicação local atue de maneira responsável e ética se pretende desfrutar de credibilidade local. Nesta perspectiva, o local se reveste de um grande potencial para o exercício do jornalismo cívico (ou público) porque se assenta no próprio lugar de ocorrência dos fenômenos que em tese serão retratos pela mídia local/regional, o que lhe confere a possibilidade de um olhar próprio, um olhar profundo e não apenas panorâmico dos acontecimentos. O jornalismo cívico – também denominado de jornalismo público – surgiu como proposta de um novo jornalismo em contraponto à prática da mídia que condiciona a notícia e circulação de informações a interesses políticos e econômicos de seus mandatários. Atribui-se, inclusive, a esse tipo de subserviência a perda de credibilidade e a queda de tiragens dos índices de leitura de jornais nos Estados Unidos22 . O movimento por um jornalismo público teria originado no sudeste da Ásia nos anos de 1960 sob a denominação de jornalismo para o desenvolvimento23 . Nos Estados Unidos ele inicia em 1988, mas ganha expressividade a partir de 1993, sob a liderança de Davis B. Merrit, diretor do “Wichita Eagle”. O jornalismo público24 propõe uma nova qualidade para a ação jornalística fundamentada na noção de dever que os meios de comunicação têm de contribuir para a revitalização da vida pública, através de seu compromisso com os interesses coletivos, e de favorecer o debate público para ajudar a comunidade a se conhecer e a agir pela cidadania25 . A proposta do jornalismo público pressupõe uma ligação estreita do meio de comunicação e dos jornalistas à dinâmica social e aos movimentos dos cidadãos26 . Para seus idealizadores o termo “jornalismo público” se aplica por três razões: a primeira, porque se trata de ajudar os cidadãos a se envolverem na vida pública democrática; a segunda, porque é preciso levar a cabo a transformação das 82 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade maneiras, que sejam em si mesmas, maneiras “públicas” de fazer, e dizer porque se querem tornar “públicos” os valores nos quais se baseiam as decisões jornalísticas; e terceira, porque os valores em que se baseiam as decisões de mudança devem ser valores “públicos” no sentido de valores que reflitam a preocupação pela vitalidade da vida “pública” (MERRIT apud ÁLVAREZ TEIJEIRO, 2000, p.210)27 . Em conseqüência, “o jornalismo publico é muito mais do que uma técnica. É uma travessia filosófica porque pressupõe uma mudança fundamental no modo de conceber nosso papel de jornalistas na vida pública. [...] São dois os passos dessa caminhada: aceitação de que [...] na era da mídia o jornalismo é um elemento integral do sistema da vida pública. [...] e reconhecer que esse papel integral que o jornalismo desempenha na vida pública se impõe ao jornalismo como uma obrigação” (MERRIT apud ALVAREZ TEIJEIRO, 2000, p.210). A proposta do jornalismo público pressupõe um novo pacto entre os meios de comunicação e a sociedade. Segundo Rosen, Austin & Friedland ( apud ALVAREZ TEIJEIRO, 2000, p.220). esse pacto começa pelo reconhecimento de que os e jornalistas “possuem uma responsabilidade fundamental na hora de fortalecer a vida cívica. [...] O jornalismo público aspira realizar conexões entre os jornalistas e as comunidades [...] e entre jornalistas e cidadania. Trata-se em primeiro lugar, de um conjunto de práticas por meio das quais os jornalistas tratam de voltar a conectarem-se com os cidadãos, tratam de melhorar o debate público e tratam de fortalecer a cultura cívica. [...] Em segundo lugar, o jornalismo público é um diálogo em andamento sobre os fins últimos do jornalismo. Os jornalistas ‘públicos’ são pessoas que crêem que a imprensa deveria assumir um papel mais ativo na hora de melhorar o funcionamento da democracia [...]. Por último, o jornalismo público é um movimento crescente de jornalistas [...], acadêmicos, filósofos e de um grande número de instituições que entendem que a filosofia que inspira o movimento é de vital importância na reconstrução da vida pública”. Abordar mais profunda e criticamente os assuntos, debatê-los na imprensa ou na televisão e tratar as mensagens sob a mira do interesse público, por si só não caracteriza a essência do jornalismo público. São aspectos importantes que geram um jornalismo de qualidade, mas é o que ser espera de todo jornalismo. Uma prática noticiosa de qualidade é característica e imprescindível ao jornalismo cívico, mas este implica também um jornalismo comprometido com a democracia, com seu entorno, que saiba escutar, enxergar como vivem as pessoas e acompanhar de 83 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 perto o movimento dos cidadãos no debate e nas ações de interesse social. O lugar do jornalista “não se resume ao do observador situado num palco privilegiado de onde olha a sociedade e, particularmente, a política, segundo a tradicional concepção do jornalismo watchdog. O lugar dos jornalistas é, na abordagem do jornalismo cívico, entre os cidadãos. E esse esforço obriga-o a cultivar a proximidade. Tanto mais que o cidadão de que nos fala o jornalismo cívico é, fundamentalmente, o das comunidades locais, com problemas concretos e com preocupações específicas, como a droga, a educação, a violência, a segurança, o bairro... O cidadão de que nos falam os promotores do jornalismo cívico não é pois, o povo americano, enquanto figura abstrata. É o cidadão com problemas concretos, com um olhar próprio da realidade que o rodeia. É o cidadão localizado” (CAMPONEZ, 2002, p.167-168). Nessas condições, os espaços local e regional são propícios para a prática do jornalismo cívico de proximidade, pois facilitam a inserção do jornalista na realidade concreta que o rodeia. Permite uma relação convivial, a captação dos assuntos, angústias, alegrias e interpretações que dizem respeito mais diretamente à vida dos cidadãos e das comunidades, além de facilitar o seguimento das mobilizações sociais. Trata-se de um jornalismo comprometido com seu entorno e com o interesse público. Um jornalismo de qualidade, que ao invés de ser comprometido com segmentos políticos e econômicos no poder, o seria com a coletividade, com a ética e a informação de interesse público. Considerações Finais A revitalização do local não é totalmente compreendida por aqueles que detém os meios de comunicação local. Ao insistirem em reproduzir os esquemas e vícios da grande mídia deixam de inovar e de aproveitar a vitalidade do local. Os meios de comunicação local são revitalizados no momento atual como uma demanda da sociedade por uma comunicação mais próxima a vida e aos interesses do cidadão, mas a mídia comercial se interessa por esta modalidade de atuação, fundamentalmente, como um nicho de mercado, sem adentrar na potencialidade do local de modo a fazer uma comunicação de proximidade e de caráter cívico. A proximidade é mais ou menos explorada e valorizada dependendo da estratégia editorial do meio de comunicação. Quando os objetivos principais dos meios 84 Cicilia M. Krohling PERUZZO Mídia local , uma mídia de proximidade de comunicação local e regional giram em torno da exploração da mídia apenas em benefício pessoal e empresarial imediatos, sem a incorporação prioritária dos princípios éticos e de responsabilidade social, dificilmente se pratica uma comunicação de proximidade. NOTAS • Apresentado no VIII Colóquio Internacional de Comunicação para o Desenvolvimento Regional (REGIOCOM’ 2003), Universidade de Marília, Marília-SP, 29 de outubro de 2003. 1 Faz referência a Luís Alvarez Pousa. 2 Há também comunidades virtuais que se articulam na Internet, mas aqui referimo-nos tão somente àquelas de base territorial. 3 www.tvtem.com/ 4 Ver Bazi (2001) 5 A TV Tem de Itapetininga, por exemplo, oferece opções de programas regionais de informação, prestação de serviço e cultura durante a madrugada: “o programa “Resumo da Notícia”, de segunda a quinta, depois do Intercine e aos sábados após o “Altas Horas”; o programa “Tem comunidade” é exibido na segunda e na terça-feira depois do “Resumo da Notícia” (de madrugada), às quintas-feiras depois do “Antena Paulista” e aos domingos às 7 horas da manhã. Além desses programas a TV Tem de Itapetinga tem abre espaço para reapresentação dos programas regionais da Rede TV Tem, quais sejam: “Nosso Campo”, “Terra da Gente”, “Revista de Sábado” e “Giro SP”. Fonte: www.tvtem.com/ 6 A APJ – Associação Paulista de Jornais (do Interior) possui apenas 15 jornais associados, entre eles o Jornal de Piracicaba, Correio Popular (Campinas), Vale Paraibano (São José dos Campos), Diário de Mogi, Folha da Região (Araçatuba) etc. (Fonte: www.apj.inf.br), mas o número de jornais no Interior do estado de São Paulo é de 110, segundo informações do Guia de Mídia. Fonte: www.guiademidia.com.br 7 Ver a dissertação de mestrado de Letícia M. Pinto da Costa (2002). 8 Para a empresa de comunicação, a divisão do bolo publicitário por diferentes regiões, acaba aumentando o seu faturamento. Ver Scarduelli (1996 ), que analisa como o bolo fatiado é maior que o bolo inteiro, fórmula adotada pela RBS - Rede Brasil Sul de Comunicação para desenvolver seu modelo de TV regional nos pampas gaúchos e em terras catarinenses. 9 Versão reelaborada de Peruzzo (2003). 10 Ver a dissertação de mestrado de Letícia M.P.Costa (2002) 11 Ver COSTA (2002). 85 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 12 Ver abordagem mais detalhada em PERUZZO (2003). 13 Especialmente cidades como Campinas, Ribeirão Preto, Sorocaba, São José do Rio Preto, São Carlos e Piracicaba. 14 Ver POLAKE (2003) 15 Os jornais estudados são os seguintes: La Cité, La Dernière Heure, La Libre Belgique, Lê Rappel, La Nouvelle Gazette, Nord-Éclair, Lê Journal et Indépendance, Lê Peuple, Lê Drapeau Rouge, La Meuse, Le Soir, Vers l’Avenir, Le Jour, La Wallnie. (RINGLET, Gabriel. La Mythe au Milieu du Village – comprendre et analyser la presse locale. Bruxelas: Vie Ouvrière, 1987, p.85-87). 16 No caso brasileiro, seria equivalente aos encartes, cadernos ou editorias locais ou regionais que procuram dar conta dos assuntos específicos de uma dada localidade ou região. “Globo Niterói”, por exemplo, como encarte do Jornal “O Globo”, no Rio de Janeiro. 17 Por juntar as proposições dos dois autores e ainda porque algumas idéias originais – principalmente de Ortiz - estavam presas à noção de territorialidade geográfica. 18 Renato Ortiz fala apenas na “proximidade de lugar” como contrastante com o distante. 19 Projeto de lei número 256/91. 20 Projeto de lei número 202/1999. 21 Projeto de lei número 6.440/2002. 22 Ver Carlos Álvarez Teijeiro (2000) 23 Em inglês: development journalism. 24 Entre as várias iniciativas existentes (cerca de 400 projetos nos Estados Unidos), o PEW Charitable Trust Fund criou um centro para aprofundar as bases teóricas da proposta, estimular a troca de idéias e o desenvolvimento de projetos concretos sobre jornalismo de interesse público (CASTILHO, 2003, p.1). 25 Ver ALVARES TEJEIRO (2000). 26 Uma das críticas ao jornalismo público advém justamente dessa possibilidade de envolvimento – ou seja, a perda da objetividade, mas que os adeptos do jornalismo público não estão preocupados em defender, principalmente quando ela favorece as posições dos grupos de interesses privados e governamentais. 27 86 Todas as citações de textos em espanhol foram por nós traduzidas. 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Aborda entre outros aspectos o acesso às mídias, a liberdade de informação e o direito à informação, a propriedade intelectual, a concentração atual das mídias e o controle da informação pela telefonia privatizada em uma leitura que ajuda a entender os caminhos e descaminhos da sociedade informacional e também por onde passam os principais focos da crise mundial. PALAVRAS-CHAVE: Nova Ordem - NOMIC - liberdade de informação direito à informação, controle da informação - propriedade intelectual. ABSTRACT The author analyses the “new order” and retakes the NOMIC, searching an information and communication new order. She approaches, among other aspects, the access to mass communications, freedom and rights to information, intellectual propriety, the current concentration of the media and the control of information by the private phone companies. The analysis allows to comprehend the ways and non ways of the informational society besides presenting the place where sets up the main focus of the worldwide crisis. worldwide. KEY WORDS: New Order – NOMIC - freedom and rights of information control of information, intellectual propriety. 92 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias O que foi feito do Relatório MacBride? Em 1990, os Estados Unidos anunciavam uma “nova ordem internacional” logo transformada em “nova ordem mundial”. Nada a ver com o projeto de independência informativa dos países não alinhados e do terceiro mundo. Estes rapidamente se persuadem da farsa que acabou sendo os debates que tiveram por palco as Nações Unidas. A partir de 1995 o mundo é transformado em uma vasta economia de mercado, com algumas empresas sendo detentoras de orçamentos mais gordos que muitos países do planeta, ocupando posições de verdadeiras potências da economia do globo terrestre. Assim, globalizam, mundializam... E os ideólogos da coisa começam a sustentar e a defender a globalização e a mundialização como sendo a “nova ordem”. Rapidamente, auxiliados pela web, transportam a nova onda para o âmbito cultural e se põem a falar sobre “mundialização da cultura”. Nos 2000, mais uma vez, pode-se constatar que estamos diante de uma nova farsa. Assim como em 1947, Adorno e Horkheimer denunciavam, num pequeno texto intitulado “A Indústria Cultural”, o engodo que era o uso da expressão “cultura de massa” para designar os produtos da indústria cultural porque fazia crer que esta era a forma contemporânea de cultura popular, da mesma forma é uma falácia chamar de “nova ordem” o processo inexorável de globalização e muito mais ainda aplicá-la à cultura e por extensão à informação e comunicação fazendo crer que os 2000 estejam configurando um novo modelo social baseado na informação. É verdade que a humanidade está vivendo um novo ciclo da história chamado de nova era, ou se quiserem new age. É verdade também que uma época costuma ser designada pela techne ou mesmo pelos materiais que se lhe impõem: Idade da Madeira, Idade da Pedra, Idade do Bronze e agora a Idade da 93 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Informática. Porém, a ordem de uma época é um substrato dado pelo que constitui um paradigma representativo do próprio estar no mundo. Nas sociedades primitivas a ordem era estabelecida pelo potlach e nas sociedades complexas pelo econômico. Neste ponto, quero me reportar ao artigo que escrevi, em 19961 , e que se encontra acessível através de múltiplas publicações (inclusive pela Internet)2 : nele, citando Ianni e Ortiz, mostrava como a mundialização não é de hoje, mas o destino histórico das trocas destinadas a ampliar o comércio e a interligar povos e nações. Nesse mesmo artigo, questionava também a tendência dos ideólogos da coisa em fazer crer que estamos no limiar de um novo paradigma erigido como padrão civilizatório e cultural. Pelas razões, que lá estão apontadas, concluía que o paradigma que norteia o atual ciclo da História é o econômico. A informação e a comunicação a ele estão submetidas, como provam os episódios envolvendo a NAPSTER. Aliás, este é um exemplo emblemático: na hora de fazer valer a informação como padrão ou valor de troca, a indústria cultural do disco movimenta um enorme processo jurídico para impor o econômico, embargando a NAPSTER de promover a grande troca de MP3 entre os computadores dos usuários da rede. A globalização do final do século XX foi fabricada pelas empresas ditas “transnacionais” e/ou “multinacionais”, com sede nos sete países mais ricos do mundo e sob a égide agora de um organismo encarregado da mecânica das trocas: a Organização Mundial do Comércio (OMC). A globalização toma a forma de um capitalismo totalitário. O fracasso de três décadas de debates na UNESCO – quadro privilegiado para propor soluções aos problemas – em prol da independência econômica, informativa e comunicacional do Terceiro Mundo, de 1960 a 1990, é uma prova constrangedora. Por outro lado, como salienta Ahmed Bem Bella, “é o funcionamento dos organismos criados para resolver esses problemas, e as decisões e métodos escolhidos para isso, que constituem o problema”. Todo mundo sabe, por exemplo, o quanto a ação do Banco Mundial e do FMI é gritante. Criados para ajudar os países “em desenvolvimento” a se desenvolverem, a ação desses dois organismos têm, pelo contrário, entravado o processo. Na maior parte dos casos, os remédios preconizados por esses dois organismos aos países em desenvolvimento agravam a situação, cavando um fosso ainda 94 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias mais profundo entre o mundo industrializado e a grande maioria dos países do assim chamado Terceiro Mundo. “Na realidade, em mais de 100 países a renda per capita é hoje mais baixa que há 15 anos. Mais de 1,6 bilhões de indivíduos vivem pior que no início dos anos 80. E a acreditar nas cifras fornecidas pela FAO, organismo da ONU, 35 milhões de pessoas (entre as quais 15 a 17 milhões de crianças) morrem de fome por ano. Os reajustes estruturais impostos pelo FMI mostram-se tão ineficazes quanto injustos: o fim do incentivo aos preços de gêneros de primeira necessidade sobrecarregando o fardo das camadas populares mais pobres, a desvalorização da moeda acarretando a alta de preços, e as demissões em grande escala com o fito de aliviar os encargos das empresas mas gerando o desemprego provocaram movimentos sociais reprimidos com derramamento de sangue. Em Calcutá, Cairo, Tunis, Casablanca, Buenos Aires, quase que em toda a parte do mundo, e recentemente pela alta do preço do pão em Amã, a rota do FMI é balizada com o sangue dos miseráveis, tanto é assim que os nomes de Banco Mundial e FMI tornaram-se símbolos de um sistema injusto e maldito”. AHMED BEM BELLA Isto para não falar da dívida dos países do Terceiro Mundo calculada pelo Banco Mundial em mais de 2,070 Md$US. Ela aumenta de mais de 100 a 150 Md$US por ano não obstante a grande maioria dos países endividados serem incapazes de enfrentar os juros dessa dívida. A Organização Mundial da Saúde (OMS) permanece impotente diante do quadro que ela mesma denuncia: a saúde do Terceiro Mundo, cerca de 75% da população mundial, está deteriorada. Em muitas regiões do mundo não se conseguiu ainda erradicar as doenças tropicais e a AIDs é um fantasma que ronda o nosso mundo. A OMS possui um orçamento ridículo para enfrentar esse terrível drama que se desenrola aos nossos olhos. Nenhum organismo de pesquisa do Hemisfério Norte, que detém o monopólio da pesquisa médica, não se interessa seriamente por essas doenças. 95 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Emoldurado o quadro de alguns organismos das Nações Unidas, o resultado é trágico, como acabamos de ver. No campo das inovações tecnológicas o quadro não é diferente. A maioria dos processamentos de informação estão instalados em apenas alguns poucos países. A tecnologia é projetada, desenvolvida e controlada pelos maiores fabricantes nos Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental. Juntos, todos os países em desenvolvimento possuem apenas 4% dos computadores do mundo; 75% dos telefones 700-M do mundo podem ser encontrados nos 9 países mais ricos; os países pobres possuem menos de 10% dos telefones; em 1988 havia mais telefones no Japão do que nas 50 nações da África; milhões de pessoas no mundo jamais tiveram a oportunidade de falar ao telefone; os países ricos, que contam com 30% da população mundial, contam com cerca de 80% da circulação da imprensa no mundo; países pobres, com 70% da população mundial, detém apenas 20% da circulação de jornais. Neste contexto, a expressão “nova ordem mundial” recobre conteúdos distintos e contraditórios: serviu para designar uma teoria, que, no meu livro Doutrinas da Informação no Mundo de Hoje3 , chamei de “outro desenvolvimento”, e que representava um projeto alternativo de independência econômica, informativa e comunicacional para os países da América Latina, Ásia e África – fruto de sucessivos debates plantados e amadurecidos durante três décadas (1960-1990) no seio das Nações Unidas e que frutificou com o Relatório Sean MacBride denominado Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação – NOMIC. Em 1976, a UNESCO encarregou a Comissão MacBride de estudar a situação global da comunicação e propor algumas soluções para melhorar o divisor Norte-Sul. Oficialmente chamada de Comissão Internacional para o Estudo de Problemas da Comunicação, ela foi presidida pelo embaixador irlandês, diretor da Amnesty International e Prêmio Nobel da Paz Sean MacBride. O relatório final da Comissão MacBride, intitulado Many Voices, One World, ficou pronto em 1980 e foi publicado no Brasil com o título de Um Mundo e Muitas Vozes4 . Dentre suas 82 recomendações ressaltam-se aquelas consagradas a eliminar o desequilíbrio de mídias entre os países, proteção dos direitos dos jornalistas, redução do horário comercial nos meios de comunicação, uso da mídia para ajudar o povo oprimido, a liberdade de imprensa e a liber96 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias dade de informação. O documento de 500 páginas propunha abastecer os países do terceiro mundo de canais de informação alternativos para cobrir nossos acontecimentos e com isso garantir o livre fluxo de informação de mão dupla. Ou seja: não mais apenas do hemisfério norte para o hemisfério sul, mas agora igualmente do hemisfério sul para o hemisfério norte e também do hemisfério sul para o hemisfério sul. Essa nova ordem previa políticas nacionais de informação e comunicação administradas internamente pelos respectivos países sem a ingerência dos Estados Unidos. Antes disso, o Instituto Latino-Americano de Estudos Transnacionais – o ILET -, com sede no México, já produzira também análises sobre a dependência e a dominação contidas no livro Nova Ordem Internacional5 sem falar nas contribuições de Armand Mattelart ao estudo do problema do papel das transnacionais da informação na região. Nos anos 90, após a queda do muro de Berlim, a glassnost e a perestroika soviéticas, detecta-se uma crise paradigmática com o esfacelamento do modelo marxista/socialista. Sobrevém então um período “desideologizante”, mas que na verdade nada mais é que a supremacia da ideologia capitalista. Ainda nos anos 90, o surgimento da Internet é um fenômeno que veio desmobilizar não só os debates na UNESCO, mas como atuou como agente importante no próprio processo liberalizante dos Países do Leste. Porém, não só a web, o surgimento de novas tecnologias e a informatização da comunicação encarregaram-se progressiva e paulatinamente de redirecionar o eixo das discussões em todo o mundo. É neste cenário, ao longo dos anos 90, que - orquestrada pela Organização Mundial do Comércio (OMC), pelos acordos do GAT e também pelo Consenso de Washington – a expressão “nova ordem” muda de sentido e passa a ser sinônimo de globalização e mundialização ou planetarização, servindo para designar os novos rumos da economia de mercado cujas regras incluem os produtos culturais, informativos e comunicacionais agora também incorporados como fatias de mercado. “Nova ordem” tem então o seu conteúdo utópico esvaziado e, em contrapartida, ganha uma significação ideológica de pensamento único. Com isto, esvaem-se os sonhos de projetos alternativos, de outra informação e comunicação. 97 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Contribuíram para o esvaziamento da NOMIC, em primeiro lugar, o fato de que, nos anos 80, muda o conteúdo dos debates. Os não-alinhados não estão mais unificados. Divergências em seus sistemas políticos e a recessão econômica são as principais causas. Muitos não têm condições sequer de acompanhar o recrudescimento do fenômeno de globalização comandado pelo mundo ocidental e se mantém à margem desse processo. Além disso, em 1983, os Estados Unidos abandonam o debate retirando a substancial ajuda econômica ao organismo da ONU. Sem a UNESCO, declina a importância da NOMIC: 1. 2. 3. praticamente por falta de verbas no IPDC conceitos e recomendações nunca realizados debates gerais demasiadamente politizados Em segundo lugar, estão o próprio acirramento da transnacionalização e a derrubada de fronteiras comerciais. Globaliza-se e ao mesmo tempo localizase. A resposta da América foi contrapor à NOMIC uma “nova ordem” movida por imperativos globalizantes. A ela, os não alinhados de antigamente repostam com o fundamentalismo, calcado no fanatismo religioso, dos anos 90 até os dias de hoje. Em terceiro lugar, o advento de novas tecnologias de informação e comunicação encarregou de tornar obsoletas algumas reivindicações como a que dizia respeito ao pool de agências de notícias. Pessoalmente, acredito que foram substituídas com muito mais eficiência pelas web pages e sites de jornalismo on line. Além disso, e sobretudo a isso, a revolução da informática transformou meios antes sofisticados em utensílios de trabalho leves e de fácil acesso. Um jornal ou um livro dispensam hoje a pesada maquinaria e as gráficas de antigamente: podem ser inteiramente projetados e compostos no espaço diminuto até de notebooks usando softwares de editoração especialmente desenvolvidos para isso. Certamente aqui pode-se objetar que a concentração de riquezas faz com que o acesso à informação (de meios e dados) seja negado a muitos milhões de pessoas que no globo terrestre sequer têm ainda acesso ao telefone ou à televisão. Mas não se pode negar que a informatização está hoje para a comunicação o que a imprensa (ou a tipografia) de Gutenberg já esteve um dia para o livro. Informatizar-se hoje é quase sinônimo de alfabetizar-se em outro código. Aos analfabetos de ontem correspondem os “analfinfos” de hoje... 98 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias A web facilitou muito as coisas, mas cria a ilusão de que o problema do acesso à informação está resolvido quando, na verdade, ampliou os excluídos do sistema. Nos anos 90, a NOMIC volta à cena. Todos os problemas que a originaram não foram resolvidos. Na verdade, com a web/internet eles estão sendo exarcebados. A desregulamentação e privatização estão na base de novos problemas tanto quanto de importantes componentes de um processo internacional de comunicação, que necessita de uma estrutura multilateral universal bem regulamentada. Além disso, a globalização acirrou a concentração dos meios de comunicação. Com o avanço das companhias telefônicas no segmento das mídias e a tendência de convergência dos serviços, a concentração do mercado tornou-se foco da preocupação. Não é só o aspecto econômico que está em jogo, porém algo ainda mais importante, que é a pluralidade da informação e a preservação da cultura. Nesse aspecto, a NOMIC permanece mais atual do que nunca porque o debate convergia em torno de três eixos básicos: -acesso à informação indo até o direito de antena; -concentração de meios nas mãos de alguns poucos grupos econômicos; -o livre fluxo equilibrado de informações Em outras palavras: 1. Liberdade de informação e direito à liberdade de expressão como um dos direitos fundamentais do homem – que é universal e deveria ser respeitado nacional e internacionalmente. 2. Informação e Comunicação como um bem social – um valor cultural a que cada país deveria ter direito por livre determinação em seu território. 3. Liberdade com responsabilidade, igualdade, justiça, honestidade e equilíbrio. O acesso à informação, passando pelas liberdades e o direito do público, tem o seu debate atualizado com a questão da propriedade intelectual. A propriedade intelectual é um dos assuntos mais cruciais no de99 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 senvolvimento da edição eletrônica. A implantação das novas tecnologias de informação vai exigir uma mudança nas condições econômicas e jurídicas apropriadas para a difusão de informação porque a edição eletrônica separa a informação de seu suporte material. A natureza intelectual e imaterial da informação tem em um ambiente digital grande versatilidade; por exemplo, confinada em uma rede aberta, solapa os alicerces sobre os quais assentamse os direitos econômicos e morais da propriedade intelectual: o controle da distribuição de exemplares, a representação das obras, o reconhecimento da autoria, a modificação das teses essenciais da obra sem nem sequer o conhecimento do autor. (LUIS FERNANDO RAMOS SIMÓN)6 A tendência dos editores de publicações científicas é abandonar os contratos de compra e venda e adotar - à semelhança do que já vem ocorrendo com os softwares - contratos de renovação de licença para utilização da informação. Essas licenças seriam dadas para um dado documento em um dado site. A remuneração se dá no momento da entrega do documento ou por assinatura no caso das redes locais. Sempre em função do número de usuários, dos postos de trabalho ou do número de acessos. É fácil imaginar como este procedimento pode vir a inviabilizar a manutenção das bibliotecas. O novo modo de economia da informação se distancia da tradicional aplicada a livros e revistas e se assemelha àquela das bases de dados. Desse modo, ensina Simón, uma biblioteca ou unidade de informação vai ter pouco interesse em conservar recursos de informação, que não poderá utilizar sem a permissão dos autores ou de seus descendentes até que se passem uns cem anos, quando entrem no domínio público, e, muito provavelmente, tenha interesse para muito pouca gente e seja muito custosa a sua conservação. Outro aspecto crucial é o que diz respeito ao apagamento da memória: Gilles Bousquet7 lembra que umas das questões em suspenso quanto à Internet é aquela da longevidade dos sites e da eventual conservação de um material que pode desaparecer inadvertidamente. Essa preocupação tem sentido na lógica de vida ultracurta de sites devendo sempre serem “atualizados” (“updated”)? pergunta Bousquet. Conceito chave na gestão (e na legitimidade) dos sites , a “atu100 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias alização” forçada ilumina um outro deslizamento do espaço – tempo, a saber, a futilidade, até mesmo a impossibilidade de arquivamento e ainda mais de uma “memória da internet”. Além disso, mais que a ausência de uma “biblioteca” ou de “Arquivos internacionais” Internet, uma tal conservação não entra na lógica profunda do meio: a “atualização” é bem a conseqüência da forma “atualidades”- com seus sotaques midiáticos. Diferença fundamental em relação a outros suportes (o videocassete, o disco, o papel) este não arquivamento. A atualização volatiliza a versão anterior do site. Pesquisas, neste sentido, foram realizadas na França, por ocasião das greves de novembro - dezembro de 1995, com o intuito de resgatar as primeiras marcas de contestação social passando pelo virtual. A pesquisa revela que poucas semanas após às manifestações, a maior parte havia desaparecido, ou seja, não havia mais registro. Em contrapartida, assinala Gilles Bousquet, trinta anos após as manifestações de 1968, as coleções de panfletos da época esperam ser analisados; no caso dos sites de contestação volatilizados, não é mais possível nenhuma arqueologia que viesse, em algum momento do futuro, observar as palavras e atualizar as significações. Na ausência de uma função de memória – e de arquivamento – entraríamos num espaço em constante expansão (a dilatação de que fala Virilio), profundamente instável (pelo jogo da hiperatualização ) onde a extensão recobre, substitui e se torna a duração. E agora mesmo um novo problema está na ordem do dia: aquele que regulamenta o sistema de radiodifusão no Brasil e que certamente merece a atenção dos jornalistas e estudiosos não só da informação e comunicação como também do Direito Público e Privado. Vem aí um novo controle da informação: aquele que tira o poder dos patrões de imprensa para colocá-lo nas mãos dos donos da telefonia . Pode-se prever desde já um novo tipo de concentração vertical e nas onda on line. É justo então lançar à reflexão e ao debate a seguinte pergunta - quando ao abrir todos os dias os jornais pela manhã vemos neles estampada a locução mágica, mítica e metaforizada de Nova Ordem – Informação e Nova Ordem? Que Ordem? Que Ordem queremos e desejamos para o Brasil e para o mundo? Vale ainda perguntar também: Assentada em que princípios éticos e do direito? 101 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Se ética assenta-se na justiça, conclui-se que nenhuma Ordem pode ser construída sem levar em consideração o conceito segundo o qual justiça é diminuir o sofrimento. NOTAS O Paradigma da InformaÁ„o na Era da GlobalizaÁ„o em conferência durante o Simpósio Brasil-Sul de Informação, publicado em Anais do SimpÛsio Brasil-Sul de InformaÁ„o - Londrina, 1 27 a 30 de maio de 1996. Londrina, UEL, 1996. 2 Em http://www.trigo.jor.br/ 3 São Paulo, Loyola, 1990. 4 Um Mundo e Muitas Vozes, UNESCO, Fundação Getúlio Vargas, RJ, 1985. 5 A InformaÁ„o na Nova Ordem Internacional sob a org. de Fernando Reyes Matta. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1980. 6 Luis Fernando Ramos Simón é diretor da Escuela de Biblioteconomía y Documentación de la Universidad Complutense de Madrid, España. Artigo publicado em DICIT - Publicação da Universidad Nacional de Córdoba - Secretaría de Ciencia y Tecnología - Escuela de Ciencias de la Información- Vol. 2 Nº 11- Julio de 1999. 7 Gilles Bousquet – “Espace, Pouvoir, Mondialisation: Le symptôme internet”. In: SociÈtÈs, nº 62, 1998/4. P. 105-113. ISBN 2-8041-2747-8. ISSN 0765-3697. REFERÊNCIAS BOUSQUET, Gilles. “Espace, Pouvoir, Mondialisation: Le symptôme internet”. In: SociÈtÈs, nº 62, 1998/4. P. 105-113. ISBN 2-8041-2747-8. ISSN 0765-3697 BULIK, Linda. As doutrinas da informaÁ„o no mundo de hoje. São Paulo: Loyola, 1990. 200p. ______. Globalização da informação: imperialismo ou parceria. O Paradigma da Informação na Era da Globalização In: SIMPOSIO BRASIL SUL DE INFORMAÇÃO, Londrina, 27-30 maio 1996. Anais... Londrina: UEL, 1996. p.47-63. 102 Linda BULIK Informação e Nova Ordem: fluxos e contrafluxos na produção das mídias MACBRIDE, Sean - Um Mundo e Muitas Vozes, UNESCO, Fundação Getúlio Vargas, RJ, 1985. REYES MATTA, Fernando. (org.) A InformaÁ„o na Nova Ordem Internacional . Rio de Janeiro, Paz e terra, 1980. SIMÓN, Luis Fernando Ramos. “La Propriedad intelectual en un entorno electrónico”. Artigo publicado em DICIT - Publicação da Universidad Nacional de Córdoba - Secretaría de Ciencia y Tecnología - Escuela de Ciencias de la Información- Vol. 2 Nº 11- Julio de 1999. 103 Aspectos da experiência amazônica frente ao debate sobre fluxos e contrafluxos na comunicação Amazon experiment aspects facing the discussions on flows and counterflows in communication Narciso Júlio Freire LOBO Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Professor-Adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFAM – Manaus / AM – Brasil. Autor das obras FicÁ„o e PolÌtica: o Brasil nas minissÈries e A tÙnica da descontinuidade: cinema e polÌtica em Manaus nos anos 60. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO No horizonte dos fluxos nacionais e dos contra-fluxos regionais, a região amazônica, apesar de a mais extensa do país, vive de forma bem acentuada a condição predominante de receptora, reproduzindo, no campo da comunicação, o desnível regional em relação ao eixo Rio-S. Paulo. As duas grandes capitais da região, Belém e Manaus, como emissoras, ocupam restrito espaço na chamada mídia nacional, exceto pela atenção ao Círio de Nazaré, na primeira, no mês de outubro, e ao Festival de Ópera, na segunda, entre abril e maio. Grande destaque, também, recebe o Festival Folclórico de Parintins, no baixo-Amazonas, com os bumbás “Garantido” e “Caprichoso”. No plano da comunicação via satélite, o canal temático AmazonSat, da Rede Amazônica, mesmo enfrentando a fragilidade de suporte financeiro, tem sido responsável pela geração de informações e debates, da e sobre a região, a partir de Manaus, com recepção em todo o Brasil e em diversos países. PALAVRAS-CHAVE: Fluxos nacionais - contra-fluxos regionais - região Amazônica. ABSTRACT In the horizon of national flows and regional counter-flows, the Amazonian region, although it is the biggest in the country, lives in a very accentuated way the reality of a receiver, reproducing, in the communication field, the regional unbalance in relation to the Rio-São Paulo axis. The two big capitals in the region, Belem and Manaus, as senders, have a restrict space in the national media, except for the attention given to the Círio de Nazaré, happening in the first one, in October, and to the Opera Festival, happening in the second one, between April and May. Another big highlight is also the Folkloric Festival in Parintins, a city located in the low Amazon River. In the satellite communication area, the theme channel AmazonSat, belonging to the Amazonian Network, even though facing economical difficulties, has been responsible for generating information and debates, from and about the region, transmitted from Manaus and received all over Brazil and in several countries. KEY WORDS: national flows - regional counter-flows - Amazonian region - communication 106 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica Realmente, a AmazÙnia È a ­ltima p gina, ainda a escrever-se, do GÍnesis. Euclides da Cunha INTRODUÇÃO O que é a região e qual a idéia que se tem dela: contextualização N o horizonte dos fluxos nacionais e dos contra-fluxos regionais, a região amazônica, apesar de a mais extensa do país, vive de forma bem acentuada a condição predominante de receptora, reproduzindo, no campo da comunicação, o desnível regional em relação ao eixo Rio-São Paulo. As duas grandes capitais da região, Belém e Manaus, como emissoras, ocupam restrito espaço na chamada mídia nacional, exceto pela atenção ao Círio de Nazaré, na primeira, no mês de outubro, e ao Festival de Ópera, na segunda, entre abril e maio. Grande destaque, também, recebe o Festival Folclórico de Parintins, no baixo-Amazonas, com os bumbás “Garantido” e “Caprichoso”. No plano da comunicação via satélite, o canal temático AmazonSat, da Rede Amazônica, mesmo enfrentando a fragilidade de suporte financeiro, tem sido responsável pela geração de informações e debates, da e sobre a região, a partir de Manaus, com recepção em todo o Brasil e em diversos países. Merece especial atenção, quando se trata da Amazônia, de pensá-la como área geográfica que transcende as fronteiras brasileiras: trata-se da chamada Amazônia internacional, ou Pan-Amazônia, no dizer de Djalma Batista, que compreende, além da Amazônia brasileira, a boliviana, peruana, equatoriana, colombiana, venezuelana, guianense, surinamense e franco-guianense. Os fluxos entre a Amazônia brasileira e as demais é quase totalmente nulo.Ao mesmo tempo, o fluxo entre as demaisAmazônias, sobretudo de língua espanhola, entre si, aparece como bastante equilibrado. Lembra Marques de Melo, referindo-se à comunicação, ao desenvolvimento e integração regional: A presença comunicacional da América Latina, concentrada em algumas áreas, precisa ser acionada. A região dispõe hoje de complexos culturais que abastecem as respectivas populações com mensagens e informações produzidas conforme os valores da nossa cultura e das nossas tradições. Esses produtos começam a circu107 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 lar residualmente em alguns países, ocupando lugar privilegiado na preferência dos consumidores, como é o caso das novelas brasileiras, do cinema cubano, dos discos venezuelanos... Como desdobramento dos fluxos nacionais e contra-fluxos regionais, consideramos essencial pensar, também, esse enigma específico, chamado PanAmazônia. ìRealmente, a AmazÙnia È a ­ltima p gina, ainda a escrever-se, do GÍnesis”. Na seqüência dessa frase aparentemente de efeito, escrita como preâmbulo ao livro de contos de Alberto Rangel, Inferno Verde, em 1907, Euclides da Cunha acrescenta: Tem (a Amazônia) a instabilidade de uma formação estrutural acelarada. Um metafísico imaginaria, ali, um descuido singular da natureza, que após construir, em toda a parte, as infinitas modalidades dos aspectos naturais, se precipita, retardatária, a completar, de afogadilho, a sua tarefa, corrigindo, na paragem olvidada, apressadamente, um deslize. A evolução natural colhe-se, no seu seio, em flagrante. 1 Procurando ater-me à idéia central do Fluxo e do Contrafluxo, não resisto à tentação de quedar-me um pouco mais em Euclides da Cunha, quando, no primeiro de seus ensaios, em ¿ Margem da HistÛria2 , que leva o título “Terra sem história”, o autor fala do impacto, seu e de outros viajantes, ao se defrontar com o grande rio: A impressão dominante que tive – escreve-, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem. Os mesmos rios ainda não se firmaram nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio derivando, divagantes, em meandros instáveis, contorcidos em sacados, cujos istmos a revêzes se rompem e se soldam numa desesperadora formação de ilhas e de lagos de seis meses, e até 108 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica criando formas topográficas novas em que estes dois aspectos se confundem; ou expandindo-se em furos que se anastomasam, reticulados e de todo incaracterísticos, sem que se saiba se tudo aquilo é bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos.” [... ]“Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um hidrógafo . (CUNHA, p. 223). Lembra, ainda, Euclides da Cunha, que nos casos mais simples há no Amazonas um flagrante desvio do processo ordinário da evolução das formas topográficas acrescentando que em toda a parte a terra é um bloco onde se exercita a molduragem dos agentes externos entre os quais os grandes rios se erigem como principais fatores, no remodelarem os acidentes naturais, suavizandolhes, a exemplo do Hoang-Ho, que aumentou a China com um delta, estabelecendo uma província nova; e, mais expressivo, o Mississipi, com a expansão secular do aterro: Ao passo que no Amazonas, o contrário. O que nele se destaca é a função destruidora, exclusiva. A enorme caudal está destruindo a terra. O prof. Hart, impressionado ante suas águas sempre barrentas, calculou que ‘se sobre uma linha férrea corresse dia e noite, sem parar, um trem contínuo carregado de tijuco e areias, esta enorme quantidade de materiais, seria ainda menor do que a de fato é transportada pelas águas... Assim, observa o autor de Os Sertões, o Amazonas, entretanto, poderia reconstruí-lo em pouco tempo, com os sós 3. 000 000 de metros cúbicos de sedimentos, que carrega em 24 horas: Mas dissipa-os. A sua corrente túrbida, adensada nos últimos lances de seu itinerário de 6.000 milhas, com os desmontes dos litorais, que dia a dia se desbarrancam, fazendo recuar a costa desde o Peru ao Araguari, decantando-se toda no Atlântico. [...]Nesse ponto, o rio que sobre todos desafia o nosso lirismo patriótico, é o menos brasileiro dos rios. É um estranho adversário, entregue dia e noite à faina de solapar a sua própria terra.[...] os seus materiais, 109 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 distribuídos pelo imenso rio pelásgico que se prolonga com o gulf ñ stream, vão concentrando-se e surgindo a flux, espaçadamente, nas mais longínqua das zonas: a partir das costas das Guianas, cujas lagunas, a começar no Amapá, a mais e mais se dessecam avançando em planuras de estepes pelo mar em fora, até os litorais norte-americanos, da Geórgia e das Carolinas, que se dilatam sem que lhes expliquem o crescer contínuo os breves cursos d’água das vertentes orientais dos Alleghanys. Acrescenta: Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando terras brasileiras. Antolha-se-lhe um contra-senso pasmoso: à ficção de direito estabelecendo por vezes a extraterritorialidade, que é a pátria sem a terra, contrapondo-se uma outra, rudemente física: a terra sem a pátria. É o efeito maravilhoso de uma espécie de imigração telúrica. A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa. (p.227-228) Feita essa imersão sobre as impressões desse grande brasileiro, a modo de contextualizar a região, recorro a um cientista amazonense, Djalma Batista, buscando equilibrar, na própria definição da região, o olhar de fora e o olhar de dentro. Assim Batista define a idéia de Pan-Amazônia3 : Já Gastão Cruls, no prefácio da Hiléia Amazônica (1944), sintetizara a idéia de Pan-Amazônia, dizendo que “se bem que ao Brasil caiba a maior extensão desse imenso vale quase ininterruptamente revestido de espessa floresta, nele também se incluem boas faixas territoriais de várias repúblicas hispano-americanas e as três possessões européias situadas na Guiana[...] Para o silvícola, tal como para 110 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica a planta ou para o pássaro, não há fronteiras políticas e, seja no Pará ou na Colômbia, no Peru e na Guiana Inglesa, na Bolívia ou na Guiana Francesa, em qualquer ponto, desde que se esteja na Hiléia, é o ameríndio quem dita os estilos de vida. E são ainda hoje os ameríndios que mantêm a continuidade ântropo-geográfica do mundo amazônico, bastando atentar nos Tiriós que vivem nos dois lados da serra do Tumucumaque, nos Ianomamas (sic), que circulam livremente entre o Brasil e a Venezuela, como nos Tucanos entre o Brasil e a Colômbia, e nos Ticunas, que dominam o alto Solimões, tanto em território brasileiro, como peruano e colombiano (p.31). E prossegue: É oportuno insistir no exame de ‘uma visão multinacional da área’, considerando a Pan-Amazônia, ou Grande Amazônia ou Amazônia continental...” Portanto, desse ponto de vista, temos a Amazônia brasileira, boliviana, peruana, equatoriana, colombiana, venezuelana, guianense, surinamense e franco-guianense. São seguramente amazônicos 44,5 % da América do Sul (com seus 17.600 000 km2). O Brasil, com uma área de 57% na região, constitui sozinho 66,9 da Pan Amazônia, isto é, mais da metade do país está na Amazônia e dois terços da Pan-Amazônia são brasileiro.(p.32) Do ponto de vista estritamente brasileiro, foi aceito pelo legislador um conceito amplo, de natureza geodésica, englobando, como Amazônia Legal, além da totalidade do território dos Estados do Pará, Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia e Roraima, parte do Maranhão (a oeste do meridiano de 44º, de Goiás (ao norte do paralelo de 13º) e Mato Grosso (acima do paralelo de 16º), totalizando um território de 4 871 487, com uma densidade populacional, na década de 1970, da ordem de 1,46 habitantes. A década de 1970, como veremos, será fundamental para situar o enfoque desta exposição. O quadro territorial e populacional da Amazônia, em nossos dias, pouco se modificou, exceto pelos projetos econômicos, responsáveis por grandes polêmicas de fundo ecológico. 111 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 A VISÃO DE FORA Se, como dizia Euclides da Cunha, o naturalista Walter Bates, que não saiu da estreita faixa litorânea desatada entre Belém e Tefé, em mais de um decênio na Amazônia, realizou descobertas que estearam o evolucionismo nascente e surpreenderam os institutos da Europa, conquistando a admiração de Darwin e refundindo ou recompondo muitos capítulos das ciências naturais, portanto praticamente ser ver a região, em nossos dias, com toda a tecnologia disponível, ainda são escassas, ou marcadas pelo espanto exotista, muito do que se vê discute sobre a Amazônia.4 No cinema, Werner Herzog sentiu a necessidade de mostrar o Teatro Amazonas hospendado Sarah Bernhardt e Enrico Caruso, em Fitzcarraldo (1982). Presenciei, na década de 1980, um emissário do cineasta, discutindo com o historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro; este último, com a autoridade de quem escreveu a história da construção do teatro, procurava desfazer o mito da visita de Caruso e de Sarah, enquanto o enviado de Herzog insistia que o filme era apenas uma ficção, ao que o historiador se contrapunha, argumentando que era ficção, mas que alimentava um mentira histórica. Eis como Herzog descreve, no roteiro de seu filme, o exterior do Teatro Amazonas e o sonho delirante pela ópera em plena selva: Na selva, que não pode estar longe, as cigarras cantam seu monótono canto norturno, na rua ressoa a típica mistura de murmúrios festivos de uma orquestra afinando seus instrumentos proveniente do saguão da ópera. Além disso, ouvimos apenas o patear e ruminar dos cavalos, e só o cavalo que bebe champangne chama desagradavelmente a atenção, pois junto com seus sorvos solta um peido paciente e prolongado. No mais, tudo é silêncio. O cavalo faz uma cara impenetrável. Com um rufar de tambores inicia, no interior, a abertura de La Traviata de Verdi. Em outro trecho: Próximo à compacta muralha de pessoas, reconhecemos um grande cartaz atrás de uma vitrine envidraçada, no qual se lê em grandes letras: Enrico Caruso e Sarah Bernardt reunidos em sensaci112 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica onal noite de gala no palco do Teatro Amazonas, Manaus; e abaixo, impresso em tipos menores: Um baile de M scaras, de Guiseppe Verdi. Já no interior do teatro, Herzog assim descreve a suposta perfomance de Sarah Bernhardt e Caruso: Estamos na sombria cena noturna em que Amélia se aproxima temerosa do patíbulo para procurar a erva milagrosa sob a forca. Os relâmpagos de teatro fulguram na horrível paisagem. Serah Bernhardt no papel de Amélia manca visivelmente; apesar da fantasia esvoaçante não é difícil notar a perna de pau. Ela também não canta, só move os lábios, enquanto no poço da orquestra uma cantora legítima canta para ela a ária: ‘Quando a erva, como o anunciou a vidente[...]’ Enrico Caruso, no papel de Richard, seguiu e força-a a confessar seu amor. Arde a chama dos sentimentos de ambos[...] 5 Na esteira dessa mitologia, vê-se talvez a refuncionalização do mito, com a criação, desde os anos 90, do Festival de Ópera do Amazonas. No campo das histórias em quadrinhos, em recente trabalho, Dessana Camila Oliveira6 estuda, com muita ironia, a revista Juba e Lula ñ Uma Aventura na AmazÙnia (1989): embora pontuado pelo discurso da preservação ambiental, sobretudo como resultado do assassinato de Chico Mendes (1988) e da Eco 92, do ponto de vista geográfico, os heróis caminham, em poucas horas, das margens do rio Purus até o Encontro das Águas, próximo de Manaus; na realidade, entre um ponto e outro, existe uma distância de dois mil quilômetros. E mesmo um barco de boa potência só consegue vencer essa distância em oito dias... Melhor ainda – acrescenta a pesquisadora – é ver o fenômeno da “Pororoca” ocorrer em uma região próxima de Manaus, quando normalmente acontece a três mil quilômetros, ameaçando, com sua “onda gigante”, engolir canoas, botes, barcos e até um helicóptero... No caso específico das telenovelas, Busato (2000) já se perguntou por que, no horizonte de mais de 400 produções levadas ao ar, entre 1963 e 1995, a 113 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 região, salvo a frustrada experiência da telenovela AmazÙnia (1992)7 , da Rede Manchete, também tem permanecido fora desse formato, que ocupa o horário nobre da televisão brasileira, pautando os grandes temas do cotidiano8 . Com as minisséries, formato bem mais acabado e dirigido a um público com maior grau de exigência, também é flagrante a ausência da Amazônia, salvo em citações indiretas, como em O Portador (1991), quando um acidente de avião em suposto aeroporto de Manaus ocasiona uma transfusão de sangue contaminado com hiv. Após 74 produções, entre 1982 e 2003, a região, como cenário, tem permanecido ausente9 . Carga Pesada, nesta sua segunda versão, anunciou que os protagonistas Pedro e Bino iriam percorrer os confins da Amazônia. Na verdade, o seriado só chegou até Belém. Busato, em função desse silêncio, se pergunta: “Que fatores impediram até hoje que o fundo mitológico amazônico ganhasse espaço na mídia mais importante da cultura popular de massa?”10 A VISÃO DE DENTRO Depois de ter vivido, com o período da borracha, fase de esplendor e gastança, com a região detendo, segundo Samuel Benchimol11 , uma renda per capita da ordem de 25 mil libras esterlinas12 , uma renda, vale dizer, altamente concentrada entre donos de seringais e intermediários da comercialização do produto, em detrimento do seringueiro, que se embrenhava na floresta em busca da goma elástica, até o final da década de 1910, a Amazônia viveu, nos anos seguinte, sob profunda depressão e decadência. Com a regime militar, a partir da década de 1960, a região voltou a ser olhada com mais atenção, sobretudo a partir do trabalho intelectual de Arthur Cézar Ferreira Reis, que através de livros e pronunciamentos no Brasil e no exterior, freqüentemente denunciava tentativas de internacionalização da Amazônia. Um livro clássico desse historiador chama-se, a propósito, AmazÙnia e a CobiÁa Internacional. Com a emergência do regime de 64, esse intelectual foi conduzido ao governo do Amazonas e toda uma movimentação pela reativação econômica começou a acontecer, tendo a Zona Franca de Manaus como seu projeto principal. “Integrar para não entregar” passou a ser um slogan. E sem dúvida que a 114 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica implantação das novas tecnologias de telecomunicações passou a visar, de imediato, a região amazônica, território, como já vimos, que se constitui em mais de 50 por centro do país, mas que permanecia à margem das grandes cogitações nacionais. Em depoimento recente13 , o empresário Phelippe Daou comentava: Como o governo via a região? Era economicamente inviável se pensar em televisão na Amazônia. No plano nacional de telecomunicações não constava a Amazônia, com exceção de Manaus. Eram núcleos humanos pequenos com economia fraca e a televisão era considerada um “bezerro de ouro”, um luxo, só para grandes comunidades. Nesse sentido, é esclarecedor o depoimento de um descendente da família Hauache, que implantou a primeira experiência de tevê em Manaus, em 1967: Manaus é uma cidade que ficou ilhada durante muito tempo, a única cidade do mundo com mais de um milhão de habitantes que num raio de mil km não tem outra cidade com população acima de 100 mil habitantes. Ficar isolado traz um problema de economia de escala. Você monta uma televisão e no seu mercado a população não tem renda. É difícil. Os fundadores decidiram investir em televisão sabendo que o retorno seria difícil. Alguma pessoas na época tinham televisão na sala antes mesmo de existir emissora aqui. Diziam que pegavam uma imagem de uma TV na Venezuela, umas dez vezes por ano. Na verdade era apenas status.14 A experiência de 1967 ficou apenas como uma primeira tentativa. Era uma emissora a Cabo, a TV Manauara, Canal 38 UHF. Nos anos seguintes, foram implantadas as televisões de circuito aberto: a Família Hauache retomou a iniciativa com a TV Ajuricaba, transmitindo a programação da Rede Globo e a TV Baré a da Rede Tupi, dos Diários Associados. Até o Pará, a recepção era direta, através do sistema de microondas, que consistiam de repetições alternadas, de 50 em 50 km, através de torres parabólicas: as imagens eram transmitidas para um transmissor, que a retroalimentava e a enviada para a seguinte, sucessivamente. A primeira emissora paraense, a Tevê Marajoara, Canal 2, cujo símbolo era o 115 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 indiozinho da Rede Tupi, foi ao ar em 196115 . Em 1976, veio a Tevê Liberal, ligada ao Grupo Rômulo Maiorana, ainda hoje o mais importante da região. Já na parte mais ocidental da Amazônia, por sua condição geográfica, era inviável esse tipo de transmissão. Daí que as telenovelas eram transmitidas sempre com atraso de dias, assim como os grandes torneios esportivos.16 Tal dificuldade, em contrapartida, obrigava a um esforço de programação local e regional, paralelamente ao trabalho exaustivo do trânsito de fitas. Vale ressaltar também todo um esforço de criatividade para que os sinais de Manaus pudessem chegar ao mais recônditos pontos da Amazônia no período anterior à transmissão por satélite. Já nesta último estágio tecnológico, algumas estratégias foram utilizadas: diante de um frágil poder econômico que pudesse dar suporte à expansão, Daou lançou mão de aliar-se com prefeituras e comunidades, interessadas em receber os sinais. Estas ofereciam a infra-estrutura, como terrenos, torres e lá chegavam os sinais, fortalecendo, ao mesmo tempo, a Rede Amazônica. A expansão da emissora e o estabelecimento da rede regional se deveu, em grande parte, ao vídeocassete: uma máquina master que disparava simultaneamente 20 vídeos cassetes a produzir as fitas como se fosse uma fábrica de gravação de fitas que iam a todas as estações. O ministério das Comunicações teve que legalizar esse sistema, denominando-o de sistema “assincronas”. Como resultado: era um exército de videotapes em que os programas eram copiados nas máquinas e depois iam para o setor de tráfego. As pessoas se utilizam de avião, barco, carroça, ônibus, de maios de transporte mais viáveis. As regiões que deveriam receber as fitas levavam 3 dias, 4, enfim. Na época o “Fantástico”, ninguém assistia o programa da mesma semana. Se esperava ir ao ar em Manaus, aí se gravava, copiava e levava ao ar no domingo seguinte nas demais praças da Amazônia, nas própria capitais dos estados acontecia isso. No caso do jornal diário, levava 3 dias para ir ao ar.17 Em 1985, com o funcionamento do Brasil Sat, o desafio mudou de feição. Agora tratava-se nas pequenas cidades interioranas os equipamentos de recepção 116 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica dos sinais de satélite, que consistem de antena de recebimento do sinal e torre com emissores para as casas. A baixa qualidade de energia, com as cidades abastecidas por geradores a óleo, com falhas freqüentes no fornecimento, coloca em risco a vida útil dos equipamentos. Surge a idéia de utilizar a energia solar, abundante na região. A globo jogava a programação no ar, mas no intervalo o interior só via um black. O nosso satélite veio justamente para cobrir esses buracos negros. Então o Amazon Sat (que nesta época ainda não tinha esse nome) surgiu para cobrir esses blacks e também para mandar informação para a própria região. Nós recebíamos a programação da Globo, preenchíamos os espaços todos (com comerciais ou programas) e voltávamos com a programação da Globo, mais a nossa, pelo canal de satélite. Esse sistema, que parecia resolver todos os problemas operacionais na região, acabou por gerar polêmica com os fornecedores da programação, que entendiam haver ali duas transmissões, já que o sinal subia duas vezes: a primeira do Rio até Manaus e a Segunda de Manaus para o interior do Estado. Então começou a ficar convencionado que tudo o que fosse programação Globo, não poderia entrar no satélite Rede Amazônica, o sat. Foi aí que surgiu a programação forte do Sat. Como subíamos (o sinal) apenas nos horários comerciais, então nós ficamos com muito tempo disponível em black e não convinha ser assim, estava subutilizado. Então pensamos em preencher os horários pretos com programação da Amazônia e começamos a produzir programas.18 Lembra Assayag: Para a Amazônia, o advento dos satélites causou uma revolução nunca vista. Considerada uma das regiões mais isoladas do globo, antes do satélite era quase impossível se pensar em sistemas de telefonia ou de televisão[...] As populações tradicionais estavam condenadas a um isolamento atroz, tendo como carrascos as lon117 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 gas distâncias e a completa falta de acesso a algumas localidades. [... ]É verdade – acrescenta – que o recebimento de informações em tempo real trouxe influências nocivas à cultura na Amazônia. Em casa de ribeirinhos, no meio da floresta, não é difícil encontrar cartazes com fotos de artistas e cantores e ver meninas tentando se vestir como a moda ditada pela personagem principal da novela das oito. Mas, é incontestável que, de posse de informações outrora inimaginadas, as populações passam também a conhecer seus direitos e lhes é dada a oportunidade de reivindicar a escola para os filhos e um atendimento a saúde decente[...]19 Nascia canal temático Amazon Sat, como resultado de uma série de reinvenções, ou para usar um termo mais próximo dos estudos da comunicação, de algumas refuncionalizações. O Amazon Sat, aproveitando-se da grande curiosidade em torno da região, aguçada com o assassinato de Chico Mendes e, posteriormente, com a Eco-92, adotou como slogam: “A cara e a voz da Amazônia”. Auto-apresentase como canal de transmissão de TV, via satélite, que tem como objetivo principal levar a imagem, os fatos e navegar pelos aspectos culturais, ecológicos, sociais, econômicos, políticos e éticos da região amazônica por vários pontos do Brasil e até mesmo a outros países da América Latina. A transmissão do sinal do Amazon Sat é direcionada aps possuidores de antenas UHF na região Norte e parabólicas espalhadas pelo território brasileiro e parte da América Latina, operando em formato de canal aberto, sem codificação. Diz ser inteiramente diferente dos canais já existentes porque voltado para mostrar aos brasileiros e amazônidas as múltiplas facetas de uma região. Sua programação, lentamente vem sendo reformulada, procurando atender diversas expectativas à medida em que os horários começam a ser comercializados e vão obtendo patrocínio. O Amazon Sat mostra uma região infinitamente lendária, a Amazônia, que tem no seu folclore e natureza exuberante, um atrativo excepcional para o turismo ecológico. Festas e eventos regionais atraem e surpreendem a todos, tanto pela beleza, quanto pelo mistério. A programação é parte exclusiva e parte resultado do que é produzido 118 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica pelas emissoras que compõem a Rede Amazônica nos Estados do Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia e Amapá e da Sucursal de Brasília. Um bom exemplo dessa reutilização de material acontece com os noticiosos transmitidos por cada um dos canais dos estados, como o Jornal do Amazonas, o Jornal do Acre, Jornal de Rondônia, Jornal de Roraima e Jornal do Amapá, que são renomeados e apresentados, em seqüência, integralmente, pelo Amazon Sat, como Jornal da Amazônia. Essa experiência de reaproveitamento, sem qualquer custo adicional, faz com que o cidadão do Amazonas, que pouco sabe do que acontece no Amapá ou em Rondônia, tome contato com o cotidiano desses estados e vice-versa. Alguns desses programas exclusivos do Canal Amazon Sat, são: AmazÙnia Rural, com reportagens mostrando a utilização de novas culturas, técnicas de plantio e implementos agrícolas, além de pecuária, piscicultura e hidrovias. Destaques, apresentado por um colunista social da cidade, entrevistando personalidades do cenário artístico, empresarial e político e com presença nos grandes eventos sociais e culturais da região. Encontro com o povo, tendo um âncora que entrevista políticos, economistas e especialistas de diferentes áreas, sempre discutindo temas da região. Esporte AmazÙnia, focalizando os mais importantes torneios e campeonatos ou onde tenha a participação de um representante da Região. Isto È Igreja, com mensagens de paz, clipes, entrevistas e notícias a respeito da Igreja Católica e suas obras na região. Literatura em Foco, cada programa entrevista um escritor da região. Zapeando, dirigido ao público jovem, apresentando matérias sobre esportes radicais, dicas virtuais, bate-papo e apresentando uma agenda de eventos de interesse para essa faixa de público. Tribos do Sat, tendo como mote a música produzida na região, com clipes e músicas de cantores regionais e programas acústicos com principais interpretes da região. Planeta AmazÙnia, voltado para a divulgação de matérias sobre ecologia, alternativas auto-sustentatadas e divulgação de projetos relacionados à ecologia e biodiversidade. Pesca AmazÙnia, divulgando a pesca como lazer, incentivando sempre o respeito pela natureza. 119 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Viagens pela AmazÙnia, documentários especiais produzidos nos municípios da região, enfocando ecologia, tecnologia, projetos de proteção ambiental ou o simples cotidiano do caboclo e de povos indígenas. Este último programa tem gerado alguns estudos. O mais recente deles, busca demonstrar um processo de exotização da Amazônia em pelo menos três documentários analisados, como “Silves”, “A Vida em Mamirauá” e “A Cultura indígena dos povos do alto Rio Negro”. Para o autor20 , embora o tratamento desses três temas tenham importância enquanto informação veiculada na fala e no discurso visual, os documentários analisados revelam a natureza e os povos de maneira idílica, como produzida nos relatos dos primeiros viajantes acerca de toda essa simbologia produzida no passado, pela arte e pela literatura, e que agora é vista pela tela de tevê. E conclui: É possível que muitas dessas idéias façam parte de um universo simbólico construído pelo Outro, tomado aqui no sentido do olhar de fora, mas não devemos tomar isso como algo hermético, pois neste estudo foi demonstrado que as populações tradicionais também contribuem, consciente ou inconscientemente, para o processo que é o tratamento dado a Amazônia pelos meios de comunicação capaz de criar e recriar a Amazônia todos os dias em uma multiplicidade de olhares, seja do ponto vista do local ou do global. Por último, algumas linhas sobre o Portal Amazônia, que integra o mega portal das Organizações Globo, lançado em março de 2000 e integrando uma rede de 33 portais regionais. O Portal Amazônia sistematiza, pela internet, toda esse império que vem crescendo, a partir de uma agência de publicidade, e cujo momento heróico está na criação da TV Amazônica, logo Rede Amazônica, desde 1972. Toda a estrutura de geração de informações sobre a Amazônia, através das emissoras de rádio e televisão nos Estados do Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia e Amapá esta concentrada neste portal, que disponibiliza rádios on line, informações sobre a região, indicações de outros sites, classificados, além de notícias em tempo real. Percebe-se, ao percorrer suas páginas, a permanente preocupação de processar e reprocessar, constantemente, aquilo que é produzido para os 120 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica diferentes suportes da rede, numa forma de concentração que do ponto de vista empresarial é altamente econômica mas que pelo ângulo do emprego para ser uma experiência levada às últimas conseqüências de minimalização de custos. Gostaria, ainda, de retomar algumas preocupações de Marques de Melo, quando vez por outra retorna o tema da integração regional, quase sempre voltada para uma pauta gás, cereais, petróleo e outros itens: Uma prioridade na pauta de transações econômicas dentro da região pode vir a ser a produção cultural. [...] O impacto dessa expansão da indústria cultural latino-americana terá significação para neutralizar a invasão ideológico-educativa das fábricas, cujas matrizes estão nos países centrais e que refletem indubitavelmente seus próprios valores. 21 Do ponto de vista da Amazônia, dois mega-eventos ocupam espaço na mídia brasileira e internacional. O primeiro deles, de caráter religioso, que é o Círio de Nazaré, em Belém, reúne, no mês de outubro, cerca de 1,5 milhão de fiéis em torno da crença na imagem da santa encontrada, há mais de 300 anos, por um certo lavrador chamado Plácido de Souza no tronco de uma árvore. Como sub-produto de tamanha concentração humana aconcete toda uma circulação de bens culturais, de imagens, discos e livro a shows de música, exposições, passeios, além da reafirmação das comidas típicas. No plano interno, a alta concentração da mídia em poucas mãos, reproduzindo a concentração na própria distribuição da renda, obrigou o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto a criar um pequeno veículo, de características artesanais, chamado “Jornal Pessoal”, que sobrevive há cerca de 15 anos. Em recente comentário, analisando polêmica entre o Grupo Liberal de Comunicação e a Companhia Vale do Rio Doce, assim se manifestava: “A maior empresa do Pará e o mais poderoso grupo de comunicação estão em guerra aberta. Mas a sociedade é que poderá ganhar se dessa disputa resultar um maior compromisso da Companhia Vale do Rio Doce com o Estado e do grupo Liberal com a informação. Por faltarem a ambos identidade com a verdade, por enquanto essa é uma briga sem mocinhos pelo meio.”22 121 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Dentro desse ponto de vista, a realidade não é diferente no Amazonas, onde recentemente os jornais passaram a estampar altos salários percebidos pelo secretariado do governador – entre 25 e 35 mil reais por mês -, mas tão somente em função de uma rearrumação na política local e com a proximidade do lançamento de mais um jornal na cidade de Manaus. A concentração se repete pelos demais Estados da região. A esperança depositada nas rádios comunitárias, devido aos limites da lei, continua em grande promessa de democratização da informação. Em contraposição, os donos da voz continuam sendo as lideranças políticas e econômicas regionais tradicionais. Por outro lado, a contenda entre os bois “Garantido” e “Caprichoso” mobiliza todo um capital cultural, sobretudo de imagens televisivas, no Amazonas, mas gostaria de lembrar apenas o potencial que se coloca na indústria fonográfica, sediada no próprio Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, que reúne hoje as seis grandes fábricas, como Videolar, Sony, Sonopress, Microservice Digital, Globo Disc e CD Mais. A rica produção musical gerada neste Festival Folclórico, apesar do apelo popular, nem sempre tem a circulação que merece e, o pior, nem sempre deixa para as populações locais, os dividendos do sucesso e da consagração. Conforme Cavalcante23 : Em Manaus, a tecnologia “mora ao lado”, no Distrito Industrial; aguça a inteligência e a imaginação artística com o brilho do laser ultravioleta que compõe o CD; transforma-se em som, em música, uma música por vezes distorcida, desencontrada de si mesma, repleta de um novidadismo que pode perdê-la a qualquer momento; e por fim, coloca em movimento a ‘música da aldeia’ dos nossos antepassados, recriada, agora, pelos mitos da modernidade. CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS À GUISA DE CONCLUSÃO A Amazônia sempre viveu de perto a condição de “Inferno Verde” no 122 Narciso Júlio Freire LOBO Aspectos da Experiência Amazônica quadro dos graves desníveis sócio-econômicos e como conseqüência do desnível inter-regional brasileiro e latino-americano, com repercussão na sua produção científica e tecnológica e na própria maneira de se ver a si mesma. Esse papel historicamente secundário tem colocado, no plano externo, a região como alvo de visões as mais estapafúrdias, ora como inferno ora como paraíso, ora como celeiro, cercada de todo um imaginário, que deixa de fazer justiça às suas população indígenas e não indígenas. Busato ensaia alguma resposta para sua própria indagação sobre a ausência da Amazônia nas telenovelas brasileiras: Na lógica econômica da oferta e da demanda, a Amazônia ainda não rende o suficiente. Se isso acontecer um dia, será porque ela terá chegado a tornar-se familiar para o vasto público nacional ou então porque ela muito se terá desenvolvido e transformado, a ponto de ter desaparecido tal como hoje a conhecemos. A Amazônia ainda permanece uma invenção simbólica sem utilidade nas gôndolas do comércio da cultura.24 Isolada politicamente, tem sido, do ponto de vista histórico, alvo de saques, tanto de suas elites políticas, desde os primeiros anos da República, como fornecedora de matérias-primas. Mesmo experiências como a da Zona Franca ainda estão longe de promover maior equilíbrio nas relações inter-regionais, a ponto de Araújo Lima, ilustre sábio da região, no princípio do século, ter afirmado: “Esta terra não é inferno nem paraíso; não é terra misteriosa nem paradoxal: é simplesmente uma terra lastimavelmente fraudada e saqueada.” Até mesmo o INPA, que marca novo momento na busca de uma política cientifica em termos de Brasil, permaneceu, nos últimos 50 anos, voltada para pesquisas botânicas, ictiológicas e deixando absolutamente de lado os estudos antropológicos e sociais. Muito lentamente, a Universidade Federal do Amazonas, assim como a Federal do Pará, vêm realizando incursões quebrando essa rotina. Preocupadas inicialmente em formar médicos, dentistas, engenheiros, etc, para atendimento das demandas sociais, verifica-se a emergência da pesquisa, através dos cursos de pós-graduação, que vem oferecendo um potencial de interpretação da região a partir de um olhar interno. É certo que ainda não se reflete de 123 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 maneira forte na produção midiática, mas começa, pelo menos, a gerar críticas e demandas por olhar mais atento. Extenso território multi-étnico e multi-cultural, ora visto pelo exotismo delirante, como no cinema de W. Herzog, ora pelo viés da bem intencionada preocupação ecológica, como na HQ “Juba e Lula – Uma Aventura na Amazônia”, esse olhar de fora, com as exceções de praxe, acaba contaminando o olhar interno, como se vê da citação do estudo sobre “Viagens pela Amazônia”. Outro agravante está na existência de uma mídia regional, altamente dependente do poder político e concentrada em poucas mãos, reproduzindo, no plano local, as desigualdades regionais. Em termos pan-amazônicos, a proximidade das fronteiras, se tem facilitado o trânsito de gás, petróleo, produtos da Zona Franca de Manaus, além de extensa pauta, está longe de ver cumpridas as propostas de Marques de Melo, sobre o enorme potencial da circulação dos bens simbólicos e culturais. O presente texto, apenas um apontamento inicial, partiu de Euclides da Cunha e de uma visão da Amazônia em que a idéia de história está à margem, mesmo admitindo-se, para não perder de vista o autor de Os Sertões, que aqui (ou ali, dependendo de onde se esteja) se vive, igualmente, contrastes e confrontos. NOTAS E REFERÊNCIAS 1 Tal preâmbulo foi republicado na edição das obras completas, Rio de Janeiro: Aguilar, Vol. I, 1966, p. 446-452. 2 No mesmo Vol.I., p. 223-244. 3 O complexo da AmazÙnia, Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1976. 4 Cf. Euclides de Cunha, op.cit, p. 447. 5 Werner Herzog, Fitzcarraldo (trad. de Erica Schulttz), Porto Alegre: L&PM Editores, 1983, p. 10-11. 6 “Juba e Lula: uma representanção da Amazônia nos quadrinhos”, monografia de conclusão de curso apresentada ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2003. 7 Novela de Jorge Durán e Denise Bandeira. Tinha como proposta unir dois séculos: o final do XIX e o início de XXI, ancorando-se na história da região. Cf. Ismael Fernandes, Telenovela Brasileira: memÛria. São Paulo: Brasiliense, 1994, “gerou um dos mais frustrantes projetos da telenovela brasileira.” O século XIX, com a exploração da borracha e o XXI[... ] p. 382. 124 Narciso Júlio Freire LOBO 8 Aspectos da Experiência Amazônica Luiz R. Busato, “Os limites da representação: os mitos amazônicos na novela brasileira”, in: ComunicaÁ„o e multiculturalismo, Manaus: Intercom, 2000, p. 295-339. 9 Narciso Lobo, “Mapa da mina ficcional: cenários e emoções nas minisséries”, Belo Horizonte: Intercom, 2003. 10 Idem, op. cit. p. 296. 11 Samuel Benchimol durante conferência para a Caravana da Cidadania, presidida por Lula, em janeiro de 1994, em Manaus. 12 Cada libra esterlina valia, na época, seis dólares, segundo o historiador Luiz de Miranda Correia, em depoimento ao autor. 13 Daniela Assayag, “Amazônia: conheça-me pelos meus olhos: o Amazon Sat como canal de regionalização no tratamento da informação sobre a Amazônia”, monografia de conclusão de curso, Departamento de Comunicação Social da UFAM, Manaus, 2001. 14 Abdul Hauache em entrevista para a pesquisa de Daniela Assayag, pesquisa citada. 15 Cf. Memória da televisão paraense e os 25 anos da TV Liberal, organizado por João Carlos Pereira. Belem: Secult, 2002. 16 Cf. depoimento do professor Rui Souto Alencar para Daniela Assayag, pesquisa citada. 17 Conforme depoimento de Nivelle Daou a Daniela Assayag, idem. 18 Depoimento de Nivelle Daou Jr. a Daniela Assayag na monografia citada, p. 82. 19 Daniela Assayag, monografia citada, p. 51. 20 Sisley Monteiro Furtado, “Amazon Sat e o imaginário amazônico: a exotização da Amazônia no programa Viagens pela Amazônia”, Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, Depto. de Ciências Sociais, UFAM, Manaus, 2003. 21 José Marques de Melo, “Comunicação, Desenvolvimento, Integração Regional: as teses da Unesco”, in: Teoria da ComunicaÁ„o: paradigmas latino-americanos. Petrópolis: Editora Vozes,1998, p.287-320. 22 Lúcio Flávio Pinto, Jornal Pessoal, ano XVI, no. 306, 1ª Quinzena de agosto, 2003. 23 Elizabeth Cavalcante, “A produção fonográfica em Manaus”, PPGSCA, Manaus, 2003. 24 Busato, op. cit. p. 330. 125 Rede Bahia de Comunicação: Um exemplo de mídia regional Rede Bahia de Comunicação: Regional media example Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Jornalista e Doutoranda em Comunicação Social, UMESP. Professora dos cursos de Comunicação FAE (São João da Boa Vista / SP) e FPM (Itu / SP). E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO O artigo apresenta o surgimento do principal grupo de mídia do Norte/ Nordeste, Rede Bahia de Comunicação, de Salvador, da família do Senador Antonio Carlos Magalhães, assim como uma contextualização no campo da mídia regional: conceito, investimentos e identidade. Destacamos as empresas na área de comunicação, principalmente, a TV Bahia, afiliada da Rede Globo. As técnicas de pesquisa utilizadas foram: bibliográficas e documentais. PALAVRAS-CHAVE: Media Regional - Rede Bahia de Comunicação - TV Bahia. ABSTRACT This article introduces the beginning of the most important media group in the North / Northeast, Rede Bahia de Comunicação, from Salvador, that belongs to the Senator Antônio Carlos Magalhães family. It also introduces a context in the regional media field: concept, investment and identity. We highlight the companies in the communication area, especially TV Bahia, that belongs to Rede Globo. The research techniques used were: bibliographic and documental. KEY WORDS: Regional Media - Rede Bahia de Comunicação - TV Bahia. 128 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional C onsiderado o maior grupo de comunicação do Norte e Nordeste, Rede Bahia de ComunicaÁ„o - é um conjunto de 21 empresas baianas2 que se juntaram sob o mesmo núcleo e o mesmo nome. Com uma data de nascimento especial - dois de julho - dia da independência da Bahia, este grupo possui como carro-chefe a TV Bahia, retransmissora da Rede Globo em Salvador, além de está presente na mídia impressa, rádio, TV por assinatura, produtora de cinema e vídeo, gráfica, provedora de Internet, desenvolvimento de negócios e setor de construção civil: “Composta por 21 empresas, a Rede Bahia é um grupo empresarial que atua dentro e fora da Bahia, nos segmentos de Mídia Eletrônica, Mídia Impressa, TV por assinatura, Conteúdo e Entretenimento, Desenvolvimento de Negócios, como soluções de Internet e logística, e também no setor de Construção Civil. Suas empresas de comunicação constituem o maior grupo do Norte e Nordeste. Conheça melhor a Rede Bahia” (Rede Bahia de Comunicação, 2003). A discussão sobre mídia regional nos remete a reflexão sobre regionalismo, primeiramente, e em seguida, regionalização. Para que um grupo de mídia seja considerado regionalizado, antes, porém, precisamos detectar o sentido do regionalismo que estão presente em produções, investimentos e estratégias. Regionalismo, de acordo com Bobbio e outros autores, no “Dicionário de Política”, está voltado a “uma tendência política dos quais são favoráveis às autonomias regionais” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1995, 1084). Portanto, uma mídia regional, um grupo regional está diretamente ligado às tendências políticas e também culturais de uma determinada região. A idéia do regionalismo é um movimento que propunha a inserção e consiste, mais ou menos, numa postura homogênea daqueles que o desejam. 129 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 No campo da mídia, hoje, podemos apresentar vários exemplos de grupos televisivos ou radiofônicos no contexto da regionalização. Que seja a empresa, a notícia, o investimento, a produção de programas ou atividades culturais, a regionalização está, cada vez mais, marcando um novo panorama midiático. Apresentamos a Rede Bahia de ComunicaÁ„o, como um forte grupo de mídia regional que atua em diversas áreas: comunicação, construção, etc, no estado da Bahia e até em outros; como também no Ceará, por exemplo, onde já existe um canal via satélite inteiramente regional, TV Di rio, do grupo Verdes Mares de ComunicaÁ„o. Com 24horas de programação regional: programas de humor, de auditório, telejornal, programas policiais, infantis, informativos universitário, etc, recentemente a TV Di rio foi agraciada com a menção honrosa no “23o Prêmio José Reis de Divulgação Científica”, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por “utilizar a ciência para melhorar a qualidade de vida do cearense”: “A proposta do ‘Programa Conhecer’, apresentado às 22h10min na TV Di rio, às sextas-feiras, garantiu à emissora menção honrosa no 23º Prêmio José Reis de Divulgação Científica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A idéia é, com linguagem simples e didática, aproximar telespectador e mundo acadêmico. De acordo com o apresentador do programa, Marcos Lima, o programa tem autonomia para abordar os temas. Com a participação de professores universitários, pesquisadores, escritores e cientistas, as reportagens são levadas ao ar com linguagem acessível a quem não participa ativamente da comunidade científica” (KID JÚNIOR,2003). O conteúdo regional está na produção, nas fontes, na pesquisa, no enfoque. Nesse caso, as matérias registram temas da realidade do Estado do Ceará, das pessoas, das perspectivas no âmbito da ciência e tecnologia, em linguagem acessível da identidade do cearense, ou, podemos chamar, de uma identidade regional: “Os trabalhos práticos, que se implantados teriam influência direta sobre a sociedade, são os mais discutidos. Como exemplo, Lima 130 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional cita pesquisas para desenvolver feijão de corda3 em terreno com alta salinidade; para encontrar, através de sensoriamento remoto, terrenos aqüíferos e, assim, viabilizar o uso de poços profundos na agricultura; para o uso de aparelho, em casa, que mede ligações telefônicas, a exemplo dos medidores de água e energia; e para desenvolver trabalhos sociais com crianças, adolescentes e idosos” (KID JÚNIOR, 2003). Portanto, essa identidade regional também é característica marcante nas produções de grupos de mídia que se propõe a ser local. Contudo, como cita Canclini, essa identidade, precisa ser repensada, pois em tempos de globalização, a identidade multicultural dá lugar há vários repertórios: “[...] la indentidad en tiempos de globalización es représala como una identidad multicultural que se nutre de varios repertorios, que puede ser multilingue, nómade, transitar, desplezar-se reproducirse como identidad en lugares lejanos del territorio donde nació esa cultura o esa forma identitaria” (CANCLINI, 1997, p. 80) Neste sentido, a identidade regional procura pensar os lugares, os territórios de onde nasce cada cultura, e a partir daí, manifesta-se. Portanto, um grupo de mídia regional, atua no processo de regionalização levando em conta, as identidades, as características, as necessidades, os investimentos e possíveis desenvolvimentos. A metodologia do artigo está voltada para as técnicas de pesquisa bibliográficas e pesquisa documentais. Na bibliográfica abrangemos, as chamadas fontes secundárias de material já publicado, em relação ao tema do artigo, como publicações de revistas, jornais, livros e monografias. Na documental, utilizamos, informação de anuários estatísticos, no caso, Anuário de Mídia, documentos do grupo e das empresas. 131 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 1. O GRUPO REGIONAL O grupo começou a entrar no segmento de comunicação há 24 anos, com o lançamento do jornal Correio da Bahia, hoje o segundo maior do Estado. Mídia Impressa “O segmento de Mídia Impressa agrupa 2 das mais antigas empresas da Rede Bahia, sendo um jornal e uma gráfica. Os investimentos nessa área concentram-se na tecnologia de ponta, buscando oferecer ao mercado um veículo moderno, que acompanha as novas tendências da comunicação, e o que há de mais atual e sofisticado em termos de recursos da produção gráfica” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Jornal Correio da Bahia “O jornal Correio da Bahia, com mais de 20 anos de existência, tem um significado muito especial para a Rede Bahia, pois foi a partir daí que o grupo passou a ter na comunicação o seu foco principal no mundo dos negócios. O jornal começou a circular em 1978 e hoje é o segundo do estado e o quinto maior do Norte e Nordeste, com uma tiragem média de 30 mil exemplares de 2ª a Sábado e 45 mil no domingo. Ao longo da sua história, passou por inúmeros processos de renovação tecnológica, sempre apoiados por uma agressiva política de marketing, criando promoções para a conquista de mais leitores e anunciantes. O Correio da Bahia possui hoje cerca de 22 mil assinantes” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o). Gráfica Santa Helena “Criada com o objetivo de dedicar-se quase que exclusivamente à impressão do Jornal Correio da Bahia, a Gr fica Santa Helena tem hoje mais de 400 clientes. Após detectar a existência de uma grande demanda de mercado, a Rede Bahia investiu na formação de um parque gráfico capaz de oferecer tecnologia de ponta, recursos humanos qualificados e preços competitivos, transformando a Santa Helena no maior parque gráfico da Bahia” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). 132 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional Empresas: Jornal Correio da Bahia Gráfica Santa Helena Porém, a expansão, só veio há 13 anos, quando a TV Bahia foi implantada em Salvador. No início, a emissora era afiliada da Rede Manchete, mas dois anos depois foi “escolhida pela Rede Globo como sua afiliada na Bahia”. Nesse período, surgiram duas estações de rádio e as TVs Santa Cruz de Itabuna, Sudoeste de Vitória da Conquista, Oeste de Barreiras e TV S„o Francisco de Juazeiro. Em março de 1998 foi ainda incorporado 50% do capital da TV SubaÈ, de Feira de Santana. O grupo não parou de investir, surgiram novas empresas. Com tudo isso, os canais da Rede Bahia, além de formar a segunda maior rede regional das OrganizaÁões Globo, cobrem hoje quase todos os 415 municípios baianos. Mídia Eletrônica “Seis emissoras de TV aberta, uma emissora de TV fechada, duas emissoras e uma rede de rádio, levam entretenimento, cultura e informação para mais de 12 milhões de pessoas. Ainda fazem parte desse segmento, que agrupa o maior número de empresas da Rede Bahia, um selo fonográfico e uma editora musical. Primeiro e único grupo de emissoras de TV aberta a cobrir todo o Estado é o maior do Norte e Nordeste e um dos maiores do país. Todas são líderes absolutas de audiência e garantem, assim, a grande maioria das verbas publicitárias dos anunciantes locais e nacionais. Entre as empresas de rádio, destaque para a Rede Tropicalsat, que distribui seu conteúdo via satélite para emissoras em todo o estado” (Rede Bahia de Comunicação, 2003). Para conseguir esses resultados, a Rede investe pesadamente em tecnologia para a instalação do seu sinal via satélite, que chega hoje a todos os municípios da Bahia, para a digitalização de seus equipamentos visando melhorar a qualidade do sinal de suas retransmissoras, e, principalmente, em informação regionalizada4 , um produto importante para conquistar e ampliar audiência” (Rede 133 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Bahia de Comunicação, 2003). Empresas: TV Bahia TV Santa Cruz TV Sudoeste TV Subaé TV São Francisco TV Oeste TV Salvador Globo FM 102,1 FM Sul Bahia Discos Rede Tropicalsat Bahia Edições Musicais Mais adiante destacamos uma reflexão sobre a TV Bahia, a principal empresa do grupo. Através de uma pesquisa documental, apresentamos as empresas na visão da Rede Bahia de ComunicaÁ„o, em especial as Televisões (aberta e fechada), emissoras de rádio e TV Santa Cruz “Com sede em Itabuna, a TV Santa Cruz, desde novembro de 1988, leva seu sinal à região sul do estado, onde estão algumas das mais antigas e importantes cidades da Bahia, representantes da cultura cacaueira e da nossa história, como Ilhéus, Itabuna e Porto Seguro. Além dessas cidades, destaca-se o desenvolvimento de novos pólos econômicos, em Eunápolis, Teixeira de Freitas e Itamaraju, e turísticos em Canavieiras, Prado, Santa Cruz de Cabrália e Itacaré. Cobrindo 53 municípios, a TV Santa Cruz leva e entretenimento, consolidando o forte compromisso com o desenvolvimento econômico e sócio-cultural da região” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). 134 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional TV Sudoeste “São 67 municípios cobertos pelo sinal da TV Sudoeste. É mais uma emissora da Rede Bahia, que se une à força industrial de Jequié e Itapetinga, ao potencial do turismo histórico e ecológico de Rio de Contas e a rica agricultura de Brumado, Guanambí e Caetité. Sediada em Vitória da Conquista, uma das maiores cidades da Bahia, a TV Sudoeste foi inaugurada em março de 1990 e é hoje mais um exemplo de desenvolvimento do Estado, assim como a cultura do café na região” (Rede Bahia de ComuicaÁ„o, 2003). TV Subaé “Inaugurada em junho de 1988, a TV Subaé foi a primeira afiliada à Rede Globo no interior da Bahia. Sediada em Feira de Santana, Segunda maior cidade do estado e principal centro comercial do interior do Nordeste, a TV Subaé transmite sua programação para 36 municípios, levando informação e entretenimento, além de incentivar a cultura e as manifestações populares da região” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). TV São Francisco “Instalada na cidade de Juazeiro, na divisa com o estado de Pernambuco, A TV São Francisco foi inaugurada em dezembro de 1990 e leva seu sinal a 28 municípios. A região é banhada por um dos mais importantes rios navegáveis do país, o São Francisco, e um dos maiores lagos artificiais do mundo, o do Sobradinho. Juntos esses recursos naturais representam os sustentáculos da economia regional5. Importante pólo produtor de frutas para exportação, o norte baiano engloba também forças como Campo Formoso, um dos maiores centros produtores de diamantes do país, as riquezas e os mistérios da Chapada Diamantina e todo o progresso de Senhor do Bonfim. 135 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 A TV São Francisco atua como um agente ativo do desenvolvimento social e econômico, levando informação, educação e cultura aos telespectadores da região” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). TV Oeste “A Região Oeste está localizada em um ponto estratégico para o escoamento da produção agropecuária e industrial do Estado. O potencial turístico, a cultura de grãos (lavoura e indústrias de beneficiamento) em Barreiras e Luís Eduardo Magalhães e o potencial comercial de Bom Jesus da Lapa dão a certeza de que a região representa uma importante fronteira para o crescimento econômico do Estado. Inaugurada em fevereiro de 1991 e sediada em Barreiras, a TV Oeste leva seu sinal a 21 municípios, marcando presença na vida da população e participando ativamente do crescimento econômico da região” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). TV Salvador “A TV Salvador é um canal fechado de televisão, com programação voltada para a população baiana. Englobando assuntos de interesse universal, produzidos localmente ou exibidos sob uma ótica regional, a emissora oferece uma opção de informação e entretenimento que valoriza a cultura e a economia do estado e incentiva a educação e a cidadania. A sua programação abrange cultura, notícias, prestação de serviços, entretenimento e interatividade. Utilizando uma linguagem própria, que integra raízes, irreverência, arte e tecnologia, o morador da capital tem, através da TV Salvador, um contato diário com tudo o que diz respeito à sua identidade como baiano. A TV Salvador é transmitida em UHF (canal 28) em toda a cidade e também na NET Salvador (canal 38), única operadora local de TV fechada do estado. 136 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional Globo FM “A Globo FM dedica-se a um público qualificado da população da Região Metropolitana de Salvador. Seus ouvintes, na maioria, pertencem à classe AB. Boa música 24 horas por dia e um jornalismo competente fazem da Globo FM a líder no seu segmento e a mais importante divulgadora de serviços e produtos destinados a este público” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). 102,1 FM Sul “A 102 FM Sul funciona 24 horas por dia. Sediada na cidade de Itabuna, sua programação musical é intercalada com boletins culturais e jornalísticos. É ouvida por trinta e quatro municípios do sul e extremo sul da Bahia” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Bahia Discos “Ligada ao segmento de rádio do grupo, a Bahia Discos tem o objetivo maior de divulgar os trabalhos de artistas locais, além de poder transformar em disco os grandes eventos musicais promovidos pela Rede” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Rede Tropicalsat A Rede Tropicalsat é a primeira rede de rádio da Bahia, transmitindo sua programação para todo o estado através do satélite Brasil Sat 2, com cobertura nacional. A Rede Tropicalsat vem se juntar às empresas do segmento de Rádio da Rede Bahia. A emissora FM cabeça de rede, fica sediada em Salvador, posicionada no dial 92,3, e também leva o nome de Tropicalsat. As emissoras que vierem a se filiar à rede, além de continuar transmitindo os programas de maior audiência em suas regiões, poderão compartilhar grandes projetos musicais da Rede Bahia, a exemplo do Festival de Verão Salvador” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o). Bahia Edições Musicais “Ligada às empresas de rádio da Rede Bahia, a Bahia EdiÁões 137 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Musicais é um editora musical, criada para oferecer aos autores e compositores baianos um amplo controle sobre suas criações, divulgando, distribuindo e, principalmente, recolhendo e repassando seus direitos autorais. A empresa, que trabalha de maneira independente no mercado fonográfico, trabalhará em parceria com a Bahia Discos, facilitando a inclusão de obras pertencentes ao seu catálogo em discos produzidos por este selo. A Bahia EdiÁões Musicais também divulga e viabiliza a interpretação das composições sob seus cuidados por outros artistas” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o). Depois de contratarem os serviços da Andersen Consulting - uma das maiores empresas de consultoria do país - o grupo da família Magalhães resolveu investir no mercado baiano, pois tiveram provas positivas, através da consultoria, que possuíam muitas boas chances de novos negócios no Estado. A partir de então, a família Magalhães resolveu assumir o conjunto de empresas como um conglomerado regional. A filosofia do grupo é: “atuar prioritariamente nos setores de comunicação, entretenimento e informação” (Uni„o faz a forÁa na Bahia, 1998, p.39). Posteriormente, definido o perfil do grupo, resolveram fixar sua imagem no mercado. Para isso, foi criado um planejamento estratégico: em princípio o grupo teria uma denominação provisória, Grupo TV Bahia, depois optaram por incorporar o nome de Rede e Comunicação. Portanto, estava criada a Rede Bahia de ComunicaÁ„o. Inclusive, sugestão de uma agência de publicidade de Salvador, a Publivendas. Acompanhando uma nova perspectiva no campo empresarial, o grupo decidiu investir também fora do Estado da Bahia, visto que já era considerado um grupo regional. Iniciaram a comercialização do espaço publicitário da TV Bahia em outros Estados do Nordeste, e também no Sudeste. Essa negociação antes era feita exclusivamente pela Rede Globo, mas a Rede Bahia resolveu facilitar alguns serviços. Em 1999, um dos atuais projetos da Rede Bahia era consolidar sua liderança no Estado e, obviamente, crescer. O projeto de expansão deu muito certo. O grupo estava disputando a concessão de canais de TV a 138 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional cabo para Salvador e Feira de Santana em parceria com a Globo Cabo e de canais MMDS para as principais cidades do interior. Hoje, podemos perceber o quanto o grupo investiu em canais por assinatura. TV por assinatura “Fiel aos seus princípios de crescimento e busca constante de liderança em todas as áreas onde atua, a Rede Bahia dedica hoje especial atenção ao segmento de TV por assinatura. A Bahiasat, empresa do Grupo atuante neste setor desde 1999, quando adquiriu a concessão de sinais via MMDS em Salvador, Petrolina/Juazeiro, Itabuna/Ilhéus, Feira de Santana e Vitória da Conquista, vem oferecendo o que há de melhor em programação e serviço. Em 2000, ampliou sua programação, oferecendo maior número de canais e apresentando com exclusividade a programação NET, quando então passou a adotar a marca, líder do segmento no mercado nacional” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Empresa: NET “Oferecendo serviços de alta qualidade e uma programação que inclui uma seleção de alguns dos melhores canais de TV por assinatura, a NET é a empresa da Rede Bahia voltada para o segmento de TV fechada. Seu posicionamento busca manter a liderança no mercado de Telecomunicação por Assinatura, atendendo às expectativas dos seus assinantes através da disponibilização de alguns dos melhores canais fechados existentes no mercado nacional. Em 2000, através de uma parceria com a TV Cidade, iniciou a implantação da rede de cabos em Salvador, ampliando ainda mais seus serviços, com destaque para o lançamento da internet banda larga, que veio possibilitar a seus assinantes o acesso rápido a web” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o). 139 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 O grupo ainda passou a investir na área de cultura e entretenimento: Conteúdo e Entretenimento “Atenta ao crescente mercado de conteúdo e entretenimento, a Rede Bahia vem investindo neste segmento através da criação e comercialização de projetos musicais, culturais e esportivos. À frente deste novo negócio está a Icontent, empresa do grupo que oferece ao mercado soluções diferenciadas em marketing através do entretenimento, o que possibilita uma maior interatividade entre cliente e seu público-alvo. Outro objetivo deste segmento é a comercialização de conteúdo regional através do diversos meios de transmissão, como TV aberta, TV fechada e Internet, cuja demanda tem crescido de forma significativa nos últimos anos” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Empresa: ICONTENT ICONTENT “A Icontent atua no segmento de conteúdo e entretenimento, oferecendo ao mercado alternativo de marketing através da criação e comercialização de projetos musicais, culturais e esportivos como o Festival de Verão Salvador, Festival de Lençóis e Forró Bahia. Também faz parte do seu objetivo criar, planejar e executar projetos especiais de acordo com a necessidade específica do cliente, buscando potencializar o resultado de suas ações, através da interatividade com seu público-alvo e do retorno positivo de sua imagem conseguido com a exposição de sua marca. Além disso, a Icontent também tem como foco a distribuição de conteúdo regional para veículos como: TV aberta, TV fechada e Internet, levando seus projetos para outros locais do Brasil o mundo” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Desenvolvimento e negócios, dos quais fazem parte o segmento llimit, especializada em pesquisa e soluções de comunicação no campo da web, da qual 140 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional surgiu o portal www.ibahia.com que apresenta mais três empresas na área de logística: Pronto Express, Pronto LogÌstica e Cosmo. Desenvolvimento de Negócios “Sempre atenta ao surgimento de novas oportunidades de negócios nos segmentos em que atua, a Rede Bahia criou uma área dedicada ao estudo e desenvolvimento de negócios. Fazem parte desse segmento a llimit, especializada em soluções de comunicação na web e idealizadora do Portal ibahia.com, e três empresas na área de logística: a Pronto Express, especializada em distribuição de impressos, a Pronto Logística, especializada em suporte logístico de insumos e produtos e a Cosmo, franqueada master do serviço Velog, na Bahia” (Rede Bahia de Comunicação). Empresas: Ilimit Pronto Express Ilimit “A Ilimit atua no segmento de Internet, com o principal objetivo de oferecer soluções de comunicação na web. Seu foco está voltado para o desenvolvimento de produtos Business to Business, com o objetivo de atender à crescente demanda das empresas por sistemas que possibilitem a comunicação com seus clientes e consumidores finais através da Internet. O principal projeto da empresa é o site ibahia.com, um portal com conteúdo totalmente regional, possuindo uma grande afinidade com a comunidade de internautas baianos. O ibahia.com já é o site mais acessado do estado, e é responsável por 10% dos links de acesso ao portal Globo.com. Esse conceito pioneiro já vem sendo implantado com sucesso pela Ilimit em diversos outros estados brasileiros” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). 141 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Pronto Express “A Pronto Express é a primeira empresa da Rede Bahia a atender o mercado de distribuição e logística. Sua atuação está voltada para a distribuição de impressos e para o armazenamento, movimentação e controle do estoque do cliente e também na distribuição de produtos do comércio. Com um perfil moderno e competitivo, a empresa conta com grande apoio tecnológico e sistema de roteirização automático, tendo seu foco na segurança, rapidez e eficiência” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). O grupo ainda possui ramificações na área da construção civil como a Santa Helena Construtora de 1975, que foi a primeira empresa da família Magalhães: Construção “A primeira empresa da Rede Bahia não foi do segmento de comunicação, e sim do ramo de construção civil. Com a fundação da Santa Helena Construtora, em 1975, a Rede Bahia iniciou suas atividades no mercado de empreendimentos voltados para um público de médio e alto padrão aquisitivo. Como no segmento de comunicação, a busca constante pela qualidade é uma norma da empresa, atestada pelo certificado ISO 9002, conquistado pela construtora em julho de 2000” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Empresa: Santa Helena Construtora Santa Helena Construtora “A Santa Helena é uma das mais tradicionais empresas do setor de edificações da Bahia. Desde 1975, quando lançou-se no mercado imobiliário, nunca parou de investir em novas tecnologias, na capacitação de seus funcionários e no aprimoramento de seus produtos. Todo esse trabalho resultou na construção de uma conceituada marca, responsável pela execução de alguns dos melhores em142 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional preendimentos em Salvador, que exprimem excelência quanto a segurança, ao acabamento e ao cumprimento do prazo contratado. O certificado ISO 9002, conquistado pela empresa no ano 2000, atesta o reconhecimento do esforço empregado na busca pela qualidade” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Em 1998, o grupo teve um faturamento de 132,5 milhões de reais e lucro líquido de 9,7 milhões de reais6 , o grupo aos poucos vai consolidando sua marca no Nordeste. Ou seja, entre a política e a comunicação, sabe-se que o grupo de Antonio Carlos Magalhães controla tudo, na política é conhecido como ‘carlismo’ - “a religiosa corrente que segue ACM no seu Estado e que controla o governo estadual, a prefeitura de Salvador, a maioria dos municípios baianos” (Sá, 1997). Na comunicação é representado pela Rede Bahia que “controla as emissoras que retransmitem a programação da Rede Globo, jornal, estações de rádio na capital e interior” (Sá, 1997). Destacamos o a TV Bahia, considerada a principal empresa do grupo. Para tanto, devemos buscar informações sobre a história da Televisão na Bahia. 2. A HISTÓRIA DA TELEVISÃO NA BAHIA Em 1956, Assis Chateaubriand decidiu implantar uma antena transmissora em cada grande cidade. De uma só vez, adquiriu nove estações. Elas destinavam-se para Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Campina Grande, Fortaleza, São Luiz, Belém e Goiânia. Assim, quatro anos mais tarde, no dia 19 de novembro, chega a Bahia a primeira emissora de televisão, a TV Itapoan - Canal 5, dos Di rios Associados. Na época, o governador Juraci Magalhães ofereceu um banquete no Palácio da Aclamação, já que a TV proporcionou o lançamento da Campanha de Unidade Nacional. Outro fato político foi à presença de Antônio Balbino ao almoço do Palácio da Aclamação. Depois de ter deixado o governo do Estado, essa tinha sido a primeira vez que o havia retornado ao local. A televisão forçou o aparecimento das primeiras agências de publicidade como a JJ Publicidade, Argus e Maricesas Publicidade. 143 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 A grande preocupação, na época, era os alagados na cidade de Salvador, pois não tinham equacionado o problema de urbanização e eram palafitas legítimas. Então, quando inaugurou a televisão havia verdadeiros paliteiros nas zonas pobres da cidade. Achava-se que a Bahia não tinha mercado para sustentar um canal de TV, algo muito caro. No entanto, aconteceu uma surpresa: 70% dos anunciantes eram locais e somente 30% eram de outros Estados. No entanto, o comércio de Salvador não acreditava na televisão. Com o tempo, o comércio passou apoiá-la, daí o resultado muito positivo quando a TV Itapoan - no âmbito da Rede Associada - ficou sendo o canal de maior faturamento do Brasil. O canal baiano acabou por alterar consideravelmente os hábitos da sociedade e afetou muito o comércio local. Um exemplo desta mudança de comportamento estava presente no horário de exibição das novelas: a partir das 17 horas, horário que passava a novela, as ruas ficavam vazias e o comércio tinha que fechar as portas mais cedo, chegando a causar descontentamento na Associação Comercial, que se reuniu para discutir a questão e pediu a emissora que parasse a exibição nesse horário, em função da queda nas vendas. A grande parte da programação - excluindo as telenovelas que utilizavam VT - era gravada ao vivo com artistas e atores da Bahia. Apenas cerca de 30% dos programas vinham do Sudeste do país. Em 1962, o diretor geral da Itapoan, Newton Paz, um músico que havia morado em Hollywood, levado por Carmem Miranda, fazia a programação do canal sem planejamento, na hora. Apresentavam dois ou três programas que a sustentavam, mas os outros eram produzidos no mesmo dia, tendo como fonte, jornais e convidados, geralmente, personalidades para entrevistas. Isto acabou comprometendo o diretor, que passou a fazer a programação com mais antecedência. A mudança surgiu na hora certa, pois em 1964 - com o golpe e a censura - a programação tinha que ser feita na véspera. Com o advento do VT, o canal 5 ficou dois anos (1966-1968) sem realizar programas ao vivo. Depois voltou a transmiti-los. Na área publicitária do canal, eram as garotas-propagandas que faziam ao vivo os comerciais, já que os filmes de agências ainda eram escassos - esta época foi marcada pela improvisação. Em 1969, a TV Itapoan ganha a sua primeira concorrente, a TV Aratu Canal 4, o que contribuiu para melhorar a programação dos programas baianos. 144 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional A TV Aratu foi inaugurada sem erros, já que o pessoal possuía experiência e na equipe, todos tinham vindo de fora do Estado. Posteriormente, a TV Aratu tornou-se líder de audiência na Bahia e um dos motivos fundamentais foram: à boa qualidade da programação e a melhor parte técnica - com a programação quase toda em cores - e pelos convênios com a Rede Globo. Em 1975, a Itapoan viveu a sua maior tragédia, um incêndio de gigantescas proporções que destruiu as suas instalações. O ressurgimento aconteceu em agosto de 1976, quando uma televisão mais moderna entrou ao ar pela segunda vez. Era na ocasião, uma das emissoras mais bem equipada tecnologicamente do Brasil, uma vez que foi montada com os equipamentos mais sofisticados que havia na época. De volta, a TV Itapoan passou a transmitir a programação local em cores. A TV foi o primeiro canal, na Bahia, a usar o vídeo cassete, mas como enfrentava problemas financeiros, teve pouco tempo no mercado. Contudo, apesar dos 12 meses de reconstrução, foi a TV Aratu que acabou “conquistando” os telespectadores baianos, que não sentiram tanto a saída da Itapoan. O país assiste a falência dos Di rios Associados e o governo federal coloca a venda as emissoras do grupo. Foi assim que a TV Itapoan passou para o empresário Pedro Irujo, dono de um conjunto de empresas sob denominação Grupo Nordeste de ComunicaÁ„o. Em 1981, é inaugurada em Salvador a TV Bandeirantes - Canal 7, a única que não é afiliada, ou seja, emissora de rede. Quatro anos depois foi a vez da TV Bahia - Canal 11, do grupo da família Magalhães. O canal era afiliada da Rede Manchete, mas em 1986, passou a retransmitir a Rede Globo. No ano em que a Globo não renovou contrato com a TV Aratu - transferindo a sua programação para o Canal 11 - Antonio Carlos Magalhães era Ministro das Comunicações, do governo José Sarney. Então, a TV Aratu assinou contrato com a Manchete. Em 1986, A TV Educativa - Canal 2, vinculada à Fundação Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia penetra no Estado. Em seguida, as redes se expandem para o interior. Em dezembro de 1987 é inaugurada a TV Cabr lia Canal 7, afiliada da Manchete em Itabuna. Depois, a Rede Globo inaugura a TV SubaÈ - Canal 10 de Feira de Santana, em junho de 1988; TV Santa Cruz Canal 4 de Itabuna, em novembro de 1988; TV Sudoeste - Canal 5 de Vitória da Conquista, em abril de 1990; TV Norte - Canal 7 de Juazeiro, em novembro de 1990; e a TV Oeste - Canal 5 de Barreiras, em fevereiro de 19917 . 145 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 3. TV BAHIA A TV Bahia foi inaugurada em 10 de março de 1985. Afiliada da Rede Globo de Televis„o desde 1987, o canal segue “à risca” todas as exigências do “padrão Globo de qualidade”. Desde que foi criada, a Globo tem um sistema especial de tratar suas afiliadas. Procurando sempre otimizar e dar qualidade às produções que são veiculadas na sua programação, somente a partir da década de 70 que surge o modelo “padrão Globo de qualidade” - exigências e muito rigor com a produção. TV Bahia “Afiliada da Rede Globo de Televis„o, a TV Bahia é a cabeça de rede das 6 retransmissoras Globo na Bahia. Localizada em Salvador, é líder de mercado, possuindo os maiores índices de audiência em todos as faixas horárias. A TV Bahia iniciou suas atividades em 10 de março de 1985. Integrando a Rede Globo de Televis„o, a emissora, que transmite seu sinal para a Região Metropolitana de Salvador e mais 221 municípios, leva seu sinal a mais de 1,4 milhões de domicílios, com quase 7 milhões de telespectadores e foi o primeiro investimento da Rede Bahia no segmento de TV aberta” (Rede Bahia de ComunicaÁ„o, 2003). Site:www.tvbahia.com.br A TV Bahia é líder de audiência no Estado, até porque é o canal que transmite os programas de maior audiência no país: o Jornal Nacional - que já dura quase trinta anos - e é o líder de audiência do jornalismo, oscilando entre 35 e 45 pontos; Globo RepÛrter; Fant stico; Jornal da Globo; Jornal Hoje; as novelas. Foi praticamente com o Jornal Nacional (juntamente com as telenovelas) que o sistema de rede começou a dar certo, o jornalismo começou a ganhar mais espaço na televisão e propagar a idéia de integração nacional. Na região Nordeste a única que não é afiliada é a emissora de Recife (PE) – já que é a Globo Nordeste. O bem sucedido empreendimento do empresário Roberto Marinho é visto como resultado da capacidade de modernização, pa146 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional drões de qualidade na programação e a possibilidade de cobrir todo o território nacional. O “padrão Globo” de estabelecimento de rede baseia-se nos padrões das redes americanas e esse modelo serviu de base também para a maioria dos jornais dos outros canais do país. Segundo Squirra (1993, p.24), “no Brasil, a mais elaborada - e adotada - técnica de produção de telejornalismo tem sido aquela implantada pela Rede Globo. (...) na procura por uma sistematização do processo produtivo, o ‘Manual’ da Rede Globo foi extensamente copiado, tanto nas escolas quanto nas emissoras concorrentes”. Normalmente, os repórteres que “entram” no Jornal Nacional são sempre escolhidos pela central de jornalismo para trabalhar, exclusivamente, para o jornal e são conhecidos como “repórteres, produtores, coordenadores e editores de rede”, enfim, formam um “núcleo de rede”. A história dos trabalhos de rede da TV Bahia, fornecidos para os jornais da Rede Globo começaram em 1987 e se confunde com a presença do repórter José Raimundo. Desde que passou a existir, a idéia de trabalhos e matérias feitas, exclusivamente, para as centrais jornalísticas da Rede Globo, e desde que esta prerrogativa foi efetivada junto aos responsáveis pela TV Bahia, os trabalhos feitos nesse sentido foram realizados pelo repórter. Na época, o jornalismo da rede não possuía a estrutura básica formada em qualquer veículo, como a parte de produção e edição. O repórter José Raimundo realizava as matérias para a central, assessorado pelos produtores e editores do jornal local. As matérias eram discutidas entre o repórter, o chefe de jornalismo da emissora e os coordenadores do Jornal Nacional. Hoje, a rede possui um núcleo oficial. Formado por duas produtoras, duas equipes técnicas, dois repórteres e um coordenador de núcleo. De acordo com Montes (1997, p. 36): “apesar de existir rotinas de trabalho designadas e diferenciadas, os repórteres e o coordenador do núcleo também participam da produção. Como em qualquer outro meio de comunicação moderno, todos os membros precisam saber como funciona a empresa e qual a função de cada profissional. No jornalismo esta tendência tem sido seguida nos grandes jornais de rede, na qual o apresentador deixou de ser mero 147 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 locutor de notícias e passou a desempenhar também a função de editoria e produção. Além disso, muitos repórteres que trabalham nos principais jornais do país, acompanham a edição de suas matérias e possuem sua próprias fontes de informação”. O trabalho diário na TV Bahia começa com a discussão em grupo do assunto ou dica de pauta para o jornal. São feitas quatro reuniões diárias entre os coordenadores do Jornal Nacional, o coordenador do núcleo na emissora (às vezes o repórter participa ou o próprio produtor). Todo o trabalho é discutido e analisado, desde o texto até a condução da matéria. Nas reuniões são analisados os temas e assuntos que devem ser abordados, qual o tipo de linha a seguir, o que a central da rede deseja, o que a emissora regional pode realizar. O repórter só realiza a matéria depois que já existe uma prévia combinação entre a central de jornalismo da Globo no Rio e o núcleo da Bahia. Se não interessar a rede, a notícia passa a ser local ou simplesmente não é produzida. Na pesquisa de Montes (1997, p.37), ele ilustra: [...] acostumado a acompanhar a edição das próprias matérias, o repórter José Raimundo afirma que o trabalho não se encerra quando a equipe de reportagem retorna da rua: ‘quando volta para a TV começa uma outra etapa do trabalho. É a hora de editar, discutir o que foi feito na externa e se os indícios apontados antes da saída foram confirmados’, acrescenta o repórter. ‘O trabalho é todo discutido e estudado, desde o texto até a condução da matéria. Tudo é discutido com a coordenação do núcleo’. Este ritual de comunicação representa, muito bem, a tese de que a notícia depende – principalmente, nos jornais de rede - do critério de noticiabilidade referido por alguns teóricos, “o impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional” (Wolf, 1987, p.180) - além disso, os repórteres devem evitar a linguagem regionalista, tentando tornar sua imagem geral a mais neutra possível. A seleção da notícia no telejornal de rede torna-se muito mais difícil, devido ao tempo de veiculação e a oferta maior de vários assuntos. 148 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional Outro ponto importante no jornal da rede é a presença de matérias que são consideradas como “assuntos do dia”. Os fait-divers são muito comuns, e a depender do assunto, a matéria pode levar dois, três ou quatro dias para ser concluída. O que demonstra um cuidado maior com a informação, um tempo bem mais longo do que o tempo autorizado e verificado na produção e conclusão das matérias diárias concedidas aos repórteres locais. Em conseqüência da seleção mais trabalhada da notícia e do tempo de realização, o número de reportagens enviadas pela emissora para a central de núcleo, não possui freqüência definida. Pode acontecer de chegar três matérias por semana, ou todos os dias, cobrindo todos os telejornais da rede. Neste caso, o assunto pede maior urgência para ser veiculado e geralmente, é fait-divers como, por exemplo: “rebelião com reféns em um presídio - fato ocorrido em maio/97, Vitória da Conquista, Bahia (durante a ocorrência da rebelião o repórter da emissora baiana teve espaço no telejornal nacional quase todos os dias)” (Montes, 1997, p.38). Além da exclusividade para a rede, a Globo vem desenvolvendo outro tipo de mecanismo “para acostumar o telespectador à linguagem do jornal da empresa”: utilizar somente um repórter em um determinado jornal, exemplo no Jornal Nacional. As exclusividades, nestes casos, funcionam mais como uma forma de ancorar a notícia de determinadas regiões em um único profissional. Desta forma, o telespectador de qualquer região do país identifica a notícia de acordo com o repórter que está apresentando. Ficou constatado, por exemplo, que apesar da TV Bahia ter dois repórteres de rede - o único repórter autorizado a fazer matérias para o Jornal Nacional é José Raimundo. Segundo Montes (1997, p.38), isso acontece nas afiliada da Globo “porque o repórter que entra no horário nobre da Globo deve ter uma certa identificação com o público. Conseqüentemente, todas as principais ‘praças’ têm um repórter exclusivo para o Jornal Nacional”. Apesar das matérias serem veiculadas no Jornal Nacional, o repórter, o produtor e o coordenador de rede, pertencem ao quadro de funcionários da TV Bahia. Mais uma vez, o sistema de rede e afiliação funciona com modelos próprios e a partir de negociações realizadas entre as duas partes envolvidas. De acordo com Montes (1997, p.39): [...]‘trabalhar na Bahia é diferente do trabalho em outros Estados’ dita pelo repórter José Raimundo. O Estado da Bahia, devi149 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 do a sua extensão e diversidade, à sua constante atividade cultural; à sua permanente evidência, enquanto manifestação popular e também política, se tornou um importante pólo produtor de notícia na região Nordeste. Portanto, a TV Bahia é a televisão com maior cobertura em todo o Estado, e atinge, segundo dados do Atlas de Cobertura da Rede Globo de 1997, 5.409.365 telespectadores potenciais. Em 1998, a TV Bahia realizou a maior e mais profunda mudança em sua estrutura jornalística e administrativa: a série de mudanças começou com a contratação do jornalista Fernando Bond, da Globo Minas, atual chefe de Redação da TV Bahia. Em 3 de agosto de 1998, houve a estréia dos novos formatos dos programas locais, além da nova vinheta, cenários, apresentadores e repórteres. Criaram também, o “Bahia agora” - flashes que entram no mínimo sete vezes ao dia, com os repórteres dando ao vivo notícias da cidade de Salvador. Outra novidade para o telespectador é o serviço que informa o trânsito na capital. Para que isso fosse possível, a “TV Bahia investiu em torno de R$ 50 mil em equipamentos, link e pessoal para viabilizar a transmissão das imagens do trânsito” (BARBOSA, 1999, p. 24). Em 1998, a TV Bahia foi premiada como a melhor empresa do Estado pelo Prêmio Desempenho, da Fundação Imic - Instituto Miguel Calmon. A emissora também foi selecionada como a melhor do setor de comunicação da Bahia e do Nordeste. 4.1. O CASO NEC Hoje, para ter existido a TV Bahia - afiliada da Rede Globo - e posteriormente, o grupo Rede Bahia de ComunicaÁ„o, houve uma manobra política, até porque, como já citamos a comunicação está atrelado ao poder político. Ainda nos anos 80, em janeiro de 1987, a transmissão da Globo passa para a TV Bahia, de propriedade da família Magalhães. Isso se deu, a princípio, em função do fim do contrato entre as organizações de Roberto Marinho e a TV Aratu - há 18 anos afiliada da Rede Globo. Essa mudança da programação da Globo, da Aratu para a TV Bahia, acabou sendo associada ao “Caso NEC”, que rendeu duas CPIs em 1992 - aliás, 150 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional ano recorde em escândalos por conta do governo Collor, Paulo César Farias e demais integrantes. A vinculação não foi gratuita e, mesmo Antonio Carlos Magalhães - à época da CPI era governador da Bahia pela terceira vez - tendo tido ganho de causa em todas as instâncias da Justiça envolvidas, o episódio permaneceu suspeito. Em março de 1985, o então presidente da República, José Sarney e seu Ministro da Fazenda, o ex-deputado pelo PFL do Rio, Francisco Dornelles, poucos dias após assumir, a Pasta promove uma intervenção no Grupo Brasilinnvest, mais precisamente no Banco de Investimento Brasilinvest, do empresário Mário Garnero, obrigando-o a pedir concordata da Brasilinvest Inform tica e TelecomunicaÁões, controladora da NEC do Brasil. Na época, a NEC tinha como principal cliente a Telebrás. A intervenção no Brasilinvest acabou por liquidar o grupo, levando à prisão Mário Garnero e afetando seriamente a situação da NEC. Os sócios japoneses, então, comunicaram ao Ministério das Comunicações seu desejo de desfazer a sociedade com Garnero e constituir um novo sócio. Uma lista de candidatos foi apresentada a Telebrás, dentre eles o Banco Ita­, o Banco Nacional, as OrganizaÁões Odebrecht, a Comar, holding das OrganizaÁões Globo, o Grupo SID e o Modatta. Todos aprovados escolheram a Comar, de Roberto Marinho, negócio fechado em dezembro de 1986. Até neste ponto, estava tudo certo, por que era livre a escolha de qualquer sócio. No entanto, alguns detalhes são importantes para compreender o caso NEC: o então ministro das Comunicações era o Antonio Carlos Magalhães, que, menos de um mês depois da transação da NEC, mais precisamente em 20 de janeiro de 1987, ganha o direito de retransmissão dos sinais da Globo; e a TV Aratu, emissora preterida na disputa judicial, era de propriedade de Luiz Viana Neto, filho do ex-senador Luiz Viana Filho, nessa época já adversário político do ex-ministro - A TV Aratu está agora sob o controle do ex-governador Nilo Coelho, outro adversário de Antonio Carlos Magalhães. Luiz Viana e Antonio Carlos eram amigos de longa data. Em 1967, Antonio Carlos Magalhães assumiu a prefeitura de Salvador nomeado por ele, então governador do Estado. A partir daí, a amizade pessoal e política atravessaria quase duas décadas, até a campanha de Waldir Pires (PMDB) para o governo do Estado, em 1986, que contou com o apoio de Luiz Viana. Na mesma época, há esse episódio da 151 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 TV Aratu x TV Bahia, o que acaba por selar a separação. Antonio Carlos acabou sendo acusado de, com a intervenção no Brasilinvest, ter promovido uma política de estrangulamento da NEC, ao fazer com a Telebrás cancelasse todas as encomendas e pagamentos. Depois, quando a situação ficou crítica e a empresa ameaçou dispensar funcionários responsabilizando a Telebr s, nova polêmica o ministério intervém para garantir a folha de pagamentos. As OrganizaÁões Globo no controle acionário, a NEC supera a crise e os negócios com a Telebr s são retomados. As possíveis associações entre as duas transações terminam por desembocar na famosa CPI do Caso NEC, em 1992, grande parte articulada por Leonel Brizola, mas que encontrou apoio em outros setores da esquerda e do empresariado brasileiro. O empresário Mathias Machline, dono do Grupo SID, e também do Sharp, por exemplo, que era um dos candidatos ao controle da NEC, teria insinuado que o ex-ministro o havia forçado a desistir do negócio para a Comar, endossando, assim, o argumento de que Antonio Carlos Magalhães, enquanto ministro das Comunicações, usara de tráfico de influência em favor de Roberto Marinho, ganhando em troca a transmissão de sua TV. Segundo o próprio Antonio Carlos Magalhães, o Mathias Machline era o preferido de Sarney para o controle da NEC, por ser seu amigo pessoal. Em função disso, “circulou a versão de que esta mediada (a liquidação do Brasilinvest) foi uma retaliação do governo ao empresário Mário Garnero, que não teria concordado em vender o controle acionário da NEC para o Machline” (Motter, 1994, p. 109). Esta CPI rendeu ampla cobertura na imprensa baiana, principalmente, no jornal oposicionista Tribuna da Bahia. Três anos depois, em depoimento a um grupo de jornalistas, o já senador da República diria: Terminou o contrato com a TV Aratu, que até então retransmitia a Globo. Era mais do que óbvio que, no dia em que eu tivesse uma emissora de televisão na Bahia - inauguramos em março de 85 -, o Roberto Marinho, quando acabasse o contrato da Globo com qualquer outra emissora, transferiria o direito de retransmissão para mim. Ele é meu amigo desde 1959. [...] E apesar disso meus ad152 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional versários políticos na Bahia falam da NEC. Vejam que bobagem. Como se, para ter o direito de retransmitir a Globo, eu precisasse manobrar para Roberto Marinho ter a NEC. [...] (GOIS, 1995, p. 97). O caso descrito serve apenas para ilustrar o cenário das negociações políticas no universo dos meios de comunicação. Comprovadamente, já entendemos que o processo de concessões de estações de rádio e canais de televisão foram comprometidos na época do presidente Sarney, é fato amplamente estudado pela academia, portanto, compreendemos também a possibilidade do grupo da família Magalhães ter conseguido a retransmissão da TV Globo a partir das negociatas do caso NEC. Por que não? CONCLUSÃO Os grupos de mídia regionais estão de fato, desenvolvendo e consolidando a idéia de empresa, genuinamente regional, comprometida com as produções e notícias tanto na esfera do tradicional (local), quanto na esfera do pós-moderno (global). Representam um poder em fase de aperfeiçoamento, e os altos investimentos provam que os grupos regionais perceberam o quanto é importante está aplicando e profissionalizando a mídia local. Por ser um poder, os meios de comunicação exercem grande importância para seus proprietários, principalmente, quando estes são políticos. Contudo, a Rede Bahia de ComunicaÁ„o devido a pertencer a um político de projeção nacional, está atrelada as questões de políticas de comunicação. Por isso, destacamos nesse artigo, as condições históricas de implantação da TV Bahia, principal empresa do grupo. Devemos lembrar, que a partir do momento que buscamos compreender a relação da comunicação e o poder político, no caso, Estado da Bahia, este mesmo fenômeno também acontece no Maranhão, Ceará, Alagoas, Sergipe. Porém, precisamos analisar com suas particularidades, levando em conta, os fatos históricos que vão diferenciar cada grupo. Os grupos de mídia regionais do Nordeste brasileiro, ao mesmo tempo, que estão investindo na economia local, também estão atrelados às questões políticas partidárias. Todavia, devemos destacar que nem todos fazem parte 153 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 deste paradigma. Outros grupos, como a Rede EstaÁ„o Sat, Recife (PE) e Rede Somzoom Sat, de Fortaleza (CE) estão mais voltadas às questões econômicas, identidades regionais com aperfeiçoamento de novos produtos da indústria cultural: bandas de forró; CD’s; revistas dos eventos e dos artistas; festivais de vaquejadas, shows e competições com premiações. Portanto, no Nordeste, já apontamos para um novo fenômeno de comunicação: grupos de mídia regionais, genuinamente, econômicos e tecnológicos. Trabalhando sob a perspectiva de modernização tanto para a região Nordeste quanto para as empresas da área de comunicação, em especial o grupo Rede Bahia, a conclusão está na cobertura de 415 municípios baianos que recebem as imagens da TV Globo e de programas locais de Salvador, TV’s pelo interior, mídia impressa, emissoras de rádio, investimento em Internet, TV por assinatura, etc. Isso tudo vem dá o exemplo de comunicação profissionalizada. A Rede Bahia de ComunicaÁ„o representa, de certo modo, a realidade dos grupos regionais pelo Brasil, enquanto proposta de mudança. A “maior do Norte/Nordeste” serve de exemplos para outros grupos. Assim como no Sul, a RBS já havia percebido esse filão, da regionalização, agora temos as outras empresas de mídia acompanhando essa tendência, que está voltada para a modernização, a tecnologia e o investimento. Somente assim, para enfrentar o mercado cada vez mais competitivo. NOTAS 1 Fragmento da dissertação de Mestrado, “Neo-coronelismo na mídia nordestina: o perfil oligárquico do “Correio da Bahia”, PósCom/Umesp, 2001, sob a orientação do Prof. Dr. José Marques de Melo. Trabalho apresentado na mesa “Grupos Midiáticos Regionais” no VIII ColÛquio Internacional de ComunicaÁ„o para o Desenvolvimento Regional – Regiocom 2003, Unimar, Marília (SP). Quando a presente pesquisa foi realizada em 1999, o grupo Rede Bahia de ComunicaÁ„o possuía 16 empresas. Retomando o objeto de estudo e a atualização dos dados, hoje, o grupo conta com 21 empresas no total, ou seja, 5 mais novas. 3 Denominação regional de um tipo de feijão no Estado do Ceará. 4 Grifo nosso. 2 5 Grifo nosso. 6 Fonte: União e força na Bahia. Revista Imprensa MÌdia, 1998. 154 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA 7 Rede Bahia de Comunicação: um exemplo de mídia regional As concessões para as afiliadas da Rede Globo no interior foram recebidas na época em que Antonio Carlos Magalhães estava no Ministério das Comunicações. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicion rio de polÌtica. Brasília: Ed. UnB, 1995. CANCLINI, Nestor García. Cultura y comunicaciÛn: entre lo global e lo local. Buenos Aires: Facultad de Periodismo y Comunicación Social, Universidad Nacional de La Plata, 1997. LIMA, Maria Érica de O. Neo-coronelismo na mÌdia nordestina: o perfil olig rquico do Corrreio da Bahia. Dissertação (Mestrado) – PósCom. 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Fortaleza, 01/06/2003. SÁ, Xico. Poder de ACM, 70, vai do governo ao axé. Folha de S. Paulo. Agosto de 1997, caderno Brasil. UNIÃO E FORÇA NA BAHIA: Rede Bahia surge para reforçar lideranças e crescer. Revista Imprensa e Mídia. São Paulo: Editora Feeling, setembro de 1998, p. 23 mensal. Eletrônicas Rede Bahia de Comunicação. www.redebahia.com.br. Salvador, 2003. 156 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico O moderno e o arcaico: O espaço local na produção jornalística na televisão Modern and archaic - the local space inside journalistic production in television Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER Jornalista, Professora Doutora do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Uberlândia e Professora do Centro Universitário do Triângulo Uberlândia / MG – Brasil. E-Mail: [email protected] 157 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Análise da representação do moderno e do arcaico através da análise do conteúdo dos quatro telejornais produzidos e veiculados nacionalmente pela Rede Globo de Televisão (Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal da Globo). O estudo apontou que os telejornais da Rede Globo vinculam a idéia de modernidade aos grandes centros, o espaço onde tudo acontece, representando o local e o regional como um espaço arcaico, fora do seu tempo. PALAVRAS-CHAVE: Telejornalismo – Modernidade - Rede Globo de Televisão. ABSTRACT Study of the representation of the modern and archaic through the analysis of the content of four newscast produced and propagated nationally by Rede Globo de Televisão (Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal da Globo). The study pointed that newscasts of Rede Globo tie the idea of modernity with great centers, the space where everything happens, representing the local and regional as an archaic space, out of its time. KEY WORDS: Newscast – Modernity - Rede Globo de Televisão. 158 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico A s mudanças no mercado de televisão no Brasil têm se refletido no telejornalismo a partir de dois pólos aparentemente opostos: O primeiro, seguindo a tendência proporcionada pelos avanços tecnológicos impostos pela nova ordem econômica – a chamada globalização – aponta para a internacionalização, com a retransmissão de canais exclusivos de notícias – como, por exemplo, a CNN, a CNN en español e a ECO, quase sempre através de empresas de retransmissão via cabo ou via satélite através de recepção codificada. O outro pólo é a valorização do potencial comercial de emissoras locais1 , e conseqüentemente o seu produto mais visível para o grande público, o telejornalismo local. Este produto, até então pouco lembrado, passa a representar uma peça importante para as redes e para os profissionais de jornalismo pois, ainda que pulverizado por todo o país – mas com grande concentração nos estados da regiões sul/sudeste – parece representar um mercado de trabalho em crescimento. É natural, portanto, que no despertar do século XXI o assunto comece timidamente a despertar o interesse da academia2 . OBJETO E OBJETIVO Este trabalho tem por objeto de estudo os telejornais exibidos nacionalmente pela Rede Globo de Televisão: Bom Dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional.e Jornal da Globo, revistos com o objetivo de fazer uma análise da representação do espaço local na produção jornalística da televisão. Como espaço local serão considerados as localidades rurais e os espaços urbanos que não sejam de grande porte, ou seja, cidades com população inferior a um milhão de habitantes e que estejam afastadas geográfica, política ou economicamente dos centros que historicamente se constituíram como espaços para exer159 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 cício do poder. No caso brasileiro, especificamente, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. JUSTIFICATIVA Lorenzo VILCHES (In MORAES, 1997, p. 79) nos alerta que “os modernos meios de comunicaÁ„o reordenam o espaÁo e o tempo de nosso mundo. Fatos que acontecem ìl foraî ou nos grandes centros nacionais tem eco no dia a dia de pessoas de todas das cidades.” Essa repercussão é sensível nas chamadas cidades pólos, que oscilam numa média de 500 mil habitantes e que mesmo não sendo capital estadual ou mesmo um pólo destacado a nível nacional, sofrem e se movimentam com a queda das bolsas, as decisões da seleção brasileira, os pacotes econômicos ou os modismos oferecidos pela TV via satélite, e através de suas ações e reações, influenciam toda a região. Essas cidades de médio porte, pólos regionais relativamente bem estruturados, contam com uma emissora local que, além de retransmitir as notícias que chegam aos televisores de resto do país, também fazem a “repercussão” desses fatos a nível local/regional, e até mesmo os reinterpretam a partir de uma visão diferenciada. É válido lembrar que a programação de TV constitui um todo que articula fragmentos que, conjugados, propiciam a continuidade da emissão dentro de um certo padrão técnico. É o “pansincretismo” ou capacidade de articular gêneros discursivos e sistemas semióticos extremamente variados” (REQUENA, 1995, p. 21) O discurso televisivo nas emissoras comerciais de TV - sistema predominante no Brasil - assume um caráter predominantemente voltado para a diversão, que afeta a produção jornalística. Eugênio Bucci salienta que no Brasil o telejornalismo “se organiza como melodrama” (BUCCI, 1996, p.29). Ciro Marcondes Filho vai mais além e diz que o “real aparece como fábula e a ficção como verdadeira” (1994, p.38). Por outro lado, as condições de produção, da quantidade e da qualidade dos equipamentos disponíveis, da qualidade e disponibilidade da mão de obra e de outros fatores, são elementos que influenciam e até determinam o aspecto final do produto telejornal3 . 160 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico Resta-nos saber como ocorre essa influência e como ela se articula a outros elementos da produção – elementos como o modelo de telejornal “ideal” orientado pela linha editorial determinada pela rede, as condições político-econômico locais, etc. POR QUE O TELEJORNALISMO DA REDE GLOBO? A justificativa para a realização deste trabalho está centrada em dois pontos fundamentais: a televisão de sinal aberto é atualmente o veículo de informação mais representativo do País e essa informação chega principalmente através dos telejornais, dentro da televisão aberta brasileira a emissora de maior audiência é TV Globo. Além disso, ao se colocarem como programas que retratam a realidade, os telejornais tornam-se um espaço para refletir acerca da globalização da sociedade e da modernidade mundializada, uma vez que representam estratégias de mídia e técnicas de leitura dos públicos. ìOs modernos meios de comunicaÁ„o reordenam o espaÁo e o tempo de nosso mundo” (VILCHES, 1997, p. 79). CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A TELEVISÃO A história dos meios de comunicação eletrônicos caminha em paralelo com a efervescência industrial experimentada no século XIX provocada pela (ou conseqüência da) Revolução Industrial do século anterior (SQUIRRA, 1995, p. 13). Mas o uso da comunicação de massa significou a criação de novas formas de ação e de interação no mundo social, novos tipos de relações sociais e novas maneiras do indivíduo entender e relacionar-se com o mundo e com ele mesmo. Na opinião de PASQUALLI: ìHaja ou n„o consciÍncia do problema, o certo È que o audiovisual n„o constitui uma simples linguagem, mas, implicitamente, um novo tipo de compreens„o do mundo perfeitamente localizado no porvir histÛrico da civilizaÁ„oî. (apud MARQUES DE MELO, 1975, p. 17). Ao mesmo tempo em que se impõe na vida das pessoas, a televisão (e consequentemente o telejornalismo) é também um elemento de ligação com todo um conjunto de imagens e experiências que apontam e influenciam decisões e comportamentos. Podemos dizer, aliás, que o telejornalismo diferencia os 161 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 indivíduos e as sociedades, decidindo de forma estratégica como apresentar/representar os valores desses indivíduos e sociedades. Essa pesquisa trabalha também com a Teoria da Agenda, ou Hipótese da Agenda Setting, que defende que os meios de comunicação de massa não pretendem persuadir, mas antes apresentam ao público uma lista daquilo sobre o que é necessário ter uma opinião. A imprensa não diz às pessoas o que pensar, mas sobre que temas devem pensar. A Teoria da Agenda demonstra também que a compreensão das pessoas em relação à realidade social é fornecida, em grande parte, pelos meios de comunicação de massa. Essa relação torna-se mais forte na televisão, onde o receptor “vê” a informação, e tende a aceitá-la como uma imagem pura da realidade. De uma forma mais objetiva, pode-se dizer que uma parte da experiência de vida – inclusive emocional – do indivíduo que tem acesso continuado à mídia, ocorre por meio da mídia. O trabalho é uma análise de conteúdo, ou seja, uma análise objetiva e sistemática do conteúdo explícito da mensagem, e teve como amostragem 44 edições dos telejornais citados, escolhidos de forma aleatória, mas mantendo a proporcionalidade entre o número total de cada telejornal, a partir do conjunto de telejornais veiculados entre janeiro de 2000 e dezembro de 2002. Estes telejornais foram gravados, decupados e posteriormente analisados qualitativamente a partir das considerações feitas por BARDIN de que: ìNa an lise qualitativa È a presenÁa ou a ausÍncia de uma dada caracterÌstica de conte­do ou de um conjunto de caracterÌstica num determinado fragmento de mensagem que È tomada em consideraÁ„oî (1977, p. 21) A PRODUÇÃO DE NOTÍCIAS NA REDE GLOBO4 Para compreender a produção televisiva no telejornalismo é necessário lembrar também que o conteúdo do telejornalismo – e do jornalismo em geral – é produzido a partir de critérios determinados. Como em todas as empresas que trabalham com jornalismo, na Rede Globo de televisão existe uma rotina que viabiliza a produção dos telejornais. Cada telejornal tem um tempo médio, mas o tempo exato disponível para veiculação do material jornalístico varia em função do volume de comerciais. De 162 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico fato, a escolha das matérias para os telejornais da emissora passa por diversos filtros. O ponto decisivo para a produção e posterior veiculação das matérias é a reunião de pauta, com a participação de editores, chefes de reportagem e produtores em São Paulo. Após a reunião inicia-se a construção do espelho, já considerando as matérias internacionais que, de maneira geral, vão aproveitar as cenas geradas e incluir um texto em off, com a voz do noticiarista, e as matérias das praças de outros estados. A REPRESENTAÇÃO DO MODERNO E O ARCAICO NO TELEJORNALISMO DA REDE GLOBO No telejornalismo veiculado nacionalmente pela Rede Globo de Televisão, transparece a idéia de que quanto maior e mais central a localidade, mais próxima ela está da modernidade. Sobre isso, é importante esclarecer que neste trabalho o termo “moderno” está sendo usado no seu sentido leigo, expressando a idéia de algo atual e o contrário de antigo, não estando necessariamente associado a um estilo artístico e as concepções estéticas características desse estilo. Ainda assim, permanece a dúvida: o que é “ser moderno” e o que é ser antigo, ou pior ainda, arcaico? O primeiro, ainda que tenha conotações negativas, remete apenas ao que já passou ou algo muito usado. Já a palavra arcaica indica algo que foi superado, fora de uso e demodÈ. O arcaico, assim, é mais do que o velho, é o velho que perdeu a utilidade e o sentido no mundo atual. No decorrer da história humana, a classificação do “moderno” assumiu diferentes formas. Após a Segunda Guerra, modernidade passa a ser associado com desenvolvimento econômico e conhecimento científico. No mundo atual a representação do que é moderno e do que é arcaico passa obrigatoriamente pelas representações da televisão que, colocando-se ao lado de outras forças sociais importante, transforma em imagens o conceito de modernidade. No telejornalismo veiculado nacionalmente pela Rede Globo de Televisão existeM alguns elementos chaves que se consolidaram como fatores de desenvolvimento e de modernidade. Dentre esses padrões se o desprezo e distanciamento 163 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 da política nacional, a confiança irrestrita no progresso e o endeusamento da tecnologia, no abandono da perspectiva da intervenção coletiva na sociedade, mas a crença no aperfeiçoamento do homem e, sobretudo, uma valorização permanente da velocidade. No telejornalismo da Rede Globo o saber científico está sempre associado ao uso da tecnologia e ao desenvolvimento. De maneira clara, vaza o conceito que o desenvolvimento de um país pode ser medido pela quantidade de tecnologia que ele domina. Na exposição das pesquisas científicas transparece a valorização da assepsia e do uso da tecnologia. Seja na área tecnológica ou na biomédica – o saber científico raramente é associado às ciências humanas – o pesquisador deve fazer uso de toda uma parafernália eletro-eletrônica. A modernidade – seja pelo uso ou pela pesquisa – está nas grandes cidades embora, eventualmente, possa ir até o “interior”. Nesse caso um professor ou um técnico da “cidade” vai até essa região afastada “levar” o seu conhecimento. Ou pior, um técnico ou pesquisador, apresenta no seu próprio espaço (no seu laboratório ou escritório) uma novidade que vai “melhorar a vida no campo”. O uso da tecnologia – algo moderno – é recurso indispensável para conquistar de um mundo melhor, em que o ser humano ficará livre de doenças e viverá com mais saúde durante mais tempo. No entanto, na maior parte das vezes, a ‘novidade” é colocada na tela antes do público ter acesso ao consumo– um mundo melhor, quase ao seu alcance. As matérias sobre ecologia e do meio ambiente, no entanto, são diferenciadas, pois nas agressões à natureza é apresentado um tipo diferente de progresso – o progresso selvagem e desrespeitoso do próprio saber científico (o antiprogresso) – que assume o papel de vilão. Nas representações da mídia, já há algum tempo, poluição transformou-se em sinônimo de sujeira. O sujo é arcaico na mesma medida que a modernidade é limpa, é clean. A frieza, o controle diante da adversidade, é moderno, é civilizado. O excesso emocional é arcaico, sub-desenvolvido. Nas cidades – ou pelo menos nas partes privilegiadas da cidade - o acidente, a morte, a violência é recebido com contrição: parentes vestidos de negro choram de cabeça baixa, quase envergonhados de sentir sua dor. Já nas representações da pobreza e das famílias que tem qualquer tipo de ligação com a marginalidade, mães escancaram seu sofri164 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico mento, abrem os braços, gritam e gesticulam. De fato, a pesquisa realizada em janeiro de 1982 por REZENDE já demonstrava que o Jornal Nacional ìprivilegiou nitidamente as regiões ricas, tanto no notici rio nacional como no internacional, refletindo toda a ordem econÙmica a que se submete o Brasil nos planos internos e externosî (1985, p. 153). Na análise do conjunto do material jornalístico, é visível que a maior parte das matérias é produzida na região Centro-Sul do País, com absoluto domínio de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. No entanto, deve-se também que se observar A questão qualitativa: as notícias de outros estados só ganham espaço quando trazem catástrofes, dramas pessoais ou aspectos pitorescos, com algum destaque para as matérias de turismo. Tal questão é particularmente relevante porque ìcolocar uma cidade ou uma afiliada nos jornais da Rede conta pontos no faturamento (da emissora local), È importante para novos contatos alÈm de render vantagens na rea publicit riaî (LUZ, 2001). Sobre esse aspecto, é necessário considerar algumas questões relativas à produção. Em todos os contatos mantidos com os editores dos telejornais nacionais da Rede Globo, foi manifestada a intenção da emissora na realização de uma efetiva cobertura de todo território nacional. Várias vezes se destacou o fato da emissora realizar “programas de treinamento”5 para capacitar os profissionais das emissoras afiliadas. De fato, durante a semana de observação das reuniões de pauta dos telejornais, foi possível perceber que alguma movimentação para um período de treinamento desse tipo. Apesar disso, o comportamento dos editores nas reuniões de caixa deixa claro que existe uma hierarquia diferenciada entre os participantes. Em princípio, a reunião é comandada pelo editor chefe do telejornal, o que significa que é comandada pelo Rio de Janeiro ou São Paulo. A entrada de Brasília no circuito é assegurada logo no início da reunião e, só após essas três “praças” se manifestarem, o espaço é aberto para que as afiliadas “ofereçam” suas matérias. O status diferenciado fica claro também na linguagem. Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília normalmente informam às matérias que já estão no espelho, enquanto as demais praças “oferecem” e “sugerem” a inclusão do seu material. A reunião de pauta é o primeiro momento de seleção do material de outras praças, mas não o único. Caso a “sugestão” seja aceita, o material é avaliado pelo 165 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 editor de São Paulo6 , e pode sugerir cortes ou até arquivar o material. Transparece, portanto, um claro controle de qualidade. Esse dado, somando aos resultados da pesquisa quantitativa sobre a origem das matérias nacionais evidencia que não existe uma confiança plena no material gerado pelas emissoras afiliadas. Na realidade, as emissoras afiliadas, aparentemente, não realizam os mesmos investimentos em equipamento e mesmo em recursos humanos que a Rede Globo (TEMER, 1998). Além disso, os programas de treinamento, por melhores que possam ser, certamente não alcançam o nível de troca de informações que os profissionais da Central Globo de Jornalismo de São Paulo mantém na convivência diária. Muito provavelmente, também no Rio de Janeiro, o grande número de profissionais de primeiro escalão gera uma convivência rica na troca de informações. Assim, enquanto essas duas localidades “delimitam” o que seja o padrão de qualidade, as demais afiliadas buscam “se enquadrar” nesse padrão. Sobre esse aspecto, é ilustrativo o depoimento de LUZ (2001), citando uma matéria sobre ambulâncias que teriam sido desviadas de instituições de saúde e estariam em poder de particulares, realizada em Uberlândia. Ele afirma que o texto foi submetido e recusado pela Central Globo de Produção, que sempre insistia em um maior número de provas sobre a fraude. No mesmo depoimento, LUZ (citando uma matéria sobre o Dia do Hino) lembra que uma matéria produzida no interior tem que “juntar tudo para fazer um caldo”. Ou seja, tem que agregar valores notícias para ganhar espaço nos jornais de Rede7 . Embora seja norma da casa que toda matéria tem que ter “causa e conseqüência” e que deve ser acompanhada nos seus desdobramentos, isso ocorre com menor freqüência nas matérias das afiliadas. Mesmo nos casos de denúncias, quando a matéria foi realizada fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro-Brasília, o acompanhamento torna-se precário e não muito raramente, o tema é esquecido. A diferença entre o número de matérias e de espaço em segundo entre os estados, diagnosticada quantitativamente, não é a única. De um modo geral, o telejornalismo trata de forma diferenciada os habitantes das grandes cidades e das zonas rurais ou pequenas localidades. Na representação do telejornalismo da Rede Globo, a cidade é o pólo onde tudo acontece, onde a vida social, política e sobretudo econômica, segue um ritmo acelerado. No interior e nas periferias, estão os despossuídos, os que nada têm. 166 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico São pessoas “fora do ritmo”, exceções curiosas de um mundo que não acompanhou o desenvolvimento; anomalias dignas de serem observadas. Grande parte dessas representações vem do interior nordestino, um mundo perdido de curiosas tradições e uma situação latente de richas familiares e corrupção mesquinha8 . No entanto, no período estudado, a matéria que melhor retrata essa questão é um grupo de descendentes de escravos em Goiás, que não tem água encanada, não tem escola, não tem energia e nem mesmo um rádio. O maior sonho de consumo dos entrevistados na matéria é a televisão, através da qual querem ver o “mundo”. Trata-se, portanto, de uma curiosa inversão: o mundo real não é o que vivem, é o que está na televisão. O Brasil retratado na televisão está “de frente para o mar e de costas para o Brasil”9 : “Ú o sudeste branco falando para o Brasil, em nome do Brasil, como se fosse todo o Brasil, e com a anuÍncia pacÌfica da maioria dos brasileiros.î (PRIOLLI, 2000, p. 16) Autores como KELH, FADUL e MARQUES DE MELO já destacaram que a telenovela produzida no Sudeste brasileiro divulga um modelo de comportamento a ser copiado. No entanto, esse modelo apresentado na ficção é dignificado pelo telejornalismo, que, ao divulgar majoritariamente matérias “sudestinas”, “comprova” que é nesse espaço onde as decisões são tomadas, as questões racionalizadas e onde surgem novas oportunidades. Enfim, onde a vida nacional se realiza, sobrando para as demais regiões as secas, enchentes, os crimes e todo tipo de tragédia. Por fim, esses “sudestinos” são exógenos, têm os olhos voltados para os Estados Unidos e Europa “[...] de onde acreditam provirem todo o progresso e a civilizaÁ„o que a espÈcie humana pode almejar. î (PRIOLLI, 2000, p. 14-15). Na abordagem de países desenvolvidos e sub-desenvolvidos a oposição organização/desorganização fica clara em diversos momentos: os países ricos têm exércitos uniformizados e equipados, que marcham de forma cadenciada. Na mídia, os países pobres sequer tem exércitos: tem milícias, facções ou grupos armados. Independente de usarem armas modernas, esses soldados/guerrilheiros estão vestidos sem uniformidade, mal ajambrados e, quase sempre, sujos. Nas representações de manifestações, protestos, passeadas e comícios tam167 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 bém há diferenças importantes: nos países de primeiro mundo existe organização, uma marcha. Nos países sub-desenvolvidos pânico, conflito, caos e exageros emocionais. É previsível, desse modo, que o noticiário internacional siga o mesmo padrão, com destaque para os Estados Unidos e para os países da Comunidade Européia e, em particular, Londres e Paris (sendo que a respeito desta última, não é possível dizer qual a influência do acidente com o Concorde para esses resultados). Londres e Nova Iorque, aliás, são casos à parte, por “hospedarem” as sucursais internacionais – escritórios – da emissora no exterior. A própria escolha das duas localidades é por si só significativa e retrata bem “por onde” chegam às informações que são veiculadas. Esses espaços se tornam ainda mais significativos – ou mais importantes – por estarem sempre presentes nos telejornais da emissora não apenas em função das matérias produzidas pelas sucursais mas também em função do hábito ou “truque” da emissora de incluir uma passagem “de Londres” ou “de Nova Iorque” para “ilustrar” as matérias que trazem dados de outros países. Esse material, que em princípio seria uma nota coberta, transforma-se em uma “reportagem” (ou uma falsa reportagem) com a passagem ou encerramento desses repórteres. Nesse caso, segue-se um modelo bastante simples: uma informação delicada ou a informação mais recente é transmitida pelo correspondente, dando a idéia de que ele acabou de concluir a apuração do fato. Além de dar agilidade à matéria – que foge ao modelo simplista da nota esse recurso dá dignidade ao assunto, por transmitir a idéia de que “o mundo todo está preocupado com a questão”. A divisão por região também é simples: cabe à sucursal de Londres as notas sobre toda Europa, Oriente Médio, Extremo Oriente e países do antigo Bloco Comunista; enquanto a sucursal de Nova Iorque fica com as Américas, Austrália e Oceania e, eventualmente, o Japão. Repete-se assim as chamadas zonas de influência, num modelo anterior a Segunda Grande Guerra. De uma forma geral, é desses dois escritórios que vêm às reportagens mais elaboradas, um grande número delas ligadas à divulgação científica. No período estudado, um número significativo de matérias abordou as prévias para a escolha do candidato à presidência dos Estados Unidos. A cobertura do assunto, de 168 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico que não se nega a relevância, é séria e bem elaborada e mostra, inclusive, as divergências internas nos partidos, posição de grupos de manifestantes internos (pró ou contra o aborto ou outros temas referentes à vida sócio-política norteamericana). Um contraste significativo em relação à matéria em que presença do presidente russo é mostrado numa atitude pouco séria – ou até mesmo cômica – na qual tira os sapatos e vai “lutar” com um atleta japonês na sua visita ao Japão. Repete-se, ao nível internacional, o que acontece nas matérias nacionais. Não sendo Comunidade Européia ou Estados Unidos da América, os demais países só conquistam espaços com episódios pitorescos ou catástrofes. Nesse conjunto, a América Latina é uma discreta exceção. Embora a cobertura regional ainda deixe muito a desejar – e a total ausência de sucursais nos países vizinhos já demonstra isso – existe uma discreta preferência por notícias dos países próximos, com abordagens constantes sobre política interna. No caso da Argentina, um parceiro comercial de destacada importância, uma discreta cobertura na área econômica também se faz notar. Digno de nota ainda é o fato de, nas duas semanas estudadas, nenhuma matéria jornalística proveniente da África ter sido veiculada. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da mesma forma que no século XIX o jornalismo se consolida exercendo um papel de “educador” das massas vindas do campo, pode-se dizer que o telejornalismo da Rede Globo tem uma evidente intenção de divulgador da modernidade, ou de uma pretensa modernidade, construída em cima de padrões que reforçam preconceitos. Como parte destes preconceitos constantemente reafirmados está a idéia de que a modernidade está nos grandes centros urbanos, onde circulam as idéias, onde são descobertas as tecnologias e se tomam às decisões políticas e econômicas. Quando invade o local, a modernidade é apresentada como algo descolado, pitoresco ou exótico. Aspectos negativos da modernidade – como o desenvolvimento de armamentos – são colocados como pano de fundo que tornam velhos conflitos (conflitos arcaicos?) potencialmente mais graves, mas a modernidade que deu origem a essas 169 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 armas jamais é questionada. Preso a limites estruturais, o telejornalismo não abre espaço para reflexões sobre os caminhos dessa modernidade, que antes torna-se algo apontado como invejável e desejável. Ao difundir os seus conceitos de modernidade, a Rede Globo de Televisão redefine também o que é centro - o espaço onde as decisões são tomadas – , e a periferia, o espaço onde, quando muito, se reage a essas decisões. Fora desse eixo central, ou seja, no regional e no local, a vida é menos produtiva em diversos aspectos, até porque segue um ritmo mais lento, está fora do seu “tempo” (fora da modernidade). É uma vida arcaica, não se encaixa no mundo atual. É uma vida a ser visitada, apreciada (pois desperta saudades de um mundo do passado, onde tudo era “mais fácil), mas não é uma vida para ser vivida. NOTAS 1 Esses dados são analisados profundamente por SCARDUELLI, P. Network de Bombachas - os segredos da TV Regional da RBS. São Paulo: ECA/USP, 1996. 2 Entre os autores que abordam a questão das emissoras regionais, foi possível destacar Paulo SCARDUELLI, com a dissertação Network de bombachas os segredos da TV Regional da RBS (ECA/USP, 1996), Rosemeri Aparecida Castro FERNANDES, Depois dos comerciais: o compromisso do telejornal regional com o mercado. (SP/IMS, 1997), Adriana Azevedo Paes de BARROS. Da televis„o no Brasil ao televizinho em Cuiab - aspectos históricos e a influência na Cuiabá dos anos 70, de (Cuiabá: Studio Press & Multicor, 1997); TV Bauru - Canal 2: o homem como agente no processo de sua criação e instalação, de Terezinha de Jesus BOETON (Dissertação, Bauru: UNESP, 1995) e TV Barriga Verde de FlorianÛpolis: estudo de caso no período de 1984/87 de Sérgio Ferreira de MATTOS (Dissertação, São Paulo: ECA-USP,1992). 3 Mauro WOLF, no capítulo Da sociologia dos emissores ao <newsmaking> (1992, p.57) cita que entre as distorções involuntárias fatores intimamente ligados às rotinas produtivas e aos valores profissionais, que se reproduzem em cadeia em todas as fases do trabalho. Sem dúvida alguma, esses fatores são bastante diferenciados nos grandes centros e nas cidades de médio porte, não apenas em função da estrutura dessas cidades, como também das condições de trabalho nas emissoras locais. 4 As informações sobre esse tópico foram retiradas de TEMER: 2002. 5 Neste trabalho inclusive citamos um vídeo-treinamento, com a participação de Willian Boner 170 Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER O moderno e o arcaico e Fátima Bernardes, que apresenta vários exemplos a serem seguidos de matérias feitas pelas emissoras afiliadas e várias orientações específicas para produção de matérias que possam “ganhar” espaço nos jornais da Rede. 6 Não houve um acompanhamento do processo no Rio de Janeiro, mas tudo indica que seja semelhante. 7 As matérias citadas por LUZ não fazem parte do conjunto de matérias da amostragem deste trabalho. 8 Ao contrário das cidades, onde a corrupção envolve somas vultosas, no interior ela é a corrupção das “pequenas coisas”, do sumiço do único computador da prefeitura, dos veículos deixados sem motor, das provocações e pirraças irracionais. 9 Essa frase é de Nascimento e Brant, na música Notícias do Brasil (Os pássaros trazem), LP Caçador de Mim,Gravadora Barclay, 1982. 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Região sudeste: Hegemonia na mídia televisiva Southwest region: Hegemony in the telly media Nícia Ribas D’AVILA3 Professora Doutora dos Programas de Pós-graduação em : Comunicação Midiática, da disciplina : “Semiótica do texto verbal, do som e da imagem”, na UNESP- Bauru / SP; e em Comunicação, das disciplinas: “Semiótica da Imagem e Discurso Publicitário”, e “Linguagem Visual. Informação e Comunicação”, na UNIMAR – Marília / SP – Brasil. E-Mail: [email protected] 173 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Centralizando nossa atenção na mídia televisiva da Região Sudeste, especificamente no eixo Rio – São Paulo e irradiações, focalizamos sua hegemonia no que tange à proposta de modelos e de padrões de procedimento embasados em realizações de alta tecnologia que, se por um lado espelham o know-how das mega-produções - na implantação e divulgação de novos métodos e técnicas -, por outro, temendo a queda na preferência, refletem introjeções de valores que alteram o modo de agir e de ser do público receptor. PALAVRAS-CHAVE: violência - ; criança – ; mídia televisiva - ; cultura. ABSTRACT Focusing our approach on the telly media of the Southwest region, specially on the way Rio-São Paulo and outskirts, we realized its hegemony when it deals with the proposal of models and patterns of proceeding ruled in hightech realizations which show the know how of the great productions – implanting and spreading the new methods and techniques and also fearing the fall down of the preference they reflect introjections of values that alter the behavior of the receiver public. KEY WORDS: telly media - violence - child - culture 174 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. 1. HEGEMONIA E RESPONSABILIDADES N a eterna disputa para manter o privilégio da audiência e garantir a pontuação no IBOPE, a citada mídia televisiva vale-se de todos os meios e estratégias para desarticular concorrências nos fluxos da sobrevivência e da permanência no aceite da opinião pública. Sendo visitada em grande escala pelo público infantil e infanto-juvenil, ela responde, na atualidade, pelas grandes preocupações dos sistemas social, educacional e familiar. Os nossos jovens, tendo o seu procedimento analisado por educadores em sala de aula, devido a atitudes e desajustes sem causa observados no lar e na sociedade, demonstram um comprometimento com a distorção de valores absorvidos dos meios de comunicação - o televisual como líder na preferência – causando-lhes sérias mudanças no comportamento sócio-emocional, ora agressivo, ora inseguro, ora displicente, ora violento. Este trabalho de pesquisa constitui uma colaboração com os organismos que visam a melhorar a qualidade do produto oferecido pela cultura de massa e a proteger a salutar formação de opinião, para o digno exercício da cidadania. 2. AGRESSIVIDADE E VIOLÊNCIA Agressividade é a força que leva o homem a agir na busca de um estado de equilíbrio sempre que o mesmo for interrompido. Somente impulsionado por essa força, o indivíduo poderá adaptar-se às condições de vida em grupo, autoafirmar-se, realizar-se. O ser humano já demonstra a presença desse incitamen175 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 to, em seu primeiro contato de sofrimento com o mundo, através do grito. Desprovido desse impulso, seria um indivíduo sem expressão alguma. É a agressividade, de uma certa forma dosada e natural, que observamos nos instintos humanos de sobrevivência, no gregário, na manutenção da espécie, entre outros. O impulso, porém, pode conduzir o ser humano a uma agressividade exagerada, incontrolada e extrema, tornando-o maléfico, pernicioso. Neste caso, sua constatação fará jus à denominação de “estado de violência”. De todos os meios de comunicação, a televisão, com suas programações altamente manipuladoras, tem-se mostrado o mais potente instrumento de persuasão, afetando direta ou indiretamente toda a sociedade consumidora, em virtude de sua facilidade de aquisição. Dos 42,8 milhões de domicílios brasileiros, 94 % têm, pelo menos, um aparelho de televisão, segundo o IBGE. Logo, seria inadmissível ignorar a penetração e toda a sua influência exercida sobre a população, no dia-a-dia. 3. A MANIPULAÇÃO PERSUASIVA DAS MENSAGENS TELEVISIVAS:UM ESTILO NA COMUNICAÇÃO Seduzindo o telespectador a querer assistir a programações conduzidas por apresentadores altamente carismáticos, inicialmente, algumas emissoras valem-se de certas estratégias, como a de formar o elenco de abertura de determinados programas com personagens portadores de traços físicos que fogem à normalidade, trajados de maneira extravagante, cuja finalidade é a de manipular pela curiosidade, desencadeada por uma pseudo dramatização circense projetada no cenário como “fundo de cena”. Essa espécie de programação, ao sondar os anseios populares, com o decorrer do tempo passará também a envolver indivíduos portadores de sérias deformidades corporais convidados para as entrevistas, apresentando e relatando de forma dolorosa, as suas deficiências físicas. Atendendo-os sob esse “fundo de cena” dosado de humor e jocosidade, por vezes satírico e grosseiro, assim se desenvolve a criatividade humana, demonstrando em algumas programações o avesso da produção cultural, a título de entretenimento - ao menos aparente -, revelado nas aberrações e comoções constantes, com o fim de garantir surpresas a cada entrevista e o estouro da pontuação no Ibope. 176 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. Quando a monotonia começa a se instaurar nesses tipos de programações, intrincadas questões familiares passam a ser exploradas, uma vez que acreditam já ter dado certo em outras emissoras, sendo entrevistados casais de vida simples, esperançosos nas promessas de resolução dos seus desacertos. E, dessa forma, o telespectador passa do querer assistir ao dever de continuar assistindo, num paradoxo mesclado de culpa, pela perda do seu precioso tempo, e de satisfação, pela solidariedade que se estabelece entre telespectador e entrevistados, uma vez que as referidas programações, garantindo aos últimos a solução dos problemas, fazem-no utilizando certas frases estereotipadas do tipo : “eu só estou aqui para ajudar o povo”, “vou até o fim porque o povo precisa saber”, “mexeu com o povo…mexeu comigo”, etc., embora assentadas num caráter, em grande parte, promocional. E, em conseqüência, o hábito instaura-se no incauto receptor que, não tendo opção, pois depende sempre de pouco tempo disponível e hora marcada para o lazer, continuará acompanhando programas que fazem apelo a uma violência gratuita, a título de ¨entretenimento¨. Troca de socos, tapas, palavrões e pontapés, no ar, inicialmente entre os convidados entrevistados, vão envolvendo os contratados para a encenação e contagiando, emocionalmente, o auditório e o telespectador. Na produção dos espetáculos, por uma ingenuidade, queremos acreditar, não são levados em conta os sentimentos humanos de dor, de vergonha, de humilhação e de insatisfação dos personagens entrevistados para o “show” que garantiu o Ibope. Não nos esqueçamos de que os entrevistados, criaturas necessitadaos, são parte desse mesmo “povo”, para o qual foram utilizadas frases como : “eu só estou aqui para ajudar…” etc. Após a automação introduzida no receptor, e a alta pontuação, dada pelos índices de avaliação, os programas com esse nível de aceitação passam a ser efetuados não mais em função daquilo que os programadores desejam levar ao ar, mas daquilo que a audiência determina que se faça. O povo quer cada vez mais. É instaurada a histeria popular, em fazer vivenciar o infortúnio do povo para o êxtase do próprio povo. E programadores versáteis, mesmo quando tentam variar introduzindo temas interessantes, diante da menor oscilação de queda na preferência, acabam sentindo-se obrigados a retornar ao esquema anterior, por medo da perda de audiência. 177 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Buscar respaldo nos quadros apelativos à violência (moral, física, ética, entre outras ) está transformando a TV numa fábrica de horrores. Onde iremos parar diante dessa invasão direta, nociva, descontrolada e avassaladora, em nossas casas ? Qual a intenção de programações que apresentam crianças em vestimentas e requebros nada coerentes com a decência, tendo por finalidade colocá-las em concurso ? Concurso de quê ? “Com essa denominação desvia-se o assunto para não se reconhecer a situação em que, objetivamente, certos programas venham a incorrer : na perversão da inocência infantil, na satisfação da lascívia de adultos e até mesmo no estímulo à pedofilia”4 , favorecendo um dos modos - o mais abominável - de depravação. O homem é um reflexo do ambiente em que viveu na infância e esses tipos negativos de mensagens televisivas emitidos ao público, em geral, são vivenciados por crianças e adolescentes, produzindo em ambos, evidentemente, perdas bem mais consideráveis. Dar um basta competirá a nós mesmos, seres conscientes e responsáveis. Se nada existe de interessante nesse horário, programemos o « DELETEL », para o deleite da nossa família e a educação dos nossos filhos. Outras atividades como uma boa conversa, em família ou com amigos, um passeio ou uma boa leitura, certamente produzirão excelentes resultados, com economia de tempo e de eletricidade. O ‘basta’ estimulará a busca de soluções aos problemas, incentivando o respeito ao telespectador. As programações que cumprem com os papéis cultural e educativo, moral e ético não representam, infelizmente, um número vultoso. Mas, certamente que as temos; e a elas, a família brasileira imensamente agradece pela competência e alta criatividade. Ontem a violência provinha das guerras ; hoje ela está ao nosso lado. Freqüenta nossas escolas, nossa casa, nosso dia-a-dia, assim como a imoralidade de certos programas, com os quais somos obrigados a conviver. E assim, deseducando-se cada vez mais, o pobre telespectador transforma-se em “televiseiro”, isto é, aquele que, inconscientemente, passa a absorver a sucata dos assuntos televisivos, cuja contribuição moral, educativa, informativa, ética e lúdica é um acinte à vida em sociedade, às nossas crianças e adolescentes, as maiores vítimas desse processo de deformação. 178 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. Em conseqüência das críticas, surge a banalização feita pela mídia, constatada nas expressões formuladas por seus representantes : - “mude de canal, caso não goste do programa”. Amanhã certamente irão dizer : - “quem não gosta de drogas é só não comprar”; e mais tarde, terão ainda a ousadia de dizer: - “quem não quer ser assaltado, não deve sair de casa”. E quando você e seus familiares não tiverem um programa sadio para os raros momentos de lazer; quando você, mãe de família, não puder mais sair às ruas nem com dinheiro, nem com relógio; ou quando seu filho estiver escravizado pelo vício das drogas… saberão bem depressa dizer “ que foi você que não soube educá-lo ! “ ¨A TV já passou de todos os limites¨. Este é o brado indignado de milhares de pais e mães de família que não agüentam mais o veneno mortal da violência descontrolada, da imoralidade e da vulgaridade que a Televisão derrama sobre os lares. E o que fazemos diante desse quadro ? Como compreender o que se passa com crianças e adolescentes, diante desses estímulos que tanto influenciam o seu cotidiano ? 3.1. DESENVOLVIMENTO FÍSICO E PSIQUISMO HUMANO A criança, um ser em formação, tem seus impulsos produzidos pelo organismo biológico - onde se fundamentam todos os processos psíquicos -, configurados sob a dependência de uma lógica biológica (WALLON, 1931/1959) que institui um calendário maturativo, segundo Coll, Palacios, Marchesi (1993). Em função dessa ‘Lógica‘ é construído o psiquismo humano pelo entrelaçamento do “inconsciente biológico” com o “inconsciente social”. O desenvolvimento físico, fazendo parte integrante dessa estrutura biológica, em constante transformação, tanto abre possibilidades evolutivas quanto impõe também limitações à mudança de cada momento de vida do ser. Grande exemplo é constatado pelo “desenvolvimento psicomotor, fazendo parte estritamente do físico-maturativo e do relacional. É uma porta aberta à interação e, portanto, à estimulação”5 , e é por intermédio de formas positivas de interação/estimulação,com emoção, que minimizamse bloqueios que inibem indivíduos a desenvolver ações. 179 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Tratando-se de adolescentes hipo ou hiper-tônicos, verificamos que produzem excelentes resultados os exercícios de coordenação motora realizados em grupo, tornando-se atividades habituais. Orientados e personificados, os exercícios propiciam ao indivíduo encontrar seu estado de equilíbrio; interagindo com o grupo e sentindo-se por ele estimulado, terá uma produção amplamente beneficiada. A coordenação motora, desenvolvida coletivamente, permite que o adolescente adquira prazerosamente o domínio do próprio corpo, do tempo e do espaço, no hábito de partilhar com o outro suas emoções, acertos e erros, alegrias e tristezas, compensando adequadamente timidez e ansiedades com extroversão e ponderação. Da valorização do coletivo, despontará o indivíduo para o aumento da autoestima e da aprendizagem de como administrar a sua inteligÍncia emocional6 tendo, no interagir, a oportunidade de desenvolver aptidões, sendo ou não detentor de um QI privilegiado. “Ayrton Senna não era nenhum gênio neuronal, na acepção que o termo tinha até duas décadas atrás. O domínio invulgar do espaço, do tempo e do prÛprio 180 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. corpo que ele possuía, porém, fez o campeão”7 . Para grandes empresas, atualmente, na seleção de um executivo, mais do que um vasto currículo, interessa a forma de como ele se relaciona com seus amigos, sua família, pessoas em geral. Conhecendo o potencial da criança, sem reprimir, mas transformando a energia que nela se encontra em demasia, devem os pais ou responsáveis aproveitá-la, ao máximo, na criação ou construção (inicialmente como processo individual), empilhando cubos em madeira ou em plástico contendo encaixes, relacionando peças, montando figuras. Num trabalho de acompanhamento, a criança recebe a totalidade pronta (como exemplo, uma casinha de madeira encaixada) para ser desmontada, “desmanchada ou destruída” e reconstruída posteriormente. O “desmanchar” ajuda muito na compensação dos excessos de energia. O “reconstruir” oferece possibilidades de desenvolver, na criança, a criatividade , de fazê-la reparar um “acontecimento desagradável”, de reaver o objeto em seu estado original, de recuperar o que se dava por perdido, transmitindo-lhe euforia durante e após a recuperação do objeto. Saber canalizar a energia da criança para objetivos construtivos é uma das chaves do seu sucesso pessoal, na vida futura. “Reprimi-la, significa escondê-la na penumbra do inconsciente”8 . Há dados importantes que deveremos levar em conta na observação constante daquilo que nossas crianças e adolescentes extraem das programações televisivas. Na exploração de objetos do universo da criança, como bichinhos de pelúcia, de borracha, e bonecos, sendo os mesmos antropomorfizados, facilmente transformam-se em ídolos infantis atingindo, primeiramente, as crianças e grande parte dos adolescentes para, por meio deles, conquistar o adulto. Este não só comprará o brinquedo para satisfazer seu filho como permitirá que o mesmo permaneça diante da TV para ¨divertir-se um pouco¨ com os ¨engraçados bichinhos¨, que despertam também a criança que já existiu em cada um dos adultos. Logo, na qualidade de receptores, pretendidos ou não da mensagem, são as crianças alvos da absorção de programas que jamais poderiam ou deveriam ser vistos por essa clientela. Convém lembrar que os bonequinhos que tão bem participam da vida dos adultos têm um linguajar por inúmeras vezes chulo, piadas e posturas inadequadas, em atitudes nada compatíveis com o universo infantil. A cultura moderna fez ‘tábula rasa’ dos valores e conceitos, não se pronunci181 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ando sobre as noções do que é certo e do que é errado, cultuando muitas vezes o errado, em detrimento do certo. Tem-se, como exemplo, novelas que fazem apologia dos desajustes familiares e sociais , com cenas constantes de sexo e programas, em grande escala, que cultuam a violência, dos filmes para adultos aos desenhos infantis, onde, após inúmeras agressões, o personagem mau sai sempre vitorioso, obtendo vantagens, gozando de prestígio, etc. Sem a conscientizaÁ„o e a adoÁ„o dos valores morais, éticos, sociais, etc., acrescidas do desacompanhamento dos pais ou responsáveis, a criança, por falta de estrutura, acabará por atingir a depressão. Quando pensa estar certa, reproduzindo o que viu, será punida ; quando pensa estar errada, será recompensada. Instauram-se, assim, os desajustes, provocando os desequilíbrios emocionais. A criança liga e desliga rapidamente seu cérebro, interessando - se por muitas coisas, sem conseguir manter-se nelas por muito tempo. Sua programação diária situa-se, na maioria dos casos, entre o « fazer a lição de casa » e o « ver televisão ». Esse acúmulo de mensagens televisivas sem conteúdo, ora apelativas, ora com excesso de violência e de aceleração rítmica, torna a criança dispersiva, com baixo poder de concentração, insegura. Ir mal na escola indica uma sobrecarga. Sem conseguir resolver seus problemas, a criança desenvolve a hétero agressividade ou a auto-agressividade como « atitude compensadora » na proporção adequada aos seus fracassos. 3.2. COMO PERCEBER A ELEVAÇÃO ANORMAL DA AGRESSIVIDADE Na hétero agressividade, o meio se encarrega - por ação inadequada – de exagerar a agressividade normal, transformando-a em reacional. É manifestada na hostilidade aos pais, aos mestres, às pessoas mais velhas, ao meio social. Pode levar até mesmo à destruição do outro. Características : ao punir os pais, não escova os dentes, não penteia o cabelo, não toma banho, não estuda, não come, é desleixada, fala palavrões, fala alto, tem hábito de bater, de chutar. Sinais de Alerta - A perturbação afetiva contra a autoridade leva-a a contrariar desejos e ordens dadas. Ação Preventiva - Situa-se nos jogos, na recreação dirigida, aproveitando-a 182 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. no exercício da coordenação motora dirigida. Ação Corretiva - A busca de um profissional para assistência médica. Na autoagressividade o indivíduo se encarrega – por ação inadequada – de auto-punir-se, da constante auto-crítica. Quando a auto-crítica é maior do que a hétero destruição, surge o masoquismo, no prazer com a própria dor, no gosto de sofrer, nos sentimentos de culpa. Quer a criança ser constantemente punida; julgase incapaz e inútil. Fica rebelde e nada poderá contê-la. Os pais são fracos e muito tolerantes, nesses casos. Ação Preventiva - Nunca utilizar qualificativos como: “burra”, ”estabanada”, “incapaz”, “aborrecente”, pois a criança interiorizará e assumirá esses adjetivos. Ação Corretiva - Deve-se procurar o profissional competente. Os pais apelam a clínicas, pois o excesso conduzirá à auto-destruição, como no caso deplorável do uso de drogas. Na hétero agressividade, a resolução educacional do problema não se situa na repressão sobre a criança (disciplina externa). Isto a impede de dar expressão social às suas “forças agressivas”. Devem ser as mesmas aproveitadas como “forças criadoras” , fator máximo de auto-afirmação da personalidade. Colocá-la para realizar jogos, quebra-cabeças, tocar, cantar, dançar, discursar, dramatizações, etc. Procurar não dizer : “mamãe vai chorar, vai morrer se você fizer tal coisa”. Essa atitude, denominada disciplina externa, vulgarmente conhecida por chantagem afetiva, gera temor, insegurança, angústia, fraqueza, hostilidade contra os pais, desejos de vingança, não adaptação psico-afetiva, temor de castigo, heteronomia. A criança não chega à auto-afirmação; não consegue lutar pelos próprios direitos. A disciplina interna, ou consciência moral, baseia-se no estímulo encorajador, meio educativo eficaz, despertando o desejo de aperfeiçoamento, de realização. A repreensão acontece de maneira suave, porém clara, despertando-lhe a consciência do bem-agir, da coerência, conforme a moral vigente. Devemos mostrar que confiamos na criança, dizendo-lhe : “você está, a cada dia, melhor”; que o erro poderá ocorrer, mas que ela, cada vez mais esclarecida, saberá como evitá-lo. A repreensão, quando inevitável, no caso da relutante insistência da criança em transgredir a determinados padrões comportamentais, deve recair sobre a mesma, como conseqüência lógica da falta cometida e não como vingança do adulto. Não chantagear nunca. Amá-la, sempre. Contrariá-la, porém, quando necessário, 183 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 diante daquilo que ela quer, mas não deve assistir, aproveitando para transmitir-lhe noções de certo e errado; bem e mal ; moral e imoral ; mentira e verdade; bonito e feio; bom e mau, explicando-lhe porque tal programa não é “nem gozado, nem interessante, nem educativo...” Estimule-a ensinando a selecionar o que lhe convém assistir, porque confia no bom gosto e na inteligência dela. Ela aprenderá - inicialmente com a sua ajuda - e acabará por escolher o que lhe for mais apropriado, embora a construção da personalidade se inicie antes mesmo da criança ter consciência de sua existência. Certos programas fixam, infelizmente, um padrão de conduta a nossas crianças. Como exemplo, colocamos o conhecido problema dos “monstros de bolso” (pocket monster), os famosos “Pokémons”. Hoje, são esses “os novos heróis das fantasias infantis que ajudam as meninas a conviver com a realidade de que o ‘outro’ é sempre meio monstruoso, e com uma vantagem extra : ao contrário dos príncipes encantados, eles evoluem”9 . São, porém, violentos e com poderes sobrenaturais, como voar. Podem ser cassados. Ao invés dos príncipes encantados, ‘demodés’ e caretas, os novos heróis hipertônicos, que preenchem os modelos atuais, são conhecidos pelos nomes de Pikachu, Mew e Dragonite; os Pokémons. São 250 “personagens” que poderão ser transformados e trocados a cada momento. Incutem, além da violência em ação permanente nas suas mensagens , a instabilidade das trocas (que incutirá, a posteriori, o famoso “ficar” ou “estar”), o hábito de aceitar o horrendo, o monstruoso, as noções errôneas sobre conceitos e valores, o que deixa as crianças nervosas e inseguras. As imagens violentas e velozes exercem sérios prejuízos na mente infantil. A criança é estimulada a imitar personagens virtuais e a ter facilidade de transformar-se em persuasiva e violenta. “Os adultos não estão preparados para que seus inocentes filhos sejam precocemente inescrupulosos”10 . A criança desestrutura-se, portanto, por não poder competir com a ficção criada. No México, foi realizada uma queima pública coletiva de todas as revistas em quadrinhos, contendo pokémons. O Pregador 11 que incentivou o ocorrido dizia: “é necessária uma queima de todos os pokémons visto que estes desenhos animados e as análogas revistas em quadrinhos atentam contra a unidade da família e a consciência das crianças”. Segundo ele, “os pokémons usam mensagens subliminares que têm como objetivo fundamental propagar o mal em lugar do bem”. Lembrou ainda que, “segundo estudos realizados no Japão, cerca de 700 184 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. crianças registraram sintomas similares aos de epilepsia como conseqüência da grande velocidade com que são projetadas as imagens nesses desenhos animados”. Mesmo alertando sobre o perigo das mensagens subliminares, encontradas em profusão nos desenhos infantis, quando relacionamos seu resultado à reinversão do “efeito placebo” 12 , não poderemos adotar, jamais, uma postura radical contra todos os programas que a mídia televisiva apresenta, lembrando, ainda, que uma boa parcela deles tem parte atuante nas salas de aula e que inúmeros, embora criticados em alguns aspectos, servem, e muito, para levantar questões, fomentar reflexões, incitar a triagens. Segundo Maria Thereza F. Rocco (Faculdade de Educação da USP), “o importante é analisar o que faz as pessoas assistirem, entender por que vêem. Só assim será possível - em casa ou na escola - avaliar o que é bom e ruim e, o mais importante, se dá para entender os objetivos subliminares de cada atração”13 . O mais importante elemento no desenvolvimento da personalidade infantojuvenil, é saber contrariar a criança e o adolescente, dizendo não na hora certa. A personalidade se constrói com frustração e renúncia. E’ impossível educar sem limitar. Os jovens só se alimentam com o princípio do prazer, da identidade com o grupo. Ou estão em grupos na escola, ou com a turma, em sociedade ; e, em casa, a solidão diante da televisão (no quarto) e do computador. Tornam-se narcisistas, solitários. Não existem encontros e os jovens necessitam da busca da alteridade (eu e o outro). Eles perdem a capacidade de se projetar no outro, do intercâmbio, do oferecer e receber, nas relações. Assim sendo, os pais devem saber bem distribuir as atividades diárias, para que haja equilíbrio, evitando exageros. A adolescência, esse período psicossociológico, é a fase da ‘moratória social’ (Erikson, 1968), isto é, dos 12 e 13 anos aos 20, aproximadamente, em compasso de espera. E’ bem verdade que, para a maioria dos jovens (57 %), essa fase transcorre de modo natural. Para alguns, tirar a carteira de motorista servirá para se exibirem ou levarem seus amigos a um passeio; para outros, servirá para aceder a um posto de trabalho, onde ela é um requisito necessário. É preciso lembrar que, a partir dos 11 anos, aproximadamente, a criança acostumada com um professor responsável pela classe, passa a enfrentar as tran185 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 sições inerentes ao sistema escolar estabelecido, que lhe determina ”dever-aceitar conviver” com um número considerável de professores, correspondendo às disciplinas exigidas. Essas transformações, aparentemente normais, desestabilizam a criança que não foi preparada para enfrentá-las e aceitá-las como ocorrências normais. Assim, todas as tensões as tensões e ansiedades que não foram bem resolvidas devem ser canalizadas para atividades que envolvaem o coletivo em maior proporção : jogos, esportes em geral, canto coral, grupos instrumentais (bandas) com marcha, exercícios de coordenação motora, dramatizações, leituras de textos, enfim, ocupando o jovem de tal modo na queima dos excessos de energia, que não lhe sobre tempo para desperdiçar com inutilidades ou maquinações desnecessárias. Quando essas tensões permanecem sem resolução, o jovem se rebela, ora buscando ¨a turma¨ , por vezes perigosa, ora apelando para a agressividade. O jovem que perdeu seus limites passa à agressão, em primeira instância; posteriormente, à violência. A influência que o professor certamente exerce sobre a classe e o seu carisma devem ser bem aproveitados, e enormemente explorada sua apaixonante experiência pedagógico-didática. São elementos - chave necessários para trabalhar com crianças e jovens, na abordagem inicial dos valores morais, axiologizando-os após, em conformidade com a necessidade e capacidade de apreensão de cada grupo . Na era da interdisciplinaridade, professores compõem debates entre classes sobre temas de interesse imediato dos adolescentes. São avaliadas as tendências e as carências, assim como os excessos, os acúmulos e as saturações. Dessa forma é dado um passo à diante, no sentido de poder motivá-los, a posteriori, à aprendizagem das disciplinas em si, incluindo, no momento oportuno, a compreensão e a aceitação dos conceitos morais, sociais, cívicos, tão deturpados pela mídia, falhos e conflitantes em suas cabeças, gerenciando os destinos dessa juventude que representará o nosso país. Os adolescentes querem um lugar no espaço ; não querem as aulas, mas a convivência na escola, a participação coletiva para se sobressaírem de alguma forma. Embora vítimas dessa violência desencadeada pela rainha da mídia eletrônica, pelo poderio tecnológico que contamina e produz ação imitativa, eles querem dar 186 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. também a sua colaboração. Toda vez que o professor impede o aluno que quer aparecer, este acabará, com o decorrer do tempo, partindo para as agressões e, mais tarde, para a delinqüência. Hoje, inverte-se a posição dos acontecimentos. Ao invés de chamar a atenção do aluno o tempo todo, ou de colocá-lo fora de classe, permita-lhe dar um aparte no curso que está sendo dado ; deixe-o cooperar com a aula fazendo parte ativa dela. Que ele vá à lousa colocar uma questão pertinente ao que estava sendo ministrado para que a classe toda possa debater. Ele vai passar a defender a escola, sentir-se-á útil, aprenderá o suficiente e não atrapalhará mais. Dados complementares sobre a adolescência poderão ser encontrados na produção competente de ilustres pesquisadores14 , como também outros esclarecimentos diferenciados sobre o assunto, extraídos de psicólogos, psiquiatras e pedagogos15 : Dormir na hora certa, alimentar-se corretamente, cumprir com os deveres escolares sem perder tempo com inutilidades televisivas ou contar com uma pessoa capaz de orientar na seleção do entretenimento - em virtude da escolha limitada que se tem concernente à programação televisiva infantil - são necessidades que requerem alguém de confiança para assumir o controle sobre a criança, nessas posições. Saibam escolher, caros pais, ao delegarem funções. Quem ama, educa e não quem ama cuida16 . Que os momentos inesperados (ou fabricados) diante da TV possam ser sempre bem aproveitados para transmitir valores positivos. A criança logo estabelecerá comparações e surpreenderá a todos, com seu senso crítico em plena evolução, escolhendo o que ver ou desligando a TV para dedicar-se a “brinquedos mais interessantes” . 4. EXPECTATIVAS E CONSCIENTIZAÇÃO Que a constatada supremacia da mídia televisiva não permaneça apenas no patamar das produções monumentais e dos profícuos programas culturais oferecidos, mas tenha como principal meta, além da preocupação com a qualidade das mensagens emitidas ao público, em geral, a de dotar as programações infantis com um conselho psico-pedagógico totalmente voltado ao trato com a criança, que observe os medos que nelas são introjetados por cenas fortes, violentas, com cores tétricas, palavreados grosseiros, caretas e gestual aflitivo, gritos e maus exemplos. A 187 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 apresentação da natureza deformada pelo excesso de ficção nada didático, ao invés de servir de entretenimento, desencadeia comportamentos problemáticos, medos e ansiedades, alterando a normalidade emocional das manifestações infantis e causando, a médio e a longo prazo, sérias conseqüências. Investir na criança é apostar num futuro melhor, num país mais justo e seguro, menos violento, mais humano e feliz. Pela conscientização, solidarizamo-nos com o atuante trabalho do “Conselho de Acompanhamento da Mídia da Comissão de Direitos humanos”, site : www.eticanatv.org.br, entre outros de entidades dedicadas à causa. NOTAS E REFERÊNCIAS 4 O Amanhã de Nossos Filhos” – Carta enviada aos membros participantes, em 11/07/1999. D’Ávila, N. A Psicomotricidade na Escola Moderna através da Música. Org. Simões, D. in Caderno Seminal-Faculdade de Formação de Professores-UERJ-v.4, n°1, tomo II. Rio de Janeiro:Ed.Dialogarts, 1997, p.1-19. 5 6 Goleman, D. InteligÍncia Emocional, 25 ed.. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995. Salvador, A. e Capriglione, L. Quando a emoção é inteligência. Revista Veja, S.Paulo: Ed.Abril, 15/janeiro/ 1997, p.66-73. Obs.: O grifo no texto, em itálico, é nosso. 7 Pellegrini, L.Triando o instinto. As faces da agressividade. Rev. Planeta, Ed. Três Ltda (358), ano 30, n°7, Cajamar - S.Paulo: julho/ 2002, p.33. 8 9 Bia Abramo é jornalista e assina uma coluna semanal no site El foco www.elfoco.com.br conforme Revista nica, p.98. 10 Revista TIME-PokÈmon!, Poké Mania - Can such cute critters be bad influences? N.Y.: Latin American: Edition, november, 22, 1999, p.38. 11 Pe. Juan Ramón Hernández, da paróquia do Espírito Santo de Pachuca (centro do México)-Revista Catolicismo - n° 605 –S.Paulo: Editora Padre Belchior de Pontes Ltda., Maio/2001. Ferrés, J. Televis„o Subliminar, Sul Ltda.; trad. Rosa, E., Neves, B.A. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1998, p.35. 12 Revista nova ESCOLA., Da InformaÁ„o ao Conhecimento - O Poder da Imagem. S.Paulo: Editora Abril, Fundação Victor Civita, junho/julho 2002, p.18. 13 Coll,C.,Palacios,J.,Marchesi, A. Desenvolvimento PsicolÛgico e EducaÁ„o - Desenvolvimento da Personalidade na Adolescência. V. I, cap.22 - Original: 14 188 Nícia Ribas D’AVILA Região Sudeste: Hegemonia na mídia televisiva. Espanha 1993. Trad. Alfredo Fierro. Trad. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1995, p.288. Pastore, K., Pais e filhos com hora marcada. Revista Veja, , S.Paulo: editora Abril , 30/07/97, p. 82/89. 15 16 Considerações preciosas colhidas de entrevistas e palestras proferidas pelo renomado Dr. Içami Tiba. 189 Fluxos nacionais e contrafluxos regionais: Anotações sobre a experiência gaúcha National flows and regional counterflows: Remarks on the gaúchos experience Antonio HOHLFELDT Jornalista, Crítico Teatral, Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS - Porto Alegre / RS – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO O texto parte do próprio conceito de regionalização, as características históricas e culturais da região sul-rio-grandense, a chamada região dos gaúchos e depois procura fazer um levantamento exaustivo da produção da cultura em geral, da cultura de massa e da mídia que se tem produzido naquela região, nos campos da imprensa e da literatura, do rádio e da televisão, da fonografia, do cinema e da produção teatral. PALAVRAS-CHAVE: Mídia regional - comunicação de massa - imprensa -omunicação eletrônica - cultura ABSTRACT The text starts from the regional own concept, which includes the historical and cultural characteristics of the Rio Grande do Sul state region, known as the “Gaúchos Region.” It then looks into an exhausting survey of the production of culture in general: the mass culture and the means of communication that have been produced in that region, in the fields of the written media and literature, radio, television, collection of regional music, cinema and theatrical production. KEY WORDS: Regional media - mass communication - press - electronic communication - culture 192 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha P ara que se possa bem avaliar a significação da experiência gaúcha em relação ao fluxo e refluxo da comunicação social e da indústria cultural brasileiras, deve-se começar falando a respeito da região sul-rio-grandense, ou seja, do Rio Grande do Sul. Costuma-se dizer que, à exceção da Bahia e, talvez, do Rio de Janeiro, que possuem identidades próprias e diferenciadas, a tal ponto que suas próprias imagens tornaram-se as imagens mesmas do Brasil, só o Rio Grande do Sul teria uma identidade tão específica e afirmativa, dentre os demais estados e províncias brasileiros. Pode-se evocar, para compreender esse processo, um antigo, mas atual texto do escritor Erico Verissimo, que assim se manifestava a respeito de sua província: Somos uma fronteira. No século XVIII, quando soldados de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste então imenso deserto, tivemos de fazer a nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos de espanholismo? Fomos desde os tempos coloniais até o fim do século um território cronicamente conflagrado. Em setenta e sete anos tivemos doze conflitos armados, contadas as revoluções. Vivíamos permanentemente em pé-de-guerra. Nossas mulheres raramente despiam o luto. Pense nas duras atividades da vida campeira alçar, domar e marcar potros, conduzir tropas, sair da faina diária quebrando a geada nas madrugadas de inverno e você compreenderá por que a virilidade passou a ser a qualidade mais exigida e apreciada do gaúcho. Esse tipo de vida é responsável pelas tendências algo impetuosas que ficaram no inconsciente coletivo desse povo, e explica a nossa rudeza, a nossa às vezes desconcertante franqueza, o nosso hábito de falar alto, como quem grita ordem, dando não raro aos outros a 193 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 impressão de que vivemos num permanente estado de cavalaria. A verdade, porém, é que nenhum dos heróis autênticos do Rio Grande que conheci jamais proseou, jamais se gabou de qualquer ato de bravura seu. Os meus coestaduanos que, depois da vitória da Revolução de 30, se tocaram para o Rio, fantasiados, e amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco - esses não eram gaúchos legítimos, mas paródias de opereta2 . Esse texto, datado, é-nos extremamente útil. Ele não deixa de ratificar alguns mitos: a cultura fronteiriça; a opção voluntária de integrar-se ao Brasil; o tributo de sofrimento pago continuadamente pelos habitantes da província mais meridional do país; o contínuo clima beligerante a que foi condenado o Rio Grande, inclusive pela permanente requisição de tropas e de animais para as múltiplas guerras e revoluçõesque marcaram a história pátria; a dureza dos trabalhos campeiros; a psicologia algo rude do gaúcho; sua humildade. Contudo, ao mesmo tempo, o autor de O tempo e o vento não deixa de criticar certa vaidade e determinada nostalgia que marcariam a cultura sul-rio-grandense nos tempos contemporâneos, tendência a que se oporia o escritor. O conceito de ga­cho Para que melhor se entenda, portanto, o que tem ocorrido com o Rio Grande do Sul, é necessário revisar-se alguma coisa de história, de antropologia e de sociologia. Deve-se, também, lembrar a velha e riquíssima lição de Augusto Meyer, ao final de seu Ga­cho - HistÛria de uma palavra3 : [...] os característicos com que se pretende estereotipar esse fan tasma intemporal desenham quase sempre um perfil demarcado e simplista dessa coisa tão vaga em si mesma. O estudo semântico da palavra gaúcho vem mostrar como é difícil manter, na historiografia rio-grandense, os velhos preconceitos de uma homogeneidade cultural - cultural no sentido sociológico - que nunca existiu. Qualquer tentativa de interpretação de nossa história deverá levar em 194 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha conta, como fator, básico, o critério de aculturação. Aceitar passivamente o prejuízo da homogeneidade social ou política de um grupo rio-grandense, dentro de outro bloco luso-brasileiro, caracterizado e definido por simples idealização do autor, e conforme as suas preferências, é prosseguir no cultivo de uma história em que tudo parece acontecer por obra e graça de uma Divina Providência Gaúcha, que desde o começo decretou as coisas na mesma ordem rígida. O que Meyer está preocupado em mostrar é que a designação ga­cho tornou-se uma indicação coletiva de todos aqueles que chegaram e se fixaram no território sul-rio-grandense. Portanto, trata-se não mais apenas da designação de um segmento de sul-rio-grandenses, mas de todo o seu conjunto. Preocupa-se ele, igualmente, em considerar que, não obstante, não se deva distingui-los tão ostensivamente do restante dos brasileiros. Este texto, relativamente datado, mostra-nos a tentativa de ultrapassar certo preconceito, em construção, sobre a gauchividade, em relação ao que então nascia: o Movimento Tradicionalista Gaúcho, iniciado em 1947, dentre outros, por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, tentativa de se opor, tanto à tendência de dissolução da regionalidade no nacionalismo, vigente desde o Estado Novo de 1937, quanto à nascente presença do multinacionalismo norteamericano, crescente a partir da industrialicação dos anos 30 do século XX, acelerado no pós-II Grande Guerra. Algumas décadas depois, essa perspectiva seria revista, ao menos parcialmente. Se a nação é um produto cultural que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e que se constitui [...] em uma comunidade política imaginada, nesse processo de construção histórica, a relação entre o velho e o novo, o passado e o presente, a tradição e a modernidade é uma cnstante e se reveste de importância fundamental4 . Na verdade, o Brasil experimentara esse processo a partir da segunda década do século XX, com o chamado Modernismo. Mas, ao mesmo tempo, re195 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 conhecera e valorizava a regionalização: o regionalismo, nessa perspectiva, pode ser encarado como um campo de disputas no qual grupos com diferentes posiÁões e interesses se enfrentam5 , perspectiva que se vale do conceito de campo de que se apropria o pesquisador sul-rio-grandense, mostrando que o regionalismo se trata, de qualquer modo, de uma construção simbólica e, como tal, cultural, que se faz sob determinado(s) contexto(s) social(ais) e histórico(s). Oliven salienta que a evocação da tradição - entendida como um conjunto de orientações valorizativas consagradas pelo passado - se manifesta freqüentemente em época de processos de mudança social, tais como a transição de um tipo para outro de sociedade, crises, perda de poder econômico e/ou político, etc. (p. 21). Historicamente, o autor identifica diferentes momentos do surgimento dessa tendência, desde o pós-Grande Revolução de 1835-1845, como espécie de compensação psicológica da derrota sofrida contra o Império; a passagem do século XIX para o XX, quando sofre profundas mudanças com a industrialização nascente, que perdurará até os anos 20 do novo século. Mais tarde, na década de 50, com a chegada da indústria cultural norte-americana, no bojo do pósguerra e, enfim, nas décadas de 70-80, com o ressurgimento do nativismo, forma específica do tradicionalismo, quando se tenta enfrentar a perda de identidade, duplamente motivada pela centralização social e econômica, além de política, implantada pela ditadura de 64 e, ao menos tempo, o forte crescimento da indústria cultural massiva, em especial a criação das grandes redes televisivas, que centralizam toda e qualquer possibilidade de produção, difusão e valorização culturais. Oliven, opondo-se então àquela perspectiva de Meyer, afirma que se trata de uma construÁ„o de identidade que exclui mais que inclui, deixando fora a metade do territÛrio sul-rio-grandense e grande parte de seus grupos sociais (p. 100). Pessoalmente, acho que o processo é contrário a essa observação: a aculturação é abrangente e inclusiva, na medida em que todos os descententes das diferentes etnias que constituem o Rio Grande do Sul assimilam e se assumem enquanto ga­chos, vestindo-se como tal, pilchados, comendo churrasco, bebendo chimarr„o e adotando o vocabul rio - recriado ou n„o - atribuÌdo 196 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha aos ga­chos em sentido estrito. Nilda Jacks, que tem dedicado boa parte de suas pesquisas aos estudos em torno das relações entre a mídia massiva e os produtos culturais regionalizados do Rio Grande do Sul, distingue entre o tradicionalismo e o nativismo. Citando Glaucus Saraiva, mostra que o tradicionalismo é um sistema organizado e planificado de culto, prática e divulgação desse todo que chamamos tradição. Obedece a uma hierarquia própria, possui alto programa contido em sua Carta de princípios, que deve, na medida do possível, realizar e cumprir. Tradição, comparativamente, é o campo das culturas gauchescas [sic]. Tradicionalismo, a técnica de criação, semea-dura, desenvolvimento e proteção de suas riquezas naturais, através de núcleos que se intitulam CTGs6 . Ao contrário, o nativismo È um movimento predominantemente musical, desencadeado pela criaÁ„o de festivais, de cunho nativista, na dÈcada de 1970, que alcanÁou seu auge nos anos 80 (p. 44)7 . Pode-se dizer que, por extensão, nos dias de hoje, e a partir do movimento de produção musical, no entanto, o nativismo expandiu-se para outros campos da produção cultural, inclusive em práticas literárias e de publicidade, bem como na de artes plásticas, atingindo todos os segmentos da economia do Rio Grande do Sul, pois chega até o artesanato - o mais variado possível - com produtos de couro, madeira e tecido, além de objetos produzidos a partir de matérias-primas locais, como ossos de animais - em especial o gado vacum - e vegetais, aproximando-se e misturandose com as práticas tradicionalistas, na medida em que as tecnologias da indústria cultural permitem tais cruzamentos, permitindo aquilo que se tem denominado, popularmente, e não sem uma certa crítica irônica, de ga­cho de fim-desemana, na medida em que, habitantes das grandes cidades, dirigem-se para as sedes dos CGTs, onde integram diferentes piquetes8 tradicionalistas, vestidos dentro das alegadas tradições gaúchas e ali tomam mate, comem churrasco, declamam poemas e ouvem música nativista, quando não participam de bailes, denominados fandangos. Analisemos, portanto, a partir de agora, esta produção cultural e como ela 197 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 se constrói e desenvolve, tanto interna quanto se projeta externamente, para o restante do Brasil. A imprensa e a literatura A imprensa sul-rio-grandense inicia-se objetivamente em 1827, a exemplo da de outras províncias brasileiras, quando a censura imperial é abrandada. Contudo, tem pequeno desenvolvimento, pois no horizonte da mesma encontra-se a chamada Grande Revolução de 1835-1845, que faz com que a imprensa se obrigue a uma definição ideológica em favor ou contra aquele movimento. Também durante aquela década, sucedem-se jornais que apóiam os imperiais e a imprensa revolucionária. É apenas depois de findo o movimento, especialmente a partir de 1850, quando a urbanização e a burocracia estatal começam a se organizar na província que a imprensa propriamente dita se estabelece e desenvolve. Francisco Rüdiger identifica dois diferentes momentos no desenvolvimento da imprensa, que denomina de regimes jornalÌsticos, aquele da imprensa politico-partidária e o da imprensa informativa e marcada pela indústria cultural. Mas, na prática reconhece quatro etapas variadas9 : uma pré-história, que é aquele primeiro momento mencionado, abrangendo o período revolucionário, e marcado pela ideologização dos jornais, indo, portanto, de 1827, com o surgimento do Di rio de Porto Alegre, a 1850, marcado pelos pasquins; um segundo momento em que a imprensa vai-se constituindo gradualmente em empresa comercial, ainda que sob a coordenação de diferentes partidos, com o surgimento de alguns dos jornais mais significativos da província que terão vida média de quatro a cinco décadas, indo de 1850 a 1895. Trata-se de jornais como A Reforma, Jornal do ComÈrcio, Mercantil, A FederaÁ„o e A Ordem, respectivamente. Um terceiro período emerge com o surgimento do Correio do Povo, quando a empresa mercantil afirma-se definitivamente e passa a depender da publicidade que comercia em vista do público a que se dirige; é o que Rüdiger denomina de jornalismo liter rio independente (p. 44). Por fim, a etapa moderna, que surge com a convivência dos jornais e as novas tecnologias da comunicação, como o rádio e a televisão, e que alcança os tempos atuais. Sérgio Costa Franco, valendo-se da evolução dessas mesmas tecnologias, 198 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha prefere uma periodização diversa, que a nós parece mais própria, pois leva em conta tão somente referenciais diretamente ligados à própria comunicação10 . Para Franco, pode-se identificar as seguintes etapas: a) 1827 a 1850, com o jornalismo marcadamente político-partidário; b) 1850 a 1912, assinalada pela transformação qualitativa da imprensa sul-riograndense; c) 1912 a 1954, caracterizada pelo caráter empresarial do empreendimento jornalístico; d) 1954 à atualidade, caracterizada porI) introdução da televisão; II) formação dos complexos de comunicação; III) constante aperfeiçoamento da indústria gráfica e d) crescente penetração dos jornais cariocas e paulistas junto ao mercado sul-rio-grandense. Pessoalmente, diria que, do ponto de vista cultural, no que tange ao século XX, pode-se identificar três diferentes momentos: do início do século à década de 50, quando o jornalismo brasileiro abandona o modelo francês e assume a influência norte-americana, afastando-se do chamado nariz de cera e buscando mais a objetividade jornalística. É quando se criam, também as páginas e os suplementos culturais e literários que terão profunda influência sobre seu público, divulgando e apoiando movimentos literários, de artistas plásticos e musicais. Na década de 70, nova revolução, ainda que de menor porte, quando esses mesmos espaços culturais dão lugar aos cadernos de variedades, que acabarão com os espaços de crítica cultural - tanto literária quanto musical, cinematográfica e de artes plásticas - dando lugar fundamentalmente ao puro noticiário diretamente vinculado à indústria cultural, com especial ênfase à televisão11 . Quanto à literatura, desde a segunda metade do século passado o Rio Grande do Sul viu surgir instituições, como o Partenon Literário (1869) diretamente vinculadas às atividades culturais, em especial as literárias. Daí que criouse e desenvolveu-se uma tradição de criação nas letras locais que é digna de estudo, com escritores pioneiros como o hoje nacionalmente reconhecido João Simões Lopes Neto (que publicou toda a sua obra na década de 10, principalmente em jornais de Pelotas, através de folhetins). Na década de 30, no movimento do romance que marcou o país, a participação sul-rio-grandense foi diferenciada: com as exceções de Cyro Martins, Pedro Wayne e de Aureliano de Figueiredo Pinto, que só foram descobertos na década de 80, a presença sulrio-grandense teve no romance urbano sua grande descoberta, com os textos de 199 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Erico Verissimo e de Dyonélio Machado - o último também só valorizado mais recentemente12 . Nos anos 30, Porto Alegre viu constituir-se uma editora que em breve tornar-se-ia um referencial nacional, traduzindo os mais importantes autores internacionais, criando coleções fundamentais como a Nobel e a Biblioteca dos Séculos, que trouxe ao Brasil, dentre outros, Aldous Huxley, Proust e Balzac, ao mesmo tempo em que tomou especial cuidado com suas traduções, entregues, dentre outros, a Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade e Mário Quintana, constituindo, ao mesmo tempo, iniciativa pioneira de editoração de diferentes dicionários idealizados no âmbito da própria editora, abandonando, assim, a tradição de dicionários traduzidos em nosso país. A Editora Globo, pois é dela que estamos falando, interromperia seus trabalhos na década de 90, quando foi vendida ao grupo Globo, do Rio de Janeiro, mas hoje em dia prossegue sua tarefa, embora sob perspectiva diferenciada e não mais vinculada ao Rio Grande do Sul. A experiência da Globo, contudo, projetaria dois autores gaúchos, justamente Erico Verissimo e Mário Quintana, em todo o território nacional, alcançando suas obras reconhecimento público, sem que jamais eles tenham deixado sua terra natal. A partir da década de 50, foi criado o Instituto Estadual do Livro, que prosseguia o esforço local no sentido de valorizara produção literária regional, que alcançara tambéma criação da Feira do Livro, a completar meio século de existência em 2004. Na década de70, o IEL passou a desenvolver projetos editoriais e de promoção dos escritores junto ao público leitor estudantil, tanto de I quanto de II graus. Na década seguinte, expande-se um movimento de revelação de novos escritores, constituindo-se, dali em diante, sucessivas geraçõs de criadores, revelando-se nomes como os de Moacyr Scliar - recém-empossado na Academia Brasileira de Letras, do mesmo modo que o poeta Carlos Nejar, igualmente na ABL; Caio Fernando Abreu, Lya Luft, Luiz Antonio de Assis Brasil, Luiz FernandoVeríssimo, etc. O IEL coordenou, igualmente, diferentes edições de cadernos monogr ficos a respeito desses mesmos escritores, em apoio a seus projetos. Hoje em dia, o Rio Grande do Sul possui meia dúzia de excelentes editoras, algumas com ampla distribuição nacional, como a L&PM, a Mercado Aberto, a Sulina, a Movimento - responsável por alguns dos melhores escritores sul-rio-grandenses, a Martins Livreiro - dedicada sobretudo a 200 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha tmas tradicionalistas e de história regional - e a Artes e Ofícios, dentre outras. Também as universidades, como a PUCRS, a UFRGS, a ULBRA e a UNISINOS mantém editoras de médio e grande porte, que tanto produzem livros de ficção quanto de ensaios, distribuídos pela rede de editoras universitárias brasileiras, o que garante tambémum forte apoio a este movimento. No Rio Grande do Sul, de modo geral, as edições alcançam cifras de dois mil exemplares, consumidos basicamente no próprio circuito estadual, sobretudo graças àquele movimento de promoção dos escritores junto às escolas, e que persiste, ainda hoje, quase quatro décadas depois. O rádio e a televisão As atividades radiofônicas nasceram no Rio Grande do Sul quase que simultâneamente com o restante do país. Se se considera a data de 7 de setembro de 1922 como o início oficial do rádio brasileiro, com a Rádio Sociedade de Roquete Pinto 13 , deve-se fixarque, em 1924, surgiu a Rádio Sociedade Riograndense, na cidade de Rio Grande, aosul do estado, e, logo no ano seguinte, a Rádio Pelotense, na vizinha cidade de Pelotas, considerada, durante muitos anos, pelos pesquisadores, como a pioneira, de fato, do rádio sul-riograndense14 . Idealizadas na forma de rádio-sociedade, com contribuintes mensais15 , logo daria lugar às emissoras que já contam com os rÈclames para a sua manutenção. Seguem-se, assim, a Rádio Sociedade Gaúcha (1927), a Rádio Difusora Portoalegrense (1934), a Rádio Farroupilha (1935) - que é, efetivamente, a primeira emissora comercial do estado, idealizada deste modo desde seus momentos iniciais - e, mais tarde, num novo ciclo, a Rádio Guaíba, em 1957, e a Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - a primeira emissora universitária do país - a que se segue a Rádio da Universidade Federal de Santa Maria (1968)16 . O Rio Grande do Sul possui, hoje, 344 emissoras, das quais 177 AM e 146 FM, sendo o maior grupo o da RBS - Rede Brasil Sul de Comunicação, que se distribui entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com múltiplos jornais, emissoras de rádio e repetidoras de televisão, num total de 19 emissoras de rádio (4 AM e 15 FM), desde aquele início de 1927, inclusive adquirindo a Rádio Farroupilha, em 198217 . QUanto às emiossoras universitárias, destaca-se, como programação inovadora, a Rádio ULBRA, 107.1 FM, criada em 22 de julho de 1988, com música pop-rock, enquanto a Rádio da 201 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 UFRGS, criada em 18 de novebro de 1957, irradia ao longo de 24 horas, ininterruptamente, programação de música erudita, programas variados e excelente rádio-jornalismo18 . O primeiro jogo de futebol transmitido por uma emissora de rádio ocorreu no dia 19 de novembro de 1931, entre o Grêmio Football Portoalegrense e a SDeleção do Paraná, por Ernani Ruschel, pela Rádio Gaúcha. E a primeira transmissão internacional ocorreu em maio de 1949, desde o Estádio Centenário, de Montevidéo, também de uma partida de futebol. Só em 1954 e 1956, respectivamente, surgiriam as cabines de transmissão para os locutores que os microfones de campo, com o que se ampliaria a cobertura desportiva19 . O Rio Grande do Sul possui cerca de 14% das emissoras derádio do país,e cerca de 90% de sua população possui aparelhos de rádioem suas residências20 Alguns episódios em torno da história do rádio sul-rio-grandense podem ilustrar o modo pelo qual as emissoras gaúchas vão-se afirmando firmemente no cenário brasileiro. A Rádio Guaíba, por exemplo, é a primeira e única emissora a transmitir, ao vivo, desde a Suécia, a Copa Mundial de Futebol de 195821 . O feito seria repetido nos anos subseqüentes. A emissora, fundada pela empresa de Caldas Júnior, proprietário dos jornais Correio do Povo e Folha da Tarde, no final do século XIX, afirmar-se-ia pela qualidade de som, de programação, pela preocupação com o esporte e, mais tarde, com o rádiojornalismo, de sorte que, ainda hoje, dois slogans marcam a emissora: “Guaíba, a rádio de todas as copas” e “Guaíba, a rádio que não perde eleições”22 . Foi esta mesma emissora que, a partir dos anos 60, introduziu o moderno radiojornalismo com coberturas internacionais, a cargo do repórter Flávio Alcaraz Gomes, ainda hoje em ação, além de grandes reportagens com dramatizações de acontecimentos históricos do passado ou coberturas de fatos contemporâneos, com enorme repercussão de público, dando à emissora prêmios nacionais e internacionais, a partir do programa “Agora”, de 197523 . Aliás, o rádio sul-rio-grandense aproximou-se muito cedo do radiojornalismo, porque, se é verdade que o “Repórter Esso” nasceu em 1941, na Rádio Nacional, no mesmo ano ele estreava também no Rio Grande do Sul, através da Rádio Farroupilha, que o retransmitia, depois de gravado e, no ano seguinte, a partir de 16 de julho, criava sua edição própria24 . Aliás, conta-se que em 1941, quando da grande enchente de maio, os locutores da Rádio Farroupilha, ao longo da madrugada, começaram a receber estranhos e preocupantes informes de muita chuva nas cabeceiras 202 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha dos rios que formam o grande Lago Guaíba. Assim, a direção da emissora decidiu irradiar ao longo de toda a madrugada, permitindo, deste modo, que o rádio alertasse os portoalegrenses que, na manhã seguinte, acordariam com sua cidade invadida pelas águas e, ao longo de pouco maisde um mês (10 de abril a 12 de maio), acompanhariam o desenrolar dos acontecimentos pela emissora, depois homenageada oficialmente pelo papel significativo de defesa civil que então desempenhou25 . O mesmo ocorreria com a formação da denominada “Cadeia da Legalidade”, episódio produzido a partir da renúncia do Presidente Jânio Quadros e a tentativa de impedir que seu vice-presidente, João Goulart, que se encontrava na China, assumisse o governo (25 de agosto de 1961)26 . Leonel Brizola, cunhado de Jango e governador do Rio Grande do Sul, ocupou os estúdios da Rádio Guaíba, transferiu as transmissões para os porões do Palácio Piratini, sede do Governo estadual, e dali formou a cadeia de rádioemissoras que, primeiro em nível regional, e depois nacional, resistiu à tentativa de golpe e conseguiu garantir a posse de Jango, em 1962. O “Correspondente Renner”, hoje “Correspondente Aplub”, da Rádui Guaiba, é o noticioso que introduziu pioneiramente inovações como o jingle e o spot em suas edições no rádio sul-rio-grandense. Foi também a Rádio Guaíba que inaugurou, para suas transmissões internacionais de jogos da copa do mundo, as tecnologias do sistema single side band (1962) e a transmissão off tube, em 1966. Anos antes, em 1954, a Rádio Farroupilha havia pago pesado tributo por sua militância político-partidária. Integrada à Rede dos Associados de Assis Chateaubriand, desenvolvia pesada oposição ao governo de Getúlio Vargas. Quando Vargas suicidou-se, a multidão, enfurecida, depredou e queimou a sede da emissora, em Porto Alegre27 . No entanto, em 1958, a mesma emissora enviaria o jornalista Glênio Peres junto ao chamado Batalhão de Suez, pracinhas brasileiros, especialmente gaúchos, que integrariam as tropas da ONU no Egito, quando de uma das tantas repetidas guerras entre Israel e os árabes28 . O rádio gaúcho, desde muito, preocupou-se com a segmentação. Assim, a Rádio Difusora apresentava o programa “Clube Lacta”, patrocinado pelos chocolates do mesmo nome, e apresentado por Carlos Alberto de Carvalho, no Cinema Cacique, nos domingos pela manhã. Programa de auditório, dirigido aos jovens, promovia concursos sobre conhecimentos gerais, cujos prêmios eram 203 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 barras de chocolate do patrocinador. Era a mesma rádio Difusora que, em 1935, por iniciativa de Nilo e Ernani Ruschel, seus locutores, havia conseguido contratar com exclusividade Carmen Miranda, de passagem pelo sul do estado, para gravar um programa para eles, que alcançou estrondoso sucesso29 A Rádio Guaíba, por seu lado, a partir de 1956, apresentava diariamente, em torno das 18 horas, o programa “Teatrinho cacique”, produzido e apresentado por Sérgio Jockymann, que contava histórias para crianças. Ali foram radiofonizados, dentre outros, O m gico de Oz e as aventuras de diferentes personagens de histórias em quadrinhos, então com grande sucesso no país, graças à EBAL - Editora Brasil-América, do Rio de Janeiro30 . Maria Elvira Bonavita Federico distingue três grandes fases na história do rádio brasileiro: a) de 1922 a 1934, a experimentação; b) de 1935 a 1955, a consolidação; c) de 1955 a 1965, a mudança estrutural31 . Luiz Artur Ferraretto desdobra essas fases básicas e acrescenta-lhe outros momentos: a)1919 a 1932, implantação; b)1932 a 1940, estruturação; c)1940 a 1955, o apogeu do espetáculo; d)1955 a 1970, a decadência; e)1970 a 1983, reestruturação; f)1983 até hoje, a segmentação32 . Esta divisão, mais detalhada, parece-me que dá melhor conta do que, de fato, ocorreu na história do rádio em nosso país, especialmente com o surgimento da grande programação, na década de 50. É o caso, por exemplo, da programação musical e das primeiras influências que, a partir do rádio, o Rio Grande do Sul, vai produzir para o restante do país. A Rádio Farroupilha aostaria em programas musicais de auditório, tantono campoda música popular, em geral,uandoda música nativista. Neste sentido, foi a emissora que, a partir de um programa chamado “O Clube do Guri”, dirigido e apresentado por Ari Rêgo, ainda hoje vivo, revelou o talento de Elis Regina que, depois, a Rádio Gaúcha contrataria profissionalmente como sua principal krooner, como se dizia então33 . Foi na Rádio Farroupilha que surgiram Max Nunes, hoje ainda roteirista de programas humorísticos na televisão, e, no campo do humorismo, a dupla Pinguinho e Walter Broda, ambos já falecidos, que faziam programas de crítica política, no horário do almoço, espaço depois ocupado por Carlos Nobre que, mais tarde, iria trabalhar m jornal34 . A Rádio Farroupilha teria, no anode 1955, um grande momento em sua história. É que, naquele ano, estreava o “Grande Rodeio Coringa”, alusão ao patrocinador, a São Paulo Alpargatas, que produziu roupas de brim, na época ditas de brim coringa, 204 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha marca adotada.O “Grande Rodeio” era apresentado aos domingos, a partir das 20 horas, por Darci Fagundes - já falecido - e Luiz Menezes. Desde 1942, a emissora apostava no sucesso da música regional, lançando e divulgando, nacionalmente, compositores e intérpretes como Pedro Raimundo, com músicas como “Adeus, Mariana” e “Saudade de Laguna”. Mas foi a partir de 1955, com aquele programa, que começava a se solidificar a música campeira regional, com a revelação de conjuntos musicias como “Os Gaudérios” e “Conjunto Farroupilha”, este último, adotado pela VARIG para a sua promoção internacional. Depois, surgiriam as figuras de Teixeirinha e Pedro Mendes e, com a consolidação dos festivais de música regionalista, ampliava-se este panorama, que hoje movimenta somas fantásticas e mobiliza centenas de milhares de profissionais. No década de 70, uma outra emissora, enfrentando a forte censura governamental, inovou sua programação, com uma linguagem jovem, entre o irônico, o lúdico e o poético: trata-se da Rádio Continental, que revelou, dentre outros, os talentos de Carlinhos Hartlieb, e lançou formalmente o rock sul-rio-grandense, abrindo novo campo para a música sul-rio-grandense não tradicionalista, que já ganhara adeptos graças aos chamados “Arquisambas”, festivais de música popular que Osmar Meletti, da Rádio Guaíba, ajudava a produzir na Faculdade de Arquitetura da UFRGS. A história do rádio sul-rio-grandense tem tido continuidade na adaptação permanente aos novos tempos, tendências e tecnologias. Em 1984, por exemplo, Maurício Sirotski, proprietário da RBS, criou a FEPLAM - Fundação Educacional Padre Landell de Moura, uma emissora pública, que, sob a direção de Erica Kramer, tornou-se referencial no preparo de profissionais para a profissão. A partir de 1980, ao mesmo tempo, a RBS inovou com a segmentação, buscando criar emissoras com programação dirigida aos jovens. Surgia a Rede Atlântica, que hoje realiza promoção anual, nas praias sul-rio-grandenses, no período de verão, denominado “Planeta Atlântida”, que traz os maiores nomes do rock brasileiro e internacional35 . A RBS, ao mesmo tempo, desenvolveu o campo da informática, colocou sua emissora na internet e hoje produz um dos programas de maior audiência na madrugada, denominado “Gaúcha na madrugada”, apresentado por Jayme Copstein, que atinge todo o país e também parte do exterior. Trata-se de um programa interativo, em que os ouvintes podem telefonar e em que os convidados dialogam com o apresentador e com os ouvintes, ao longo de toda a madrugada36 . A Gaúcha, ainda, ampliando o público da Rádio Liberdade FM, que se especializou na música regionalista, criou a 205 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Rádio Rural, também em FM, que tem uma programação também vinculada ao tradicionalismo mas com um maior cuidado quanto à qualidade do que apresenta. Um último aspecto significativo do rádio gaúcho é a crescente presença de programas em dialetos que são falados ou foram revalorizados no Rio Grande do Sul, em especial o vÍneto e o unsr¸ck. Trata-sede uma tendência surgida a partir de 1974/1975, ata do chamado sesquicentenário e centenário das imigrações alemã e italiana no estado.Uma série de livros passaram a ser editados, e logo as emissoras de rádio de municípios com forte presença de descendentes dos imigrantes passaram a a realizar programas nos respectivos dialetos, com noticiário e música, da ópera às melodias folclóricas das respectivas regiões. Hoje em dia, um dos de maior sucesso é aquele apresentado pela Rádio Atlântida FM, de Caxias do Sul, o cartunista Radicci, chamado “Demo via let’s go”, evidente brincadeira que, no entanto, tem uma audiência cativa constante. A televisão em busca da regionalização Foi a 20 de setembro, segundo uns, ou a 18 do mesmo mês, segundo outros, do ano de 1950, que a PRF3, Canal 3, de São Paulo, entrou no ar. Tratava-se de uma empresa ligada à cadeia dos Associados, de Assis Chateaubriand, e constituiu-se no primeiro canal de televisão brasileira a emitir seu sinal em nosso país37 . Começava, assim, a grande odisséia que fazia com que o Brasil fosse dos cinco primeiros países do mundo a possuir televisão e o primeiro da América Latina38 . A televisão brasileira iniciou marcada pelo jornalismo, ou melhor, o telejornalismo, com a estréia, em 1952, do “Repórter Esso” na Tv Tupi, Canal 6, do Rio de Janeiro, que iniciara suas transmissões em janeiro de 1951. Em São Paulo, o mesmo “Repórter Esso” estrearia em 17 de junho de 1953, durando até 31 de dezembro de 1964, além do “Ultranotícias”, que seria editado até dezembro de 1970, e que alcançou o maior índice de audiência do IBOPE durante suas emissões39 . Mais tarde, a partir de 1969, seria a vez do “Jornal Nacional”, da Tv Globo, a primeira a gerar um noticiário ao vivo, em tempo real, e que começaria já cobrindo 12 estados brasileiros40 . Sérgio Mattos, em estudo recente, sugere que a história da televisão brasileira 206 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha pode ser desdobrada em seis diferentes fases: a) elitista - 1950 a 1964; b) populista - de 1964 a 1975; c) de desenvolvimento tecnológico - de 1975 a 1985; d) de transição e de expansão internacional - de 1985 a 1990; e) de globalização e de tv paga - de 1990 a 2000; f) de convergência e qualidade digital - de 2000 em diante41 . Se se admite esta periodização, como se faz aqui, pode-se dizer que foi durante os três primeiros períodos que a televisão sul-rio-grandense surgiu, expandiu-se e encerrou seu ciclo de busca de identidade regional, em luta contra os futuros monopólios nacionais. E foi uma tecnologia, especialmente, o videotape, que derrotou nossas emissoras regionais que, não obstante, buscaram guardar, ao menos em suas denominações, alguma identidade com o Rio Grande do Sul. Observe-se: Tv Piratini (ligada aos Associados que já possuíam a Rádio Farroupilha); Tv Gaúcha (mais tarde ligada à RBS e à Tv Globo); a TV Pampa, vinculada à Rede Pampa de Comunicação, e assim por diante42 . A Tv Piratini tinha como símbolo um curumin, um simpático indiozinho, com umas anteninhas a lhe saírem da cabeça. A figura sorridente marcou a emissora desde dezembro de 1959, quando ela estreou, às 17 horas, com anúncio proferido pelo locutor Ênio Rockembach. Também surgiram as primeiras telenovelas, a partir da experiência de Sua vida me pertence,de Walter Foster, veiculada através do “Grande Teatro Tupi” e, mais tarde (1964), o grande sucesso de “O direito de nascer”, produção da Tv Tupi do Rio de Janeiro, eem co-produção com a Tv Tupi de São Paulo, mas veiculada pela TV Globo, que já então começava a buscar a segmentação do público para firmar-se enquanto emissora nova dentro do contexto televisivo nacional43 . Coube à TV Piratini realizar a primeira telenovela do Rio Grande do Sul, Pedra Redonda, 39, com roteiro do argentino Victor de Martim, filmada no bairro da Pedra Redonda, e daí o nome da novela. Tinha direção de Tarcísio Meira, que veio ao sul especialmente para isso (Glória Menezes, que a estreava, esposa de Tarcísio, era gaúcha, de Pelotas). Foram feitos 30 capítulos, em 1965, para serem exibidos na TV Excelsior de São Paulo, mas a apresentação foi de tal forma um desastre, que apenas 10 capítulos foram levados ao ar e a telenovela foi cancelada. Pode-se rastrear, com facilidade, as grandes conquistas alcançadas historicamente pela televisão brasileira: no dia 21 de abril de 1960, pela Tv Tupi de São 207 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Paulo, utilizou-se pela primeira vez o videotape, o que determinaria uma nova etapa na história de nossa televisão. No ano de 1966, estourava o escândalo envolvendo o grupo norte-americanoTime/Life e a tv Globo; a partir de 1966, para transmitir a copa mundial de futebol desde a Inglaterra, nossas emissoras promoveram o primeiro pool televisivo; no mesmo ano, por iniciativa do Governo Federal, institucionalizou-se a televisão educativa; Irmãos Coragem, telenovela transmitida pela Tv Globo para toda a América Latina, depois de gravada em vídeo, foi a obra que realmente iniciou a teledramaturgia brasileira; a partir de 1967, aprova-se o padrão de televisão colorida - o PAL-M - e a partir de 1972 veicula-se a primeira telenovela inteiramente colorida produzida entre nós, com excelente qualidade, O Bem-amado, de Dias Gomes. A partir de 1970 formam-se as grandes redes televisivas. No Rio Grande do Sul, desde a primeira emissora aqui iniciada, perseguirse-á a regionalização da programação, embora com resultados escassos e até frustrantes, se considerarmos a situação de hoje em dia, em que não ultrapassamos 20% da programação total com programas produzidos localmente. Suzana Kilpp, em excelente ensaio a respeito da televisão sul-rio-grandense, reconhece que é difícil conceituar com precisão o que seja nacional. Maior dificuldade ainda para determinar o local e o regional, mas é sob tal perspectiva que ela intenta recuperar a memória da televisão do Rio Grande do Sul44 . Do ponto de vista das datas de referência, pode-se assim indicar a evolução da televisão gaúcha: a pioneira foi a Tv Piratini, criada em 20 de dezembro de 1959 e vendida pelos Associados, a que pertencia, em 198045 , com a programação da TV Tupi de São Paulo sendo apresentada ao público sul-rio-grandense. A SBT herdaria a Tv Piratini, a partir de 1980. A 4 de dezembro de 1962, foi a vez de a Tv Gaúcha começar a transmitir. Ela retransmitia a programação da Tv Excelsior, de São Paulo, até 1971, quando filiou-se à Tv Globo. A partir do ano seguinte, constituiu a RBS - Rede Brasil Sul de Comunicações. A terceira emissora ainiciar atividades a partir de Porto Alegre foi a Tv Difusora, aberta em 10 de outubro de 1969, logo depois entregue aos padres capuchinhos, transmitindo programação da Tv Record, até 1983, quando, depois de uma fracassada experiência de filiar-se à R.E.I. - Rede de Emissoras Independentes, terminou por vincular-se à Tv Bandeirantes. A Tv Difusora divulgava um curioso programa, “O show do gordo”, animado 208 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha por Ivan Castro, que vinha do rádio, e que promovia casamentos pela televisão! A penúltima rede comercial a iniciair atividades locais foi a Tv Guaíba, em 10 de março de 1978, e que permanece até hoje. Embora todas elas tenham apostado na programação local, nenhuma conseguiu sobreviver sob tais condições, sobretudo depois da invenção e da adoção do vídeotape em nosso país. Todas elas nasceram e foram batizadas com denominações bem regionais: Piratini, em referência à República do século XIX; Gaúcha, como referência à própria região; Pampa, lembrança da característica geográfica da região; Guaíba, referência ao lago e a uma antiga cidade ao lado de Porto Alegre, etc. No entanto, a necessidade de sobreviver obrigou a todas a, gradualmente, cederem espaços da programação local, vincularem-se a uma rede ou venderem espaços próprios, que arrendam, a terceiros, como o faz a Pampa, a própria Bandeirantes local e a Guaíba, ainda hoje em dia, para programas religiosos, sobretudo, de diferentes seitas; shows gauchescos ou programas de variedades, em especial talk shows que têm um público fiel no Rio Grande do Sul. A TV Pampa foi, na verdade, a derradeira emissora a constituir-se.O grupo de José Otávio Gadret, a Rede Pampa de Comunicação, terminou por ceder sua programação à Tv Manchete, em 1983 e, mais tarde, à Tv Record, depois de uma série de crises que quase fecharam suas portas, obrigando-a, muitas vezes, a sobreviver exclusivamente de programação em vídeo, rodando clips gauchescos, para não deixar de veicular seu sinal e não perder seus direitos. Na verdade, a primeira tentativas de instalar aqui uma emissora de televisão nasceu com Arnaldo Balvé, o idealizador da Rede Gaúcha de Emissoras de rádio, em 1951. Em 1957, ele juntou-se a Maurício Sirotsky para ampliar a rede e desenvolver os projetos em torno da Rádio Gaúcha, constituindo a rede de Emissoras Reunidas, germe da futura RBS e da própria Tv Gaúcha, canal 12. Ela era caracterizada por uma dupla de sorridentes bonequinhos, em desenho, idealizada pelo próprio Maurício Sirotski, como sua logotipia. A Tv Gaúcha sempre insistiu na questão da regionalização, mantendo ainda hoje um slogan que reflete tal aspiração, “a imagem viva do Rio Grande”, pois refere uma alianÁa com o Rio Grande, que alternou, mais tarde, com “RBS TV, aqui o Rio Grande se vê”. Desde 1979 formou a Rede regional. Em 1982, passou a apresentar o programa “Galpão crioulo”, com Antonio Augusto Fagundes, que se mantém ainda no ar hoje em dia. Chegou a contratar Clóvis Duarte como apresentador do programa 209 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 “Comunicação”, ao lado do futuro senador José Fogaça. A televisão mantém programação local de destaque, com os programas noticiosos como o “Jornal do almoço”, ao meio dia; a Rede Regional de Notícias, montada a partir de suas afiliadas no interior do estado, e o “Galpão crioulo”, programa regionalista de auditório, apresentado alternadamente em cidades do interior, todos os domingos pela manhã. Além do mais, investiu na criação de um canal comunitário pela televisão por a, a Tv COM, a partir de 199546 . Maurício Sirotski chegou a se tornar um dos diretores da TV Excelsior do Rio de Janeiro, quando a Tv Gaúcha retransmitia aquela programação, por volta de 1967 a 1968, logo, porém, distanciando-se da empresa, retornando ao sul e inclusive recomprando as ações de sua própria empresa que se encontravam em mãos da Excelsior. Posteriormente, a partir de 1976, a Tv Gaúcha aliar-se-ia à Tv Globo, depois de formar, a partir de 1974, sua própria rede regional, com a RBS de Porto Alegre, a RBS de Caxias do Sul, a RBS do Alto Uruguai, a de Erechim, de Tuiuti, de Imembuí e de Uruguaiana, que iniciaram suas transmissões dia 1 de abril e a última dia 2 daquele ano47 . Episódio significativo na vida da emissora ocorreu em 7 de julho de 1964, quando a loja Esquina Modas lançou, em suas vitrinas, uma modelo com ochamado monoquini, maiô que tinha apenas duas alças a tapar os seios. A emissora cobriu o fato, levando-o ao ar no jornal da noite mas, a pedido do Cardeal Dom Vicente Scherer, o então Secretário de Justiça do estado, Paulo Brossard, suspendeu a emissora por 24 horas, entre os dias 24 e 25 de julho. A Tv Difusora, dos padres capuchinhos, teve uma liderança inconteste, pela qualidade tecnológica, poisadquiriu equipamento de última geração. Foi a primeira a gerir imagens a cores em unidade móvel, transmitindo a Festa da Uva de 1972, e chegou, mesmo, com a euforia da liderança, a adquirir a própria TV Rio, em 1969, desistindo da empreitada dois anos depois48 . Seu logotipo era um leãozinho com o slogan “Obrigado, Rio Grande”. Sua campanha foi antecipada pela chamada “O 10 que o Rio Grande espera”, referindo-se ao fato de ocupar o canal 10 do indicador. Em 1970 integrou-se à R.E.I., e continuou buscando garantir programação local. Produziu alguns dos programas mais premiados da televisão do sul, como o de entrevistas “Portovisão”, em torno de 1978, e o noticioso “Câmera 10”, que recebeu premiações entre 1969 e 1973. Ela resistiu, contudo, até 1976, quando entregou sua programação à Bandeirantes49 . Por outro lado, o programa “Prá começo de conversa” lançou o paresentador Tatata Pimentel, 210 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha mais Eduardo Peninha Bueno, Glênio Reis, Roberto Gigante e revelou Clóvis Duarte, que depois iria transferir-se para a Gaúcha e, mais tarde, para a Guaíba. A Tv Piratini nasceu com base regional. Parte de seu pessoal foi treinado em São Paulo, na Tv Tupi, mas o restante do pessoal foi improvisando e aprendendo em seus prórpios estúdios e a partir de suas próprias experiências. A marca inconfundíovel da TV Piratini era a chamda de final de programação, em torno das 23 horas, quando havia uma publicidade dos Cobertores Parahyba. Um desenho animado, acompanhado da canção “Já é hora de dormir,/ não espere mamãe chamar./ Um bom sono prá você/ e um alegre despertar” ainda hoje provoca nostalgia naqueles telespectadores pioneiros. Foi o videotape, como já se disse, o golpe de misericórdia na tentativa das emissoras sul-rio-grandenses em manterem programação local e guardarem sua independência em relação às redes localizadas no centro do país. As emissoras sul-rio-grandenses tinham bom público, mesmo depois de todo o processo liderado pelos militares após 1969, conforme documenta amplamente Sérgio Caparelli50 , dando início ao processo de formaçãodas grandes redes. Mas o surgimento do vídeo, a partir de 1962, para a transmissão da copa de futebol do Chile, permitindo a mobilidade e garantindo a qualidade da produção, terminou por empurrar as emissoras locais para a perda da regionalização. Já em 1968, o”Jornal nacional”, da Tv Globo, começava a ser apresentado em tempo real em cadeia nacional 51 . Pode-se aceitar, assim, como o afirma Suzana Kilpp, que em 1983 encerrava-se o ciclo da tentativa de regionalização da televisão no Rio Grande do Sul. Hoje em dia, apenas algum acontecimento mais significativo, gerando imagens a partir das retransmissoras da Tv Gaúcha ou mesmo da cabeça-de-rede, chegam até as emissoras do centro do país. Excepcionalmente, algum clip de qualquer compositor sul-rio-grandense que esteja alcançando sucesso no eixo Rio-São Paulo, ou alguma produção da Tv Educativa, Canal 7, emisora pública pertencente ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, e que faz rede com a Tv Cultura de São Paulo. Quem tem salvo por vezes a situação é a TV Universitária, canal fechado, que faz um pool entre diferentes instituições universitárias para a geração de sua programação, centralizada nos estúdios de televisão sediados na Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. O nascimento e o sucesso da televisão por seu lado, contudo, gerou pelo 211 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 menos duas revistas especializadas, a TV Sul, que circulou a partir de 1963, e a revista Intervalo, com boa qualidade de impressão e material jornalístico. A Revista do Globo, fundada em 1929, chegou a dedicar espaços significativos à televisão em suas páginas, até o seu final, em 196752 . A TV Sul tinha o formato de livro de bolso, com 36 páginas e foi a única revista efetivamente produzida no sul. Com tiragem de 20 mil exemplares, foi lançada em agosto de 1963, com distribuição gratuita inicial, para promoção. Chegou a gerar fãs clubes e ter distribuição até mesmo em Santa Catarina, durando cercade quatro anos. A televisão também interferiu sobre as agências de publicidade: a Livraria do Globo, que tinha sua própria agência, a Clarim, buscou adaptar-se aos novos tempos. Mas quem melhor se organizou para veicular mensagens específicas para a televisão foi a MPM Propaganda, a mais poderosa agência publicitária do sul, durante pelo menos quinze anos, além da Mercur, ligada à RBS. Surgiram outras agências de publicidade que se especializaram, rapidamente, na produção publicitária para o novo veículo, como a Letra 3, a Êxitus, a Símbolo, a Norton, a Escala e a Standart53 . Além dessas, havia a Star Publicidade, a McCan Erickson - com seus escritórios regionais - e uma empresa especializada em publicidade para rádios e televisões do interior, a Rádio Publicidade, surgida em 1950, fazendo representação das emissoras do interior na capital gaúcha54 . A MPM, aliás, tornar-se-ia tão importante que foi ela quem fez a primeira grande campanha política da história do país, aquela sobre o plebiscito a respeito do Presidencialismo/Parlamentarismo em torno de João Goulart, em 1962, que o governo ganharia, conforme desejava a própria empresa. A fonografia gaúcha São escassos os dados a respeito da produção fonográfica do Rio Grande do Sul. Pode-se lembrar que o estado, ao revelar Elis Regina para o país, participou diretamente, desse modo, do nascimento da chamada música popular brasileira da década de 60, pois a Pimentinha, como era chamada, foi uma das principais atrações daquele movimento, apresentando e interpretando suas canções num programa televisivo de enorme sucesso na época, “O fino da bossa”, na TV Excelsior de São Paulo, que repercutia os festivais que ocorriam anualmente. Na verdade, o surgimento do LP - long playing, no início dos anos 70, am212 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha pliou significativamente o mercado fonográfico brasileiro, mas os compositores e intérpretes nacionais enfrentavam a forte concorrência nacional. A entrada das emissoras de rádio FM, ao longo da década de 70 também vai ampliar o mercado fonográfico, não só pelo consumo que fazem dos discos e depois dos CDs, quanto por ampliarem a divulgação das obras55 . A interação da indústria cultural, por outro lado, no decorrer daquela década, aproximando a televisão, o rádio, a publicidade, o cinema, permitia a promoção de shows que lançavam ou repercutiam os novos lançamentos discográficos ou até novos intérpretes. O sucesso das trilhas sonoras de telenovelas, iniciada pela Tv Globo, na década de 80, abriu outro nicho de mercado importante. O surgimento do CD - compact disc - foi outra reviravolta importante na produção discográfica, a partir de 1983. Em 1989, o Brasil já era o segundo maior consumidor de discos no mundo, e a baixa gradual do preço do CD fez com que, gradualmente, este suporte fosse substituindo o disco, propriamente dito: em 1987 o preço de um CD correspondia ao preço de 5 LPs, mas em 1991 um CD já custava apenas o dobro de um LP, e em 1993 os CDs vendem tanto quanto os LPs, que terminam perdendo espaço e praticamente desapareceram do mercado fonográfico. Além de Elis Regina, o Rio Grande do Sul teve poucos espaços de promover e afirmar seus intérpretes e compositores. Dependia, até o surgimento do CD, de estúdios de gravação e prensagem do LP em São Paulo. O CD facilitou a gravação de discos. De qualquer modo, contudo, tivemos a forte presença, através da etiqueta alternativa Marcus Pereira, ainda na década de 70, de quatro discos com a música do sul. A série, num total de 2o discos, dedicava-se a um mapeamento musical de cada região brasileira. O sul, além das músicas mais tradicionais do folclore, a partir de Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, revivia os conjuntos já antes mencionados, Conjunto Farroupilha e Os Gaudérios, mas revelava Os Tapes, conjunto oriundo da cidade do mesmo nome, e que teve enorme circulação em todo o país. Hoje em dia, aqueles discos da Marcus Pereira que, com a morte de seu idealizador, fechou suas portas - em parte hoje substituída pela Kuarup - estão reeditados em CDs. Mais recentemente, alcançaram repercussão Kleiton e Kledir, com uma música que faz a simbiose entre o tradicional e o urbano, inclusive com uma série de composições paródicas aos causos gauchescos; Borghetinho ressuscitou o 213 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 acordeon e a gaita, com imensa repercussão em todo o país, e, enfim, Adriana Calcanhoto lançou-se em SãoPaulo e tem recebido permanentes prêmios, sendo uma das compositoras e intérpretes de maior venda fonográfica em todo o país, compondo atualmente para trilhas sonoras e balés os mais variados. O cinema dos pampas As primeiras exibições cinematográficas, no Rio Grande do Sul, ocorreram em Porto Alegre, um ano depois de inventado e apresentado o cinematógrafo. Existem documentos, através de anúncios de jornais da capital gaúcha, mostrando que, nos dias 5 e 8 de novembro de 1896, Francisco de Paola e Dewison, na Rua dos Andradas, 319, e Georges Renauleau, na mesma rua dos Andradas, 230, apresentaram respectivamente, sessões com filmes como O bosque de Bologne ou o conhecido A chegada de um trem de passageiros, no primeiro caso, ou O carroção e Exercícios de equitação por militares, no segundo caso56 . Por volta de 1908, havia um verdadeiro boom de abertura de salas para a projeção cinematográfica, e é justamente da década de 10 que se tem registro do primeiro filme produzido nas terras do sul. O pioneiro do cinema gaúcho costuma ser indicado como Eduardo Abelim que, nos anos 20, produziu inúmeros longa-metragens na cidade de Pelotas. Redescoberto elo pesquisador Antonio Jesus Pfeil, Abelim assinou Crime no banhado, a que se seguiram Em defesa da irmã (Pampa Film, 1926), Castigo do orgulho (7 de novembro de 1927) e Pecado da vaidade (1931) e Um drama nos pampas (1932), seu último trabalho. Nascido em Cachoeira do Sul, em 29 de janeiro de 1900, ele faleceu em 13 de setembro de 1984, tendose transferido para o Rio de Janeiro em 1932. Redescoberto, Abelim auxiliou muito na recuperação da memória do cinema sul-rio-grandense, sendo homenageado no VI Festival do Cinema de Gramado, em 1978. Sobre ele, além do mais, o diretor Lauro Escorel Filho realizou o longa-metragem Sonho sem fim, que foi apresentado no XIII Festival do Cinema de Gramado. Abelim fundou, dentre outras, além da Pampa Film, a Itá Film e a Gaúcha Film, empresas através das quais ralizava seus filmes. Mas ele foi um caso isolado57 . Num outro surto cinematográfico no sul, surgiram filmes como Caminhos do sul (1949), baseado no romance do mesmo nome de Ivan Pedro de 214 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha Martins58 . O fotógrafo gaúcho Salomão Scliar, que respondera pela fotografia daquele filme, dirigiu em seguida Vento norte (1951), rodado na cidade litorânea do norte do estado, Torres59 . Este foi o primeiro filme de longa-metragem sonoro, da Horizonte Filmes, lançado no dia 30 de junho daquele ano, no cinema Imperial. Foi também um momento em que se ampliava o trabalho de uma produtora de atualidades, a Leopoldis Som, responsável igualmente por alguns dos longas-metragens regionais que, nas décadas de 50 a 70, marcaram o cinema sul-rio-grandense. Embora considerados pejorativamente pela crítica cinematográfica, eles garantiram a manutenção da cinematografia do sul. Eram assinados, em boa parte, por um diretor teatral, Pereira Dias. Utilizavam figuras da música regionalista, como Teixeirinha e Pedro Mendes, e abusavam da comédia escrachada nos moldes da Vera Cruz e da Atlântida, com enorme sucesso no público das classes C e D60 . Devem-se lembrar, aqui, Motorista sem limites, Coração de luto (1967), Ela tornou-se freira, Pobre João, Teixeirinha a 7 provas, A quadrilha da perna dura, Meu pobre coração de luto (refilmagem de Coração de luto, agora em cores), encerrando-se o ciclo, provavelmente, com A filha de Yemanjá61 . Mas esses filmes, produzidos em boa parte pela LeopoldisSom, tinham também a participação da Zaniratti Filmes, de Geraldo Zaniratti, um distribuidor que teve papel fundamental, a partir de 1953, como distribuidor e defensor dos filmes em 16 milímetros. Venho de um tempo, aliás, onde, no bairro da zona norte de Porto Alegre, onde morava, uma vez a cada quinze dias chegava uma camioneta com um projetor de cinema. A sessão era realizada sob o patrocínio do IAPI - um dos antigos institutos de aposentadoria do país - projetando-se o filme sobre a parede de um dos prédios da Vila do IAPI, o primeiro conjunto habitacional planejado que o país conheceu, inaugurado em 1955. Durante muitos anos assisti aos filmes de Oscarito, Grande Othelo e muitos outros, nessas sessões, até começar a freqüentar as matinées com os filmes seriados, ainda em 16 milímetros, sempre projetados pela Zaniratti. Geraldo, que foi adquirindo filmes, formou um precioso acervo, que chegou a alugar para a TV Piratini, a TV Gaúcha e até a TV Guaíba,quando da implantação dessas emissoras de televisão. Depois, ele enfrentou muitos problemas após o golpe de 1964, porque sabidamente era ligado ao ex-governador Leonel Brizola. Chegou a ter filmes confiscados. Geraldo Zaniratti participou ainda da criação da primeira e única indústria de projetores cinematográficos e outros equipamentos audiovisuais, a IEC - Indústria 215 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 de Equipamentos Cinematográficos, na década de 50, empresa que existe ainda hoje. Por fim, Zaniratti, acompanhando a evolução dos tempos, fechou a distribuidora dos filmes em 1998, após 43 anos de trabalho, mas seu filho herdou o negócio e mantém ainda hoje a loja aberta, vendendo e alugando equipamentos cinematográficos e audio-visuais os mais variados. Geraldo Zaniratti projetava sessões de cinema e filmava jornais de atualidade populares, em bairros da cidade de Porto Alegre, em Nonoai, Vila Nova, Sarandi, Vila do Iapi, Teresópolis, e certamente formou gerações inteiras de jovens que jamais haviam assistido a um filme cinematográfico em sua vida62 . Além da Zaniratti Filmes, que produziu e distribuiu filmes, e da LeopoldisSom, que produziu filmes de atualidades e longas metragens, tivemos outras produtoras como a Animatographia Filmes Ltda., que atuou entre 1947 e 195163 . Também pequenas outras produtoras atuaram, com menor significação, no mercado de atualidades cinematográficas no sul, e cujas imagens, em parte, hoje, encontram-se nos acervos da Tv Gaúcha que os tem usado em programas dedicados a recordar o passado para seus telespectadores. A década de 70 vai inaugurar a tendência urbana da cinematografia sulrio-grandense, a partirdo filme Domingo de grenal, de Pereira Dias64 , e, ao mesmo tempo, a experimentação com a bitola do super-8, revelando toda uma nova geração de realizadores que ainda hoje se encontram atuando na produção de filmes de longa-metragem, depois de terem experimentado também o curta e o média-metragens. Neste sentido, houve uma conjunção de acontecimentos porque, lado a lado com a exploração desta bitola, mais barata e de acessibilidade, surgia ainda o Festival do Cinema de Gramado, idealizado a partir de 1971, por Romeu Dutra, então Secretário de Turismo da cidade serrana de Gramado. Quando o Clube de Cinema de Porto Alegre, fundado em 1948, dentre outros pelo jornalista e crítico cinematográfico Paulo Fontoura Gastal, resolveu comemorar seus 20 anos de existência, idealizou uma primeira mostra de cinema brasileiro, realizada em Porto Alegre, no antigo Parque de Exposições da Secretaria de Estado da Agricultura, no bairro Menino Deus. A mostra foi levada para Gramado, durante o verão, e seu sucesso fez com que se imaginasse um festival cinematográfico naquela cidade. Em 1973, iniciava-se, assim, o I Festival do Cinema de Gramado, vencido por Toda a nudez será castigada, de Arnaldo Jabor. O prêmio maior do festival, a 216 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha estatueta em madeira, denominada kikito, criação de uma pioneira dos móveis de Gramado, Elisabeth Rosenfeld, seria, dali em diante, distribuído, sucessivamente, a Vai trabalhar, vagabundo (1974), O amuleto de Ogum (1975), O predileto (1976), e assim por diante65 . O Festival de Gramado, que contou nos primeiros anos com o apoio dos veículos ligados à Empresa Jornalística Caldas Jr., teve também o apoio da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, que chegou a instituir premiação para os filmes realizados por gaúchos. Assim, o festival apresentava filmes de longa e curta metragem em 35 milímetros; filmes de média ou curta metragem em 16 e 35 milímetros; filmes de média ou curta metragem gaúchos em 16 ou 35 milímetros; super 8 brasileiros e, a partir de 1985, a Mostra Latino-americana, que logo também evoluiria. A partir de 1988, o Festival de Cinema de Gramado passaria a ocorrer no inverno, e não mais no verão, primeiro no mês de julho e, logo depois, em agosto, como tem ocorrido até hoje66 . Gramado tornara-se o centro de lançamento dos novos filmes brasileiros e, ao mesmo tempo, promovia os realizadores do Rio Grande do Sul, projetando-os nacionalmente. Além disso, revalorizou os curta e média-metragens bem como o gênero do documentário, para o qual apresentava premiação específica. Surgiram e se afirmaram, assim nomes de realizadores como Antonio Carlos Textor (Um homem na cidade - 1965; A cidade e o tempo, 1971), Sérgio Silva (Não tem sentido, 1969) e mais tarde o longa-metragem Anahy de las misiones (1997), Alpheu Ney Godinho (O marginal, 1960), a que se somariam David Quintans - um português que se radicou no Rio Grande do Sul - Antonio de Oliveira e Rubens Bender, formando o que se poderia denominar de primeira geraÁ„o moderna de realizadores, na esteira do Foto-cine clube Gaúcho, que realizava pesquisas em fotografia já há muitos anos. A segunda geraÁ„o nasceu da bitola de super-8, constituída por Nelson Nadotti (Meu primo e Deu prá ti, anos 70 - 1981), Carlos Gerbase (Bicho-homem, Inverno e mais recentemente Intolerância), Tuio Becker (Contos neuróticos), Giba Assis Brasil (Verdes anos), Roberto Henkin (A palavra cão não morde), Werner Schünemann (Coisa na roda e Me beija), Henrique de Freitas Lima (Tempo sem glória), Sérgio Amon (Aqueles dois), e muitos mais, como Jorge Furtado, José Pedro Goulart, Otto Guerra (especializado em animação cinematográfica, inclusive em longa-metragem), 217 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ou Beto Souza (Netto vende sua alma).Schünemann, Furtado e Goulart, hoje, repartem seu tempo entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre, atuando em todo o país, inclusive na televisão. Schünemann, especialmente, teve maior destaque, nos últimos meses, depois da série A casa das 7 mulheres, depois de já ter vivido BentoGonçalves em Netto perde sua alma. A tudo isso, soma-se o Curso de Especialização em Cinema, que a Faculdade de Comunicação Social da PUCRS vem realizando em nível de extensão e que, justamente neste mês de outubro de 2003, acaba de ser transformado em Curso de Graduação formal, pela universidade, devendo realizar vestibulares a partir de dezembro vindouro para turmas a partir do próximo ano. O cinema gaúcho tem encontrado boa divulgação, por exemplo, em iniciativas como a “Muestra de cine ga­cho contemporáneo”, realizada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em Montevidéo, entre 4 e 7 de dezembro de 199667 . Ou nos espaços que tem recebido dos cinemas de Porto Alegre que apresentam curtas sul-rio-grandenses e brasileiros como complementos das sessões cinematográficas comerciais normais. Por fim, a TV Gaúcha tem apresentado, junto com a TV Educativa, sessões com esses mesmos filmes e, mais recentemente, criou séries televisivas, como os Contos de inverno, no sentido de permitir a produção de filmes de média metragem em vídeo, adaptados para a televisão, e que são, depois, exportados para outras emissoras da rede da Tv Globo. O teatro no Rio Grande do Sul Lothar Hessel tem um excelente levantamento a respeito da atividade teatral no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX e boa parte do século XX68 . No caso de Porto Alegre, antes mesmo da construÁ„o da Casa da ComÈdia, em 1794, j se desenvolviam atividades cÙmicas, adverte ele (p. 9). Havia, contudo, várias construções dedicadas às artes cênicas naquele distante final de século XVIII. Do Rio Grande do Sul saiu, em última análise, o pai do drama brasileiro romântico, Araújo Porto Alegre e orevolucionário Qorpo Santo69 . Desde 1858 Porto Alegre contava com o grandioso Theatro São Pedro, inteiramente recuperado e modernizado em torno de 1974 e plenamente ativo hoje em dia70 . O Partenon Literário, primeiro movimento literário e cultural da província, na década de 70 do século XIX, valorizava a dramaturgia. Surgiram, assim, nomes 218 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha como Joaquim Alves Torres, autor de inúmeros dramas que se passam já no ambiente urbano burguês de Porto Alegre71 , ou as comédias deliciosas de um pelotense, João Simões Lopes Neto, ainda hoje representáveis, à semelhança de Martins Pena72 Também um sem-número de grêmios dramáticos multiplicaram-se nas primeiras décadas do século XX, até a criação, em 1957, do Centro de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mais tarde transformado em Departamento, e que formou geração de jovens intérpretes, contando, para tanto, com a presença do diretor Ruggero Jacobi que, tendo vindo da Itália para a aventurados estúdios cinematográficos da Vera Cruz, junto com Adolfo Celi, preferiu permanecer no Brasil ao invés de retornar ao país de origem, quando a expriência terminou. Do mesmo modo, diferentes grupos, de amadores, sobretudo, formaram-se em Porto Alegre, tendo destaque, dentre outros, o Grupo dos 16 (da década de 20, tendo completado 24 anos em 1948!) , vinculado a uma paróquia da Igreja Católica, que atuou pelo menos até o final da década de 60. Outros grupos importantes foram o Teatro do Estudante, na década de 50, assim como o Teatro de Equipe73 , da mesma época, que tinha inclusive sua própria sede e de onde surgiu, dentre outros, o ator Paulo César Peréio, o Teatro de Arena que, na década de 60, seguindo o modelo de São Paulo, sob a direção de Jairo de Andrade começou a atuar na cidade, realizando espetáculos de linha militante, culminando no projeto que teve opatrocínio do Instituto Cultural Brasileiro Alemão (Goehte Institut), que foi .... Durante os anos 60 e 70, multiplicaram-se grupos, liderados, dentre outros, por diretores como Luis Arthur Nunes, hoje no Rio de Janeiro, ou Irene Brietscke. Também vinculado a uma paróquia,o Teatro Novo, de Ronald Radde, nos anos 70, trouxe uma dramaturgia calcada em modelo europeu, mas que transformou o grupo no único conjunto profissional que ainda hoje está em atuação na cidade, e cujos textos, publicados na conhecida Revista da SBAT, ainda recebem montagens nacionais. 219 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Na verdade, o Rio Grande do Sul sempre produziu talentos para o teatro brasileiro, diretores e intérpretes que, no entanto, não permaneceram no estado na medida em que não tinham como aqui sobreviver. Lembremo-nos, dentre outros, de Maria della Costa, Antonio Abujamra, Lutero Luiz, Amilton Fernandez, Ítala Nandi, Paulo José, José Lewgoy, Walmor Chagas, Carmen Silva, Fernando Peixoto, Luis Carlos Maciel, Elisabeth Hartmann, Lineu Dias, etc.74 Décadas antes, nos anos 20, no Rio de Janeiro, o gaúcho Álvaro Moreyra já criara seu Teatro de Brinquedo, introduzindo, praticamente, o modernismo na cena brasileira, ainda que só em 1943 a nova estética se fixasse, com a encenação de Ziembinski para Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. O Rio Grande do Sul, aliás, continua experimentando movimentos diversificados, em lugares mais distantes da capital, como é a tradicional cidade de Pelotas, onde o dramaturgo e diretor Valter Sobreiro Júnior mantém seu grupo que é o Teatro Escola da Escola Técnica Federal de Pelotas75 . O que ocorre, em todos esses casos, que terminam com o desaparecimento dos grupos ou a migração de seus melhores talentos é que, não contando com a televisão para apoiá-los, devido à escassa produção local de programas, é impossível os intérpretes aqui permanecerem. Só recentemente, as empresas de publicidade começaram a descobrir e a se valer dos atores e atrizes gaúchas para suas produções, mas por vezes enfrentam a necessidade de treinar aos atores para atuar em televisão, o que é muito diferente de fazer uma cena no palco de um teatro. Em síntese, o que se pode dizer é que o Rio Grande do Sul tem mantido, ao longo de sua história, uma atividade cultural constante. Mantendo-se informado e dialogando com uma perspectiva internacional - por suas correntes de colonização e imigração - e nacional, nem por isso deixou de criar seus próprios caminhos e tem contribuído, significativamente, com o movimento cultural nacional. Pode-s afirmar, sem medo de errar, que o Rio Grande do Sul mantém uma relação constante de integração, sem perder, contudo, sua própria identidade, de modo que, ao mesmo tempo em que busca resguardar-se de influências externas, também as assimila, assim como, ainda que sobrevivendo com autonomia, tem contribuído para a história cultural do país. 220 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha NOTAS E REFERÊNCIAS Comunicação apresentada ao VIII Colóquio Internacional de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, Cátedra UNESCO de Comunicação Regional, Faculdade de Comunicação Multimídia - Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista; COMINC - Núcleo de Pesquisa de Comunicação Internacional Comparada; Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo - PósGraduação em Comunicação da UNIMAR - Universidade de Marília, Marília, São Paulo, 27 a 29 de outubro de 2003. 2VERISSIMO,Erico. Um romancista apresenta sua terra in Rio Grande do Sul. Terra e Povo. Porto Alegre: Globo. 1969, p. 3-4. 3 MEYER, Augusto. Ga­cho - HistÛria de uma palavra in Prosa dos Pagos (19411959), Rio de Janeiro: Livraria São José. 1960. 4OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo - A diversidade cultural no Brasilnação. Petropólis: Vozes. 1992, p.15. 5 OLIVEN, Ruben George. Op. cit., p. 19. 6JACKS, Nilda. MÌdia nativa -Indústria cultural e cultura regional. Porto Alegre: EDUFRGS. 1998, p. 43. 7 Nilda Jacks indica que papel importante foi desempenhado pelo Jornal TchÍ, criado exclusivamente para debater as questões culturais levantadas peloMovimento Nativista, as quais se contrapunham ao Tradicionalismo, e para dar cobertura aos festivais que j eram bastante numerosos. In JACKS, Nilda. AudiÍncia nativa: Cultura regional em tempos de globalização, captado na internet, www.ilea.ufgrs.br, em 29.8.2002, p. 1. 8 Denominação de pequenos grupos de tradicionalistas que não chegam a constituir propriamente um Centro de Tradições Gaúchas. Por vezes, a reunião de vários piquetes termina por gerar um CTG.. 9 RÚDIGER, Francisco. TendÍncias do jornalismo. Porto Alegre: EDUFRGS. 1993, p. 8. 10 FRANCO, Sérgio Costa. A imprensa portoalegrense in Porto & VÌrgula, Porto 1 221 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Alegre,ano V, vol. 31, maio de 1977, ps. 30 a 32. 11 Ver, a respeito, HOHLFELDT, Antonio. Jornalismo cultural: Uma perspectiva. In Revista Continente Sul/Sur,Porto Alegre, IEL, n. 2, novembro de 1966, ps. 57 a 64. 12 Consultar, especialmente, HOHLFELDT, Antonio. Literatura e vida social, Porto Alegre: EDUFRGS. 1996. 13 NEUBERGER, Lotário (Org.). Radiodifus„o no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CIPEL.1997, p. 20; FERRARETTO, Luiz Artur. No r dio -O veÌculo, a histÛria e a tÈcnica. Porto Alegre: Sagra-Luzatto. 2000, p. 96; SAMPAIO, Walter. Jornalismo audiovisual - R dio, TV e cinema, Petrópolis: Vozes. 1971, p. 19. 14 NEUBERGER, Lotário. Op.cit.,p. 21. 15 THOMÉ, Luís Touguinha. Na onda do progresso - o papel do rádio no desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AGERT. 2001, p. 107. 16 NEUBERGER, Lotário. Op. cit., páginas 21, 22, 35, 82. 17 BAPTISTA, Maria Luiza Cardinale et MARTINS, Deise Josiane. O r dio no Rio Grande do Sul in BIANCO, Nélia R. del et MOREIRA, Sônia Virgínia (Org.). R dio no Brasil - TendÍncias e perspectivas, Rio de Janeiro/Brasília: EDUERJ/ UNB. 1999, p. 166-172. 18 BAPTISTA, Maria Luiza Cardinale et MARTINS, Deise Josiane. Op. cit., p. 180. 19 MARTINS, Carlos Henrique da. O desenvolvimento do r dio esportivo em Porto Alegre, São Leopoldo: UNISINOS. 1991, mimeo. 20 PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO DA UFRGS. Cultura e educaÁ„o - O papel da R dio da UFRGS - Uma pesquisa de audiência e de opinião. Porto Alegre: EDUFRGS. 1981. 21 DILLENBURG, Sérgio Roberto. Os anos dourados do r dio em Porto Alegre, Porto Alegre: CORAG. 1990, p. 77. 22 NEUBERGER, Lotário. Op.cit., p.38; MOREIRA, Sônia Virgínia. O r dio no Brasil, Rio de Janeiro: Mil Palavras. 2000, p. 172. 23 THOMÉ, Luís Touguinha. Op. cit., p. 68. 222 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. HistÛria da comunicaÁ„o - R dio e TV no Brasil, Petrópolis: Vozes. 1982, p. 76; FERRARETTO, Luiz Artur. Op. cit., p. 127; MOREIRA, Sônia Virgínia. Op. cit., p. 32; DILLENBURG, Sérgio Roberto. Op. cit., p. 11. 25 THOMÉ, Luis Touguinha. Op. cit., p. 24 e ss. 26 FERRARETTO, Luiz Artur. Op. cit., p.144 e ss. 27 DILLENBURG, Sérgio Roberto. Op.cit., p. 101. 28 DILLENBURG, Sérgio. Op. cit., p. 145. 29 DURVAL, Adriana Ruschel. Nilo Ruschel: Pioneiro do r dio ga­cho in HAUSSEN, Dóris Fagundes et CUNHA, Mágda (Org.). R dio brasileiro Episódios e personagens. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2003, p. 202. 30 DILLENBURG, Sérgio. Op. cit., p. 110. 31 FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Op. cit., p. 32 e ss. 32 FERRARETTO, LuizArtur. Op. cit., p. 93e ss. 33 DILLENBURG, Sérgio Roberto. Op. cit., p. 156 e 169. 34 DILLENBURG, Sérgio Roberto. Op. cit., p.123. 35 SCHIRMER, Lauro. RBS - Da voz-do-poste ‡ multimÌdia. Porto Alegre: L&PM., 2002, páginas 142, 34, 119/ 120. 36 SCHIRMER, Lauro. Op. cit., ps. 186-187. 37 SAMPAIO, Walter. Op. cit., p. 23 e FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Op. cit., p. 81. 38 FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Op. cit., p. 81. 39 SAMPAIO, Walter. Op. cit. p.25 e FEDERICO, Maria Elvira Bonavita - Op. cit., p.81. 40 SAMPAIO,Walter. Op.cit., p. 26. 41 MATTOS, Sérgio. HistÛria da televis„o brasileira. Petrópolis:Vozes. 2002, p. 79. 42 FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Op. cit., p. 84. 43 FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Idem, ibidem, p, 86. 44 KILPP, Suzana. Apontamentos para uma histÛria da televis„o no Rio Grande 24 223 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 do Sul, São Leopoldo, UNISINOS. 2001, ps. 39/40. 45 KILPP, Suzana. Op. cit., ps. 19, 28, 34, 37 e 38, de onde se retiraram todas as demais informações aqui transcritas. 46 KILPP, Suzana. Op. cit. ps. 29, 43, 53 e 56/7. 47 MATTOS, Sérgio. Op. cit., ps. 188/189. 48 KILPP, Suzana. Op. cit., ps. 35, 36 49 KILPP, Suzana. Idem, ibidem, ps. 49, 50, 51, 52 e 54. 50 CAPARELLI, Sérgio. ComunicaÁ„o de massa sem massa. São Paulo: Cortez. 1980 e Televis„o e capitalismo no Brasil. Porto Alegre: L&PM., 1982. 51 KILPP, Suzana. Op. cit., ps. 31, 47 e 49, em especial a nota 35. 52 KILPP, Suzana. Op. cit., p. 81. 53 KILPP, Suzana. Idem, ibidem, ps. 73, 84, 85, 102-103 e 108. 54 DILLENBURGO, Sérgio. Op. cit., ps. 112-113. 55 Boa parte dos dados históricos aqui levantados sobre o mercado brasileiro fonográfico foram retirados de DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz - Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: FAPESP/Boitempo. 2000. 56 STEYER, Fábio Augusto. O cinema em Porto Alegre (1896 - 1920). Porto Alegre: edição do autor. 1999. 57 PFEIL, Antonio Jesus. Os caminhos que levaram Eduardo Abelin a Um sonho sem fim. Canoas: Secretaria Municipal de Educação e Cultura. 1994 et PFEIL, Antonio Jesus. MemÛrias do cinema ga­cho, Canoas: Câmara deVereadores, s.d. Mimeo. 58 Minha dissrtação de mestrado em Letras (PUCRS, 1993) aborda a obra desse escritor. Ver: HOHLFELDT, Antonio. Trilogia da campanha - Ivan Pedro de Martins e o Rio Grande invisÌvel, Porto Alegre: IL/EDIPUCRS. 1998. 59 BECKER, Tuio. Cinema ga­cho - Uma breve história. Porto Alegre: Movimento. 1986. 60 Sobre os filmes de Teixeirinha, ver ROSSINI, Miriam de Souza. Teixeirinha e o cinema ga­cho. Porto Alegre, edição da autora. 1996. 224 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha ZANIRATTI, José Augusto. Geraldo Zaniratti - memÛrias projetadas na tela de um livro. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000, p. 124 e ss. 62 Sobre a Zaniratti filmes, consultar ZANIRATTI, José Augusto. Op. cit., ps. 8 e ss.. 63 PFEIL, Antonio Jesus. Op. cit. 64 BECKER, Tuio. Op. cit.,p.12/13. 65 CARRION, Luiz Carlos. Festival do Cinema Brasileiro de Gramado Levantamento dos seus primeiros 14 anos. Porto Alegre: Tchê, 1987, p. 13 e ss. 66 25 anos de cinema, suplemento especial encartado em Zero Hora. Porto Alegre, 3.8.1997. 67 Folder relativo ao evento publicado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. 68 HESSEL, Lothar. O teatro no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 1999. 69 Ver, a respeito, FERREIRA, Athos Damasceno. Palco, sal„o e picadeiro. Porto Alegre: Globo, 1956. 70 O TEATRO SÃO PEDRO NA VIDA CULTURAL DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre: Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação e Cultura do Estadodo Rio Grande do Sul, 1975. 71 TORRES, Joaquim Alves. Teatro social. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1989. 72 HEEMANN, Cláudio (Org.). O teatro de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1990. 73 Leia-se, a respeito, ALMEIDA, Mario de et GUIMARAENS, Rafael. Trem de volta - Teatro de Equipe. Porto Alegre: Libretos/Prefeitura Municipal de Porto Alegre. 2003. 74 Excelente material de consulta são os volumes escritos por PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaÁos. São Paulo: Hucitec. 1980 e, sobretudo, PEIXOTO, Fernando. Um teatro fora do eixo. São Paulo: Hucitec, 1993, este especialmente dedicado ao teatro de Porto Alegre. 75 SOBREIRO JUNIOR, Valter. Maragato. Pelotas: UFPEL, 1995 e Em nome de Francisco. Porto Alegre: Tchê, 1987. 61 225 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Sôbre história e cultura regional BARBOSA LESSA, Luíz Carlos. Nativismo - Um fenÙmeno social ga­cho. Porto Alegre: L&PM, 1985. HOHLFELDT, Antonio. O ga­cho -Ficção e realidade. Rio de Janeiro: INL/ Antares,. 1982. ______. Literatura e vida social. Porto Alegre: EDUFRGS, 1996. ______. Deus escreve dirito por linhas tortas - O romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. JACKS, Nilda. MÌdia nativa - Indústria cultural e cultura regional. Porto Alegre: EDUFRGS, 1998. ______. QuerÍncia - Cultura regional como mediação simbólica. Porto Alegre: EDUFRGS,1999. MEYER, Augusto. Ga­cho, histÛria de uma palavra. Porto Alegre: IEL, 1957. MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, EST. 1982. OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo - A diversidade cultural no Brasilnação. Petrópolis: Vozes, 1992. REVERBEL, Carlos. O ga­cho - Aspectos de sua formação no Rio Grande e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM, 1986. ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. _____. Roteiro de uma literatura singular. Porto Alegre: EDUFRGS, 1992. 226 Antonio HOHLFELDT Fluxos nacionais e contrafluxos regionais:Anotações sobre a experiência gaúcha Sobre indústria cultural CAPARELLI, Sérgio - Televis„o e capitalismo no Brasil. Porto Alegre: L&PM., 1982. ______. Ditaduras e ind­strias culturais no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Porto Alegre: EDUFRGS, 1989. ______. ComunicaÁ„o de Massa sem massa. São Paulo: Cortez,1984. Sôbre imprensa ANDRÉ, Alberto. 50 anos de imprensa. Porto Alegre: FEPLAM, 1992. DILLENBURG, Sérgio. Correio do Povo - História e memórias. Passo Fundo: EDUPF, 1997. DILLENBURG, Sérgio. A imprensa em Porto Alegre de 1845 a 1870. Porto Alegre: Sulina/ARI, 1987. FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa liter ria de Porto Alegre no sÈc. XIX. 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O papel da Rádio da UFRGS - Uma pesquisa de audiência e de opinião. Porto Alegre: EDUFRGS.1981. SAMPAIO, Walter. Jornalismo audiovisual - Rádio, Tv e cinema. Petrópolis: Vozes,1971. SCHIRMER, Lauro. RBS: Da voz-do-poste ‡ multimÌdia. Porto Alegre: L&PM, 2002. THOMÉ, Luís Touguinha. Na onda do progresso - O papel do rádio no desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AGERT, 2001. Sobre fonografia DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz - Indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: FAPESP/ Boitempo, 2000. Sobre televisão BUCCI, Eugênio (Org.). A Tv aos 50 - Criticando a televisão brasileira no seucinqüentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. CINQÜENTA ANOS DE TV - São Paulo: Abril, Revista Contigo. Setembro de 2000, encarte. ESQUENAZI, Rose. No t­nel do tempo - Uma memória afetiva da Tv brasileira. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993. FEDERICO, Maria Elvira Bonavita - HistÛria da comunicaÁ„o -R dio e tv no Brasil, Petrópolis, Vozes. 1982. KILPP, Suzana. Apontamentos para uma histÛria da televis„o no Rio Grande 229 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 do Sul, São Leopoldo: EDUNISINOS. 2001. MATTOS, Sérgio. HistÛria da televis„o brasileira - Uma vis„o econÙmica, social e polÌtica, Petrópolis: Vozes, 2002. REIS, Sérgio. Making off - HistÛrias bem-humoradas dos primeiros anos do r dio e da Tv, Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. SIMON, Pedro (Relator). R dio & Tv no Brasil - DiagnÛsticos e perspectivas, Brasília, Senado Federal, 1998. Sobre teatro DEPARTAMENTO DE ASSUNTOS CULTURAIS DA SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL. O teatro S„o Pedro na vida cultural do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: DAC/SEC, 1975. FERREIRA, Athos Damasceno. Palco, sal„o e picadeiro em Porto Alegre no sÈculo XIX, Porto Alegre: Globo, 1956. HSSEL, Lothar. O teatro no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS, 1999. PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaÁos. São Paulo: Hucitec,1980. PEIXOTO, Fernando. 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ZANIRATTI, José Augusto. Geraldo Zaniratti - MemÛrias projetadas na tela de um livro. Porto Alegre: Tomo, 2000. 231 Contribuições de Luiz Beltrão para o campo comunicacional global Luiz Beltrão´s contributions to the global communication field Maria Cristina GOBBI Diretora Suplente da Cátedra UNESCO / UMESP de Comunicação, Professora Doutora da Faculdade Editora Nacional e da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP – São Bernardo do Campo / SP – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO O trabalho traça um breve panorama da criação, no Brasil, do Instituto de Ciências da Informação – Icinform -, nos anos de 1960. Sob a batuta inicial do professor Luiz Beltrão o Icinform foi o primeiro centro de estudos brasileiro dedicado à área da comunicação social. Com o propósito de criar formas de integração entre a Universidade e os profissionais da área, o Centro teve por objetivo arrestar temáticas atualizadas que despertassem nos estudiosos o real interesse pela investigação, estimulando a pesquisa e a divulgação científica. Essas ações permitiram a disseminação dos estudos comunicacionais brasileiros para além de nossa região. O professor Beltrão foi o primeiro doutor em comunicação do Brasil e o responsável pela criação da revista Comunicação & Problemas, primeira revista brasileira da área. Um dos principais legados de Luiz Beltrão foi a Folkcomunicação, a primeira teoria comunicacional brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Icinform - Luiz Beltrão - Brasil - Comunicação Folkcomunicação. ABSTRACT The work draws a fast panorama of Icinform - Instituto de Ciências da Informação Science of Information Institute - creation in Brazil, in the sixties. Initially under the leadership of professor Luiz Beltrao, Iciform was the first Brazilian center of studies dedicated to the social communication field. Aiming to create ways to interact universities and communication professionals, this center has discussed actualized themes that made researchers to be really interested in working with as a scientific investigation. That has motivated the research and the scientific divulgation and has permitted the dissemination of the Brazilian communication studies outside our region. Professor Beltrao was the first doctor on communication in Brazil and he was also the creator of the magazine Comunicação & Problemas (Communication and Problems), the first Brazilian one in the field. One of the most important legacies of Luiz Beltrao was the Folkcommunication, the first Brazilian communication theory. KEY WORDS: Icinform - Luiz Beltrão - Brazil - Communication Folkcommunication 234 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global 1 - ICINFORM: UMA EXPERIÊNCIA PIONEIRA NO BRASIL P odemos afirmar que o surgimento do Instituto de Ciências da Informação – Icinform2 -, está diretamente ligado à fundação do curso de Jornalismo, da Universidade Católica de Pernambuco – Unicap - e ao pioneirismo do professor Luiz Beltrão. O Centro foi instalado em 13 de dezembro de 1963, durante a formatura da primeira turma de bacharéis em Jornalismo daquela Universidade. Suas finalidades específicas eram a investigação científica da informação coletiva em jornalismo, publicidade e relações públicas; aperfeiçoamento profissional; difusão de estudos no campo das ciências da informação; estudos voltados para a formulação de uma teoria geral a respeito delas; intercâmbio com instituições congêneres (TARGINO, 2000, p.168). Também o professor Luiz Beltrão tinha no Instituto uma forma de superar as dificuldades do curso de Jornalismo da Unicap. Seria uma tentativa de captação de verbas junto a organismos nacionais e internacionais, públicos ou privados. Além da falta de recursos financeiros e materiais, havia a falta de equipamentos e até de instalações. Outra grande dificuldade destacada por Targino (2000) em seu estudo era quanto ao recrutamento de profissionais para as matérias técnicas. Se para as disciplinas de caráter geral, é possível recrutar docentes, que se firmam, ao longo do tempo, como expoentes da cultura nacional – os renomados historiadores Armando Souto Maior e Manoel Corrêa de Andrade, o ensaísta Nelson Nogueira Saldanha e o crítico literário João Alexandre Barbosa estão neste rol –, no caso das matérias profissionalizantes, a realidade é distinta. Alguns bons jornalistas não podem exercer o magistério por falta de diploma superior. É o que ocorre, por exemplo, com Luiz do Nascimento, autor de uma obra consagrada sobre a história da imprensa pernambucana, em 15 volumes, e mem235 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 bro da Academia Pernambucana de Letras. Outros, por sua vez, não se sentem motivados para a docência (TARGINO, 2000, p.173). Surgiu assim o Instituto, com o propósito de criar formas de integração entre a Universidade e os profissionais da área do Jornalismo. Também para “realizar pesquisas, promover atividades de extensão cultural [...] e consolidar a imagem do curso. Beltrão utilizou seu prestigio pessoal para ocupar espaços na imprensa, exercitou seu senso de oportunidade e investiu firme nas linhas de ação do Icinform”. O centro desenvolveu-se então como um núcleo capaz de investir tanto na formação do profissional quanto na qualificação dos docentes (NÓBREGA, 2000, p. 159). O Icinform foi fundado como uma sociedade civil, para reunir professores, alunos, ex-alunos e outros interessados nos estudos de comunicação e deveria converter-se em mecanismo de superação das limitações financeiras e administrativas do Curso, possibilitando uma relação com a comunidade, bem como a realização de atividades de pesquisa e de extensão, de forma independente das autoridades superiores da Universidade (BENJAMIN, 1998, p. 72). Para a viabilização dos projetos pretendidos por Luis Beltrão, o Instituto compreendia cinco departamentos: a) Ensino: subdividido em cursos de extensão universitária, de aperfeiçoamento e especialização, preparatórios, pós-graduação, concessão ou distribuição de bolsas de estudo; b) Documentação: com as seções de biblioteca especializada, arquivo e museu da imprensa, filmoteca e discoteca e recursos visuais; c) Pesquisa; d) Técnico-profissional; e) Relações Públicas. 236 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global O dinamismo do professor Luiz Beltrão frente ao Instituto permitiu uma ampliação do curso de Jornalismo e também um estreitamento no contato com universidades e centros de estudos estrangeiros, tais como: Universidade de Concepción (Chile), Católica do Peru (Lima), Vera Cruz (México) e Guayaquil (Equador). No Brasil, diversos intercâmbios foram realizados. Podemos citar: Escola de Jornalismo Cásper Libero (São Paulo), Fundação José Augusto (Natal, RN), Universidade de Juiz de Fora (MG), Curso de Jornalismo da PUC do Rio de Janeiro, Universidade de Minas Gerais, Curso de Jornalismo do Instituto Nossa Senhora de Lourdes (João Pessoa, PB), entre outras. Desses contatos permanentes, surgiram articulações acadêmicas que repercutiram no curso de Jornalismo da Unicap e fortaleceram politicamente o Icinform (ComunicaÁões & Problemas, v. 1, nº 1, p 8). Não podemos deixar de destacar que, dentre as estratégias de reconhecimento e de ampliação do Centro, o professor Luiz Beltrão buscou a cooperação do Ciespal. Afinal, era lá que estavam vinculados grandes estudiosos e centros de pesquisa da Europa, Estados Unidos e da própria América Latina. Desta forma, vários pesquisadores do Icinform foram enviados para fazer cursos de aperfeiçoamento no Ciespal. Nestes cursos discutiam-se estratégias de desenvolvimento econômico, ética, pedagogia do ensino, função social do jornalismo, sociologia da informação, metodologias de investigação, mas sobretudo, tratava-se a comunicação como ferramenta importante para promoção do desenvolvimento e se aprofundava a discussão a respeito da participação popular nesse processo. As modernas técnicas de comunicação coletiva seriam instrumentos a serviço desse projeto participativo. Com o público formado principalmente por jovens professores latino-americanos provenientes de países subdesenvolvidos, o Ciespal abrigava o discurso padrão que permeava o ideal democrático desses países de economia eminentemente agrária (NÓBREGA, 2000, p.160). 237 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 As discussões principais desses encontros caminhavam entre o desenvolvimento econômico-social e a consolidação do campo da comunicação. Acreditava-se que somente com as idéias modernizadoras oferecidas pelos meios de comunicação de massa, atreladas a um ideal de liberdade e democracia, haveria possibilidades do desenvolvimento de uma sociedade mais justa, democrática e com a efetiva participação de todos os segmentos. Além dos debates políticos, os cursos também propiciavam análises sobre as metodologias comunicativas. 2 - PRIMEIRO CURSO DO ICINFORM Em 1965, aconteceu o primeiro encontro, tendo a comunicação como tema central. Embora com uma temática ampla, os trabalhos estavam concentrados no jornalismo. Mas isso não impediu que outras estratégias de comunicação permeassem as diversas temáticas discutidas (NÓBREGA, 2000, p.161). Realizado no Recife, Pernambuco, entre 16 de janeiro e 4 de março de 1965, o Encontro envolveu jornalistas, bacharéis e alunos de jornalismo, além de profissionais em ciências sociais, economia, ciência política, publicidade e propaganda e relações públicas. Targino (2000, p.174) afirmou que uma das finalidades básicas do Encontro foi o aprofundamento de tópicos, tais como teoria e prática da pesquisa social e comunicação coletiva; atualidade e relevância dos meios de comunicação; vinculação entre os problemas internacionais e as questões nacionais e locais, principalmente do Nordeste, requerendo para essa análise a compreensão do processo desenvolvimentista das regiões, de profundo conhecimento de Beltrão. O Encontro foi estruturado de forma a possibilitar conferências de pesquisadores mais experientes no campo, oriundos de universidades e institutos de pesquisas, que trataram de questões mais específicas da comunicação. Também discutiram sobre a fidelidade da informação, ética profissional, o compromisso do jornalismo, entre outras questões. Os seminários abordaram a conjuntura socioeconômica do Nordeste, problemas sociais e comunicação e desenvolvimento. Também tratou da formação profissional, fez uma avaliação do mercado de trabalho e tentou 238 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global definir de forma mais objetiva a função da comunicação no processo de desenvolvimento. Como trabalhos de campo, foram realizadas visitas aos diversos meios de comunicação (jornais, televisão e rádio). Os locais variavam entre órgãos oficiais ou não, instituições culturais, parques industriais, órgãos assistenciais, pontos turísticos de Recife e/ou de Pernambuco, além de espetáculos artísticos, folclóricos e carnavalescos (TARGINO, 2000, p. 177). O resultado do Encontro foi muito positivo, ampliando a área de influência do centro, permitindo que ele participasse da estruturação de novos cursos de jornalismo que começavam a surgir (NÓBREGA, 2000, p. 161). Não se tratou de mais uma iniciativa dentro da educação formal. Ao contrário, o curso mostrou a visão ampla de Beltrão com referência à cultura geral como ingrediente básico à formação do jornalista bem qualificado e, por conseguinte, atestou a influência do Icinform no pensamento comunicacional brasileiro, estendendo-se à realidade latino-americana (TARGINO: 2000, p. 177). 3 - FORMAÇÃO DO PESQUISADOR: A AMBICIOSA META DO ICINFORM DE DESPERTAR NO JOVEM O INTERESSE PELA PESQUISA Uma das grandes metas do professor Luiz Beltrão, e como conseqüência do Centro, foi despertar nos jovens o interesse pela pesquisa. Como afirma Maria Luiza Nóbrega, “naquele momento, mais que o puro rigor metodológico, importava estimular o espírito investigativo” (2000, p.161). As temáticas pesquisadas deveriam oferecer aos alunos a possibilidade de aplicar na prática os conceitos teóricos desenvolvidos nas salas de aula. Além disso, teriam como objetivo arrestar temáticas atuais e que despertassem nesses iniciantes o real interesse pela investigação. Essa afirmação pode ser confirmada pelo primeiro trabalho realizado pelo Icinform. Tratou-se da pesquisa “Os recifenses preferem o jornal ao rádio e TV”. Priorizando a atualidade, uma vez que a pesquisa foi realizada durante a greve dos gráficos que deixou Recife sem jornal durante vinte dias, entre 21 de março e 9 de abril de 1963. 239 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Os resultados tiveram na imprensa local uma ampla repercussão, como pode ser observado nos trechos abaixo descritos. O Diário da Noite, por Sócrates Times Carvalho, 03 de maio de 1963. Muito antes de ser professor de Técnica de Jornal da Universidade Católica de Pernambuco, Luiz Beltrão já era um dos mais competentes profissionais da imprensa pernambucana. E da sua sensibilidade jornalística não há companheiro que não dê testemunho. Nem de outra maneira o antigo Secretário de “Folha da Manhã” teria aproveitado aquela excelente oportunidade da greve dos gráficos para comprovar a superioridade do jornal, como divulgação, sobre rádio e televisão – senão atendendo à sua sensibilidade jornalística. Devendo-lhe o que melhor existe na vasqueira literatura do jornalismo, a imprensa pernambucana tem de creditar ao antigo presidente da AIP este serviço: a comprovação, através de ampla pesquisa, do consolidado conceito dos nossos jornais perante a opinião pública. Sobretudo porque essa cotação foi medida e pesada em confronto com a aceitação do rádio e da televisão. E da comparação sem dúvida oportuníssima, porque feita num momento em que os jornais estavam fora de circulação por força da greve dos gráficos, resultou um saldo dos mais afirmativos em favor dos nossos diários (ComunicaÁões & Problemas, v. 1, n. 1, p. 19, 1965). O Jornal do Comércio, por Nilo Pereira, 07 de maio de 1963 Na verdade, bem falta fizeram os jornais. Acontecimentos importantes (inclusive os fúnebres, que podiam ter sido pesquisados) passaram em brancas nuvens: o jornal não estava presente para noticiar tudo. O inquérito evidenciou que a nossa tarefa de jornalistas é cada vez mais séria, mais responsável. E ainda há quem pense que escrever em jornal é um passatempo (ComunicaÁões & Problemas. v. 1, n. 1, p. 19, 1965). 240 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global Ainda em 1963, sob o comando do professor José Marques de Melo foi realizada a pesquisa “Crônica policial na imprensa do Recife”. Na concepção de Benjamin (1998), é a pesquisa acadêmica pioneira que lança mão das técnicas de jornalismo comparado difundidas na América Latina pelo Ciespal, recorrendo, ainda, a duas outras técnicas: a pesquisa de opinião através do uso de questionário como instrumento de coleta de dados e a entrevista aliada à técnica de observação sistemática. Dentre os aspectos estudados nos três jornais de Recife – Diário de Pernambuco; Jornal do Commercio e Última Hora – estão: a) morfologia e conteúdo do noticiário policial; b) cobertura das ocorrências policiais: estrutura e orientação; c) perfil do público-leitor e repercussão do noticiário de fatos policiais; d) influência do noticiário policial na circulação e tiragem dos jornais (TARGINO, 2000, p. 171). Em 1964, afirma Nóbrega (2000, p.163), a investigação tratou das expectativas dos recifenses em relação à nomeação de D. Hélder Câmara como arcebispo de Olinda e Recife. Um dos objetivos foi buscar responder à questão “Que espera você de D. Hélder?”. Tratou-se de uma pesquisa de opinião, para conhecer as expectativas da população a respeito da nomeação do já polêmico bispo-auxiliar do Rio de Janeiro. As pesquisas do Centro não pararam por aí. Muitas outras foram realizadas. Além da importância do Icinform no que tange à área da pesquisa, um dos pontos de destaque foi ser um articulador e estimulador das novas gerações na produção de reflexões capazes de associar a comunicação ao desenvolvimento, “numa perspectiva bem latino-americana moldada de acordo com as idéias políticas da época, e como influenciam as discussões conceituais e metodológicas” (NÓBREGA, 2000, p. 164). O mais importante legado do Icinform na área de pesquisa está no efeito multiplicador do seu investimento. Sua atuação foi fundamental para formar uma geração de pesquisadores. Investigando diferentes aspectos da comunicação e distribuídos por várias Insti241 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 tuições de Ensino Superior, os discípulos de Beltrão ampliaram os propósitos do mestre e influenciaram diretamente a formação de novas gerações de pesquisadores. Entre outros, José Marques de Melo, Roberto Benjamin, Tereza Lúcia Halliday, Torquato Gaudêncio e Zita Andrade Lima foram fundamentais para a implementação do espírito investigativo e para a consolidação da pesquisa em comunicação no Brasil (NÓBREGA, 2000, p. 164). Mas nem tudo corria tão bem. Os recursos obtidos não conseguiam garantir a sobrevivência do Centro. Com o propósito de dar continuidade ao Icinform, que contava com seis categorias de sócios – fundadores, efetivos, estagiários, correspondentes, honorários e beneméritos – Luiz Beltrão recorreu à família do jornalista Trajano Chacon. Não obteve sucesso. Em 1966, com a sua transferência para Brasília, onde foi, oficialmente, posto à disposição da Universidade de Brasília – UnB -, no mês de março de 1966, o Icinform é entregue a seu vice-presidente, o jornalista, advogado e professor do curso de Jornalismo da Unicap, Sanelva de Vasconcelos, contando com o apoio de José Marques de Melo, Tereza Halliday e Roberto Benjamin, que assumiram a coordenação de novas pesquisas. Meses depois, com a ida de Marques de Melo para São Paulo, Vasconcelos perde seu maior colaborador e o Instituto começou a declinar. Embora Beltrão tenha agilizado o convênio entre a UnB e o Icinform para a manutenção da revista ComunicaÁ„o & Problemas, criando uma sucursal sob a denominação Icinform – Seção de Brasília, seus esforços não impediram a extinção da entidade. Como bem afirmou Targino (2000, p. 178) em sua análise, Luiz Beltrão deixou sua marca. “Não apenas em Recife, no Ceará, na Paraíba, no Rio Grande do Norte, estados onde colaborou com a criação de cursos de jornalismo, ou em Brasília, local em que permanece até o final de sua vida, em 24 de outubro de 1986, aos 68 anos, mas em todo Brasil”. Para as novas gerações, deixou o legado de uma vasta obra, quer em termos quantitativos, quer de forma qualitativa. Construiu toda uma teoria de folkcomunicação, “comprovando, então, a mediação dos agentes da cultura popular na decodificação e conseqüente interpretação dos modos de pensar, 242 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global sentir e agir que a mídia transmite no cotidiano da população” (TARGINO, 2000, p.178). Embora lembrado por suas teorias folkcomunicacionais, sua herança transcende esse universo. Foi o jornalismo sua grande paixão. Através de seus estudos, foi possível conhecer um fazer jornalismo de forma coerente com a realidade nacional, tendo a coragem como meta no descobrimento de novos caminhos. Nas palavras de Targino (2000, p. 179), encontramos o reforço à justificativa do pioneirismo de Luiz Beltrão e do Icinform como um Centro aglutinador e fundador dos estudos comunicacionais brasileiros, [...] isto porque, Icinform e Luiz Beltrão ou Luiz Beltrão e Icinform são indissociáveis. O Icinform é, essencialmente, o legado de um grupo de jovens impulsionados por um homem que teve como principal característica acreditar em seus sonhos. [...] hoje, tantos anos após, seu nome ainda é sinônimo de espírito de luta, criação e recriação, o que justifica a instituição do Prêmio Luiz Beltrão pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), em 1998. Ao mesmo tempo em que cumpre uma justa homenagem ao pioneiro da pesquisa científica sobre os fenômenos comunicacionais brasileiros, reconhece as contribuições de personalidades e entidades nacionais à sedimentação e fortalecimento da área, tanto no meio acadêmico e científico, como no meio empresarial e profissional. Em suma, o Icinform é assim. E assim é Luiz Beltrão. 4 - O LEGADO DE COMUNICAÇÃO & PROBLEMAS Foi considerada a primeira revista acadêmica de comunicação editada no Brasil. A edição inicial foi publicada em março de 1965, trazendo informações sobre o curso de Jornalismo da Unicap, contendo registro das pesquisas realizadas pelo Icinform, eventos, artigos, depoimentos, entre outros. Com periodicidade quadrimestral deixou de circular após doze fascículos, em 1969, registrando contribuições de José Marques de Melo, Tereza Halliday, Humberto Sodré Pinto, entre outros. 243 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 A revista teve uma excelente receptividade e o editorial do segundo número expressou sua euforia: A receptividade aludida não está, apenas, nas cartas recebidas, nas contribuições aos debates dos temas focalizados na primeira edição, na publicação de artigos na imprensa local e nacional; está igualmente na elevação surpreendente do número de assinantes, que já chega à casa dos 300, e na espontânea cooperação de firmas comerciais e industriais que trazem a sua propaganda a veículo especializado, com campo limitado para temas publicitários (ComunicaÁões & Problemas, 1965, v. 1, n. 2, p. 73). Foi a primeira revista inteiramente destinada aos estudos e às pesquisas de Comunicação a ser editada no país, e até 1966, “única no gênero, no Brasil, dedicada com exclusividade ao estudo objetivo das ciências da informação pública”. (ComunicaÁ„o & Problemas, 1966). Rosa Nava (2000, p. 183) afirmou em seu texto que o processo de publicação da revista pode ser compreendido em três fases. Na sua primeira fase Comunicações & Problemas foi trimestral (março, julho e novembro). Assim, o primeiro volume compreendia os números 1, março; 2, julho e 3, novembro de 1965. [...] o periódico enfocava questões regionais do nordeste. A segunda diversificou ampliando sua temática aos problemas latino-americanos. Os artigos e pesquisas publicados nos primeiros números, ainda que de metodologia tosca, merecem registro “por seu pioneirismo e valor pedagógico”. Na terceira fase o periódico deixou de ser publicado até março de 1968, quando o nº 2/3 do volume III, foi editado. Esse descompasso resultante de problemas acontecidos em junho de 1967, em virtude de modificações introduzidas na administração e na política pedagógica da Universidade Católica de Pernambuco e em seu Departamento de Comunicação e, também, pela substituição do reitor da Universidade de Brasília. [...], há a diversificação da pauta, incluindo viagens e turismo, discos e can244 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global ções populares, questões sobre editoração, livrarias, folclore, comunicações administrativas, de idéias industriais e extensão agrícola, telecomunicações, semiótica e psicolingüística (NAVA, 2000, p.183). Na sua décima primeira edição, em 1969, a publicação deixou de circular. Além da ditadura militar, as questões políticas de representação da revista em termos acadêmicos e as mudanças nos cargos de reitores das universidades, tanto a do Recife, como a de Brasília, impossibilitaram a continuidade. ComunicaÁões & Problemas, nos seus quatro anos de circulação, discutiu uma série de questões no âmbito da comunicação. Como propunha o próprio Icinform o periódico passou do enfoque das questões regionais do Nordeste, discutidas em sua primeira fase, aos problemas latino-americanos (NAVA, 2000, p.187). [...] se a Rádio Jornal do Commércio, do Recife, indicava a potência de seus transmissores anunciando-se no ar com o slogan “Pernambuco falando para o mundo”, Comunicações & Problemas sinalizava sua pretensão de entrar para o time dos periódicos acadêmicos internacionais ao publicar, ao fim de cada artigo, um resumo em inglês – coisa inédita naquela época onde a pesquisa nacional da comunicação mal emitia seus primeiros vagidos. Foi nesse periódico que Luiz Beltrão lançou as bases para a pesquisa da Folkcomunicação no Brasil. Precursora da Revista Brasileira de Comunicação, criada depois pela Intercom, em São Paulo (BENJAMIN e HALLIDAY, 1998). Dentre os principais autores e textos destacamos em alguns o caráter regional das temáticas, principalmente nas primeiras edições. Textos como: “A Produção de Farinha no Nordeste” por Thereza Lucia Halliday; “A Indústria do Açúcar no Nordeste Brasileiro” por Jordão Emerenciano; “As comunicações telefônicas no Recife” por Maria Diva Pessoa de Souza; “O estado Sanbra” por Assis Chateaubriand; “A Produção de Borracha Sintética” sem autoria; artigo de divulgação da fábrica da Coperbo (Companhia Pernambucana de Borracha Sintética). 245 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Mas a busca do perfil mais abrangente, com temáticas nacionais e internacionais, pôde ser observada a partir do segundo volume (março, julho e novembro de 1966). Dentre alguns textos, podemos citar: “Ciências da Informação: classificação e conceito” por José Marques de Melo; “Periodismo en Paraguay” ensaio elaborado por 15 alunos de curso ministrado por Luiz Beltrão no Instituto de Periodismo da Universidad de Assunción, a convite da Missão Cultural Brasileira. Quatro estudos sobre a formação profissional do jornalista elaborados por Júlio Mesquita Filho, Alberto Dines, Adelmo Montenegro e Eugênio Malenga. Além de artigos sobre cinema, rádio, TV, jornalismo político, confessional; jornalismo e educação; jornalismo e técnica; jornalismo e linguagem. 5 - FOLKCOMUNICAÇÃO3 : FRUTO DAS PESQUISAS REALIZADAS PELO ICINFORM O estudo sobre a folkcomunicação foi um dos principais legados de Luiz Beltrão. A comunicação coletiva e seus múltiplos desdobramentos, buscando uma forma de conscientização dos estudantes de jornalismo, foi uma das grandes batalhas travadas por ele. A atualidade dos estudos desse pioneiro tem suscitado diversos grupos de pesquisa não só no Brasil, mas em países da Europa. Em Portugal, os estudos folkcomunicacionais serão incorporados como patrimônio cultural brasileiro, nos campos das pesquisas da Lusofonia. Isso ocorrerá no segundo semestre de 2002, durante as comemorações da cidade do Porto, como sede Cultural da Europa. Além disso, a Intercom e a Alaic dispõem de grupos de estudos que se reúnem em congressos anuais e bianuais, respectivamente. Também a Cátedra Unesco/Umesp anualmente realiza a Conferência Brasileira de Folkcomunicação - Folkcom, que, caminhando entre os conceitos de cultura popular e erudita, tem permitindo entender e estender as opiniões dos processos de cultura brasileira, através do legado de Beltrão. Estando em 2004 na sétima edição desses encontros, a Cátedra Unesco de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, sediada na Universidade Metodista de São Paulo, desde 1996, tem buscado consolidar o campo de pesquisa da Folkcomunicação. Mostrando que na realidade brasileira os 246 Maria Cristina GOBBI Contribuições de Luiz Beltrão para o cenário comunicacional global “comunicadores folclóricos” traduzem os conteúdos complexos dos meios de comunicação de massa e os interpretam segundo valores tradicionais das pequenas comunidades. Também realizam as ações contrárias, ou seja, resgatam, estudam e interpretam a apropriação de bens da cultura popular pela indústria cultural (MARQUES DE MELO, 1998, p. 1). Desta forma, foi possível observar que o legado desse pioneiro às distintas gerações de comunicadores, comunicólogos e estudiosos da comunicação extrapola o caráter regional/local, sendo reconhecido em diversos países. NOTAS 1 Texto faz parte da tese de doutorado “Escola Latino-Americana de Comunicação: o legado dos pioneiros”, defendida no ano de 2002, na Universidade Metodista de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. José Marques de Melo. 2 O Instituto foi inspirado no Ciespal e também motivado pelo esforço desenvolvimentista que acontecia no Nordeste Brasileiro na primeira metade dos anos de 1970. Atuava em uma região estigmatizada pela miséria e pela pobreza. Luiz Beltrão pretendia envolver os meios de informação coletiva nas tarefas de desenvolvimento econômico, cultural e educativo, porém sem marginalizar os meios tradicionais de comunicação usados pela população. Propôs uma linha de pesquisa chamada de folkcomunicação, destinada a aprofundar o conhecimento sobre a decodificação, feita pela maioria dos camponeses e operários, das mensagens transmitidas coletivamente pela imprensa, rádio, televisão e cinema. Tratava-se de reconhecer na América Latina as conseqüências culturais e políticas do two-step-flow, identificado por Lazarsfeld na sociedade norte-americana (MARQUES DE MELO, 1989, p. 152). 3 “Situado entre o Folclore (resgate e interpretação da cultura popular) e a Comunicação de Massa (difusão de símbolos através dos veículos mecânicos ou eletrônicos destinados a audiências anônimas, heterogêneas e dispersas). Se o Folclore compreende formas interpessoais ou grupais de manifestação cultural protagonizadas pelas classes subalternas, a folkcomunicação caracteriza-se pela utilização de meios artesanais de difusão simbólica para expressar em linguagem popular, mensagens previamente veiculadas pela indústria cultural. Esta era, pelo menos a compreensão original de Luiz Beltrão, que a situava como processo de intermediação entre a cultura das elites (erudita ou massiva) e a cultura das classes trabalhadoras (rurais e suburbanas) ou dos marginalizados (grupos mantidos econômica, social e culturalmente à margem das instituições hegemônicas)” (MARQUES DE MELO, 1998, p.1). 247 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 REFERÊNCIAS BELTRÃO, Luiz (ed.). Jornada. ComunicaÁ„o & Problemas. Recife, v. 1, n. 1, p. 73-74, jul. 1965. (Editorial). BELTRÃO, Luiz. Jornalismo interpretativo. Porto Alegre: Sulina, 1976. BELTRÃO, Luiz e QUIRINO, Newton de Oliveira. SubsÌdios para uma teoria da comunicaÁ„o de massa. São Paulo: Summus, 1986. BELTRÃO, Luiz. IniciaÁ„o ‡ filosofia do jornalismo. São Paulo: ComArte/Edusp, 1992. BENJAMIN, Harold R. W. A educaÁ„o superior nas rep­blicas americanas. São Paulo: Fundo de Cultura, 1965. BENJAMIN, Roberto (org.). Itiner rio de Luiz Beltr„o. 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A contribuição do instituto de Ciências da Informação (Icinform) na gênese do pensamento comunicacional brasileiro. IN: GÍnese do pensamento comunicacional Latino-Americano. O protagonismo das instituições pioneira - Ciespal, Icinform, Ininco. São Bernardo do Campo: Umesp, 2000. 249 A comunicação do consenso: mídia e exclusão The consensus communication: media and exclusion Jussara Rezende ARAÚJO Jornalista, Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR – Marília / SP – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Nossas pesquisas sobre produção e recepção de Mídias vêem demonstrando que a grande maioria da população encontra-se marginalizada em termos de informação atualizada, e, mesmo, os editores dos jornais de massa regionais desconhecem avanços nessa área, ocupando-se, pois, com o “denuncismo” e com o leitor-cliente. Não temos espaço para um Jornalismo mediador de inteligibilidades. No presente artigo, apresentamos algumas sínteses para apontar causas descobertas pelas pesquisas realizadas, e ao mesmo tempo fazer uma reflexão sobre possíveis soluções em termos de comunicação social. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação – Jornalismo – Mídia – Mediação. ABSTRACT Our researches about production and reception of Mídias demonstrate that the great majority of the population is marginalized in terms of updated information, and, even so, the editors of the regional mass newspapers ignore progresses truly valid for the day-by-day of the citizen being in charge of with the “denuncismo” and with the reader-customer. We don’t have space for a mediator Journalism of intelligibilities. In the present article we presented some syntheses to point causes discovered by the accomplished researches, and at the same time to do a reflection about possible solutions in terms of social communication. KEY WORDS: Communication - Journalism - Media – Mediation. 252 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão A pesar dos avanços sociais alcançados pela sociedade atual vivemos momentos angustiantes na área da epistemologia da comunicação e especialmente do Jornalismo enquanto campo do conhecimento da cultura erudita, da cultura letrada, enfim, do Jornalismo que divulga conhecimentos novos e relevantes gerados pelo desenvolvimento do processo civilizatório; fatos e acontecimentos da cultura ágrafa e as grandes reportagens sobre temas do cotidiano. Não temos espaço para o Jornalismo enquanto mediador de inteligibilidades. Povos que aqui viviam antes da invasão européia são tratados como índios, os descendentes dos fenícios como turcos; os africanos que vieram sem opção como pretos, e a cultura regional como caipira, caboclos. Essa continua sendo a leitura da mídia. Uma leitura excluidora. Como já previram os cientistas sociais da Escola de Frankfurt a cultura de massa privilegia a forma pasteurizada de divulgação fazendo o jogo das trocas simbólicas nivelando sempre por baixo e aumentando cada vez mais a exclusão simbólica que nada mais é do que a ignorância de conhecimento atualizado e em sintonia com os problemas da nossa contemporaneidade. Para complicar - volta e meia – o sistema judiciário caça o diploma de Jornalista desconhecendo completamente o valor da metalinguagem para o Jornalismo e a necessária competência digital para o desempenho da profissão. O Judiciário sabe que a opinião é um direito sagrado, mas ignora o campo científico Jornalismo por achar que qualquer pessoa letrada pode sair fazendo reportagens, entrevistas, e outras prospecções próprias e específicas do campo do Jornalismo. Enquanto isso nossa mídia de massa cresce – a única que sobrevive graças aos jogos de sedução que faz fruto de seu casamento de interesse com a Publicidade de massa. Não estamos aqui generalizando, é claro, apenas estamos constatando resultados de pesquisas aonde vimos que o mercado das trocas simbólicas atualmente tem o privilégio na divulgação de informações refratadas por visões em 253 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 oclusão sobre “a história dos problemas e o problema da história” (GOLDMANN, 1984) criando a unidimensionalidade da razão. Atualmente, a primazia aos interesses do mercado nos faz viver uma comunicação social sob um clima da fofoca, de denuncismo, de monstruosidades (o teratológico). O jornalismo – realizado para as massas é um jornalismo que está longe da erudição, e mais próximo do clichê e do vulgar criando um leitor que vê apenas irracionalidades. Nossas pesquisas sobre produção e recepção de Mídias vêem demonstrando que a grande maioria da população encontra-se marginalizada em termos de informação e, mesmo, desconhece avanços verdadeiramente válidos para o seu cotidiano. Após a análise das matérias coletadas em jornais de circulação regional, nacional e internacional1 verificamos que a forma do texto jornalístico, pasteurizada, somada ao vazio de representatividade moral e ético em expansão na sociedade contemporânea tem ocupado quase que integralmente o espaço nas mídias, fenômeno que se agrava nas mídias digitais. Vamos tratar aqui então do fenômeno da inversão simbólica2 . Assim, nossa tentativa aqui será apresentar três sínteses teóricas para buscarmos aprofundar medidas que serão necessárias para tentar diminuir os índices de inversão na comunicação de massa e aprofundar categorias que poderiam, caso divulgadas devidamente, aniquilar com a exclusão social através do ataque a exclusão moral. Utilizamos os conceitos de exclusão social e exclusão moral conforme referencial teórico das pesquisas no campo tradicional da Sociologia brasileira e da Antropologia: o conceito de exclusão social designa pessoa, ou grupos de pessoas que são marginalizadas, segregadas, discriminalizadas, incriminadas, violentadas por pessoa ou grupos de pessoas que possuem poder econômico, político, religioso e até mesmo, nos casos de exclusão ideológica, grupos corporativistas que exercem discriminações racistas e/ou culturais. Considerase violência física: doenças controláveis, mas desconhecidas, mortes por abandono público, danos financeiros, falta de oferta de trabalho. Considera-se violência moral: difamação e calúnia, aviltamento das condições de trabalho, perseguição ideológica, segregação, ameaças, violência social, subalimentação, subsaneamento básico, favorecimentos e privilégios. Nossos quadros teóricos de referência, nossos aportes para o texto em tela 254 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão são as teorias de J. Campbell, pesquisas realizadas com re-leituras de Levi-Strauss sobre as funções do Mito e seu modelo não tanto estruturalista, mas profundamente holístico; o modelo do hemisfério direito como motor da ação humana (teorias da psicologia psiquica/cognitiva); e o paradigma do problema do tempo linear/cíclico modelo quântico – e, portanto, fora do eixo das teorias da relatividade e no paradigma das teorias dos jogos3 . Nosso texto é propositalmente não-linear o que irrita profundamente os que seguem a tradição. Apenas acredito e tenho fé que o sol nasceu para todos, então os cartesianos que se cuidem, pois quando falamos de exclusão o pensamento linear, digital foi um dos maiores responsáveis pelo estado de crise sem fim que nos encontramos atualmente no planeta. Mas se escrevemos isso também é porque sabemos que são esses mesmo os únicos que ainda se dispõem a se corrigir. Em contrapartida, existe uma franja enorme que não entende nada do que está acontecendo justamente devido a dominação da mídia denuncista. Setores da massa que só sabem resmungar e negar a própria cultura. São os excluídos simbólicos, morais. Não têm ética, mas possuem uma moral (aliás, uma falsamoral porque destituídas de raízes), bastante “sólida” o que os faz pensar que tem também substância. Essa franja tem um arquétipo bastante conhecido na América o presidente ianque Bush, e na Rússia o presidente W. Putin para darmos um exemplo. Nossa intenção não é ferir a imagem desses senhores que sabemos terem todo o poder (hoje não adianta mais falarmos em maior ou menor poder porque quem tem uma bomba atômica destrói uma vez, não precisa destruir mais de uma vez). Quando relacionamos os dados encontrados da mídia controlada pelo fenômeno agenda setting com as lentes de uma história mais de acordo com os pressupostos da dialética marxista e humanista, a visão trágica da Modernidade (Pascal), com raízes socrática, pré-socrática, e xamânica vimos que o homem pode reverter esse quadro. Não vamos aqui buscar a origem dos problemas, mas a sua gênese. Buscar a origem é querer colocar o conhecimento numa camisa de força. Lucien Goldmann nos legou então o conceito de estrutura significativa, uma visão holística, quer dizer, uma estrutura significativa é ao mesmo tempo uma estrutura, mas é também um modelo onde podemos enxergar uma totalidade e abarcá-la 255 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 momentaneamente, o suficiente para enxergar um panorama integral que permite ler os problemas que são constantes e não apenas variáveis como faz o modelo cartesiano que se perde em variáveis e não vê que a realidade tem – independentemente do conceito de tempo-espaço – problemas que são constantes. É justamente a constância que interessa ao cientista captar para poder apresentar uma inteligibilidade e assim sair do polêmico, das incertezas, das irracionalidades. É isso que faz o jornalismo que não se rende a hegemonia mercadológica: oferece uma ou várias inteligibilidades: os sempre saudosos Cláudio Abramo e Isidor F. Stone; o que resistem: o caderno de ciência do jornal Estadão; o Observatório da Imprensa; TVs como a Cultura e tantas outras TVs a cabo. Não faltam profissionais. Falta interesse político das mídias. Assim, intertextualizando nossos fundamentos teóricos/metodológicos com a epistemologia do Jornalismo vamos tratar agora de expor três sínteses que, pensamos, abarcam a problemática da exclusão informacional. Defendemos que o que está acontecendo é uma grande inversão da ética pela falsa-moral gerado do processo histórico do desenraizamento cultural.. Nossa metodologia de pesquisa vem de Lucien Goldmann - o professor, pesquisador, diretor de pesquisa sobre consciência e produção de conhecimento científico em França, após a Segunda Guerra, e até 1970 quando faleceu repentinamente vítima de uma hemorragia estomacal. Goldmann romeno é que nos interessa. O formulador da categoria de consciência possível, conceito análago ao conceito de supersigno de Charles Peirce4 . Tanto quanto Peirce, o cientista Lucien Goldmann foi leitor de E. Kant e com esse mestre aprendeu a pensar por tricotomias, que é a reflexão por contradição e não pela contradição, como ensina Demerval Saviani. Utilizando dessa forma de ler o real é que vamos intertextualizar nossos dados. Eles foram obtidos no conjunto da produção de pesquisa realizada por alunos sob nossa orientação durante nossas aulas e seminários no Mestrado em Comunicação, na Graduação, com pesquisas de iniciação científica realizadas na Universidade de Marília, e aulas ministradas na Faculdade Metropolitana de Londrina. Nosso objetivo principal aqui é divulgar e expandir o que chamamos de conhecimento válido para a divulgação das mídias, além – é claro – de estar cumprindo com as normas de divulgar o conhecimento obtido nas prospecções sobre 256 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão produção e recepção das mídias. Chamamos de exclusão moral e social o fato jornalístico: cidadãos dos países abaixo do Equador, como o Brasil, e principalmente nas regiões mais interioranas, vivem sem o adequado atendimento do welfare states5 onde os sistemas geram diariamente um exército de excluídos. Povos sem moradias, saúde, saneamento básico, direitos humanos, lazer, família, propriedade, informação e sem Deus autêntico! Até a religião – para esses excluídos – é um subsistema do welfare state. Tanto como a mídia do mercado das trocas simbólicas são os setores responsáveis pela divulgação de esquemas behavioristas seguindo as teorias da agulha hipodérmica e principalmente o modelo da estética do receptor usando para isso as teorias da estética da recepção. Em vez de elevar a comunicação para um nível da cordialidade os publicitários, por exemplo, muitos políticos e pastores preferem nivelar por baixo, pelo jogo das seduções. Nesse contexto, as TVs públicas têm o privilégio na divulgação das religiões do mercado das trocas simbólicas e na propagação do denuncismo. Não existe espaço, nesse espaço, para o humano, para o possível, o futuro já está dado e ele é fruto da endogenia6 que domina nossos sistemas públicos de comunicação: escolas, igrejas, mídias, a burocracia estatal. Grandes franjas da sociedade, indivíduos presos aos sistemas de afetividades fragmentadas. Nesse processo o tecido social histórico foi rompido pela lavagem cerebral feita através da laicização do conhecimento. Tudo conforme demonstrou McLuhan: uma mídia oportunista e fornecedora de modelos invertidos: a Xuxa é linda e apenas aparentemente forte. A moça dos peitos “ciliconados” ganha muito dinheiro, mas não mostra sua tiróide psíquica. A inversão só vê o que está no espelho. O que é juízo moral, passa a ter valor de postura ética. A comunicação fica gelatinosa, os sujeitos não sentem que estão sendo aculturados. Tornam-se, como nos aponta Martin-Barbero, enculturados: indivíduos que apenas endossam a hegemonia. O que era aprendizado vira anacrônico e o anacrônico vira saber. O sujeito culto é aquele que tem retórica e poder de persuasão e só uma retórica imagética tem “cultura”. Assim, cultura é confundida com conhecimento e conhecimento vira algo que todo mundo tem! A primeira constatação mostra que a história oficial além de ser uma mentira como já haviam demonstrado os estruturalistas, estruturalistas-genéticos, fenomenólogos e outras abordagens pós-1960, é ainda pior: essa mentira tirou nos257 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 sa bússola. Ficamos “desbussolados”, presos entre esquemas dicotômicos: direitaesquerda; preto-branco; significados-significantes; norte-sul; leste-oeste; comunistas e democráticos; apocalípticos-integrados. Nossas pesquisas mostram que a natureza humana é tricotômica, é viva, sendo que a morte é apenas um estado e não uma condição. Assim, o real, por sua vez é contraditório, somente a lógica da contradição tem materialidade e oferece um terreno seguro para caminharmos como diz Martin-Barbero com mapas noturnos, abrindo brechas e vendo com mais coragem, ponderando sobre o que realmente chamamos de irracional, e então criarmos novas perspectivas, melhores oportunidades, um ser humano e um mundo que não é uma “cebola que se descasca chorando”. A segunda constatação fala-nos sobre o esquecimento da trajetória humana no planeta devido ao que as teorias da comunicação estão chamando de fenômeno da laicização, os efeitos são a perda da visão ontológica, da capacidade de ver de maneira nosológica, desprezo e arrogância com relação aos conhecimentos arcaicos, do próprio conceito de arcaico; da exclusão do conhecimento realizado no momento em que rompemos com o fonetismo e passamos a ignorar a lógica da magia. A cultura ágrafa, que não é analfabeta, ficou analfabeta assim por nós “alfabetizados” e nós ficamos “analfabetos” com relação ao fonetismo. Esquecemos, por exemplo, que minesi pode ser também um poder não apenas do letrado ou do popular, mas também do conhecimento arcaico e mágico7 . A laicização é a veiculação de certo conhecimento do tipo “know how” tido como paradigma e modelo para a categoria da ordem e do progresso. Essa tentativa malogrou gerando a laicização, isto é, a deformação da complexidade, vulgarizando e não informando. O receptor laicizado abaixo da linha do Equador é um indivíduo sem auto-estima; sem raiz simbólica, e acima do Equador vive angustiado, inseguro, não vive o presente; entre essa massa muitos são sado-mazoquistas, dependentes de drogas químicas, e não percebem porque o fenômeno de tornar laico um conjunto de conhecimento trouxe junto com ele as categorias aristotélicas elitistas, platônicas, no sentido que captam apenas uma leitura de um Platão em busca eterna da perfeição através de uma ordem e de uma disciplina que não é humana, que privilegia a tecnologia; traz a culpa embutida em suas ações. Basta vermos o arquetípico Alexandre, aluno de Aristóteles, 258 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão grande em ódio, em ganância e gerador de um futuro que estamos vendo hoje no presente bastante excluidor. O fenômeno da laicização iniciado após a morte de Sócrates fundamentando-se nas teorias do discurso persuasivo utilizaram o conceito aristotélico de mimesi que matou o homem e fez surgir o irracional. Sócrates tinha outro conceito de minesi. Mas foi condenado a tomar sicuta e seu conceito enterrado. Mas conforme mostrou-nos Walter Benjamin que também pensava por tricotomias, minesi não é só a arte de relacionar com palavras conhecidas. É muito mais que isso: é a capacidade de jogar com sistemas desconhecidos. Como faziam os xamãs, como sempre fez o homem durante milhares de anos. Eles não eram primitivos que viviam em cavernas. Minesi não seria então apenas a capacidade de criar algo correlato a natureza das coisas, dos signos, mas também a capacidade de criar grandes categorias de comunicação criando assim fluxos comunicantes com outras estruturas vivas: os animais, os ventos, as estrelas, comunicação com o diferente, mas que é análogo. Os astrólogos assim fazem quando, ao lerem nosso mapa estrelar, mostram ao consulente como vai transitar no espaço social aqui na terra no espaço da comunicação social. Então não apenas os poetas sabem fazer metáforas, mas a ciência popular, ágrafa e fonética também sabe interpretar o mundo real. Isso é mimesi: a capacidade de gerar correlatos não apenas com estruturas semelhantes ou análogas e identificadas no processo da semiose, mas com estruturas desconhecidas. Isto é, o mundo do sentir: prazer-dor-resultados x, y, z. Essas incógnitas, verdadeiro fetiche dos aristotélicos tem - para a cultura ágrafa e arcaica, não apenas nome, mas também efeito. A laicização ao negar a magia taxando-a de supertição e irracional não viu a diversidade da natureza dos signos. A terceira constatação resulta de leituras de uma história da ciência que nos foi revelada na bibliografia dita não científica e/ou paraciência e da bibliografia oral dos xamãs da floresta amazônica. Vimos não apenas a impossibilidade da neutralidade científica, mas também que o equívoco de defender a neutralidade beneficia apenas os países situados acima do Equador e suas pesquisas tecnológicas, mercadológicas, desumanas; antiéticas e despossuídas de validade moral. A pesquisa científica sem vigilância epistemológica não tem validade epistemológica e, portanto, não interessa para o planeta. Afinal ninguém está aqui 259 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 por livre-arbítrio, embora parece consensual. O consenso é fabricado como mostram as teorias holísticas e dialéticas-genéticas. Pois o que adianta o pesquisador fazer uma grande invenção se essa invenção só serve para uma minoria? Então epistemologicamente essa descoberta não é válida porque não foi precedida pela dupla ruptura epistemológica8 . Pretendemos assim propor – da mesma forma como fizeram conosco os vencedores uma nova laicização. Aliás, uma laicização mesmo. Utilizar mais a mídia para a divulgação de um conjunto de conhecimentos para iluminação das massas excluídas, um conhecimento que deve ser retirado de fontes arcaicas, excluídas, e por isso mesmo dialeticamente as únicas capazes de propor uma inclusão real e ética, ficando assim cada qual com sua moral, mas respeitando o espaço e seus limites. Para as teorias da comunicação mais atualizadas isso é possível9 . Após essas constatações vamos para a exposição de nossas sínteses: 1.O rompimento com o etnocentrismo europeu e/ou ianque para o resgate da identidade cultural. Chamamos etnocentrismo a visão da história a partir dos conhecimentos laicizados pelos europeus para dominação dos países abaixo do Equador. Principalmente aquele etnocentrismo do levantamento bibliográfico a partir da Europa. Podemos começar dos nossos caboclos ágrafos, por exemplo. É claro que não podemos recuperar o tecido histórico rompido. Não dá para afirmar categoricamente qual foi o momento que o Império Fenício retirou-se do mercado internacional; mas para a mitologia é um fato demonstrável que o imaginário oriental está presente no imaginário da floresta brasileira e do homem desenraizado de qualquer região brasileira, de qualquer região abaixo da linha do Equador principalmente abaixo da linha do “trópico de Câncer” através mesmo do uso da força de trabalho dos africanos (mais tardiamente) que dominavam o conjunto epistemológico da cultura oriental. Também devemos resemantizar nossos códigos. Chamar as culturas que aqui estavam antes do holocausto europeu de índios é uma ofensa. Chamar Bumbameu-boi de folclore é uma distorção muito grande do que verdadeiramente é o ritual do Bumbá. A própria visão singela de folclore precisa sair desse eixo e ir para o eixo do fonetismo, da visão não digital; da visão analógica. Não falar mais de folclore, do 260 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão típico, nem do étnico. Apenas de formas diferentes de conhecimento. Os excluídos não são felizes, não são ignorantes e alguns grupos de excluídos como os grupos do período pré-invasão européia que chamamos arcaicos possuem conhecimentos válidos e necessários para resgatarmos o espírito da comunicação ética, porque está fundamentado não em uma moral, não em um senso comum preconceituoso, mas fundamentado na capacidade de observar a natureza harmoniosa do homem. O homem arcaico comunica-se com o desconhecido e em sintonia com o acaso obtém um comportamento modelar em termos de cidadania. Também devemos supor que de forma universal, não existe nenhuma cultura regional que não tenha feito uso de plantas para uso medicinais ou uso de conhecimento do real. A história terá que ser revista sob a perspectiva da cura popular, ágrafa e baseada no fonetismo (na linguagem imagética) e no uso medicinal de plantas fora do eixo da medicina tradicional, clássica e fragmentadora. 2. O rompimento com a Moral pseudo-cristã para o re-aprendizado da Ética: “São Miguel está com nós no tempo Ele tocou a trombeta anunciando Que Jesus Cristo com um chicote de cipó Chegou expulsando os vendilhões do templo”. (História oral em ALVERGA, A. Polari, Nova AnunciaÁ„o no. 68) A epígrafe acima trata-se de um trecho de um texto sagrado. Foi revelado a um místico, aparentemente milenarista. Mas é só aparência. Submetido – esse – texto – a uma decriptação, e a uma hermenêutica estruturalistagenético-fenomenológica (LEVI STRAUSS, CAMPBELL, ELIADE - uma releitura pela perspectiva do método científico moderno e outros), podemos dizer que o texto é produto do fonetismo; remonta milhões e milhões de anos e afirma re-memorar um conjunto teórico ético: demonstra que tudo o que prometemos e deixamos de cumprir, solidariedade, igualdade e fraternidade, teremos que cumprir! A natureza que habita o planeta está comunicando que devemos corrigir nos261 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 sas posturas falso-moralistas; e as posturas de promessas simbólicas não cumpridas; a história ensinada pela moral judaico-cristã deve ser criticada para podermos ficar apenas com o judeu camponês e seus discípulos; e o Batista. O restante deve sofrer uma re-leitura pela perspectiva dos historiadores estruturalistas-genéticos; da mitologia; entre outros. Chamamos de moral pseudo-cristã um conjunto ideológico transmitido pelas políticas de massa como escolas, igrejas, presídios, hospitais, aos vencidos, pelos vencedores, cujo eixo central está na certeza dogmática de que estamos na terra para sofrer porque somos culpados, somos imperfeitos: “a vida é uma cebola que descascamos chorando”. “Erramos”. “Somos profanos”. Como sabemos depois da gestalt e das teorias genéticas sobre o processo do aprendizado humano não existe erro. Não existe culpa; não existe bodeexpiatório. O que nos torna limitado são os nossos horizontes epistemológicos dependentes de teorias sob a perspectiva dos vencedores e egocêntrico, pois que a episteme dos vencedores é egocêntrica. Esse conjunto ideológico do erro, da repressão, do falso-moralista remonta aos decadentes impérios romanos e egípcios quando entraram em decadência e alicerça-se ainda no darwinismo, uma deturpação do pensamento de Darwin para a divulgação da ideologia de que “na natureza vence o mais forte”. Isso é apenas uma ideologia para justificar a “necessidade da guerra”. É claro que Darwin foi – como todos somos – resultado de uma episteme, mas ele é ainda um modelo ético de realizar pesquisar. Ficou anos anotando dados e só muito depois foi demonstrando o que viu. Nem esse lado de Darwin está divulgado! 3. O rompimento com a etnociência para o enraizamento étnico e fim do típico: Aqui estamos falando do problema epistemológico. A dita ciência Moderna inaugurada por Descartes, Newton e Galileu seguiu os mesmos caminhos dos outros campos sociais. A necessária divisão das ciências – feita pelos vencedores – mesmo que com toda santa boa vontade, favoreceu a endogenia. Então ela não serve mais! Não dá para ficar gastando tempo de alunos lendo inglês, francês, alemão, muita leitura que não vão fazer já que aqui no interior do Brasil temos ouro puro que são os nossos excluídos xamãs e tantos outros grupos da 262 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão resistência simbólica. Deles podemos obter o ouro necessário para o re-encantamento do mundo e a volta da nossa biodiversidade. A ciência não precisa ficar congelada em marcos desantropomorfizadores: precisamos reencantar o mundo. Também a ciência precisa ser reencantada, reeducada e conviver com as necessidades das maiorias. Velocidade da luz ao quadrado significa criatividade: é quando entramos no tempo! Aliás, a vida é uma barquinha como dizem os xamãs, “nem triste, nem alegre, foi, é, sempre será!”. E não dá para fazer ciência cinzenta! Ciência se faz em dois tempos: Kairós, Cronos e em um espaço: o da liberdade, que é o espaço da alegria, do bem-estar, do reconhecimento que o sofrer é apenas uma passagem e não um espaço para se ficar sofrendo atos de exclusão. Podemos assim desenvolver pesquisas para nossas massas regionais e expor nossos modelos para o mundo todo, com quadros teóricos que respeitem o dialogismo natural da comunicação humana, e não há necessidade de vir um cartesiano ou um neo-positivista dizer que nossas pesquisas não possuem balizas, não tem provas sólidas, porque tanto quanto qualquer outra forma de pesquisa o que precisamos é fazer sempre uma dupla ruptura epistemológica e manter uma constante vigilância epistemológica. Assim estaremos no eixo da ciência moderna que é o eixo dos paradigmas onde cruzamos filosofia, teoria, métodos e técnicas e pesquisa empírica (surveys, pré-projeto, projeto, coleta e apuração dos dados, interpretação, conclusão que trás sempre uma nova busca). O problema – convém darmos os nomes aos bois – é que as elites tecnocráticas querem excluir a filosofia. Mas a filosofia é tudo; é a mãe de todo conhecimento. Sem filosofia não existe ética. Não existe síntese. Como afirma Francisco Rubia sobre o hemisfério direito, “el cerebro es la sede de todo lo espiritual”. Por isso precisamos entrar no tempo kairós 12 horas por dia e aos outras 12 horas no tempo Cronos. Só uma sociedade não tutelada pode realizar isso. Só o respeito pela auto-determinação dos povos pode trazer tudo isso. E não adianta afirmar que estamos longe de sermos excluídos, nós, pesquisadores, pois, enquanto tiver um tipo de exclusão, somos todos excluídos/excluidores. E a pesquisa científica que se quer ética tem um fim ontológico. Diante disso pensamos que o Jornalismo torna-se a profissão fundamental para sairmos dessa noite que nos arrasta para a descaracterização dos valores humanos. O jornalista é um investigador de problemas com o objetivo de trazer 263 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 inteligibilidades. Por isso o profissional deve ter cada vez mais conhecimentos metalingüísticos, metasemióticos e conhecimentos da mitologia. Deve ter uma leitura-mundo para poder exercer com dignidade seu papel de tradutor, de mediador simbólico. Por isso a necessidade cada vez mais crescente de buscarmos uma formação de forma transdisciplinar para o profissional, pois para responder quem, como, onde e porque, deve dominar um amplo espectro de disciplinas. Mas não apenas. Deve dominar o conhecimento de saber ler as diferentes ideologias e saber que a neutralidade está do lado e junto a códigos que chamamos signos e como demonstrou-nos Bakhtin, todo signo é ideológico. Precisamos frisar que esse conhecimento não se obtém com facilidade na fase adulta. Então, nesse sentido precisamos colocar doutores especialistas em Filosofia e História da Educação, doutores nas ciências da Comunicação para re-criar nossas escolas de primeiro e segundo graus. Enquanto isso nossos políticos precisam ser avisados da necessidade da transformação da nossa mídia pública. Os jornais devem elevar o nível das contratações. Vimos que o problema da comunicação controlada não está nas agências de notícias que realmente têm a hegemonia na divulgação de suas matérias. Mas isso acontece porque nossos jornais regionais e locais não contratam especialistas, não pagam nossos profissionais com dignidade preferindo comprar notícias das agências e burlando a Lei contratando profissionais com salários abaixo da tabela profissional e não montando editorias jornalísticas nas redações. E não é preciso nenhuma revolução copernicana. Para a visão das tricotomias basta que um grande veículo comece e seu exemplo será seguido. Como sabemos, temos muitos veículos que poderiam dar esse exemplo. NOTAS Ver mais em: Barreto, Bruno. ComunicaÁ„o controlada. Barreto em seu trabalho de conclusão de curso demonstrou em pesquisa quantitativa os fenômenos gatekeeper e agenda setting gerados durante o processo de edição jornalística fazem com que a mídia de massa fique controlada pelos interesses do mercado. O veículo torna-se um 1 264 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão veículo do mercado deixando de ser um veículo de interesse do cidadão. Vale lembrar que esses problemas não são fenômenos naturais. Foram gerados por teorias criadas em 1940 com apoio do Estado ianque com objetivos de incrementar os processos de “tornar laico” “novas formas de fabricar o cotidiano” com apoio dos formadores de opinião modificar o consumo: refrigerantes, detergentes, fertilizantes, drogas químicas e demandas públicas de políticas de bem-estar social: importação, mercado interno reprodutivista e fotocopista. 2 Inversão simbólica: fenômeno ainda pouco explicado, mas bastante citado na comunicação social erudita. Os cientistas holográficos – que nos interessa citar aqui já que são os mais atualizados com os novos paradigmas – dizem que o planeta está passando por uma mudança em termos espaciais e que isso afeta nossos cérebros. “Baixando a bola” mas continuando dentro do paradigma holográfico – é interessante a explicação de McLuhan. É claro que não vamos discuti-la aqui. Mas, em síntese, dentro dos limites espaciais McLuhan dizia que a pasteurização e a estandardização, a reificação, fariam surgir uma nova civilização - certamente teríamos especialistas de notórios saberes, mas pobres em imaginação sociológica . Então, arrematando, a inversão simbólica cria um indivíduo notável, mas angustiado, sem sentimentos humanos, um clone do atractor estranho. Campbell em O vÙo do p ssaro selvagem demonstra como o processo de laicização inverteu nossos valores quando ao chamar de supertição o conhecimento médico e mágico, jogou na latrina todo um conhecimento válido injetando em seu lugar um conhecimento apenas sob certas condições válido. Não é difícil entender isso se nos dispormos, como nós jornalistas fazemos em nossa lida cotidiana, quando na coleta de dados para o relato do presente entramos em hospitais públicos, presídios, favelas, e lares cujas famílias dependem do welfare states. Levi-Strauss, embora ainda muito preso a lógica dicotômica da Lingüística aponta muitas incógnitas em seu livro Mito e significado, mas mostra-nos que não existe um divórcio entre mitologia e ciência. Quando submetemos suas incógnitas as teorias tricotômicas temos uma explicação para a ausência de auto-estima; para o sadomazoquismo; para as perversões. Elas resultam de uma sociedade que matou o homem sagrado, o homem que reflete e apenas privilegiou o homo demens. 3 4 Charles Sanders Peirce propõe uma Semiótica aplicada e seu modelo de três categorias universais tenta conter a multiplicidade dos fenômenos do mundo. Essas três categorias são os fundamentos do signo e tudo que vemos, sentimos e classificamos é signo. O signo que é fundamentado nessas categorias também produz sempre três categorias que vão se relacionando entre si. Chamamos tricotomias. O signo teria assim três correlatos: o representamen, o objeto e o interpretante. Na tricotomia objeto Peirce fala de uma nova categoria de semiose que se refere a si mesmo. Hoje a semiótica 265 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 discute tais signos sob o nome de signos auto-referenciais, um supersigno. O fenômeno do supersigno ainda pouco estudado é equivalente aos estudos de Goldmann, Walter Benjamin e Campbell sobre as possibilidades ontogenéticas e filogenéticas do ser humano. 5 O welfare states é filho da serpente. Filho da Anaconda como dizem meus alunos. Lindo e tão brilhante quando observado pelas lentes do ver. Conforme Martin-Barbero que está em fase de aprofundamento da problemática através de uma pesquisa sobre a comunicação das cidades, o problema é que passamos repentinamente da cultura oral para a cultura do ver quando estávamos em direção de alcançar a cultura do escrever. Canclini em uma pesquisa inédita explica o desenraizamento crônico apontando a inversão cultural que fazemos quando trocamos o étnico pelo típico, pelo curioso sendo a mídia, como já tinha levantado McLuhan, o principal veículo dessa inversão. Mas voltemos ao welfare states. Criação do mundo capitalista para poder reformar a situação caótica gerada pelo lixo cultural e pela vida, categoria que os intelectuais do welfare states desconhecem. São os sistemas de saúde, habitação, de obras, e agora, comida como forma de atenuar uma situação que não se atenua com esmolas, nem com o braço estendido porque o ser humano tem uma comunicação complexa e não atomística como imaginam os intelectuais do welfare states. O sistema de saúde é sempre falho, o de habitação não faz saneamento básico e nem tratamento de esgoto e limpeza adequada do lixo cotidiano. Aliás o welfare states desconhece o conceito de cotidiano. Racionalistas, para os formuladores do sistema a categoria do futuro é uma ordem. Mas é preciso alguém dizer que com isso o welfare states está destruindo o presente. Sem o presente não temos futuro porque o tempo-espaço é apenas uma categoria teórica. 6 O conceito de endogenia para as teorias da comunicação com paradigmas de Lucien Goldmann lembram que a endogenia é um fenômeno gerado pelo mercado das trocas simbólicas porque ao estabelecer normas e padrões exclui aquilo tudo que não serve ao mercado cuja hegemonia controla. Então o conceito de hegemonia aqui tratado é o conceito de Antonio Gramsci, mas com uma leitura holística do conceito. A hegemonia está sempre em movimento, é dinâmica, mas tem a capacidade de nunca mudar com relação a sua ligação com os valores dualistas, dicotômicos. Mantemos assim o sentimento endógeno. Apenas aparentemente o outro é o problema, mas para o endógeno o outro é sempre o problema. Assim a hegemonia que é endógena está sempre criando fórmulas para reformar o outro porque não vê a categoria revolução em si. Para as teorias da comunicação isso é um problema gerado pelo medo a desorganização. Mas sem desorganização a realidade é falsa. As teorias estão mostrando que a realidade é entrópica sim, mas não por natureza. É entrópica porque justamente necessitamos organizar, embora de fato tudo já está organizado, bastando nos comunicar com o real de maneira mais sintonizada com a natureza e, portanto, com a nossa natureza que não é predatória como quiseram nos dizer os darwinistas ao fazerem uma refração nas leituras de Darwin. 266 Jussara Rezende ARAÚJO A comunicação do consenso: mídia e exclusão Ver mais em BENJAMIN, Walter. A capacidade mimética. In: Humanismo e ComunicaÁ„o de Massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. Benjamin explica a mimesi no pensamento mágico pelos conceitos de ontogenético e filogenético e afirma: “ler o que nunca foi escrito. Tal leitura surge anterior a todo idioma: (...) leituras das vísceras pelos oráculos, das estrelas ou das 7 danças. Mais tarde se constituíram etapas intermediárias duma nova leitura, rúnica e hieroglífica”. 8 Ver mais em Boaventura Sousa Santos. Para uma ciÍncia pÛs-moderna. 9 Estamos nos referindo aqui principalmente a utilização do método científico com vigilância epistemológica. REFERÊNCIAS ALVERGA, Alex P. O Evangelho segundo Sebasti„o Mota. Boca do Acre: CEFLURIS, 1998. ________._____. Nova anunciaÁ„o. Boca do Acre: IDA/CEFLURIS, 1998. ARAUJO, Jussara R. A dialÈtica da comunicaÁ„o: o conceito de possÌvel de Lucien Goldmann. Dissertação de Mestrado. Faculdade Metodista de São Bernardo do Campo, 1994. ARAÚJO, Jussara R. ComunicaÁ„o e exclus„o: a leitura dos xamâs. S. Paulo: Arte e Ciência, 2002. BAKHTIN, M.V. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BARRETO, Bruno. ComunicaÁ„o controlada: as agÍncias de notÌcias no notici rio da AmÈrica Latina. Trabalho de Conclusão de Curso. Mimeo. Universidade de Marília, 2003. BENJAMIN, Walter. A capacidade mimética. 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E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Por meio de registro das experiências marítimas portuguesas, com o apoio das novas técnicas de impressão, inaugura-se um novo tempo na História: a modernidade. Supõe-se que a gênese do jornalismo em lusa-língua também se encontre entre imprensa e descobrimentos. Supõe-se ainda que é neste período que se inicia a globalização, com troca de saberes e sabores entre o velho e o novo mundo. PALAVRAS-CHAVE: globalização - descobrimentos - imprensa. ABSTRACT By the documentation of the Portuguese maritime experiences, in addition to the new printing technologies, a new period in History started. This present text elaborates a proposal journalism which may also be found between the printing process and the great discoveries. It is supposed that the globalization rises in this time with the exchange of Knowledge between the New and Old Word. KEYWORDS: globalization – discoveries - printing press. 272 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar I nformações cruzam mares e continentes num apertar de tecla da rede mundial de computadores. Difundiram-se marcas, falas e gestos. Conceitos e preconceitos são encapsulados às notícias que circulam no globo. Os media constroem e desconstroem mitos entre a noite e o dia. Mas, nem sempre foi tão rápido o processo de predicar o mundo. O fenômeno da expansão planetária (que alguns historiadores preferem chamar de mundialização) tem suas prováveis origens no nó que enlaça a curiosidade enciclopédica européia – entre os séculos XIV a XVI - com a magia dos tipos móveis engendrados por Gutenberg. Essa “pororoca” renascentista fez jorrar, séculos depois, todas as mídias, que, integradas pela informatização, interligariam mundos e povos em diferentes estágios civilizacionais. 1. Do mundo fechado ao planeta global As cordas da expansão ultramarina portuguesa foram lançadas, de maneira sistematizada, pelo Infante D. Henrique. O fato consumou-se em agosto de 1434, quando Gil Eanes dobra o Cabo do Bojador. A ultrapassagem física de um obstáculo marítimo, transformado, por Luís de Camões, no monstro Adamastor1 , foi narrada por Zurara na CrÛnica das Feitos da GuinÈ. Esse acontecimento marcou também a passagem «de uma Idade dos Mundos Fechados a uma Idade do Universo Planet rio Aberto»2 . Foi também no tempo do Infante, aquando dos primeiros ensaios pelo Atlântico e ao longo da costa d’África, o lançamento da chamada “literatura de viagens” em língua portuguesa. Constituída por documentos de natureza heterogênea, este tipo de literatura imprimiu-se e desenvolveu-se de acordo com o tipo de conexão entre o histórico-social e a notícia que era retratada. Cada relator – fosse ele tripulante, piloto, navegador, degredado, religioso ou sobrevivente de nau273 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 frágio – baseado em seu background, tinha uma maneira de olhar e de dizer o mundo. Como diria Michel Certeau: “O olhar está ao serviço de uma descoberta do mundo: é a guarda avançada de uma ‘curiosidade’ enciclopédica que, no século XVI, ‘acumula freneticamente’ os materiais e dessa maneira coloca os fundamentos da ciência moderna [...] A embriaguez de saber e o prazer de ver penetram no obscuro e desdobram a interioridade dos corpos em superfícies oferecidas ao olhar [...]”3 . Esse olhar quinhentista prenhe de “curiosidade conquistadora”, ainda que distorcido, sugestionado, foi representado de várias maneiras nos textos das descobertas. Em princípio manuscritas, as notícias de além-mar, iriam consolidar-se, a partir da segunda metade do século XV, através da invenção do prelo de caracteres móveis, pelo alemão Johann Gensfleich zum Gutenberg. Em Portugal deve-se ao impressor Valentim Fernandes4 a idéia de publicar textos que revelassem os novos mundos descobertos, pois a curiosidade era grande. Mas o acesso às informações da experiência ultramarina não era fácil. Aliás, a maioria das obras publicadas estava restrita à «vigilância» de interesses não só do Estado ou da Igreja, mas também das casas nobres. Assim, o período que se deseja considerar como a pré-história do jornalismo em lusa-língua já vem acompanhado de uma certa dose de censura, justificada pelo sigilo dos novos conhecimentos náuticos, como também de outros saberes advindos das recentes descobertas 5 . Essa mudança de paradigma desestrutura o sistema e a cosmovisão medievais, obrigando o europeu a adaptar-se a um novo ordenamento do tempo e do espaço. Inaugura-se uma nova era na comunicação, transmissão e intercâmbio de saberes e poderes entre os homens: a modernidade. Em sua esteira vem também o mercantilismo e o capitalismo. Muda o modo de olhar o mundo. E as civilizações que eram regionalizadas, centradas num pequeno espaço, se deixam conhecer e saem para conhecer o “outro”. Apesar da censura régia, não se falava em outra coisa que não fossem as novas que alcançavam não só os homens de letras, mas também o homem comum por meio de folhas volantes, estampas e ilustrações6 . Notícias diversas passam a circular pelo globo e montam um quebra-cabeças que, em princípio imaginário, torna-se efetivo com a descrição dos encontros de 274 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar outros povos e de outras terras. Embora houvesse ainda muita confusão entre o real e o imaginário. (Quase como hoje, ao ligarmos a TV não sabemos, muitas vezes, se as imagens aquela guerra, ou das torres gêmeas, o 11 de setembro nos EUA, fazem parte de um filme ou do noticiário). Os primeiros textos produzidos durante, ou imediatamente após, as viagens ultramarinas ainda refletem, na forma ou no conteúdo, algumas lembrançsa medievais das novelas de cavalaria, dos libri monstrorum e de textos das mirabilia. A busca do Santo Graal, as lendas do Rei Artur e de seus cavaleiros da Távola Redonda. As cruzadas e todo o movimento da cristianização estavam enraizados na memória coletiva dos navegantes descobridores. Os novos textos de viagens despedem-se do maravilhoso, à medida que se progride no tempo, para se fixarem na tarefa marcadamente utilitária de registrarem, com o possível mimetismo, os novos mundos que se depararam aos exploradores e viajantes.7 A impressão do texto confere autoridade e autenticidade ao documento e ao feito. Vasco da Gama chegou à Índia, em 1498, portanto séc. XV. Todavia, é o relato, atribuído a Álvaro Velho, que, na segunda metade do século XVI, dará legitimidade aos nautas portugueses na inauguração daquele trajeto marítimo8 . 2. Paesi Nuovamente Retrovati Vencidas as distâncias, vencidos os argumentos da autoridade clássica começam a cair por terra os labirintos míticos e místicos que haviam sido gerados pelos escritos medievais. “A descoberta da América faz duvidar de muitas coisas e a ânsia de informação generaliza-se”9 . No ano de 1500 as cartas de Cristóvão Colombo já eram famosas na Europa, atingindo cerca de 20 edições. Mas, Colombo escreve sobre o paraíso. Ele não assume ter descoberto a América. Aliás, a América só tem esse nome graças a Américo Vespúcio, que soube realizar uma bela campanha de marketing, apoiado por editores que também vislumbraram um grande lu275 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 cro na edição de seus relatos de viagens, embora nem todos fossem verdadeiros. A notícia do achamento10 do Brasil, por exemplo, já havia corrido de boca em boca pelos portos europeus, quando em 1501 D. Manuel redige a carta aos sogros e Reis Católicos de Castela, informando sobre a chegada de Pedro Alvares Cabral. [...] a huma terra que novamente descobrio, a que pôs nome de Santa Cruz [...] a qual pareçeo que nosso Senhor quys que se achasse, porque he muy comveniente e necessaria a navegação da Imdya 11 . Enquanto a Carta de Caminha esperaria três séculos para vir a público, os italianos controlavam o investimento na expansão portuguesa. É Américo Vespúcio que D. Manuel envia para o reconhecimento das terras brasileiras. Preciosa fonte sobre os primórdios do Brasil foi editada por Valentim Fernandes, em 4 de Agosto de 1504, na relação Navigatio Portugallensium ultra aequinoctalem Circulum. De fato, essas informações fazem parte do “Manuscrito Valentim Fernandesî 12 e servem como prova da perspicácia editorial do famoso impressor/tradutor, que coletou várias obras descritivas das novas terras. Estes e outros textos foram enviados, entre 1506 e 1507, para seu amigo Conrad Pentinger, banqueiro erudito e conselheiro de Maximiliano, residente em Ausburg. Assim, as notícias acabavam saindo do controle português e eram divulgadas por intermédio de estrangeiros, especialmente pelos italianos. Aproveitando-se da farta correspondência comercial com Lisboa (principalmente através dos mercadores florentinos) e da comunicação religiosa (com a Santa Sé) os italianos fixam, para a posteridade, os primeiros opúsculos da expansão portuguesa. É, pois, do famoso Américo Vespúcio o primeiro documento impresso onde aparecem informações sobre o Brasil: o Mundus Novus, datado de 1503. Escrito logo após sua participação na viagem expedicionária pela costa brasileira, o texto é dirigido ao banqueiro florentino Francesco de Medici. Até então nada havia sido divulgado oficial276 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar mente sobre o descobrimento do Brasil13 . O Brasil estaria novamente presente na Copia de vna littera del Re de Portogallo, impressa em Roma, em 1505: título enganador, visto que na sua composição entraram, por um lado, a carta que em 1501 D. Manuel I dirigiu ao rei de Castela sobre o regresso de Pedro Álvares Cabral a Lisboa [...], e, por outro, a correspondência de mercadores italianos fixados em Portugal, respeitante à “carreira da Índia” entre 1504 e 1505. O Brasil [...] é aí chamado “Terra de Santa Croce” e “Terra Nuova o vero Mundo Nuovo” 14 . É também na Itália que se divulga o texto Paesi Nuovamente Retrovati, compilado e organizado por Fracanzio da Montalboddo, em 1507. No ano seguinte, vertido para latim, aparece sob o título Itinerarivm Portugallensivm, pois era do interesse de toda a Cristandade (e principalmente da Itália, que havia financiado parte das descobertas marítimas) a difusão das notícias de além-mar. Nesta época, a imagem que os europeus tinham dos índios da então América Portuguesa é a da mitologia edênica tão bem estudada por Sérgio Buarque de Holanda. Pero Vaz de Caminha, o repórter inaugural, escreveu uma belíssima carta, que ficaria inédita por três séculos, assim como tantos outros textos redigidos na mesma altura15 . Imagine-se que já em 1515 notícias sobre o Brasil eram divulgadas na Alemanha. Era a Newen Zeytung auss Pressillg Landt (Nova Gazeta da Terra do Brasil), redigida, em 1514, provavelmente por um comerciante alemão, na Ilha da Madeira, endereçada a um amigo residente na Antuérpia. Num folheto anônimo, de 4 folhas, encontra-se a narração de uma importante empresa marítima realizada ao longo do litoral brasileiro, talvez pela armada de Cristoval de Haro e D. Nuno Manoel. Divergem os estudiosos do documento16 quanto às questões históricas e paleográficas que lhe são inerentes, 277 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 porém não negam que as informações sobre a abundância de metais na bacia do Prata, sobre a livre negociação do pau-brasil, e sobre o peculiar modus vivendi dos selvagens «serviram de excelente meio de propaganda pela Europa, na linha das notícias anteriormente recolhidas, pelas poucas frotas enviadas até então para essas regiões»17 . Contudo, está registrado na história do jornalismo (especialmente nos séculos XIV e XV) o papel divulgador da Itália, que ao tomar nota das aventuras ultramarinas nominou aqueles papéis por onde correu muita tinta. Veneza, um dos principais portos da época, fazia circular entre seus freqüentadores, as fogli ou foglietti díavisi, também chamadas Notizie scrite, que eram, umas folhas em que se narravam as notícias que a tripulação de cada barco estava habilitada a transmitir. Assim, pela leitura desses escritos pagava-se uma moeda chamada gazeta18 . Daí que gazeta e folha sejam termos ainda hoje utilizados para designar vários jornais periódicos. 3. Notícias de além-mar Curiosamente, a primeira folha noticiosa manuscrita em língua portuguesa, datada em 19 de Outubro de 1558, é a NotÌcia da infelicidade da Armada de Sua Majestade Que Escreveu o Mestre da Sota Capitaina, constando de página e meia, refere-se à famosa “Invencível Armada” 19 . O relato (B.N.L., Cx 2, nº 28) registra a luta das armadas de Espanha e Portugal contra os corsários ingleses, em guerra declarada por Felipe II, como forma de inibir o expansionismo marítimo da Inglaterra. Refere-se também às experiências marítimas a primeira notícia impressa em Portugal (três anos antes da primeira folha noticiosa manuscrita): a RelaÁ„o do Lastimoso Naufr gio da Nau ConceiÁ„o chamada Algaravia a Nova de Que Era Capit„o Francisco Nobre a Qual Se Perdeu nos Baixos de Pero dos Banhos em 22 de agosto de 1555. Escrita por Manuel Rangel, o qual se achou no dito naufrágio, foi impressa em Lisboa, na oficina de António Álvares, provavelmente em 1556. Este tipo de publicação faz parte da história trágico-marítima, cujos acontecimentos satisfaziam o prazer mórbido dos leitores da época, da mesma forma que fazem até hoje alguns veículos sensacionalistas. Estes 278 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar tipos de relações surgiram como gênero literário novo, através de folhas volantes. «Era um jornal sinistro que só pretendia divulgar as fúnebres notícias das mortes, incêndios e mil misérias que corriam no mar os que se aventuravam a essas longas travessias».20 De volta ao Brasil, vale lembrar pelo menos mais dois autores relevantes que descreveram os primórdios da colonização: Pero Lopes de Sousa e Pero de Magalhães de Gândavo. O Di rio da NavegaÁ„o, de Pero Lopes de Sousa (1530-1532), espelha os primeiros confrontos entre portugueses e índios. Mesmo que redigido por um navegador, preocupado em cumprir as ordens de seu irmão Martim Afonso, o documento revela a exploração do rio da Prata, assim como estabelece as primeiras fronteiras do Brasil Colônia21 . Enquanto os textos de Pero de Magalhães de Gândavo (a HistÛria da Provincia de S„cta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de 1576 e o Tractado da Terra do Brasil, no qual cÙtem a informaÁ„o das cousas que ha na terra..., de 1579), registram, em pormenor, o início da colonização portuguesa no Brasil. Gândavo descreve, para além da fauna e da flora exuberantes, o modus vivendi das tribos brasileiras que habitavam a costa. Seus textos podem ser considerados verdadeiros livros-reportagens, pois ultrapassam o caráter meramente noticioso. O Tratado e a HistÛria foram publicados com o intuito de atrair moradores para a construção do Brasil. Se o propósito publicitário de Gândavo surtiu efeito desejado na época não se pode garantir Já somos 170 milhões. Curiosidade enciclopédica? O que se pode garantir é que os textos das descobertas empolgavam os leitores europeus daquela época, essencialmente porque ali estavam representadas as novidades daqueles que viajaram, viram e voltaram para contar o vivido (ou ainda daqueles que enviaram seu texto para um destinatário que garantiria a posteridade do relato). Ou ainda por meio do “propagandista” Américo Vespúcio, que em 1528, já tinha suas cartas publicadas em 42 edições - incluindo as traduções para alemão, holandês, francês, além do italiano e do latim. Antes disso, apenas fábulas e lendas povoavam o imaginário dos que viviam na reduzida Europa. Foi também sobre a façanha das conquistas ultra279 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 marinas que se debruçaram os cronistas portugueses22 . Desse modo, entre os séculos XV e XVI Portugal foi o centro gerador dos acontecimentos que transformaram a Europa e o resto do planeta. Numerosos textos relativos às viagens ultramarinas foram impressos traduzidos e passaram a ser obras obrigatórias para os comentadores dos geógrafos e dos historiadores da Antiguidade23 . No contexto da difusão da notícia, durante a progressão dos descobrimentos e da expansão, a ligação entre a semiperiferia (a Península Ibérica, a que mais tarde se juntou também a Itália) e o núcleo (centro-norte-europeu) fez-se, no complexo espacial da Europa, por um cordão sensível, entretecido pela cadeia infinita de notícias que chegavam ou eram geradas em todos os portos e, antes de todos, na imperial Lisboa, cidade do mar e centro nevrálgico das decisões e da intriga respeitantes ao comércio asiático24 . Pedaços de conhecimentos, aos poucos, aglutinam-se formando a memória coletiva textual, que servirá de base e disseminação na formação/invenção de novos mundos possíveis ou de novos modos possíveis de habitar o mundo. Não estaríamos nós, nessa ilusão de pilotar o espaço virtual, tentando alcançar modos inovadores de habitar e de explorar o mundo? Uma nova sede de reinvenção? Ou temos a mesma curiosidade enciclopédica que invadia os viajantes do Novo Mundo? NOTAS E REFERÊNCIAS 1 “Eu sou aquelle occulto e grande cabo/ A quem chamais vós outros Tormentório,/ [...]” Luís de CAMÕES, Os LusÌadas, Canto Quinto, edição comentada por Otoniel Mota, São Paulo, Edições Melhoramentos. 2Luís Felipe BARRETO e José Manuel GARCIA. Portugal na Abertura do Mundo, Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,1991, p. 18. 3 apud Francisco Rui CÁDIMA. HistÛria e CrÌtica da ComunicaÁ„o, Lisboa: Edições 280 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar Século XXI, 1996, p. 57-58. 4 Apesar da divergência entre alguns autores que investigam esta área, é provável que as técnicas de impressão tenham chegado a Lisboa no final do século XV. Foi por volta de 1495 que se instalou na capital portuguesa a tipografia de Valentim Fernandes. Entretanto, de 24 livros publicados em Portugal até 1500, 12 são hebraicos (da tipografia de João Gherline, em Braga), 7 são latinos e 5 são em língua portuguesa. Artur ANSELMO, As origens da Imprensa em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 171. 5 Esta imposição real nem sempre era respeitada. Um dos muitos exemplos é a viagem, capitaneada pelo francês Paulmier de Gonneville, da qual participaram os portugueses Sebastião de Moura e Diogo do Couto, retratada por Leyla PERRONE-MOISÉS, em Vinte Luas - Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil: 1503 - 1505. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. A venda de um portulano ao espião Cantino, que acabou por levar seu nome e muitas outras informações náuticas escapavam ao domínio lusitano. Desde os tempos do Infante D. Henrique que eram aplicadas penas aos nacionais que se intrometessem sem a licença régia nas suas navegações. Claro está que o objetivo era proteger a empresa marítima comercial portuguesa, monopolizando o poder sobre os mares, sobretudo fechando o Atlântico aos espanhóis. Baseando-se nestas premissas Jaime CORTESÃO fala do Sigilo Nacional sobre os Descobrimentos. Vol. I, fasc. I, Lisboa: Lusitania, 1924. 6 Klaus WAGNER. Viagens e viajantes no Atl ntico quinhentista, coord. Maria da Graça M. Ventura. Lisboa: Colibri, 1996, p. 240. 7 João Rocha PINTO. A Viagem/ MemÛria e EspaÁo. Lisboa: Sá da Costa, 1989, p. .36. 8 O manuscrito sobre a viagem de Gama só foi descoberto em 1834, por Alexandre Herculano, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que o trasladou para a Biblioteca Pública do Porto. 9 Alejandro Pizarrozo QUINTERO. HistÛria da Imprensa, Lisboa: Planeta Editora,1996, p. 28. 10 Pero Vaz de CAMINHA, A Carta, edição de José Manuel GARCIA, Viagens dos Descobrimentos. Lisboa, 1983, p.173 11 apud Banha de ANDRADE. Mundos novos do mundo, Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1972, p..270.(2 v). 12O original conserva-se na Bayerisch Staats-Bibliothek de Munique, cuja cópia na Biblioteca Nacional, em Lisboa, tem a referência Manuscritos Iluminados, nº 154. Pode281 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 se consultar ainda as publicações de António BAIÃO, O Manuscrito Valentim Fernandes, de 1940 ou a leitura paleográfica de José Pereira da COSTA, CÛdice Valentim Fernandes, de 1997, ambas editadas em Lisboa, pela Academia Portuguesa da História. 13 Confira a edição de Joaquim Romero MAGALHÃES e Susana Münch MIRANDA, Os primeiros 14 documentos relativos ‡ Armada de Cabral. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999. 14 Luís de MATOS, introdução, Itinerarvm Portugallensivm. Lisboa: Gulbenkian, 1992, p. XXVI. 15 Maria Cecília GUIRADO, Relatos do Descobrimento do Brasil: as primeiras reportagens. Lisboa: Editora Piaget, 2001. 16A cópia manuscrita do original encontra-se no Arquivo dos Príncipes e Condes de Fugger, em Ausburgo, onde a encontrou Konrad Haebler em 1895. Veja-se fac-símile publicado por Esteves PEREIRA «O descobrimento do Rio da Prata», HistÛria da ColonizaÁ„o Portuguesa do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1924. Ocuparam-se ainda do documento os escritores Humboldt, Varnhagen, d’Avezac e Capistrano de Abreu entre outros. 17 B. de ANDRADE, Mundos...cit, p. 865-866 . 18 Alberto BESSA, O Jornalismo - EsboÁo histÛrico da sua origem e desenvolvimento atÈ nossos dias. Lisboa: Viúva Tavares Cardoso, 1904, p.54. 19 José TENGARRINHA, HistÛria da Imprensa PeriÛdica Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1989, p. 25. 20Fidelino de FIGUEIREDO, CaracterÌsticas da Literatura Portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1923, p.383. O texto integral (B.N.L., Res. 336/3v) foi transcrito no século XVIII pelo bibliófilo Bernardo Gomes de Brito, na coleção HistÛria Tr gico-MarÌtima, que abrange as relações de naufrágios ocorridos entre 1552 e 1602. 21M. C. GUIRADO, «Primeiros confrontos entre Portugal e o Brasil: O Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530-1532)», Anais de HistÛria de AlÈm-mar, Vol. I, 2000. Veja também a edição crítica do documento em GUIRADO, Relatos... cit. 282 Maria Cecília GUIRADO Possível gênese da globalização: notícias de aquém e de além-mar 22Veja-se especialmente as obras de: Gomes Eanes Zurara (CrÛnica da Tomada da Cidade de Ceuta e CrÛnica da GuinÈ); Gaspar Correia (Lendas da Õndia); Fernão Lopes Castanheda (HistÛria dos Descobrimentos e Conquista da Õndia pelos Portugueses); João de Barros e Diogo do Couto (DÈcadas da ¡sia). 23 Luís de MATOS, «La LittÈrature des DÈcouvertesª, in Les aspects internationaux de la decouverte océanique - aux XV et XVI siècles, Actes du cinq¸iËme coloque Internacional DíHistoire Maritime, Lisbonne (14-16 Septembre 1960), présentés par Michel Mollat et Paul Adam, Paris, École Pratique des hautes Études, 1966, p.28 e segs. 24 J.R. PINTO, A Viagem...cit., pp. 69. 283 PARTE II MÍDIA E CULTURA Artigos Originais Original Articles Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular Caetano, an artist in the media: the sensitive, the erudite man, and the pop star Romildo SANT’ANNA Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília - UNIMAR – Marília / SP – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO: Estuda-se a inserção Caetano Veloso no mundo das mídias: do rádio aos jornais e revistas, do videoclipe ao teatro, cinema, a web, o dvd... o livro. Ao dominar a linguagem dos vários veículos de comunicação, o cancionista coloca a palavra, em suas múltiplas aplicações semióticas, como centro irradiador de sua estética. Verificam-se, especialmente, os processos aliterativos na obra do artista. PALAVRAS-CHAVE: Caetano Veloso - música popular brasileira - artista multimídia - estética da oralidade - processos midiáticos. ABSTRACT: The paper aims to study the insertion of Caetano Veloso into the world of mass media: from radio to newspapers and magazines, video-clip to theater, film, web, dvd, book. In mastering the language of the various communication means, the composer uses the lyrics in their multiple semiotic devices as an irradiation pole of his aesthetics. The alliterative procedures used in his works are specially scrutinized. KEY WORDS: Caetano Veloso - Brazilian pop music - multimedia artist - orality aesthetics - media procedures 288 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular C aetano Veloso é sujeito de muitos predicados. Sua existência tem domicílio no mundo das mídias: rádio e televisão, jornal e revista, disco e videoclipe, o teatro, capas, encartes e cartazes, cinema, a web, o dvd... o livro... Desde a que veio, é polêmico e vedete nos letreiros de néon. Sobrepassando o milênio, é o intimista dos talhes de fina estampa, a la João Gilberto, como fora e tem sido esguios Orlandos e Silvas, Carmens e miçangas, tocadores de rabeca, cegos de feira e cantatas em blues. Não faço idéia se transpirou cultura e contracultura na blitz dalgum game-art, mas certamente o fizera nos letreiros de um banner puxado por um teco-teco, ou sulcado na fuselagem etérea de um disco-voador. Em palco que se apresente, sobressai o jeito de corpo e temperança multifacetária, entrecruzando meios e formas sensíveis de linguagens. Desvendando rumos, popular e erudito, assume o papel de mediador na diversidade nacional; encarna a imagem poliédrica de uma peça cubista, visionária, ancestral, experimentalista, tradicional, arrancando da terra e sua gente a força tiritante que faz brotar a arte. Quero, mediado pelo rigor investigativo, afetividade e entusiasmo da tiete, demonstrar como se potencializam esteticamente os planos inter-relacionais dos signos e os efeitos que a ação mútua de seus componentes objetivos, virtuais e estilísticos desempenham na arte do cancionista1 . Previno que este relato se restringe a alguns pontos salientes, ou que mais me sensibilizam, no plano verbal e sua sonoridade, num contexto em que naturalmente se articulam, na primeira instância da composição, a faixa musical pura (melodia da canção) e os artifícios apreendidos e polidos da tradição literária (letra), como um dos elementos primários de autoria da chamada canção popular. Em Caetano, devido à sensibilidade tão aguçada para a criação e interpretação musical, emaranhada do pendor e agudeza crítica pelas artes em geral, dificilmente sua canção pura se desata dos potenciais semânticos e sonoros da letra, sendo todos os compo289 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 nentes, quase sempre, essência da mesma carne ou corpo da mesma alma. Caetano (Caetano Emanuel Viana Teles Veloso – Santo Amaro da Purificação - BA, 1942-) é filho do refinamento urbano da Bossa Nova e descendente ancestral e nostálgico de cantadores e gravadores naïfs e espontâneos do sertão nordestino; enfeixa e sintetiza, num ato transformador e antropofágico, o rural agreste festeiro, sofrido e retirante, o suburbano e o cosmopolita, o nacional e o estrangeiro, no que têm de riqueza etnocultural de cruzamento existencial e estético, ingênuo, malandroso, sentimental e marqueteiro, antigo e moderno, provinciano e universal, impresso e multimidiático, pra conceber e conceder um dos embriões fundamentais da arte tropicalista brasileira. Minhas considerações estariam desprovidas de propósito não fosse a letra pura, ela-mesma, na canção popular, uma vertente importante da moderna literatura brasileira, que se consagra no disco e se estende pelo rádio, cinema, teatro, artes e entretenimentos televisivos. Não poucos artistas, deixando de publicar em livro, o fazem utilizando-se do fonograma como veículo de uma arte híbrida composta, em uma de suas bases, pelos artifícios emanados pela tradição universal da poesia. Parece que, no Brasil, a letra musical retorna a seus alvores e se apropria em espírito das clássicas baladas líricas ou narrativas, cantigas, hinos, salmos, liras, cantatas, odes, barcarolas... canções trovadorescas... modinhas e noturnos românticos. Poesia e música se amalgamam em identidade genética. E, no entanto, existem como sujeição a uma terceira coisa: os parâmetros da canção popular. Sendo duas substâncias em separado, e uma terceira ao mesmo tempo, comungam analogias formais como a dissonância, o timbre, a melodia, a harmonia, o arranjo, o motivo, a modulação, a polifonia, a entoação, o período, a cadência, a cesura, a frase, o tema e o ritmo no tempo – este último, essência de ambos. Em Caetano, poesia deixa de ser livro, mas parece querê-lo. Entretanto, faz das diferenças entre palavra escrita e palavra cantada relações e compatibilidades bem complexas e sensoriais. Em “Muito Romântico” (Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978) o cancionista reconhece: “minha palavra cantada pode espantar / e aos seus ouvidos parecer exótica”. Entre tantas relevâncias na trama estética do artista purificado no recôncavo de Santo Amaro, uma se destaca: o extraordinário tratamento subliminar que imprime à palavra e seus segmentos fônicos ou acústicos. Mais do que um tecnicismo que infunde colorismo, 290 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular simpatia impregnante e dinâmica acústica a certos segmentos, os contrastes de efeitos sonoros aliterados, à medida que vinculam esses materiais de base acústica à idéia (sentidos nocionais e objetivos), à emoção (sentidos emocionais e afetivos) e aos sentidos (efeitos sinestésicos) – responsáveis pelo brilho literário das canções – , exercem função adjuvante na relação entre a faixa verbal e os elementos cancionísticos, dando-lhe o caráter de literatura musicada ou música poematizada. Visa sempre a um processo transformador e orgânico da palavra em música. Chamarei à irradiação de segmentos fônicos equivalentes ou análogos genericamente de aliteraÁões, não importando se as mesmas estiverem no interior ou em posição terminal dos versos, como ocorre com as rimas. Vale lembrar que esse fenômeno estruturante se faz pela repetição sonora, e se produz como um ressôo, um eco. E, é necessário lembrar, havendo uma ressonância ou reflexão física de um efeito acústico na matéria significante do signo (mesmo que, por definição, extrapole o campo puramente lingüístico), e sendo correta como é a definição semiótica do signo, a partir de Ferdinand de Saussure, então deve haver uma espécie de “ressôo semântico” onde houver tais aliterações. Encadeia-se, a partir desse fenômeno, um remeximento nocional, um “eco de sentido”. Caetano é um sujeito de inúmeros predicados, repito. Em 86 dirigiu o filme O Cinema Falado, entrecruzando, em cinematografia, a palavra em oralidade estética, a dança, as artes plásticas... por meio de luzes e sombras projetadas na tela. Faz da música, poesia; pelos mecanismos da poesia consubstancia a música. Em vários momentos declara-se um artista da palavra: o poeta. Numa visão auto-reflexa do embrião de sua arte, declara: “Minha música vem da música de um poeta João / que não gosta de música. / Minha poesia vem da poesia da música de um João / músico que não gosta de poesia”, referindo-se ao entrelaçamento com João Cabral de Melo Neto e João Donato. (“Outro Retrato”, Estrangeiro - 1989). No rap “Língua” (VelÙ - 1984) diz: “Gosto de sentir a minha língua roçar / a língua de Luís de Camões...” e, exaltando Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e a própria poesia, emenda: “gosto do Pessoa na pessoa / da rosa no Rosa / e sei que a poesia está para a prosa / assim como o amor está para a amizade”. Com bom humor, reconhece os vínculos antropológicos de seu trabalho que entrelaça o lado sombrio e decadente do ethos antigo e o epos moderno e descontraído: “eu sou um escritor cujo estilo é uma tentativa de realizar o irrealizável; um Nélson Rodrigues prafrentex” (jornal Pasquim, 4.12.1969). Numa espécie de “Manifesto Artístico” encartado ao elepê 291 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Qualquer Coisa (1975), enumera caótico, lacônico e balançando as bases da cultura integrada: “A subliliteratura. A subliliteratura e a superliteratura. E até mesmo a literatura”. Em 1973, manifestando conhecer a primazia do estrato verbal em sua canção, grava “De Palavra em Palavra”, em AraÁ Azul, disco enveredado em diálogos com a estética e sentimentos da Poesia Concreta; em 81 lança o elepê com as treze canções de Outras Palavras; e, no cedê Livro (1997), interpreta canções suas e de outros compositores, além de musicar um trecho de “O Navio Negreiro” de Castro Alves. Em seu percurso de cancionista, já musicara poemas de vários escritores, além de evocar e interpretar, por meio de timbres e nuanças vocais, as palavras colorizadas em vermelho, amarelo e verde do poema “Dias, Dias, Dias”, e signos visuais como círculos pequenos e grandes, estrelas de vários tamanhos, no conjunto formado por grafemas ornamentais do poema concreto “O Pulsar”, realizados para o lançamento do livro Viva Vaia Vaia Viva (1979) de Augusto de Campos. A realização “verbo-voco-visual”, como queriam os artistas da poesia concreta, do poema “O Pulsar” foi re-elaborada em estúdio para o disco VelÙ (1989). Ainda sob inspiração da Poesia Concreta, Caetano relê e embarca na musicalidade de João Guimarães Rosa para realizar sua “A Terceira Margem do Rio” onde escreve, acariciando a sonoridade das palavras: “Asa da palavra... proa da palavra... água da palavra... casa da palavra... brasa da palavra... hora da palavra... fora da palavra... tora da palavra... (CirculadÙ – 1991). Em “O Ciúme” (Caetano - 1987), dialogando com o poema “Motivo” de Cecília Meireles, lança o cantar de desalento: “quem nem alegre, nem triste, nem poeta / entre Petrolina e Juazeiro canta”. Em Cecília Meireles, como em tantos poetas, a partir dos provençais do século 12, poesia é o mesmo que um cantar. Ao personificar a própria inventividade e inquietude em vários ramos da arte e por diferentes mídias, sendo criador e opinador insistente, Caetano carregou o estigma de revolucionário. E a obtusidade reinante o censurou e o expulsou ao exílio em Londres, nos tempos cinzentos da dita e dura repressão. Eu digo n„o ao n„o, eu digo: È proibido proibir, gritou insistente, a repetir o lema da estudantada parisiense de 68. Rebelava-se, possesso, contra os bitolados daqui (happening gravado com Os Mutantes, no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1968). Desde há muito, e hoje em dia, no traquejo acumulado de artista, e maturidade sabedora, Caetano é alavanca desbravadora, derrubando preconceitos e projetando arte como objeto de beleza e transformação. Os 292 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular dados apontados no presente relato – reafirmo – entrelaça o propósito de realçar, por meio de recursos aliterativos, o engajamento do cancionista, suas artes e ofícios, aos rumos inquietos da arte e comunicação contemporâneas. Pretende destacar os sentidos primorosos que o artista extrai do código verbal – suas “confusões de paródia e profusões de prosódia que encurtem dores e furtem cores como camaleões” – pra recriar uma poesia-canção considerada tope de linha na chamada Música Popular Brasileira a partir dos anos de 1960. Ofereço como aperitivo uma letra de admirável poder sensorial ou sinestésico, e em cujas linhas a aliteração do segmento “ei” suscita a impressão visual de água límpida, esverdeada, tremeluzindo, e onde se vislumbra, aos relances da luz e movimentos, um prateado peixe: Peixe, Deixa eu te ver, peixe, Verde, Deixa eu te ver, peixe, Vi o brilho verde Peixe prata... “Peixe” (Doces B rbaros, 1976) E, como complemento, pra demonstrar que os efeitos aliterativos remexem e irradiam no interior do contexto sonoro e semântico, convido a perceber a reduplicação das mesmas vogais “ei”, agora sugerindo a sensualidade da curvatura de seios instigantes na imaginação de um personagem: “lEItos perfEItos, seus pEItos dirEItos me olham assim”. São os peitos, insistentes, que olham o personagem. Repare o mirabolante brilho expressionista e a polifonia pela costura sonora, alinhavando sílabas que pululam nas frases: Rapte-me, camaleoa, Adapte-me a uma cama boa, Capte-me uma mensagem à toa De um quasar pulsando loa, Interestelar canoa, Leitos perfeitos, seus peitos direitos Me olham assim, 293 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Fino menino, me inclino pro lado do sim, Rapte-me, adapte-me, capte-me, ‘it’s up to me’, coração, Sem querer ser, merecer ser um camaleão. Rapte-me, camaleoa, adapte-me ao seu ‘ne me quitte pas’ “Rapte-me, Camaleoa” (Outras Palavras, 1981). Concentrarei o foco no recurso semiótico que defini genericamente como aliteraÁões e suas implicações estilísticas, recortando, no amplo espectro de enunciados artísticos, os casos tipificados e mais constantes. São encadeamentos que remexem no contexto sonoro da canção, às vezes imperceptíveis, como marcas d’água numa folha de papel. São tão sutis, amiúde, que só as percebemos com o método apurado e depurado da fruição sensorial, sentindo-as na contra-luz da emoção e inteligência. Um segmento da canção “Sampa” (Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978) é bem ilustrativa dessa argúcia e sensibilidade intuitiva do artista: Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, Da força da grana que ergue e destrói coisas belas Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas... Se tomarmos a relação entre o primeiro e segundo versos percebe-se que o artista põe em destaque a brutal oposição entre o trabalho (povo oprimido) e o capital (força da grana) numa cidade como São Paulo. Do ponto de vista sonoro, o primeiro verso é dividido em duas seções que se entrecruzam: “do povo oprimido nas filas” e “nas filas, nas vilas, favelas”. Na primeira seção sobressai a dureza pela aliteração de fonemas oclusivos (“d”, “p”, “p”, “m” e “d”) combinados com as modulações em “i”, passando a idéia de opressão, apequenamento massacrante e acumulação de gente apinhada no mesmo espaço, as filas: “Do POvo OPRIMIDO nas FIlas...”. Na segunda seção, ao invés das oclusivas, sobressai a sonoridade fricativa combinada com o som “l”, sempre em sílabas átonas: “nas FiLas, nas ViLas, FaVeLas”. Caetano retrata o oprimido que, após a jornada de trabalho, entra nas angustiantes e intermináveis filas dos meios de transporte, passa pelas vilas e chega finalmente ao local de morada: as favelas. Se 294 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular examinarmos com acuidade os componentes sonoros dessa seção, verificamos que a mesma realça uma lógica articulatória, do ponto de vista fônico, que se materializa em acústica e que, por sua vez, se integra na semântica: “f – l”, “v – l” e “f – v – l”, sendo o signo “favela” a síntese sonora e semântica, o ponto de chegada que congrega os componentes sonoros de “fila” e “vila”. Se tomarmos o terceiro verso, que se articula com o segundo (o capital), o mesmo também se divide em duas seções: “feia fumaça que sobe” e “apagando as estrelas”. Na primeira, o que se realça são os sons fricativos e nasal (Feia FuMaÇa que Sobe) criando-se a impressão sensório-auditiva (e até visual) da fumaça, da poluição paulistana, injetada pelos escapamentos dos veículos e chaminés. Algo assim como um intermitente “ffffffssffssffsssffssss” (feia fumaça que sobe). Na segunda seção, essa “feia fumaça”, que flui e se alastra no contínuo do tempo (repare a forma gerundiva de ‘apagando’) apaga, faz perder o brilho das estrelas. Para entendermos a mágica sinestésica com que o artista arremata a relação entre os três versos em destaque, examinemos a qualidade sonora das rimas: “Favelas” – “Belas” – “Estrelas”. Houve em “estrelas” um fechamento de modulação acústica ou timbre, uma ruptura com o psicologicamente esperado pela sensibilidade auditiva: “favÉlas”, “bÉlas”, “estrÊlas”. Ou seja, quando nossa compreensão e percepção sensorial do verso atinge a palavra final, as “estrelas” já estão apagadas pela força devastadora da grana (dinheiro) e efeitos destrutivos da feia fumaça. Esperávamos “estrÉlas”, rimando com “favÉlas” e “bÉlas”. No entanto nos veio o signo em seu estado natural: “estrÊlas”. Como um mestre da inventividade sonora, Caetano atualiza a palavra tal como ela é, em níveis morfológico e semântico (estrela), redimensionando-a sinestesicamente pela ruptura e surpresa. Eis a indagação: o artista pensou objetivamente em criar esses efeitos? Provavelmente não. Cabe a ele intuitivamente criar tais maravilhas. E a nós, percebê-lo. Como a atenção quase obsessiva pelas aliterações acabou definindo a insistência de um estilo, e se concentram com toda evidência nas gravações de 1966 até meados do decênio de 1980, elas parecem dividir a obra do artista em duas fases: na primeira, realização da sonoridade pela integração sinestésica da palavra na música; na segunda, principalmente após o encontro com o músico Jaques Morelenbaum, mergulho existencial e estético que, no fundo, reflete o afã de um encontro, busca da convergência e extensão das origens: a música popular brasileira, o multiculturalismo, a etnopoesia e etnomúsica, a defesa do oprimi295 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 do afro-brasileiro, o indigenismo, a integração com os povos latinos, hispânicos, hispano-americanos e o universo: (Estrangeiro - 1989, CirculadÙ, 91 CirculadÙ ao Vivo - 1992, Tropic lia 2 - 1993, Fina Estampa - 1994, Fina Estampa ao Vivo - 1994, Tieta do Agreste - 1996, Livro - 1997, Prenda Minha - 1999, Omaggio a Federico e Giulietta ao Vivo - 1999, Noites do Norte - 2001, Noites do Norte ao Vivo - 2001, Eu N„o PeÁo Desculpa com Jorge Mautner - 2002. Em Caetano Veloso, as aliterações fomentam e tonificam a pregnância energética dos signos, de âmbito lingüístico e extralingüístico, no tecido artificioso da canção. Redimensionam, reorganizam, quer dizer, criam nova organicidade em sua obra. E apontam para o mundo de dentro da arte, em seu pendor para o interior de si e sua função de linguagem artística. Portanto interagem para realçar um comprometimento fundamental: a comunicação artística em transe intercomunicativo de vários códigos e procedimentos, e ebulição como linguagem e seus rigores imaginativos e estéticos. Examinemos oito casos típicos do cancionista. 1. ALITERAÇÃO: FLUÊNCIA E SEMANTISMO A reiteração de segmentos fônicos (como de substâncias semânticas) cria uma relação de forte contraste com os outros componentes do verso e da estrofe, passando a desempenhar papel difuso e tenso entre conjuntura dos elementos que se reiteram e sua contigüidade com os outros componentes do contexto. Eu pus os meus pés no rIACHO I ACHO que nunca os tirei... (“Força Estranha”, Roberto Carlos, 1978) É freqüente em Caetano Veloso o artificioso jogo sonoro que emenda o último segmento de um verso com o primeiro do seguinte. No caso acima, o caudal da vida, metaforizado pelo signo “riacho” se prolonga e flui no tempo e espaço ligando-se a “e acho” [i acho] da frase semântico-musical subseqüente. No poema-canção a seguir, de natureza análoga e também escrito para a interpretação 296 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular sentimental de Roberto Carlos, o segmento “rom ntico” flui rimicamente em “um anticomputador” para realçar, com admirável fluência e leveza sonora e surpreendente construção semântica, a sentimentalidade, emotividade e subjetivismo de um sujeito pleno de romantismo, em contraste com o pragmatismo, frieza e objetividade de um computador. Na ênfase dada pelo recurso aliterativo da rima e pelo floreado sonoro arquitetado pela modulação entonacional na antepenúltima sílaba (“mântico-mântico”), o artista põe em destaque a essencialidade de que o ser humano é uma antimáquina ou, em plena quarta metade do século 20, se “desmaquina”. Vivendo no paradoxo existencial que põe em xeque os códigos do antigo e do novo, os valores tradicionais e os cibernéticos e tecnológicos, a materialidade de um disco de música e o onirismo libertário que parece desprender-se dele (disco-voador – “eu vou fazer uma canção de amor / para gravar num disco voador...”) o personagem visualiza-se como um “anticomputador”. Eu vou fazer uma canção pra ELA Uma canção singELA, brasileira, Para lançar depois do carnavAL. Eu vou fazer um iê-iê-iê roMÂNTICO, uM ANTICOmputador sentimentAL. (“Objeto Não-identificado”, Caetano Veloso - 1969) Os manuais de retórica indicam que, num texto em prosa, devemos evitar a rima, por parecer que repetimos uma palavra, empobrecendo o estilo. Disto se infere que as rimas internas, ou a analogia de segmentos fônicos no interior do verso, ao afetarem diretamente a matéria melódica, por extensão e conseqüência afetam a substância semântica do contexto, difundindo e catalisando novas dimensões de significado. Nesse sentido, em Caetano Veloso, essas ocorrências além de exercer papel na eufonia (e cacofonia proposital) do verso, ampliam o sentido ou sentimento global de sua expressão, como se verifica a seguir: Não quero mais essas tardes mornas, normais, Não quero mais videoteipe, mormaço, março, abril, Eu quero pulgas mil na geral, 297 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Eu quero a geral, Eu quero ouvir gargalhada geral, Quero um lugar para mim, pra você. (“Cinema Olympia”, Barra 69 Caetano e Gil - 1969). O segmento, fundamentado no significado do verbo “querer” (eu não quero – eu quero) está dividido em dois blocos: os dois primeiros versos e os restantes. Tem um quê de criatividade lúdica, como se uma palavra estimulasse o aparecimento da outra, e é perceptível a semelhança sonora nos conjuntos binários “mornas – normais”, “mormaço – março”, “abril – mil”, e a reiteração por três vezes do vocábulo “geral”. No primeiro conjunto, o deslocamento ou alternância do acento de intensidade em “mórnas – normais”, combinado com o aparecimento do ditongo decrescente “ai”, na segunda palavra, provoca uma gradação rítmica ascendente, intensificadora de uma certa ansiedade ao enumerar-se os termos substantivos subseqüentes: (não quero) tardes mornas, normais; videoteipe, mormaÁo, marÁo, abril, que compõem todo o primeiro bloco. O artifício estético de “gradação progressiva” apresentado no primeiro verso, como determinador do circuito informativo e sensível do trecho em análise, é constituído por um jogo de permutações sonoras, quais sejam: a) arranque progressivo do acento de intensidade: “mornas – normais” (a acentuação se desloca da primeira sílaba para a segunda, na palavra seguinte); b) arranque progressivo do timbre ou modulação vocálica (ó-a – o-ái: mornas – normáis); c) alternância das consoantes nasais m-n/nm (MorNas – NorMais). Como se evidencia, toda contextura sonora é formatada para a concepção subliminar de um sentido de absorção do espaço e tempo do personagem que diz em impulsos progressivos. E coaduna e se harmoniza com a contextura semântica dos versos. Tudo denota um espaço-tempo repisado. O próprio sentido de arranque em progressividade se repete nas três formas sonoras, correlatas, mas distintas e integradas. Vale ressaltar que o sentido de “tardes mornas, normais”, negada pelo personagem, superando idéia de mormaço calorento 298 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular daquelas tardes, refere à monotonia enfadonha e sem estímulo de certas “tardes normais” em que os acontecimentos se sucedem tediosos, sem a motivação da novidade, como se alguém repisasse os ermos de uma “Cidadezinha Qualquer” de Drummond de Andrade. Assim, a maestria que ressalta da construtividade sonora do cancionista, coaduna com os efeitos de sentido e o sentimento de tédio e fadiga existencial daquele que toma a palavra, em tom confessional. “É isto que não quero” – diz o personagem, na dinâmica intrincada e transpasse interativo dos sons e dos sentidos. Transpasse que distingue o dizer cotidiano e não-poético da riqueza elocutória da arte em Caetano Veloso. Se, do ponto de vista aliterativo, uma coisa puxa a outra na construção lúdica do contexto poético-musical, há correlato procedimento construtivo em “março – abril”, agora na perspectiva semântica, do mesmo modo impulsionante e ascendente. No segundo caso dessas correspondências internas em “Cinema Olympia” (mormaço-março), construído também à base da alternância do fonema “r” (moRMAÇO – MARÇO) ocorre também semelhante adensamento de ordem crescente, mas organizado de maneira distinta, pois não só se desloca para frente o fonema vibrante, como também o signo “março” motiva o surgimento de “abril”, ascendente no entendimento objetivo e semântico da escala dos meses. Assim, ludicamente, a motivação sonora (moRMAÇO – MARÇO) fomenta outra motivação, agora de caráter semântico (mormaço, MARÇO, ABRIL). O terceiro caso de aliteração (abril – mil) encadeia com a série seguinte: Não quero mais videoteipe, mormaço, março, abril, Eu quero pulgas mil na geral. Ao deslocar a próxima rima, “mil”, para a posição interna da frase seguinte, o cancionista introduz de maneira surpreendente (devido à ruptura com o psicologicamente esperado) o signo “geral”, que se vai reiterar por mais duas vezes, mobilizando cumulativamente outras possibilidades e matizes de significado: a) “eu quero pulgas mil na geral” – espaço comunitário destituído de luxo; localidade nos teatros, circos e estádios em que são cobrados preços populares; b) “eu quero a geral” – estar em comum à maior parte ou à totalidade de um 299 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 grupo de pessoas; estar à vontade, satisfeito entre o povo; c) “eu quero ouvir a gargalhada geral” – que é abrangente, global; gargalhada não é específica de ninguém; de todos, comum a todos. A passagem do sentido nocional de lugar (na geral) para o sentido adjetivo (gargalhada geral), por meio de reiterações, deslexicaliza o signo “geral”, dandolhe uma feição que transcende os valores lingüísticos e lhe acrescenta o sentido de “lugar ideal”, conforme a frase culminante e conclusiva do segmento: “eu quero um lugar para mim, pra você”. Como é possível notar, além dos efeitos comunicativos dados pelas aliterações, e que extrapolam a dimensão objetiva dos significados, os casos apontados em “Cinema Olympia” se exprimem numa forma sintática repetitiva e paraletística (advérbio de negação + verbo + complemento direto), que só se rompe no último verso, tido como conclusivo e final. Música pura, musicalidade, efeitos sonoros e significados léxicos se coadunam e interagem em dimensões sensório-emocionais do fenômeno artístico. Outra canção com eloqüentes motivações fonossemânticas e fluência rítmica, auferindo-se ainda belos efeitos onomatopéicos encontram-se do frevo “Chuva, Suor e Cerveja”, gravado em 1971 (Caetano... Muitos Carnavais -1977). Examinemos o trecho a seguir: .............................................................. E vamos embolar ladeira abaixo, Acho que a chuva ajuda a gente a se ver, Venha, veja, deixa, beija, Seja o que Deus quiser. A gente se embala, s’imbora, se embola, Só pára na porta da igreja, A gente se olha, se beija, se molha De chuva, suor e cerveja. Além das aliterações que se distribuem em todas as posições de cada frase e em ambos os segmentos, como “abaixo – acho”, “veja – deixa – igreja – beija – seja”, “s’imbora – se embola – se olha – se molha” etc., a irradiação ressoante de traços sonoros propiciam ambiência de singular força imitativa. A primeira e segun300 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular da linhas do primeiro bloco resultam numa perfeita onomatopéia da chuva, por meio da repetição intermitente da composição sonora “achu” e sua variação homorgânica “aju”: E vamos embolar ladeira abAIXO ACHO que ACHUva AJUda A GENte a se ver... Como se nota, o artista iconiza o signo verbal e lhe propicia feição imitativa da coisa referida. Imagem esta que se expande na terceira e quarta linhas, mas com novos ingredientes sonoros, quais sejam: - a repetição vocálica e ditongal (e – ei), por seis vezes; - a reiteração dos fricativos chiantes (“che” e “ge”), por cinco vezes; - os três fricativos (“vê”) e três fonemas oclusivos (“de” e “b”) seguidos. Acho que a chuva ajuda a gente a se VER VENHA, VEJA, DEIXA, BEIJA SEJA o que Deus QUISER. O segundo bloco, que se amalgama ao primeiro já pelo contexto sonoro (agen = A GENte), apresenta, de início, um jogo composto de acentos de intensidade recaindo sobre a segunda sílaba, de articulação acústica oclusiva bilabial: “AGENte simBAla, simBOra, simBOla, e ladeados de um lado pela sonoridade anasalada de “sim”, e de outro pelos grupos “la – ra – la”, com idêntica vogal aberta e consoantes próximas. A palavra em rotação interativa, por assim dizer, se converte num cantarolado: la-ra-lá. Devido à natureza articulatória e acústica, certas repetições de consoantes bilabiais oclusivas criam uma dureza e aceleramento rítmico que, nas linhas em exame, infundem a idéia de movimentação em frenesi, formatam, em conjunto com as motivações semânticas, um fluxo dionisíaco de imagens carnavalescas, cambaleantes e aos solavancos dos personagens. Elas se adensam de modo crescente e cumulativo até o desfecho da canção: 301 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 a gente se emBAla, s’imBOra, se emBOla só PAra na PORta da igreja, a gente se Olha, se BEIja, se Molha de chuva, suOr e cerveja. Tais impressões, captadas pelos sensores imaginativos de audição e visão, são intensificadas pela incidência de marcas culminantes a recair nas segundas sílabas de cada grupo sonoro, de acordo com cláusulas rítmicas baseadas em uma sílaba tônica, com modulações abertas e fechadas, ladeada por duas átonas: “aGENte – simBAla – simBOla – soPAra – naPORta – daiGreja – aGENte – siOlha, siBEIja - siMOlha – deCHUva – suOri – cerVEja”. Em “Chuva, Suor e Cerveja”, a contextura fonossemântica de grande força auditiva e visual, constrói um sentido de embriaguez e carnavalização da vida. Tem como correlatos estéticos a poesia, a música, o teatro e artes plásticas de fundamentações barrocas e expressionistas, tão representativas do espírito etnológico que se refletem nas relações lúdicas e tradicional arte baiana. Homólogo adensamento fonossemântico, redimensionando a palavra em suas possibilidades extralingüísticas, atualiza-se em “Pecado Original” (Caetano Veloso - Marcianita - 1995), realizada para a trilha musical do filme A Dama do LotaÁ„o (1975), de Neville D’Almeida: Todo dia, toda noite, toda hora, Toda madrugada, momento e manhã, Todo mundo, todos os segundos do minuto, Vive a eternidade da maçã... A reiteração matizada por fonemas oclusivos (ToDo/ToDa) intensifica o sentimento obsessivo do tempo sorvido no instante de cada minuto pelo mito do desejo, da impregnação erótica e do “pecado original”: o ser humano vive, correlato à protagonista do drama teatral de Nélson Rodrigues, a “eternidade da maçã”. Mais uma vez em Caetano Veloso, palavra e música se amalgamam em interação produtiva pra resultar num swing espetacularmente sugestivo, sua poesia-canção. As correspondências internas e repetições orgânicas de segmentos sonoros equivalentes ou análogos, implicando uma significância fonossemântica já aparece 302 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular em “Janelas Abertas nº 2”, de 1970 (Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972): Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro, Percorrer correndo corredores em silêncio, Perder as paredes aparentes do edifício, Penetrar num labirinto, num labirinto de labirintos, Dentro do apartamento... Mais uma vez, na esteira da tradição lírica, que traz recordações e as coloca no tempo presente em modo confessional, quem toma a palavra é o próprio “eu” enunciado na canção. A melodia da lembra a infusão agônica de um tango; o texto, a sinuosidade de alguém perambulando em êxtase, nos labirintos obscuros de si mesmo. Parece evidente que “Janelas Abertas nº 2” inspira-se em Castelo Interior ou Livro das Sete Moradas (Castillo Interior ou Libro de las Siete Moradas, 1588) da erudita e poeta mística – uma das maiores escritoras em língua castelhana – Santa Teresa de Ávila, também conhecida como Santa Teresa de Jesus (Teresa de Cepeda y Ahumada, 1515-1582). Em consulta pessoal a Caetano Veloso, feita há alguns anos, o artista confirmou-me a suposição acrescentando que lera também a obra de outro poeta místico no século 16, San Juan de la Cruz, contemporâneo de Santa Tereza. Responsável pela admirável fluência e expressividade sensorial do texto, aliteram-se em impulsos intermitentes as consoantes oclusivas, em seus pares acústicos e homorgânicos, combinadas com a vibração do “r”, em dezesseis ocorrências: “p” e “b” (oito ocorrências), “t” e “d” (doze ocorrências), “k” (três ocorrências). São séries sonoras que se reduplicam (perCORREr, CORREndo, CORREdores; PAREdes, aPAREntes) e intensificam, em harmonia com a sugestividade semântica, a situação surreal, pateticamente dramática, de movimentação vertiginosa e agônica (percorrer correndo) e clausura (corredores, perder, paredes aparentes) por que passa o eu confessional da canção. A ausência de tonicidade da vogal aberta “a”, e intensificação repetitiva do “e”, “i”, “o”, além das nasalizações, propiciam a fruição sensorial de obscuridade e sufocação apropriados à melodia, sonoridade do jogo de palavras e o significado objetivo das mesmas, numa ambientação em que música e palavra se entrelaçam em magistral harmonia. “Penetrar num labirinto, num labirinto de labirintos” é esse anelo irrespondível de Caetano Veloso, de mergulho no interior dos seres e das 303 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 coisas, e mergulho no interior dos signos em movimento, pra revelar o que não se contempla, mas se vivencia. O requinte aliterativo conduz à idéia etérea do significado sintético, em vertigem. Tal se encontra no frevo “Atrás do Trio Elétrico” (Caetano Veloso, 1969). Repare que uma idéia parece se refletir indefinidamente em múltiplos espelhos. Ela ecoa na imagem de si mesma, em torvelinho, a produzir, pela reduplicação “ecos de sentido”: Atrás do trio elétrico Só não vai quem já morreu, Quem já botou pra rachar e aprendeu Que È do outro lado do lado, De l do lado que È l Do lado de l ... Imagem semelhante encontra-se na elegia a uma cidade, “Sampa”, do disco Muito Dentro da Estrela Azulada (1978). Diz o personagem que, ao vivenciar a cidade São Paulo, sente que “és o avesso do avesso do avesso”. Num primeiro momento, a cidade é o que se vê (duras esquinas de concreto); mas, com a vivência que o tempo propicia, ela se abre em dimensões etéreas, invisíveis (poesia concreta de tuas esquinas). Imagens como o “avesso do avesso do avesso do avesso”, “que é do outro lado do lado, de lá do lado que é lá do lado de lá” e “labirinto de labirintos” insinuam noÁões tridimensionais de significado em que, na vertigem dos signos dispostos em perspectiva, “placas de noções objetivas” vão sucessivamente se desprendendo deles pra sintetizar idéias vagas, metafóricas, perceptíveis na dimensão sensório-emocional. 2. ALITERAÇÃO E MOVIMENTO MIGRATÓRIO O poeta e crítico Augusto de Campos já apontara a grande incidência do verbo ir e seus correlatos em Caetano Veloso. As primeiras décadas de seu percurso cancionístico registram os passos do artista pelos lugares por onde passou, ou seu anelo de saída de algum lugar. Passeando pelos primeiros decênios 304 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular de sua obra, sobressai a inesquecível “Alegria, Alegria”: “caminhando contra o vento / sem lenço e sem documento / no sol de quase dezembro / eu vou” (Caetano Veloso, 1967). Em “Você não Entende Nada” argumenta e solicita: “Você não está entendendo / quase nada do que eu digo, / eu quero ir-me embora, / eu quero dar o fora, / e quero que vocÍ venha comigo...” (Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972). Insubordinado ao mesmo lugar, ou refletindo sua inquietude existencial e artística, professa com sotaque lusitano que: “navegar é preciso; / viver não é preciso” (“Os Argonautas”, Caetano Veloso, 1969). Na elocução, costura as Palavras de PÛrtico de Fernando Pessoa: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘navegar é preciso; viver não é preciso’. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Em “Nu com a Minha Música” (Outras Palavras, 1981) Caetano relata seu percurso pelas cidades do interior do Estado de São Paulo; em “Trem das Cores” (Cores e Nomes, 1982, em sinestesia policrômica e visionária, lança o olhar expressionista de casas que vão passando. E escreve: “as casas tão verde e rosa, que vão passando ao nos ver passar...”. No álbum Outras Palavras (1983), uma canção em ritmo caribenho diz:”: “mamãe, eu quero ir a Cuba / quero ver a vida lá... Mamãe eu quero ir a Cuba / e quero voltar” (“Quero ir a Cuba”). Em “Épico” (AraÁ Azul, 1973), mobilizando os sentidos do signo “rio”, como substantivo que designa a cidade e conjugação de “rir” em primeira pessoa, registra: “vivo entre S„o Paulo e rio / porque não posso chorar”. Como se nota desse passeio, o significado de ir é uma alegoria na efervescência criativa de Caetano. Reflete os caminhos de sua própria arte e trajetória autobiográfica, como matéria fundamental da canção. A visão dessa inquietude migratória, que se projeta da letra, musicalidade das palavras e efeitos sensoriais, já se encontra em “Irene” (Caetano Veloso - 1969), disco gravado em Salvador e que, com o disco de capa psicodélica Caetano Veloso (1967 – um bilhete manuscrito da contracapa pergunta “onde é que vamos morar?”) o consolida para sempre nos panoramas mais fecundos da arte brasileira. Eu quero ir, minha gente, Eu não sou daqui, Eu não tenho nada, Quero ver Irene rir, 305 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Quero ver Irene dar sua risada. Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Quero ver Irene dar sua risada. “Irene” é uma das últimas canções compostas no Brasil, antes do exílio em Londres. Irônica, pois melancólica e eufórica, afirma autobiograficamente que “eu não sou daqui”, “eu não tenho nada”. Evoca, no entanto, o sorriso da irmã Irene, da qual se despede: “quero ver Irene dar sua risada”. Como se a ouvíssemos no tempo real do estúdio de gravação, uma interrupção no meio da música, simulando erro num dos acordes instrumentais, recontagem do tempo (um, dois, três...) e reinício do registro fonográfico, traz à imaginação o ambiente informal e descontraído entre os músicos, ambiente este que se transfere ao clima de encontro, ou a uma reunião de despedida em família. Lírica, a canção “Irene” é recordação de um momento crucial na vida. Realiza-se como se fosse uma “consagración del instante”, na intuição do poeta mexicano Octavio Paz. A letra, realizada em forma de epigrama, gira em torno do mesmo assunto, volta e re-volta ao mesmo tema, como o pulsar de uma melancolia insistente, latejante. Na sonoridade das palavras, esse pulsar realiza-se por um admirável jogo de aliterações: o estribilho se faz pela repetição em eco, por seis vezes, do segmento “Irene ri” (irenirri, irenirri, irenirri, irenirri, irenirri, irenirri), com o prevalecimento da ironia anunciada: a despedida (ir) e o sorriso (ri). No jogo aliterativo, o som “i” reitera-se por dezoito vezes e o “r” apenas muda de posição (ir-ri). Esse encadeamento sonoro se amplia em “ke-ro-ve-ri-re-ni dar sua ri-za-da”, várias vezes repetida: queRO, veRiRE daR Ri quEro, VerirEne dAr suA risAdA Dar risaDa. São evidentes (e sonoras) as várias correspondências internas, os artifícios e homogeneidades aliterativas e efeitos sinestésicos. O andamento fonossemântico de “Irene”, que no plano aliterativo se baseia na reiteração de séries sonoras equiva306 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular lentes, no plano rítmico, excetuando-se o primeiro verso, equaciona-se pela alternância intermitente de séries de sílabas acentuadas (sílabas ímpares) e átonas (sílabas pares): EU não SOU daQUI EU não TEnho NAda QUEro VE riREni RIR QUEro VE riREni DAR sua riZAda A repetição do vai e volta da mesma letra (construída na base de séries aliterativas) e a melodia passam a sensação de que o sentimento irônico da despedida e seus apelos sensório-emocionais se alongassem nas horas, no espírito do “eu” que fala, e, por extensão, na sensibilidade do ouvinte. O sentido de melancolia e lamento, a consagrar o estado interior de perda e despedida, na condição sentimental do retirante nordestino, vislumbra-se em “No Dia que Eu Vim-me Embora” (gravação em disco compacto de 1968), realizada em parceria com Gilberto Gil. No dia que eu vim-me embora Minha mãe chorava em ai, Minha irmã chorava em ui, E eu nem olhava pra trás. No dia que eu vim-me embora Não teve nada demais.... Mala de couro forrada Com pano forte e brim cáqui, Minha avó já quase morta Minha mãe até a porta, Minha irmã até a rua, Até o porto meu pai... Augusto de Campos, na coletânea Musica Popular Brasileira n 22 (Editora Abril, 1971) observa que “Esta composição põe em evidência a profunda radicação dos dois baianos [Gil e Caetano] na canção nordestina. Versa um tema caymmiano característico – a emigração para o Sul... A poética de Caetano é de uma tragicidade seca e realista, nua e crua, e de uma imensa sutileza vocabular, 307 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 visível na precisão epigramática com que ele equaciona o sentimento da separação...”. Os segmentos reiterados minha MÃe chorava em ai minha irMà chorava em ui mobilizam as interjeições ai e ui, de fundo sentimental e trágico, dispostas no paralelismo das mesmas sonoridades a cada linha. À medida que chama atenção para o verbo “chorar”, com a culminância do acento de intensidade marcada pela abertura do “a” (choRAva), o tom grave e lastimoso de ambos os segmentos propicia uma atmosfera de murmúrio, dada pelas aliterações anasaladas “im, am, em” (quatro vezes), nasais “ñ” (quatro vezes), “m” (doze vezes), chiantes “ch” (quatro vezes), fricativos “v” (quatro vezes) e vibrantes “r” (seis vezes). “No Dia que Eu Vim-me Embora”, como o lamento na poesia de João Cabral de Melo Neto, sintetiza, pela repetição oca de “ais” e “uis”, o ser tão triste do retiro, a severidade nordestina (que se estende ao alegórico “nordestino do Brasil”2 ), a perda batendo na pedra, como mortes severinas. O clima lamentoso dessa canção de retirante seria um leitmotiv ou um sentimento recorrente que se repete em toda obra de Caetano Veloso. É que, como ouvi de um poeta popular, a gente sai do sertão, mas o sertão não sai da gente. Em “Sugar Cane Fields Forever” (AraÁ Azul, 1973), canção essencialmente sensorial e onomatopéica, e que remete ao “Strawberry Fields Forever”, do álbum Magical Mystery Tour (1967) dos Beatles, Caetano promove o jogo aliterativo que mobiliza o significado de “ir” e “rir”: “ir, ir indo” que, várias vezes repetido, ressoa como “ir ir rindo” – um prazer de chegada. Constrói-se ainda a onomatopéia do ruído do trem em movimento. Carregadas da imagística que atua na faixa da sensorialidade, são visões fragmentárias e migratórias de um “magical mystery tour”, uma viagem em que o “eu” cancionístico, em consonância com a história de vida do artista, vai “passar fevereiro em Santo Amaro”, sua cidade natal. 3. ALITERAÇÃO E IRONIA Deixei consignado que em Caetano, tantas vezes, o jogo aliterativo tende a deslexicalizar a palavra, redimensionando campos que mobilizam significados 308 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular intervalares, às vezes vagos, ambíguos, metafóricos, às vezes associando idéias surpreendentes, que rompem com a lógica psicologicamente esperada. Observemos a seguinte passagem da canção “Você Não Entende Nada” (Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972): Traz meu café com suíta, eu tomo, Bota a sobremesa, eu como, Eu como, eu como, eu como, eu como... Você Tem que saber, eu quero correr mundo, Correr perigo... O signo “como” reitera-se por cinco vezes. Na primeira vez, é antecedido por “sobremesa”; na última, sucedido por “você”. O verbo deixa-se flutuar num liame sonoro, semântico e sintático: “como sobremesa”... “como você”. Oriundos desse artifício, o artista mobiliza, pelo menos, três significados possíveis do signo, que transitam de um para o outro à medida que acontece o processo aliterativo: como (verbo): “bota a sobremesa, eu como”; como (verbo), possuir sexualmente, em linguagem figurada e popular: “eu como você”; como (relação comparativa), vinculando-se ao cotidiano entre marido e mulher: “eu como [igual a] você. Similar transição de significados ocorre com o signo “correr”, em segmento seguinte da mesma canção, repetido por duas vezes e, em cada uma delas, com um significado distinto: “correr mundo” (sentido figurado de migração, viagem); “correr perigo” (sentido figurado de experimentar uma experiência, colocar-se à mercê). 4. ALITERAÇÃO E DESLOCAMENTO FONOSSINTÁTICO Já vimos exemplos de reorganização interna ou permutação de acentos de intensidade, timbres e fonemas como artifícios catalisadores de conteúdos anímicos e estilísticos em Caetano Veloso. O que se quer explicitar a seguir, racionalizando a emoção, é um exemplo de permutação de grupos sonoros inteiros (palavras) dentro do contexto frasal. Trata-se, contudo, de uma forma de aliteração, uma vez que as palavras se repetem, só que em 309 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 posições diferentes dentro de cada segmento. Analisemos o exemplo latente na canção “Qualquer Coisa” (Qualquer Coisa, 1975): Mexe qualquer coisa dentro doida, Já qualquer coisa doida dentro mexe. No trecho, Caetano realiza um de seus mais expressivos e belos exercícios de síntese artística. A canção, revestida pelo mistério da linguagem vaga e figurada e até de um enigma simbólico, dado já pelo título “Qualquer Coisa”, utiliza-se de expressões como “não se avexe não, baião de dois” (algo que se faz entre duas pessoas, e que poderia parecer perturbador ou vexatório) e “sem essa aranha / sem essa aranha...” (alusão figurada e chula do órgão sexual feminino) para chegar ao significado sublimatório da fecundidade da vida e criação entre os seres. Se compararmos as duas frases do segmento, verificaremos que a segunda apresenta a ordem de palavras nas posições 2 – 3 – 5 – 4 – 1, que se permutam em relação à primeira. Elas significam, respectivamente, ação (causa) e sua conseqüência (efeito). Temos, pois, na primeira linha, a alusão figurada da cópula, do prazer e transe sexual, na perspectiva feminina (“mexe qualquer coisa dentro doida”), e na segunda, introduzido pelo advérbio temporal “já” (naquele momento, sem demora) a representação da gênese, o milagre da pulsação da existência: “já qualquer coisa doida dentro mexe”. O que era uma ação singularmente física de amor e comunhão entre as pessoas se redimensiona como celebração da nascente da vida, a comunhão genética do ser embrionário, a vida que remexe em botão. Por meio da transação sonora, e intervindo numa ordem já existente (o primeiro verso), Caetano aviva o espírito criador e a invenção demiurga próprios do artista; instrumentaliza, pela intuição, a invenção arrebatadora de uma nova ordem de energias comunicativas, ancestral, extratemporal e sublime. 5. ALITERAÇÃO E EXPANSÃO CONTÍNUA Páginas atrás chamei de aliteraÁ„o a toda recorrência de segmentos sonoros equivalentes e reiterados, em qualquer posição no interior da palavra ou entre palavras 310 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular e, agora verificamos, permutando-se a ordem das palavras no segmento sonoro. Essa designação parece adequada ao papel das aliterações, cujo equacionamento final é o fluxo rítmico e expressividade sonora da canção como um todo. Em Caetano, além da fluência e ondulação rítmica que se expressam por aliterações como, exemplarmente, em “Tropicália” (Caetano Veloso, 1967) eu organizo o moviMENTO eu oriENTO o carnaAL eu inAUguro o monuMENTO no plaALto centrAL do país... há uma ocorrência de aliteração que, não fugindo do padrão, se realiza por meio de uma espécie de expansão escalonada dos elementos sonoros. Além dos numerosos exemplos que iluminam a obra do artista em todos os discos, e alguns já demonstrados no presente texto, acrescento as ocorrências em “Como Dois e Dois” (Roberto Carlos, 1971): Quando você me ouvir cantar, Venha, não creia, eu não corro perigo, Digo, não digo, não ligo, deixo no ar Eu sigo apenas porque gosto de cantar... Quando você me ouvir chorar, Tente, não cante, não conte comigo. Falo, não calo, não falo, deixo sangrar, Algumas lágrimas bastam pra consolar... As duas estrofes se complementam e interagem em níveis sonoros e sintáticos pela ordem e correspondência interna ou paralelismo dos termos. Tomemos apenas a segunda estrofe. As aliterações no interior do segundo verso (tENTE, cANTE, cONTE) são formadas também pela comutação das vogais “en” “an” e “on”, permanecendo reiteradas tanto as partes iniciais como finais dos signos. Semelhante procedimento ocorre no verso seguinte, com a comutação da sonoridade consonantal de “f” e “k”, mais a repetição do segmento “alo” (Falo, não Calo, não Falo). No mesmo segmento, há a comutação sintática na relação “falo – não falo”, pela ausência e presença do elemento de significado negativo. Processo análogo de expansão fonossintática vamos encontrar na canção “Júlio/Moreno” (AraÁ Azul, 1972): 311 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Uma talvez Júlia Uma talvez Júlia não Uma talvez Júlia não tem Uma talvez Júlia não tem nada Uma talvez Júlia não tem nada a ver Uma talvez Júlia não tem nada a ver com isso Uma Júlia... Um quiçá Moreno nem Um quiçá Moreno nem vai Um quiçá Moreno nem vai querer Um quiçá Moreno nem vai querer saber Um quiçá Moreno nem vai querer saber qual era Um Moreno.... Cada linha se expande na seguinte, como o assentamento das peças dum mosaico, até formar dois desenhos completos ou frases coordenadas: “Uma talvez Júlia não tem nada a ver com isso (e) um quiçá Moreno nem vai querer saber qual era”. A monotonia de um segmento sonoro expandindo-se ou reorganizando-se em duas seriações repetidas parece refletir outra vez o sentimento de um tempo que se alonga na existência. Assim que, no jogo de palavras e por meio delas, algo cresce de modo incessante e traz uma indagação: menina ou menino? Exprime, análogo à experiência biográfica do artista, a doce angústia da espera pelo primeiro filho, um quiçá, Moreno ou Júlia? Ambos os blocos escalonados parecem representar a vida em gestação, um estado embrionário que cresce, formando feixes de segmentos sonoros sucessivos, que se vão amplificando. Sugerem o ponto de partida de uma dúvida, um “talvez”, um “quiçá” que se materializa na forma do sujeito no mundo, registrado, institucional e com nome próprio (Júlia ou Moreno). O fenômeno sonoro fecundado nos dois blocos da canção, em seu ritmo temporal, quando visualizado no espaço branco do papel, configura uma ordem rítmica, simulacro do sentido de monotonia e passagem do tempo em progressão. Outra vez Caetano dialoga com representação “verbo-voco-visual” da poesia concreta. 312 Romildo SANT’ANNA 6. Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular ALITERAÇÃO E SUPERLATIVAÇÃO Caetano realiza um incessante jogo transitivo e energético de palavras, às vezes até como se elas fossem peças de um quebra-cabeças em que seria possível mudar-lhes as cores, formas e texturas, deslocá-las de posição pra se empreender um novo desenho de fecunda significação e beleza. As aliterações, reiterações e transposições de segmentos sonoros, sempre de maneira inventiva e surpreendente, ao redimensionar o estrato sonoro, por extensão e conseqüência redimensiona o sentido nocional, emocional, estimulante e delicadamente estético da canção. A aliteração funciona na intensificação de um sentido, ou pela associação de idéias, como já vimos (mormaÁo, marÁo, abril), ou pela gestação ascendente de um significado afetivo, em que o sentido original se deslexicaliza pra fazer nascer um sentido novo e de valor superlativo. Este último artifício, até certo ponto comum na poesia e na música, é também freqüente em Caetano Veloso. Sua estilística da afetividade superlativa é de distinta natureza quando comparada com o superlativo retórico ou gramatical: qualidade em grau mais alto, ou no mais alto grau. Verifiquemos certos segmentos sonoros em “Lua, Lua, Lua (JÛia, 1975): Lua, lua, lua, lua, Por um momento, meu canto contigo compactua... Branca, branca, branca, branca... A simbologia de lua é essencialmente feminina, evoca a face emocional, intuitiva, sensorial, irracional e afetiva do ser. Brilho no meio do escuro, percepção por reflexo, inspiração amorosa, iluminação mística e qualidade mutante do ser em suas quatro estações, a lua é invocada pelo cancionista. E lhe confessa que “por um momento, meu canto contigo compactua”. Necessário se faz lembrar que em Caetano, em contrário a Chico Buarque, preside a solaridade do método criativo apolíneo: rigor formal, luminosidade, equilíbrio, eurritmia e controle da composição pelo domínio das emoções. Nesse canto, e no momento consagrado pelo artista, temos a evocação do que seja uma das faces de sua arte. Na primeira linha, pois, atualiza-se o superlativo da substância (a lua); na segunda, o superlativo da qualidade (branca). Em ambas, a repetição sonora promove a transição de um significado a outro, ou a passagem do que era objetivo e pragmático (a 313 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 lua, a cor branca) em conteúdo super-ativado. O valor superlativo implica, pois, compreendermos a elevação da palavra, do estado de dicionário ao estado de poesia, do valor material que têm os signos à evocação imaterial e simbólica das coisas e dos seres. É com esta chave ou artifício que se compactua uma parcela significativa do cantar artístico em Caetano Veloso. Em “Alguém Cantando” (Bicho, 1977), Alguém cantando longe daqui, Alguém cantando longe, longe, Alguém cantando muito, Alguém cantando bem, Alguém cantando é bom de se ouvir... Além da sonoridade paralelística, em que se reiteram por cinco vezes os segmentos “alguém cantando”, o sentido de distância se intensifica no segundo verso, pela reduplicação do segmento “longe, longe” (muitíssimo distante). O cancionista redimensiona o sentido de uma coisa longínqua, e interage com as qualidades de [cantar] “muito”, “bem” e “bom”. A canção evoca, com nostalgia, todos os cantares, o pregresso afetivo que ressoa como tonificador de uma recordação ancestral, vaga alegria, oculta crença ou beleza distante que povoa o presente, nostalgicamente vivido. “Alguém Cantando” parece uma chave pra se entender a fase posterior de Caetano Veloso em que, em vários discos, dedicou-se a “reler” ou reinterpretar, sempre com a emoção à flor da pele, canções nostálgicas e tradicionais do passado, brasileiras, portuguesas, espanholas, latino-americanas, italianas.... É como se, em espírito, se desenrolasse nele a fita dolente, esperançosa e contínua do que veio a intitular um de seus discos: Cinema Transcendental (1979). Na capa, o artista contempla o mar e o horizonte, projeta-se no espaço entre o aqui e as profundezas do sonho, o finito e o infinito, o palpável e o afã pela natureza essencial das coisas e dos seres, o físico e a gravidade do que flutua, em donde rebusca a intemporalidade e universalidade, matéria sensível de sua arte. Temos visto que a superlativação em Caetano ocorre com signos que indicam substância e qualidade. Examinemos uma ocorrência de aliteração que superlativiza o superlativo: 314 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular Toda essa gente se engana Então finge que não vê Que eu nasci pra ser o superbacana, Eu nasci pra ser o superbacana, Superbacana, superbacana, superbacana, Super-homem, superflit, supervinc, superist, superbacana... “Superbacana” (Caetano Veloso, 1967). O personagem, indicado pelo pronome “eu”, procura individualizar-se e, ao mesmo tempo, ironiza os clichês de sua época. Devido ao abuso, o prefixo “super” teve seu semantismo desgastado pela pobreza vocabular de uso comum e em meios publicitários. Ocorre um sentido aproximado a “eu nasci pra ser um super-superbacana (euforia irônica) numa época em que o marketing valorizava marcas e rótulos como superflit, supervink, superist, super-viva, supershell. Esses significados resvalam noutros superpoderes da época, como a censura dos formadores de opinião reacionários e os da ditadura em geral que se havia instalado no país. A identidade do indivíduo e reação contra ser visto como “massa” é um dos conteúdos mais latentes na obra de Caetano. Daí, ao que parece, outra importância sociopolítica de sua obra que, em tempos de refluxo das formas antigas, marcha contra os clichês da época. Tal motivo se apresenta como elogio à brasilidade, alegorizado pelo atleta Pelé, sua notoriedade, força e genialidade sob a pele escura, a dança e um pierrô na avenida em pleno palco aberto do carnaval: No meu coração da mata Gritou PelÈ, PelÈ, Faz força com o pé na África. O certo é ser gente linda E danÁar, danÁar, danÁar, O certo é fazendo música. A força vem dessa pedra Que canta Itapoã, Fala tupi, fala iorubá. É lindo vê-lo bailando, 315 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Ele é tão pierrÙ, pierrÙ, Ali no meio da rua, lá. “Two Naira Fifty Kobo” (Bicho, 1977). 7. ALITERAÇÃO E MODULAÇÕES DE TIMBRE “Mas se ela não quis meu sorvete, / por que grava-la em videocassete / jogar confete...”, pergunta o cancionista em “Sorvete” (VelÙ, 1989). Outro artifício da primeira fase de Caetano Veloso, e responsável pela fluência rítmica e força interativa entre som e sentido é a maestria com que alterna, nos contextos sonoros polares e intraversais, o timbre fechado e aberto das vogais. Em “Tigresa” (Bicho, 1977), o cancionista singulariza a estereotipia da rima, promove um jogo de vai e vem sonoro, em harmonia semântica com o paradoxo final: “o mal é bom e o bem cruel”: Uma tigresa de unhas negras E íris cor de mel, Uma mulher, uma beleza Que me aconteceu, Esfregando a pele de ouro marrom Do seu corpo contra o meu, Me falou que o mal é bom e o bem cruel. Notam-se, na politonia sonora de admirável eficácia rítmica, presenças de modulações abertas e fechadas intercaladas (mEL, acontecEU, mEU, cruEL) e misturadas (tigrEsa, nEgras, mulhEr, belEza, pEle) propiciando ao todo uma sonoridade politonal. Em “Sugar Cane Fields Forever” (AraÁ Azul, 1973), Vem comigo no trem da leste, Peste, vem no trem Pra BoranhÈm... 316 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular as aliterações intercalam os timbres nasais (trEM, vEM, trEM, boranhÉM) e timbres abertos (lEste, pEste), imitando rítmica e onomatopéicamente a sonoridade seca, aguda e repetitiva das rodas de aço em atrito com os trilhos, dum trem em movimento. Em “Você Não Entende Nada” (Caetano e Chico Juntos e ao Vivo, 1972), novamente se alternam modulações abertas e fechadas (consOla, aflIta, cebÔla, bonIta), com semelhante efeito dinamizador das rimas: Quando eu chego em casa nada me consola, Você está sempre aflita, Lágrimas nos olhos de cortar cebola, Você é tão bonita... Em “Baby” (disco-manifesto Tropic lia, 1968), registrando lado jovial da existência, em contraposição à penumbra emanada do terrorismo moral contra o cidadão e a arte, e o Ato Institucional nº 5 da Ditadura Militar (1964-1984), Caetano exorta os sabores e descontração da vida. Leda ignorância terem tachado esta letra de alienada, em tempos de canções engajadas e de protesto. Seu remeximento fônico, modulações, colorido sonoro e descontração são perturbadores, desconcertantes e revolucionários: Você precisa tomar um sorvete Na lanchonete, andar com a gente, E ver de perto, Ouvir aquela canção do Roberto... Chamam à luta pela paz; não acumulam o ressentimento e a dor, pois como afirmou Paulo Freyre, isto é aninhar o inimigo dentro do coração. Em “Épico”, novamente no disco AraÁ Azul (1973), o cancionista intercala modulações fechadas e abertas, outra vez enfatizando aproximações e distanciamentos de sentidos: Destino faÁo não peÁo, Tenho direito ao avesso, Botei todos os fracassos Nas paradas de sucesso... 317 COMUNICAÇÃO: VEREDAS 8. Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ALITERAÇÃO E MODULAÇÕES ACENTUAIS Repetimos que as aliterações são emblemáticas na primeira fase de Caetano Veloso. Tudo parece catalisar o afã sinestésico de aproximar a expressividade sonora da palavra à sonoridade da melodia, arrancando desse enlace efeitos que ampliam o estrato expressivo da canção. “Leãozinho” (Bicho, 1977) é significativa mostra desse procedimento estilístico: Um filhote de leão, raio da manh„, Arrastando o meu olhar como um Ìm„. Essa é outra canção autobiográfica, pois o autor é do signo de Leão no zodíaco. Registra o olhar de Caetano sobre si mesmo, como personagem leonino. Criador e criatura se contemplam, narcisicamente, no vai e vem de um “raio da manh„”. As culminâncias que desenham a ondulação rítmica exercem impulso progressivo, de abertura e euforia do amanhecer luminoso. Em seqüência, como num sonho, ou num zoom-out cinematográfico, o outro segmento é regressivo, como que movido pela atração retroativa de um Ìm„. O efeito se constrói pelo deslocamento ou alternância do acento de intensidade: maNHà – Ímã (o primeiro acento é oxítono; o segundo paroxítono). Na última estrofe há outra alternância acentual, de extraordinário efeito: Gosto de te ver ao sol, leãozinho, De te ver entrar no mar, Tua pele, tua luz, tua juba. Gosto de ficar ao sol, leãozinho, De molhar minha juba, De estar perto de você e entrar numa. Encontra-se reiterada, por quatro vezes, a rima parcial composta pela arquitetura vocálica U-A (nUmAr, jUbA, jUbA, nUmA). Além do deslocamento do acento de intensidade, evidente na irradiação sonora de (numAr – jUba), são notórias as relações dos versos “de te ver entrar NO MAR” (numár) e “de estar perto de você e entrar NUMA” (núma). No primeiro, a sensação experi318 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular mentada pelo personagem é de expansão, liberdade, contato com a imensidão (nU MAR). A sinestesia rítmica, com a culminância recaindo sobre a vogal aberta “a”, além de imitar o barulho das ondas, produz a idéia subliminar de progressividade, impulso adiante. Convida à sensação cosmológica de abertura e contato com o infinito. No verso seguinte (“entrar numa”), que passa a idéia de ensimesmar-se, mergulhar no interior do ser, a culminância do acento de intensidade se desloca para a primeira sílaba, exercendo, em harmonia com a faixa semântica, impulso retroativo. Em síntese, enquanto num verso o personagem se abre para o mundo, no outro, se fecha em vivências interiores. Caetano, na constante busca de melhor expressividade possível com a economia máxima de palavras, redimensiona o signo “numa” (“ficar numa boa”, entrar dentro de si, enxergar o efetivamente leonino) para aludir ao nome com que é conhecido o leão, amigo fiel de Tarzan, personagem romanesco de Edgar Rice Burrroughs, herói do cinema e histórias em quadrinhos. Assim, “estar perto de você e entrar numa” é “estar em si” e, figurativamente “ser Numa”, realizar-se como o próprio leão. Outro tipo de alternância do acento de intensidade verifica-se na canção “Odara” (Bicho, 1977): Deixa eu danÁar Pro meu corpo ficar odara, Minha cara, Minha cuca ficar odara... Fácil perceber o remexer das modulações e alternâncias (uma culminância oxítona e três paroxítonas): “dançAr, odAra, cAra, odAra). Não é muito claro o sentido da palavra “odara”, embora, devido ao sucesso da canção, rapidamente tenha-se ajuntado ao vocabulário descontraído da juventude em décadas posteriores. Insinua a idéia de ser bom, sentir-se feliz, estar de bem com a vida. Segundo o artista, provém do dialeto ioneba, africano. Era um regionalismo que se fez nacional. Indica, sobretudo, uma jovialidade ostensiva e poderia alegorizar o fervor denso e eletrizante, da inquieta e inquietante obra de nosso cancionista. “Flor do Lácio Sambódromo / Lusamérica latim em pó / o que quer, o que pode esta língua?” (“Língua”, VelÙ, 1989), indaga Caetano. É a língua portuguesa como “flor do lácio”, o latim em pó do cone sul, a língua brasileira ama319 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ciada pelo encontro das raças, como exprimiu Gilberto Freyre. É Camões e o carnaval brasileiro. É busca intermitente da eficácia máxima pela palavra e sons... Encerro por aqui e recorro ao suspirar de um personagem. É Caetano, o criador, sendo admirado não por quem pensamos que somos, mas por uma criatura, ao ouvi-lo. Solene e intimista, e ao emocionar-se com o desempenho do artista numa apresentação em Madri, comenta-se no filme Hable con Ella (2002) de Pedro Almodóvar: “Ese Caetano me ha puesto los pelos de punta”. É o máximo – traduziriam – ele me deixa com a sensibilidade à flor da pele. Veloso de tantas brisas e velas, tratando o som com desvelo, ele se mantém fora das opiniões padronizadas; é o doce bárbaro de todas as mídias, do disco às telas, que refletem o iluminar da vida. Desfolhamento, em alta voz, de um montão de livros. Vale. NOTAS 1 Publiquei, sobre o artista, “Caetano: Viagens e Trilhos Urbanos” e “Sampa, uma Parada”. In: DAGHIAN, Carlos (Org.). Poesia e M­sica. Coleção Debates nº 185. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 63-76 e 77-95. Também “As Rimas em Caetano Veloso”. In: MÌmesis 4 (Revista). Unesp: São José do RioPreto, 1978, p. 156-177. 2 Refiro-me aos versos “sinto calor, sinto frio / nordestino do brasil? / Vivo entre são Paulo e rio / porque não posso chorar”, da canção “Épico” (AraÁ Azul, 1972). E DISCOGRAFIA CONSULTADA, EM EDIÇÕES BRASILEIRAS DE ELEPÊS E CEDES Domingo, 1967 – Caetano Veloso, 1968 –Tropic lia, 1969 – Caetano Veloso, 1969 – Barra 69 - Caetano e Gil ao Vivo, 1969 – Caetano Veloso, 1971 – Transa, 1972 – Caetano e Chico Juntos ao Vivo, 1972 – AraÁ Azul, 1973 – Temporada de Ver„o ao Vivo na Bahia, 1974 – JÛia, 1975 – Qualquer Coisa, 1975, Doces B rbaros, 1976 – Bicho, 1977 – Muitos Carnavais, 1977 – Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978 – Maria Beth nia e Caetano Veloso ao Vivo, 1978 – Cinema Transcendental, 1979 – Outras Palavras, 1981 – Brasil, 1981 – Cores e Nomes, 1982 – Uns, 1983 – VelÙ, 1984 – Totalmente Demais, 1986 – 320 Romildo SANT’ANNA Caetano, um artista na mídia: o sensível, o erudito e o popular Caetano Veloso, 1986 – Caetano Veloso, 1987 – Estrangeiro, 1989 – CirculadÙ, 1991 – CirculadÙ ao Vivo, 1992 – Tropic lia 2, 1993 – Caetano Veloso Marcianita, 1995 – Fina Estampa, 1994 – Fina Estampa ao Vivo, 1994 – O Qu4trilho, 1995 – Tieta do Agreste, 1996 – Livro, 1997 – Prenda Minha, 1999 – Omaggio a Federico e Giulieta ao Vivo, 1999 – Noites do Norte, 2000 – Noites do Norte ao Vivo, 2001 – Eu N„o PeÁo Desculpa, 2002. 321 A crônica satírica The satirical chronicle Ana Maria GOTTARDI Professora Doutora do Programa de Pó-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR – Marília / SP - Brasil. e-mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Uma análise da crônica satírica, evidenciando uma escala de sentimentos que vão da ironia e humor ao riso irreverente e debochado. Para tanto, são focalizadas crônicas de Luís Fernando Veríssimo e José Simão. PALAVRAS-CHAVE: crônica satírica - ironia – humor – riso - sátira. ABSTRACT An analysis of the satirical chronicle, exposing a scale of sentiments, that goes from irony and humor to a irreverent and mocking laughter. With this purpose, are focalized chronicles of Luís Fernando Veríssimo and José Simão. KEY WORDS: satirical chronicles - irony - humour – satire - sarcasm. 324 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica U ma das faces mais populares da crônica, sem qualquer dúvi da, é a do humor e da sátira, palavras que encerram uma gama algo extensa de sentimentos, que vão da bonomia à acidez sardônica. Expressando o sentimento de diversão, desagrado ou mesmo revolta, despertado pelo impróprio ou ridículo, sem humor a sátira é invectiva; sem forma literária, palhaçada. Se considerarmos a fragilidade e precariedade da condição humana, e, consequentemente, a da sociedade criada pelo homem, o olhar satírico torna-se inevitável. Assim, conta-se que o renomado satírico latino Juvenal, ao ser indagado do motivo pelo qual escrevia sátiras, respondeu: “diga antes, como poderia não fazê-lo?”. Portanto, seguem uma tradição que remonta às raízes da nossa cultura ocidental aqueles cronistas que comentam o cotidiano sob um viés satírico, podendo argumentar, como o ilustre romano, diante dos desatinos, ridículos e trapalhadas da sociedade contemporânea, “como não fazê-lo?”. Escolhemos, como objeto de nosso estudo, crônicas de Luís Fernando Veríssimo e José Simão, por entendermos que estes cronistas, em textos que se caracterizam pelo distanciamento irônico e pela postura crítica, ilustram, respectivamente, uma visão de mundo que vai do humor leve e irônico ao riso irreverente e debochado. Luís Fernando Veríssimo é um autor com vasta obra publicada, cujo maior encanto sem dúvida é o estilo humorístico, e, logicamente, não se reduz a uma única feição crítica; entretanto, pretendemos salientar aquela que lhe é peculiar e identifica a sua postura como cronista: uma ironia, muitas vezes autoironia, indulgente e bem-humorada, que reponta em suas crônicas publicadas aos domingos no jornal “O Estado de São Paulo”, no “Caderno 2/ Cultura”. A crônica é publicada juntamente com o quadro “Família Brasil”, em que a figura do patriarca é uma caricatura de Veríssimo. Ainda que não haja uma relação direta entre o assunto do quadro e o da crônica, identificamos a postura do 325 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 personagem com a do cronista, uma postura de aceitação das limitações da natureza humana, marcada pelo que se denomina “ironia filosófica”: a consciência de que existe uma dissonância fundamental entre o homem e o resto do universo, entre vida e morte, entre material e espiritual¹. Esta postura manifesta-se pela capacidade de rir de si mesmo e da próprias contrariedades, bem como pela benevolência diante dos erros e fraquezas humanos. Para ilustrar a personagem do pai na “Família Brasil”, lembremos o episódio em que a mulher, na cama, vira-se para ele dizendo, animadamente: “Bem... primavera, o pÛlen no ar... lembra o quÍ?î e ele responde: ìRinite alÈrgica?î (ESP,05/10/2003). A cena faz graça com a fragilidade das relações humanas, com o inevitável arrefecimento da paixão, com o envelhecimento do ser. Ou este quadro em que a mãe, referindo-se ao genro que vive às custas deles, pergunta-lhe: ì VocÍ tem alguma idÈia do que dar pro Boca no natal?î e ele responde: ìPublic vel, n„o.î (ESP, 14/12/2003): vemos o pai como um ser resignado com seus problemas, mas que reage por meio do humor, pois na sua sabedoria intui que se o aborrecimento não fosse um genro vagabundo seria outra coisa qualquer. Identifica-se, de certa forma, com o ser que, na visão de Kierkegaard, considera a totalidade da existência sub specie ironiae², que adota a perspectiva irônica o tempo todo e não apenas em alguns momentos, até mesmo como uma forma de proteção da própria essência. Esta personagem, que faz graça com os próprios dissabores, parece ser a voz que fala na crônica “Agora que o sangue serenou” (ESP, 14/12/2003) , pois tendemos a identificá-la com o cronista, induzidos até mesmo pela caricatura sugestiva: Agora que o sangue serenou e todas as garrafas que lancei ao mar com mensagens ao desconhecido voltaram sem resposta, ou com o texto corrigido, agora que nem o eco responde aos meus gritos no precipício, ou responde mas com o tom enfarado de quem não agüenta mais repetir sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, agora que descobri que nenhum dos meus gurus tinha res-posta certa e um até confessou que era surdo e nem ouvia as minhas perguntas e só fazia sim com a cabeça por boa educação, o que explica ele ter respondido sim quando eu perguntei se deveria seguir o Bhagavad Gita, o Kama 326 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica Sutra, O Capital ou uma combinação dos três, agora que já não se distingue a voz e uma secretária de outra no telefone pois todas são eletrônicas e iguais, e da última vez que implorei por um contato humano, algum coisa viva –uma hesitação, um erro de concordância, um resfriado, até, em último caso, uma reação irritada – a voz disse “para reação irritada, digite 4”, agora que eu não quero mais respostas, agora que eu desisti, vem você me dizer que eu não estou sozinho, que há outros como eu cujo sangue atingiu um remanso e já não esperam mais nada salvo a resignação dos mortos num bom sofá com controle remoto e talvez pipoca, que abominam a despersonalização, principalmente das pessoas, a pulverização de todas as certezas, o espargimento de todas as dúvidas, a eterização de todas as coisas – e que eles têm site na internet ! Neste texto, Veríssimo escreve um monólogo que vai ao sabor do fluxo de consciência, estrutura que condiz com a retórica da crônica, de aproximação direta e pessoal entre autor e leitor; mais ainda, pauta-se pela sua feição intimista e confessional. Por outro lado, esta estrutura de monólogo com tom irônico e levemente satírico leva-nos às origens da sátira, ou seja, a Horácio e a Roma³; quando fala de seu discurso informal, aí incluídas as sátiras e cartas, Horácio assim as entende: they are light monologues with a serious content, decorated with witticisms and other attractive devices; that they are apparently haphazard in structure; and that their humor is rather rough than delicate. He means also that they deal with important ethical and social problems, with concern every thinking man; but which he will not discuss in a complex argument filled with technical jargon. Rather, even at the risk of over-simplifying them, he will make them plain to understand and easy to remember, so that they may bridge the gulf between philosophy and the general public.4 Se excluirmos o detalhe do humor antes rude do que sutil, que em Veríssimo é claramente antes sutil que rude, percebemos uma grande semelhança entre o 327 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 discurso informal de Horácio e o monólogo do cronista: o texto tem uma estrutura aparentemente aleatória, numa linguagem simples e casual, mas tratando de questões radicais da contingência humana, como a solidão, a incomunicabilidade entre os seres, o tédio, a ausência de valores, a despersonalização e reificação do ser, com uma crítica subjacente ao progresso eletrônico no ramo da comunicação, que mais distancia que aproxima as pessoas, crítica sintetizada no parágrafo final: Desisti de localizar meus similares na internet...quando me dei conta que a primeira condição para ser mesmo da minha turma seria não freqüentar a internet. Finalmente, o que nos desperta para o caráter satírico do texto é o jogo dialético entre elementos dissonantes, numa estrutura temperada com espírito e humor. Assim, a metáfora das garrafas lançadas ao mar, que voltaram sem resposta, perde o seu caráter lírico com o adendo: ou com o texto corrigido; a imagem do eco, evocadora de trágicos mitos e presença assídua na poesia lírica, perde seu status quando responde com o tom enfarado de quem n„o ag¸enta mais repetir sempre a mesma coisa; obras como Baghavad Gita e O Capital, essenciais na formação do pensamento oriental e ocidental, encontram-se estreitamente ligadas ao Kama Sutra, cujo indiscutível interesse é de outra natureza. Da mesma forma, esta dissonância ecoa na metáfora usada para desvelar a reificação do ser humano provocada pelo progresso científico e pela ditadura da mídia: a resignaÁ„o dos mortos num bom sof com controle remoto e talvez pipoca; ou em afirmações incongruentes como esta: abominam a despersonalizaÁ„o, principalmente a das pessoas. Assim, encarando questões complexas com humor, o cronista as aproxima do leitor comum; ao mesmo tempo, utilizando-se do jornal, faz uma crítica à ação reificadora da mídia. Voltando à personagem do pai da Família Brasil, lembremos, como o próprio nome da família sugere, que seus comentários extrapolam o âmbito pessoal e familiar, realizando a crítica social e política, sempre pelo viés irônico. Há um quadro em que o filho, pensando na carreira a seguir, pergunta ao pai: ìQual È a minha melhor opÁ„o para ter uma chance no mercado de trabalho...î, e o pai responde: ìDos Estados Unidos?î (ESP, 26/10/2003); assim, distraidamente, como se num ato falho, o pai refere-se à situação precária do mer328 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica cado de trabalho brasileiro e da falta de oferta para os formados, seja qual for a sua qualificação, o que traz distorções como a do indivíduo trabalhar em áreas que nada têm a ver com sua formatura, ou a da evasão para países ricos em busca de oportunidade de trabalho, como sugere a fala do pai. Ou ainda a situação em que o pai, fazendo um brinde de ano novo, diz: ìPara 2004, sa­de, paz, prosperidade...ou uma convincente explicaÁ„o do governoî (ESP, 28/12/2003), fala em que está implícita a reprimenda ao governo que cobra impostos do povo e não lhe retorna nem mesmo o que é básico para a vida do cidadão, saúde e segurança. Ainda que com humor e bonomia, o pai exerce seu direito de cidadão ao exigir do governo uma convincente explicaÁ„o, o que não deixa de ser uma amarga ironia frente à desfaçatez que caracteriza a classe política brasileira. Esta é a postura do cronista no texto Galinhas (ESP, 12/10/2003), que começa ìAtenÁ„o: par bolaî, criando uma expectativa pelo elemento estranho: no espaço onde normalmente se lê uma crônica, vai se ler uma parábola; daí a advertência inicial para uma leitura mais cuidadosa, a parábola é um texto sério, traz um ensinamento e deve ser interpretada pois contém uma mensagem subtendida. O fato de usar-se parábola especialmente para referir-se às alegorias da Bíblia, cria já um estranhamento com o título, Galinhas, apontando desde aí para o enfoque satírico. Ao situar a história, Veríssimo diz: ìNum paÌs chamado, digamos, Brasil, havia um grande criador de galinhas chamado, digamos , JosÈî: o alvo da crítica surge como por acaso, ao mesmo tempo em que o nome José é associado ao brasileiro comum. Um dia José nota que estavam roubando as suas galinhas e, após contratar um vigia, depois um vigia do vigia, depois uma firma de vigilância, e o roubo só aumentar quanto maior era o número de vigilantes, escutou do compadre a sugestão: Por que ele não recorria ao governo? “Ao governo?”, disse José. “Claro”, disse o compadre. O governo o ajudaria. Era para isso que ele, José, pagava seus impostos, para ter a ajuda do governo. E o compadre passou a contar ao José tudo o que o governo podia fazer por ele. O governo tinha muita gente. Tinha polícias. Tinha fiscais. Tinha viaturas. Tinha uma estrutura enorme. Precisava dizer mais? Tinha até uma cidade inteira quase só dele, chamada, digamos, 329 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Brasília. José deveria recorrer ao governo para vigiar seu galinheiro. E José, que não era um pensador, mas era um homem lógico, pensou no que o ladrão já estava tendo que roubar para honrar seus acordos e exclamou: - Tá doido?! Aí mesmo é que eu perco todas as galinhas de uma só vez! Epílogo José dispensou a firma de vigilância, o vigia do vigia e o vigia. Ficou ele mesmo de guarda no galinheiro e, quando o ladrão chegou, no meio da noite, lhe fez uma proposta. A cada galinha que roubasse, o ladrão lhe daria uma, até o galinheiro ficar vazio. E com a sua parte nos roubos, José começou outra criação de galinhas. Na Suiça. Esta parábola remete-nos para a função da sátira, dizer a verdade brincando; trata-se de uma sátira política, o que de certa forma explica uma certa imprecisão ao situar a história e dar nomes aos lugares, ressalvados pela expressão ìdigamosî. Na realidade o texto realiza-se como uma paródia, em mais de um nível: quanto à estrutura, torna-se uma paródia profana da forma da parábola, ligada ao sagrado, à linguagem elevada e à lição moral; quanto ao conteúdo, parodia uma situação corriqueira do cidadão, explorado por uma sociedade sem lei, em que roubam os ladrões, os vigias , as firmas de segurança e os políticos. Além da graça provocada pelo tipo de ladrão que ilustra a história, o tipo mais reles , o ladrão de galinhas, a paródia realiza-se por meio do exagero, da distorção absurda, da inversão total, de modo que aqueles que deveriam proteger são os que roubam e aquele que é ladrão rouba, mas honra compromissos: ìpensou no que o ladr„o j estava tendo que roubar para honrar seus acordosî. Um outro recurso satírico é a oposição entre aparência e essência: José, que vinha sendo apresentado como um homem simples, de boa vontade, ingênuo, termina por simbolizar a esperteza popular, arrumando um “jeitinho” de resolver seu problema; já o compadre que era o avisado, dava conselhos, acaba por ser o ingênuo, a acreditar nas instituições e na boa vontade do governo. E, coroando tudo, o mundo às avessas, no bom sentido: a Suíça, símbolo de ordem, 330 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica perfeição e honestidade no imaginário popular; o oposto da absurda situação apresentada. Este texto de Veríssimo realiza bem a intenção geral da sátira: expor e fustigar os vícios e os erros da sociedade, remetendo à tradição romana do ridendo castigat mores, e adota um papel tradicional dos meios de comunicação, que vem desde as sátiras menipéias: Uma espécie de gênero “jornalístico” da Antigüidade, que enfoca em tom mordaz a atualidade ideológica. As sátiras de Luciano são, no conjunto, uma autêntica enciclopédia da sua atualidade: são impregnadas de polêmica aberta e velada com diversas escolas ideológicas, filosóficas, religiosas e científicas, com tendências e correntes da atualidade, são plenas de imagens de figuras atuais ou recém - desaparecidas, dos “senhores das idéias” em todos os campos da vida social e ideológica (citados nominalmente ou codificados), são plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da época, perscrutam as novas tendências de evolução do cotidiano, mostram os tipos sociais em surgimento em todas as camadas da sociedade...procura vaticinar e avaliar o espírito geral e a tendência da atualidade em formação.5 É esta a vertente que José Simão segue na sua crônica publicada no caderno “Folha Ilustrada” do jornal Folha de S„o Paulo; seus textos trazem o riso debochado como comentário dos acontecimentos sociais, culturais e, principalmente, políticos da contemporaneidade. Entretanto, para se entender que entramos num terreno diverso, façamos algumas considerações a respeito do riso satírico, lendo este trecho de Highet: “Coarsely spiced” is a rendering of what Horace calls “black salt”: for the Greeks and Romans “salt” in a literary context meant wit and humor, and black salt was therefore crude pungent humor.”6 Assim, de Veríssimo para Simão, julgamos cambiar de salt para black salt, de um texto de humor leve e irônico para um texto rude e asperamente temperado, às vezes com o chamado “humor negro”. Seu feitio satírico radica no espírito 331 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 das cantigas medievais de escárnio e maldizer, especialmente estas últimas, identifica-se com seu humor cru e desbocado. Na verdade, pensamos que Simão constrói uma crônica carnavalizada, tanto no plano do significado como no do significante, pois tanto carnavaliza o contexto como a linguagem, resultando o texto, muitas vezes, num aparente bestialógico, um discurso disparatado em que os elementos vão se acumulando por analogia, sem qualquer preocupação com uma seqüência lógica. Como neste trecho: PAN URGENTE! Avisa pros atletas que nós queremos ouro. Chega de levar ferro! E eu sempre acho que o Brasil vai levar ouro em esporte de rico: hipismo, iatismo e onanismo! Prata também não queremos. Nos últimos jogos o Brasil ganhou tanta prata que parecia a equipe do faqueiro Tramontina. Bronze também não queremos. Bronzeado a gente já é! Bronze a gente pega em Ipanema. E por falar em pegar, pegaram a Maurren Maggi no antidoping. Acho que foi caldo de galinha. A Maggi deve ter tomado muito caldo de galinha! Rarará! (FSP, 03/08/2003) Notem-se as analogias a estruturar o texto: ouro trazendo ferro por serem ambos metais, mas a proximidade fica neste nível, pois o segundo está usado em sentido metafórico; hipismo e iatismo ligados a onanismo por , analogia fônica; bronze (metal), bronzeado e bronze (cor), analogia entre o sentido denotado e conotado; Maggi e caldo de galinha, uma analogia provocada pela metonímia; na realidade, a crônica mesmo sugere sua estrutura na expressão E por falar em pegar, pegaram a Maurren, que sintetiza o processo da analogia. Percebemos assim que o texto obedece não a um desenvolvimento silogístico, que criaria uma estrutura lógica, mas a uma progressão qualitativa, em que a presença de uma qualidade predispõe ao surgimento de uma outra, guiando-se pelo princípio da similitude ou da diferença.7 Mas para melhor apreciar o mecanismo das crônicas de Simão, voltemos à carnavalização. Bakhtin conceitua o termo como sendo a influência do carnaval na literatura, no seu livro Problemas da PoÈtica de DostoiÈvski, para tanto fazendo uma análise do fenômeno do carnaval. São as categorias da cosmovisão 332 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica carnavalesca ali apontadas que queremos destacar, para estabelecer um paralelo com as crônicas estudadas: primeiramente, o carnaval cria um mundo às avessas, a vida desvia-se da sua ordem habitual e desaparecem as suas regras e leis; quebramse as barreiras hierárquicas e elimina-se toda distância entre os homens; em conseqüência, o mundo carnavalesco caracteriza-se pelas mÈsalliances, ou seja, criamse relações entre elementos que pertencem a ordens diferentes, como o sagrado e o profano, o elevado e o baixo, o sábio e o tolo; conseqüentemente, também, temos a “profanação”, representada pelos sacrilégios carnavalescos, com as paródias dos textos e seres sagrados. Estas características trazem uma visão de mundo que privilegia o conceito de mudança e transformação, de morte e renovação, proclamando a alegre relatividade de tudo. Há ainda que se considerar a natureza ambivalente das imagens carnavalescas, unindo pares de elementos contrastantes , usando os objetos ao contrário ou deslocados, marcando a excentricidade carnavalesca, com seu princípio de violação do que é normal e comum; o próprio riso carnavalesco é ambivalente, ridiculariza o supremo para obrigá-lo a mudar. O principal palco das ações carnavalescas é a praça pública, símbolo da universalidade pública.8 Assim, será com o objetivo crítico e polêmico da sátira menipéia e o espírito carnavalesco provocador e irreverente, que o cronista fará o comentário satírico da atualidade, abrangendo em seus escritos uma vasta gama de assuntos, como podemos depreender dos títulos de algumas crônicas, que por eles mesmos já produzem efeito cômico . Evidentemente, predominam as crônicas de teor político: “Buemba! Lula pesca com vale – minhoca” (19/06/2003), “Buemba! Lula tá ‘opitando’ escondido” (27/11/2003), “Rodada do Brasileirão: Bangu 4 x Garotinho 0!” (10/12/2003); há algumas específicas para as viagens de Lula: “Turcocircuito! Lula embarca na esfirra voadora!” (02/12/2003), “Buemba! Lula na Arábia e a gente camelando!” (04/12/2003), “Arábia urgente! Lula faz quibe doce!” (05/12/2003), “Lulinhas Aéreas! O Quibetur continua!” (07/12/2003), “Adeus brimos! A volta da esfirra voadora!” (11/12/2003); alguns textos focalizam políticos estrangeiros:“Londres urgente! Blair passa um Blush!” (19/11/2003), “Buemba! Bush acaricia o peru e solta a franga!” (26/11/2003), “Socorro! O Bush não larga do peru” (29/11/2003), “Socorro! O peru de Bush é de plástico” (06/12/2003), “Buemba! Vou morar no cafofo do Saddam” (17/12/2003); outros focam a situação financeira do cidadão brasileiro: “Buemba! PIB é a Pobreza Individual do Brasileiro!” (28/11/2003), “Buemba! O 333 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 que fazer com o Péssimo Terceiro!” (30/11/2003); o esporte é bastante comentado: “Ueba! Galvão berra e quebra taça de Rubinho!” ( 23/07/2003), “Pan urgente! Queremos ouro! Chega de levar ferro!” (03/08/2003), “Socuerro! O Peru fez gol de cabeça!” (18/11/2003 ), “Buemba! Ronaldo faz gol de pança!” (21/11/2003), “Buemba! Vamos escalar o Trio Los Panças!” (23/11/2003); focaliza ainda os mais variados setores da sociedade, como a classe artística “Ueba! Rodrigo Santoro encanta os portugays!” (25/11/2003), “Buemba! Maica Jéssica assedia Harry Potter!” (22/11/2003) e o mundo da moda “Fashion Bicha! A volta das minhocas albinas!” (29/06/2003). Os títulos evidenciam uma sátira que o cronista faz ao próprio tipo de mídia em que escreve, o jornal, ao usar expressões de chamamento como “Buemba”, “Urgente”, “Ueba”, remetendo para o tipo de imprensa sensacionalista, que garante a venda dos jornais com manchetes apelativas. Essas chamadas repetem-se no corpo das crônicas que se iniciam com os termos: “Buemba! Buemba! Buemba! Macaco Simão urgente! O braço armado da Gandaia Nacional! Direto da República da Língua Plesa!”, na reafirmação do caráter escandaloso do texto, uma “bomba”, segundo a gíria jornalística, ou “buemba”, segundo a sua linguagem particular. A denominação “Macaco Simão” identifica a prática carnavalesca do travestimento, o cronista mascara-se de animal, não por acaso o macaco, que imita o homem como num espelho invertido: nada melhor do que o macaco para mostrar o avesso das ações humanas, para satirizar os erros e os vícios humanos. A voz do texto não é a do cronista, mas a do seu duplo, o Macaco Simão, o que justificará todas as suas irreverências. Também já se pode ver nos títulos o riso carnavalesco que achincalha o supremo, presente na ridicularização dos chefes de estado, equivalentes modernos do poder supremo: “Lula embarca na esfirra voadora”, “Bush não larga do peru”, “Blair passa um Blush”.A visão carnavalesca destrói a hierarquia e nada mais é respeitado, como fica ressaltado nestes trechos que focalizam conhecidas figuras do cenário político nacional e internacional: E o “New York Times” disse que o Zé Dirceu é a sombra do Lula. Se o Zé Dirceu é a sombra, A Marisa é a tatuagem. Vive grudada. É que ela tá sempre tão perto do Lula que até ASSOMBRA! (19/ 06/2003) 334 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica Maluf causa turco-circuito na torre Eiffel! E o partido do Maluf é o PP! E sabe o que quer dizer PP? Preso em Paris. (30/07/2003) E o que os radicais vão fazer agora? O Babá, clone do Pedro de Lara, vai fazer comercial de xampu. A Heloísa Helena vai virar patricinha, casar com o Suplicy e tocar CONTRAbaixo na banda do Supla. E a Luciana Genro vai virar garota – propaganda de chapinha, alisamento japonês. Aquilo é cabelo ou macarrão parafuso? Os radicais têm mais problemas estéticos que éticos! (17/12/2003) E o Bush tá apoiando o Schwarzenegger pra governador da Califórnia. Claro, um extermina o presente, e o outro o futuro. (24/ 08/2003) Este desrespeito pela hierarquia revela-se também no nível da temática; não existem temas ou assuntos tabus, nem mesmo a morte, para a língua ferina do cronista, como vemos neste trecho à propósito da perseguição americana a Saddam e seus filhos: E nesta semana tivemos trÍs falecimentos terrÌveis: Uday, Qusay e Foday. Vai ter suruba no inferno? Rarar ! (03/08/2003) É a alegre relatividade e ambigüidade do riso carnavalesco, que encontra o lado cômico mesmo nos acontecimentos trágicos, criando o humor negro, como o próprio autor reconhece: Humor Negro! Um canibal alemão botou anúncio no jornal: “Procuro alguém pra comer”. Literalmente. Na Alemanha, não tem duplo sentido. E aí apareceu a vítima e o teste era cortar o pênis e fritar. Pinto à pururuca. O cara que ia ser comido comeu o próprio pênis. Só que eles não gostaram do pinto grelhado. Acharam indigesto. Essa não! No país da salsicha, pênis é indigesto? Pior, o canibal declarou que comeu e se decepcionou com a vítima. A vítima mentiu a idade, disse que tinha 36 anos e tinha 42. O 335 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 canibal devia ir pro Procon. Comeu alimento com data vencida. Rarará! (10/12/2003) Este riso carnavalesco, zombeteiro e escarnecedor, de tal modo dá o tom às sátiras, que o cronista, certamente consciente disso, materializa este riso na expressão “Rarará!” que pontua seus textos. A irreverência do cronista acaba por conceber um mundo às avessas, característico do carnaval, em que se elimina toda a distância entre os seres e se associam os elementos mais díspares e opostos. A total inversão fica evidente nas referências à segurança pública, quando são permutados os papéis dos transgressores da lei e daqueles responsáveis pela sua manutenção, como nestes dois trechos: Brasileirão Urgente! Esta é a verdadeira rodada do Brasileirão: na semana passada era Bangu 3 x Garotinho 0! Agora é Bangu 4 x Garotinho 0! O Garotinho caiu pra segunda divisão. E Bangu 4 pra Libertadores. Diz que em Bangu entra de tudo: arma, maconha, pó e celular. Só tem uma coisa que não entra: preso! Aliás, na porta da cela de um preso tem uma plaquinha: “Drogas? Tô fora! Saí pra comprar mais”. Rarará!” (10/12/2003) BAGURANÇA PÚBLICA URGENTE1 Deviam mudar o nome daquele presídio de Bangu pra Angu. ANGU QUENTE! E sabe porque o presídio é de segurança máxima? Porque nem a polícia entra! Isso é que é segurança! E a gente não sabe mais se o Cristo Redentor tá de braços abertos ou de mãos para o alto!” (04/12/ 2003) Percebemos na última citação a categoria carnavalesca da profanação, com a sátira a uma imagem do sagrado, pois, atingindo-se a imagem, atinge-se também a Deus, que ela representa. Eliminando-se a hierarquia religiosa, associamse o elevado e o baixo; unem-se, numa mÈsalliance, Deus e os homens, que passam a sofrer juntos os desacertos de uma sociedade mal administrada. Nessa linha de dessacralização situa-se a visão cômica de um representante da religião, ainda 336 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica que uma figura bastante exposta na mídia: ìE o padre Marcelo È uma mistura de Jesus Cristo Superstar com a noviÁa rebelde!î (28/11/2003) A eliminação da hierarquia traz como conseqüência a familiaridade, que se manifesta nas crônicas na maneira como o cronista se refere a pessoas que ocupam um posição de destaque na hierarquia político-social. Assim, o ministro Palocci é “Palófi”; o ministro Berzoini, “Berzoanta”; o vice-presidente, “Zé Alencar”; a prefeita de São Paulo, “a Marta”ou “Martaxa”; nem mesmo o príncipe Charles escapa, é o “Gay Charles”; o ex-presidente Fernando Henrique continua a ser o “Boca de Sovaco”; Hillary Clinton torna-se a “Hilária Pinton”. Neste processo dessacralizante, o cronista segue o princípio da paródia: exagera os detalhes de tal modo que pode converter uma parte do elemento focado num elemento dominante, invertendo, portanto, a parte pelo todo, como se faz na charge e na caricatura.9 É com essa lente de aumento, que enfatiza detalhes das pessoas, coisas e acontecimentos focalizados, de certa forma desfocando e deformando as imagens, que o texto provoca o cômico. Surge, desse modo, a “República da Língua Plesa”, para designar o governo de Lula e do PT, numa alusão ao fato, no mínimo curioso, de que grande parte de seus seguidores têm este defeito de fala; leia-se o trecho: “E ontem eu vi no ìJornal Nacionalî o lanÁamento da Sudene. Mas o Lula, com a lÌngua plesa, falou FUDENE! O lanÁamento da Fudene.î (30/07/2003). Na sátira ao presidente, o cronista enfatiza a sua falta de escolaridade, fato que o próprio Lula alardeou ao dizer que o diploma de presidente era o primeiro que recebia na vida, entendendo-a como ignorância e despreparo; deste modo, lemos: E diz que o Lula estava visitando as pir mides, pegou o celular e ligou pro ZÈ Dirceu: ìAqui sÛ tem tijolo e defunto.î (09/12/2003); ìE diz que o mÈdico falou pro Lula: ìCuidado com o fumoî. E o Lula: ìN„o È fumo que se diz, È fomosî (27/11/2003); ìE aquele programa de r dio do Lula ìCafÈ com o Presidenteî? Diz que esse È o verdadeiro ìCafÈ com Bobagemî! E o Lula gosta de usar dois idiomas: o churrasquÍs e o futebolÍs.î (18/11/2003). A alcunha do ex-presidente Fernando Henrique surge também pelo processo paródico, exagerando um detalhe de sua fisionomia, o tamanho e formato da boca; além do cômico, a expressão conota uma outra crítica, além da estética: liga-se à expressão popular “boca mole”, para pessoas que não conseguem segurar aquilo que não é conveniente ser dito, como aconteceu várias vezes com a figura 337 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 satirizada. As crônicas são escritas numa linguagem totalmente particular, produto de um extraordinária capacidade inventiva do cronista, que lança mão dos mais diferentes recursos para inovar e criar neologismos, como já viemos percebendo nas citações e comentários feitos. Logicamente, um mundo carnavalizado só poderia ser expresso por uma linguagem carnavalizada; consideremos que a “desordem carnavalesca” exerceu poderosa influência sobre o estilo verbal da literatura, bem como sobre a linguagem familiar dos povos europeus: Camadas inteiras da linguagem – o chamado discurso familiar de rua – estavam impregnadas da cosmovisão carnavalesca; criavase um imenso acervo de livre gesticulação carnavalesca. A linguagem familiar de todos os povos europeus, especialmente a linguagem do insulto e da zombaria, continua até hoje cheia de remanescentes carnavalescos; a gesticulação atual do insulto e da zombaria também está impregnada de simbólica carnavalesca.10 Evidencia-se que um riso irreverente e debochado, teria, forçosamente, de ser expresso por uma linguagem também irreverente e debochada, repleta de termos chulos, grosseiros, de baixo calão, muitas vezes escatológicos, o que nos traz à memória, novamente, as cantigas de escárnio e maldizer, com toda a rudeza da cosmovisão do homem medieval. Trancrevemos alguns exemplos deste tipo de vocabulário usado pelo cronista: ìLula encheu a barriga da companheira logo na primeira bimbada. Rarar .î (19/06/2003), ìsabe por que as modelos tÍm um neurÙnio a mais do que o cavalo? Pra n„o fazer cocÙ enquanto desfilam!î (29/06/2003), ì Tome Viagra e fique com pingolim de botoxî, ì ëSheila Mello ajuda deficientes visuaisí. J sei, vai lanÁar a bunda em braile.î, ìA tendÍncia È bunda de fora. Moral da moda praia: o importante n„o È ser mulher, o importante È ter bunda! Rarar !î (03/07/2003), E a inveja È uma merda.î (18/11/2003), ìE tem um gamb cego que se apaixonou por um pum! AÌ j È peidofilia. Rarar .î (20/11/2003), ìE o PalÛfi disse que o aperto vai continuar em 2004...Aperta que eu solto um pum!î (25/11/2003), “E o PalÛfi mandou apertar o cinto. Ainda bem que n„o È o pinto. PalÛfi manda apertar o 338 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica pinto!î (26/11/2003), ìuma amiga minha disse que o PIB na casa dela quer dizer Pinto Irremediavelmente Broxa.î (28/11/2003), ìE um juiz francÍs foi acusado de se masturbar em plena audiÍncia. Entendi, em vez de bater o martelo, bateu uma bronha! Rarar !î (30/11/2003). Note-se que as expressões grosseiras vêm acompanhadas, quase sempre, da representação do riso zombeteiro: rarará. Uma outra prática usada para marcar a linguagem chula são os trocadilhos, o jogo com o duplo sentido de certas palavras: Pior, o grande problema do Corinthians é aquele jogador Abuda. O jogador não, a posição. O Júnior mandou o Abuda ficar na frente. Quando todo mundo sabe que Abuda fica atrás...Pior, a juíza resolveu colocar o Abuda pra fora. Essa daria uma grande manchete. Buemba! Buemba! Juíza coloca Abuda pra fora! (15/10/2003) O Peru Surpresa! O Bush não larga do peru? Primeiro acariciou o peru na Casa Branca, depois pegou o peru, botou na bandeja e levou pro Iraque! A pareceu de surpresa no dia de Ação de Graças pra levar o peru pra tropa! E a tropa louca por uma perereca. Você já pensou, aqueles soldados todos carentes de periquitas e de repente são presenteados com o peru do Bush? E esses trocadilhos com peru não tem fim! (29/11/200) O cronista modifica o significante das palavras, dando-lhes significados irreverentes, como em: “E o canibalismo ocorre nas novelas da Globo. Todo mundo come todo mundo: Surubanakan e Celebridando!î (10/12/2003) e ìE a Kelly Key diz que È feminista. Mas ela È feminista no pÛs. No popÛ. PopÛs ñ feminista.î (30/07/2003); joga também com a transformação de provérbios: ì E agora tem tanto gay que uma amiga minha pegou o primeiro feio que encontrou: ëPrefiro um feio na m„o que dois lindos se beijandoíî (22/06/2003). Se estas crônicas expressam-se por uma linguagem excêntrica e peculiar, criando um mundo caótico e invertido, elas são uma aparente loucura, pois desestruturam buscando a renovação, fazem rir para fazer pensar, dentro dos mais legítimos propósitos da sátira. Com seu riso às vezes zombeteiro, às vezes devasso, 339 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 às vezes ferino, apontam e escarnecem dos desacertos da sociedade. Com este artigo procuramos analisar o perfil da crônica satírica, tentando estabelecer uma gradação das posturas críticas dos autores, da ironia filosófica de Luís Fernando Veríssimo à irreverência e zombaria de José Simão. Evidentemente não exploramos todas as facetas críticas de Veríssimo, apenas aquela que julgamos a mais característica de seu discurso. Do mesmo modo, não focalizamos toda a gradação de sentimentos de um texto crítico, não chegamos ao sarcasmo, à mordacidade, ao comentário ferino e destruidor, despido do distanciamento irônico ou da alegre relatividade carnavalesca. Assim, é nosso propósito continuar este estudo sobre a crônica como instrumento de crítica, acrescentando um cronista , Diogo Mainardi, com o qual julgamos estender aquela gradação pretendida. NOTAS 1. Ver MUECKE, p.19. 2. Ver MUECKE, p.23-24. 3. Satire as a distinct type of literature with a generic name and a continuous tradition of its own, is usually believed to have started in Rome. In HIGHET, 1962, p. 24. 4. IDEM, p. 35. 5. BAKHTIN, p. 102. 6. HIGHET, 1962, p.30. 7. Ver BURKE, p.128-129. 8. Ver BAKHTIN, p.105 a 113. 9. SANT’ANNA, P. 32. 10. BAKHTIN, P.11. 340 Ana Maria GOTTARDI A Crônica Satírica REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da PoÈtica de DostoiÈvski. RJ: Forense – Universitária, 1981. BURKE, Kenneth. Teoria da Forma Liter ria. Trad. José Paulo Paes.SP: Cultrix, 1969. HIGHET, Gilbert. The Anatomy of Satire. New Jersey: Princeton University Press,1962. ______. La Tradicion Clasica II. México:Fondo de Cultura Económica, 1996. HUTCHEON, Linda. Teoria e PolÌtica da Ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. MINOIS, Georges. HistÛria do Riso e do Esc rnio. Trad. Maria Helena O. O . Assumpção. SP: Editora Unesp, 2003. MUECKE, Douglas C. Irony. London: Methuen & Co, 1978. SANT’ANNA, Affonso R. de. ParÛdia, Par frase & Cia. SP: Ática, 1985. 341 Recursos poéticos na linguagem publicitária: Polissemia e homonímia Poetic resources in the advertising language: Polysemy and homonymy Lucilene dos Santos GONZALES Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília - UNIMAR – Marília / SP e Professora da UNIP de Assis / SP – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO A linguagem publicitária recorre à função poética, a artifícios não-convencionais de expressão, como forma de persuasão e sedução para emocionar e convencer seu público a comprar a idéia/produto/serviço por ela propagados. A polissemia e a homonímia, correlacionando comunicação verbal e visual, constituem-se em estratégias criativas no texto publicitário. PALAVRAS-CHAVE: comunicação – publicidade – criação – retórica persuasão. ABSTRACT The advertising language makes use of the poetic funcion and unusual expression practices as a persuasive and seductive way to move its audience to buy the idea/product/service diffused by it. Polysemy and homonymy linked to verbal and visual communication compose creativity strategies in the advertising text. KEY WORDS: communication – advertising – creation – rhetoric persuasion. 344 Lucilene dos Santos GONZALES Recursos Poéticos Na Linguagem Publicitária: Polissemia e homonímia O anúncio tem como principal função “vender um produto, ou uma idéia, ou um serviço; persuadir alguém a um comportamento” (SANDAMNN, 1997, p. 27). Para isso, é necessário que haja transmissão de informações, ou seja, o texto publicitário deve ser uma fonte informativa com “função de agilizador de consumo” (MARTINS, 1997, p. 21). Suas duas principais funções são, portanto, conativa e referencial1 . Intenção conativa porque objetiva constantemente controlar o comportamento do consumidor ou receptor da mensagem, fazendo com que ele assimile as idéias divulgadas ou consuma o produto/serviço propagado. Nos anúncios, o principal objetivo do texto é apelar para fazer com que o consumidor compre o produto/serviço. As marcas dessa função muitas vezes estão explícitas no texto: referência à 2ª pessoa - “seu”, “sua”, “você” e verbos no modo imperativo - “mude”, “procure”, “experimente”, “leve”. Nem todos os anúncios, porém, apresentam explicitamente essas marcas lingüísticas da função apelativa, entre as quais podem ser acrescentadas a interrogação, “os vocativos, os pronomes de tratamento e dêiticos” (SANDMANN, 1997, p. 27). Intenção referencial porque sempre informa o receptor da mensagem sobre um produto, um serviço ou uma idéia. Tanto as imagens como os textos escritos visam à informação do consumidor, pois ambos querem mostrar como é o produto, suas características, sua instalação, seus benefícios. Mas, além da função referencial e apelativa, é muito freqüente, nos anúncios, a função poética. 2. A FUNÇÃO POÉTICA COMO ESTRATÉGIA APELATIVA No texto publicitário, essa função não é utilizada com a intenção de emocionar o leitor, como nos poemas, músicas, mas para despertar a atenção do 345 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 usuário para o produto, serviço ou idéia, por meio de uma linguagem não-convencional, que recorre às figuras de retórica, como elemento-surpresa. A função poética aparece geralmente no título e no slogan do anúncio e serve, portanto, como instrumento da sua intenção principal: a função conativa. “A persuasão utiliza a arte como forma de sedução, ela nada mais é que um de seus disfarces” (CARVALHO, 1996, p. 94). A função emotiva, às vezes, também é empregada nos textos publicitários, por meio de mensagens em 1ª pessoa, interjeições. Assim como a poética, essa função aparece como uma forma de despertar a atenção do receptor da mensagem, de levá-lo a aceitar o apelo, ou seja, Outra função também presente em todos os anúncios é a fática, pois toda mensagem publicitária objetiva estabelecer contato com o público; contato esse direcionado novamente ao apelo, à ordem, para que seu receptor mantenha a lembrança do produto/serviço/idéia propagados e os assimile e/ou os compre. Segundo Martins (1997, p.122), a função do anúncio é cumprida, é eficaz, quando ele consegue transformar o produto em objeto de prazer, apresentando-o como solução para os problemas do leitor, ou seja, quando cria a necessidade de compra. Assim, ter uma linguagem clara, objetiva, correta gramaticalmente não basta ao texto publicitário: sua mensagem também precisa ser expressiva, emocionar o leitor, instigar-lhe a curiosidade. Nesse sentido, é muito freqüente o sentido figurado, na linguagem verbal e não-verbal dos anúncios, em que “a figura é um processo produtor de surpresa” (BRANDÃO, 1989, p.16), ou seja, é um recurso imprescindível, principalmente no seu título e slogan, cujas funções são chamar a atenção e despertar o interesse do consumidor para o produto anunciado. Esse fato está confirmado em Carvalho (1996, p. 27-34), nas entrevistas feitas pela autora com publicitários de grandes agências de publicidade, cuja tarefa cotidiana é criar mensagens eficazes para públicos específicos. Jairo Lima, diretor de criação da agência de publicidade Italo Bianchi, Recife, explica: Para pensar uma campanha, a retórica é um recurso importante. No meu caso particular, penso qualquer mensagem como uma 346 Lucilene dos Santos GONZALES Recursos Poéticos Na Linguagem Publicitária: Polissemia e homonímia macrofigura de linguagem e a primeira escolha é a figura a servir de base para o texto e a imagem. A campanha pode ser pensada em termos de hipérbole, pleonasmo, metonímia ou metáfora. Após a escolha, sigo o caminho traçado: o do exagero ou da repetição, ou da parte pelo todo, ou da simbologia. Quanto à escolha do vocabulário, a nível de signos, deve ser sempre simples, com termos conhecidos ou corriqueiros. O que vai valorizá-los e ampliá-los serão as relações que se estabelecem: a polissemia, a oposição, o duplo sentido ou, às vezes, um novo sentido para um termo bastante conhecido. Roberto Duailibi, diretor da agência DPZ, também confirma: Os recursos lingüísticos são bem explorados na publicidade bemfeita [...] e para que se transformem numa eficiente ferramenta de persuasão, é preciso conhecimento da língua [...] Os recursos atualmente considerados de maior efeito publicitário são a metáfora, a metonímia. O trocadilho ainda é uma grande arma. Assim, conhecer, reconhecer, criar linguagem figurada e outros mecanismos expressivos é de fundamental importância para os publicitários que, além de ter o domínio da linguagem clara, coerente, precisam também persuadir os consumidores com mensagens originais, criativas, comoventes, que se viabilizam por meio do uso de figuras, da linguagem conotativa. Para entrar nesse campo dos recursos estilísticos da língua, é preciso conhecer a natureza do signo ling¸Ìstico - significado e significante -, e a partir daí, os vários mecanismos que geram expressividade ao discurso publicitário: denotaÁ„o/conotaÁ„o, ambig¸idade - polissemia e homonÌmia -, significaÁ„o contextual, figuras de linguagem (ou de retórica), variaÁ„o ling¸Ìstica, fÛrmulas fixas. Neste trabalho serão abordados apenas os conceitos DenotaÁ„o/conotaÁ„o, cujo jogo de sentidos vai gerar a ambig¸idade na linguagem, por meio do recurso da polissemia e homonÌmia. O enfoque desses conceitos teóricos se fundamenta principalmente em Platão & Fiorin (1990, p.110-9), Carvalho (1996, 347 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 p.58-69) e Sandmann (1997, p.75-76). Esses recursos expressivos ou estilísticos são empregados em anúncios impressos ou eletrônicos. Para identificá-los, é preciso entender a sua conceituação teórica, como se configuram no texto publicitário, em que parte do anúncio eles aparecem (título, subtítulo, imagem, texto, slogan), qual foi a intenção do publicitário ao utilizá-lo. Esses questionamentos sempre vão depender do contexto da mensagem publicitária, isto é, da relação existente entre o componente verbal e o não-verbal - uso das cores, luz e foco -, pois é a junção desses elementos que permite depreender a mensagem expressa, cujo objetivo é sempre causar impacto emocional no consumidor. 2.1 - DENOTAÇÃO/CONOTAÇÃO E AMBIGÜIDADE NO TEXTO PUBLICITÁRIO Nos discursos em geral, as palavras nem sempre são empregadas somente no seu sentido normal, costumeiro. Muitas vezes, elas assumem um significado figurado. Para entender como ocorre a significação de um texto, é preciso entender como se constitui a palavra, ou o signo ling¸Ìstico, o qual resulta de junção de duas partes distintas, mas inseparáveis: Significante Significado ⇒ parte perceptível parte inteligível ⇒ sons, letras conceito Por exemplo, a palavra “rosa”: Significante Significado ⇒ / roza / (som, letras), parte perceptível flor da roseira (conceito), parte inteligível A palavra “rosa” possui uma combinação de sons e letras (significante) os quais imediatamente associamos a um conceito (significado). É, portanto, um signo lingüístico. Essa relação existente entre o significante e o significado denomina-se 348 Lucilene dos Santos GONZALES Recursos Poéticos Na Linguagem Publicitária: Polissemia e homonímia denotaÁ„o. “Desse modo, significado denotativo é aquele conceito que um certo significante evoca no receptor. Em outras palavras, é o conceito ao qual nos remete um certo significado” (PLATÃO & FIORIN, 1990, p.113). Às palavras, porém, além do seu significado denotativo, podem se sobrepor significados paralelos, impressões, valores afetivos, negativos e positivos. Esses novos conceitos agregados ao signo constitui a conotaÁ„o. Significado conotativo é o novo significado que se acresce ao significado denotativo da palavra; pode variar de cultura para cultura, de classe social para classe social, de época para época. No exemplo acima, o significado denotativo da palavra “rosa” é “flor da roseira”, mas, num outro contexto, essa palavra pode assumir um outro significado: “Meu bem, você é uma rosa”, cujo sentido conotativo vai ser “perfumada, delicada, bonita”. A sobreposição de um sentido denotativo e de um sentido conotativo às palavras constitui um excelente mecanismo expressivo no discurso publicitário, pois nesse recurso um significante é suporte para mais de um significado, ou seja, uma mesma palavra tem vários significados. Esse fenômeno lingüístico gera a ambig¸idade de sentido (SANDMANN, 1997, p.76-77), conseguida pelo uso da polissemia e da homonÌmia. 2.1.1 - POLISSEMIA Na publicidade da H.Stern, o título “Se você já decidiu que ela é a mulher da sua vida, ponha uma pedra sobre esse assunto”, a expressão “ponha uma pedra” remete a dois sentidos, ou seja, traz ambigüidade ao anúncio, significando: 349 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 1º) compre um anel da H.Stern com um brilhante solitário. 2º) encerre definitivamente esse assunto, que pode ser um namoro ou noivado, comprando este anel. Essa ambigüidade resulta do recurso da polissemia, que, segundo Câmara Jr. (1981, p.139-140), “é a propriedade da significação lingüística de abarcar toda uma gama de significações, que se definem e precisam dentro de um contexto”. Esse autor, porém alerta, para que se confunda a polissemia com a homonÌmia: “propriedade de duas ou mais formas, inteiramente distintas pela significação ou função, terem a mesma estrutura fonológica [...] São, por outro lado, homônimas as formas fonologicamente iguais que representam diferentes classes de vocábulos” (1981, p.194). No item 1, a palavra “pedra” está no seu sentido denotativo, já que se encaixa dentro do significado previsto pelo dicionário Aurélio, “pedaço de qualquer substância dura ou sólida, matéria mineral dura e sólida, da natureza das rochas”, e sua representação não-verbal - imagem do anúncio – também denota esse significado: anéis com uma pedra, um diamante solitário. O sentido denotativo da palavra “pedra”, no anúncio, é o normal, pois é essa mensagem que se deseja expressar, ou seja, vender o produto propagado. No segundo caso (item 2), a palavra “pedra” assume o significado conotativo, já também conhecido na nossa cultura, e sugerido pelo contexto do anúncio, pelo objetivo da mensagem: induzir emocionalmente aquele receptor, que pode encontrar-se na situação de namoro, noivado, a comprar o anel para formalizar um compromisso. Em outras palavras, ambos os sentidos da expressão “ponha uma pedra” - tanto o denotativo quanto o conotativo - apelam para que seu público-alvo compre o anel. A ambigüidade da expressão “ponha uma pedra” é gerada pela exploração do seu sentido denotativo/conotativo. Esse é um recurso bastante interessante para chamar atenção do consumidor para o anúncio porque: torna a mensagem criativa, inteligente, atraente; transmite, em uma só palavra ou expressão, dois tipos de apelo: racional – evidenciando as características do anel (denotação) – e emotivo – mexendo com os sentimentos do consumidor (conotação) -; e, ainda, vai ao encontro da necessidade de economia da mensagem publicitária, ao sugerir dois significados em uma só expressão, o que a torna mais curta, objetiva. 350 Lucilene dos Santos GONZALES Recursos Poéticos Na Linguagem Publicitária: Polissemia e homonímia Martins (1997, p. 60) explica: O fato de um contexto ambíguo provocar reflexões e operações mentais no consumidor é um grande resultado para o anúncio publicitário, objeto desse contexto. Ele vai-se fixando. Trata-se de um resultado psicológico que poderá ficar no inconsciente ou conduzir, em determinados momentos, a ações concretas, de aquisição do produto, ou de escolha. Nos anúncios atuais, tem-se verificado uma tendência para o uso da polissemia nos slogans: “Gol. Só pode ser ele.” “Pirelli. Potência não é nada sem controle.” “Petrobrás. O desafio é a nossa energia.” 2.1.2 - HOMONÍMIA O título da propaganda do 1º Encontro Nacional dos Participantes dos Fundos de Pensão, “O Fundo discutido a fundo”, também há ambigüidade de sentido na palavra “fundo”, resultante do recurso da homonÌmia. Trata-se aqui do fenômeno da homonímia e não da polissemia, porque o termo aparece em duas funções diversas e expressa dois sentidos também diversos: 1º) “o fundo” é um substantivo que nomeia os Fundos de Pensão - “garantia ao cidadão na inatividade de uma renda que a previdência social sabidamente não tem condição de garantir”. 2º) “a fundo” é uma locução adverbial que indica o modo como será discutido o assunto, ou seja, o fundo será discutido “melhor, mais profundamente”. A homonímia também se constitui em um mecanismo interessante para chamar a atenção do receptor, pois a utilização de uma mesma palavra para designar conceitos diferentes destaca, enfatiza, por meio da repetição, a idéia a ser difundida, no caso, Fundos de Pensão. Para compreender a ambigüidade de sentido (CARVALHO, 1996, p. 5869) existente no título dos anúncios da H.Stern e dos Fundos de Pensão, assim 351 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 A diferença existente entre a publicidade da H.Stern e dos Fundos de Pensão é que, nesta, ambos os sentidos da palavra são denotativos, isto é, a mudança dos significados na propaganda decorre da mudança da classe gramatical da palavra. Ou melhor, o recurso da homonÌmia, gerador da ambigüidade neste anúncio, distingue-se da polissemia, pois nesta ocorre a “mesma grafia para 352 Lucilene dos Santos GONZALES Recursos Poéticos Na Linguagem Publicitária: Polissemia e homonímia vários sentidos”, e não “vários significados para uma palavra” (CARVALHO, 1996, p.59). como em todos os outros, é preciso levar em conta a sua significaÁ„o contextual (PLATÃO & FIORIN, 1990, p. 112-3), inseri-los no contexto maior, ou seja, analisá-los conjuntamente com a imagem, o texto, a marca, o slogan, pois é esse conjunto de elementos que vai permitir a depreensão dos vários significados existentes numa só palavra ou expressão. 3. CONCLUSà O Como já se pôde verificar, a função poética da linguagem, explorando o significado conotativo das palavras e imagens, se faz presente no discurso publicitário como um recurso de persuasão e sedução. Existem outros artifícios expressivos2 que são amplamente utilizados na criação de anúncios, mas que não serão tratados neste artigo. São eles: . figuras de linguagem: metáfora, metonímia, antítese, paradoxo, prosopopéia, comparação, hipérbole, sinestesia, eufemismo, ironia, quiasmo, enumeração caótica, repetição, gradação, paralelismo sintático, paronomásia (trocadilho), rima, aliteração, assonância, onomatopéia; . variaÁ„o ling¸Ìstica: devido ao falante - fator geográfico (variação regional) e fator sócio-cultural (norma culta e norma popular urbana ou rural) - e à situação - formal e informal; . fÛrmulas fixas: mensagens lingüísticas com uso de clichês, provérbios, frases feitas, títulos de filmes, músicas, programas de TV e outros enunciados comuns aos emissores e aos receptores da mensagem em contextos inusitados. 353 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 NOTAS 1 Segundo a terminologia utilizada por Jakobson, Ling¸Ìstica e ComunicaÁ„o. 2 Cf. em Gonzales, L. S. Ensinando e aprendendo redaÁ„o com textos publicit rios: uma experiência pedagógica no curso de Publicidade e Propaganda. p. 230-339. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1997. BASTOS, L. K. & MATTOS, M. A. A produÁ„o escrita e a gram tica. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRANDÃO, R. O. As figuras de linguagem. São Paulo: Ática, 1989. BROWN, J. A. C. TÈcnicas de persuas„o. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. CARRASCOZA, J. A evoluÁ„o do texto publicit rio: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. São Paulo: Futura, 1999. CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1996. CHALUB, S. As funÁões da linguagem. 2.ed. São Paulo: Ática, 1989. CITELLI, A. O. Linguagem e persuas„o. 10.ed. São Paulo: Ática, 1995. CORRÊA, M. L. G. Lingüística e Língua Portuguesa: uma contribuição para o exercício da produção textual. ConfluÍncia. 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São Paulo: Martins Fontes, 1988. 356 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia Jards Macalé – música e mídia Jards Macalé – music and media Luiz Antônio de FIGUEIREDO Professor Titular de Teoria Literária da UNESP - Assis / SP, Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR – Marília / SP - Brasil. 357 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO O artigo aborda a trajetória musical do compositor, violonista, arranjador e cantor Jards Macalé, bem como suas intervenções na mídia, quando a imagem do músico foi contaminada pelos happenings em que foi protagonista. O texto também defende uma desvinculação da atividade essencialmente musical de Jards Macalé de suas atuações na mídia, notadamente em festivais da TV Globo, quando forjaram-se os rótulos de “maldito” e “maluco”, que apenas tiram de foco o músico excepcional, comparável, em seus vários níveis, a Garoto, Radamés Gnatalli e Orlando Silva. PALAVRAS-CHAVE: Jards Macalé - MPB - composição - trajetória musical - mídia - festivais. ABSTRACT The article is about Jards Macalé musical course as a composer, guitarist, arranger and singer. It will also deal with his intervention in the press as the musician image was contaminated by the affairs on which he took part. Moreover, the text defends Jards Macalé’s disconnection of his essential musical activities from his performances, mainly in music festival on Globo TV, when he was labeled as “devil” and “crazy”. These labels only took out of focus the exceptional musician he is, comparable, in several levels, to Garoto, Radamés Gnatalli and Orlando Silva. KEY WORDS: Jards Macalé - MPB (Brazilian Pop Music) - composition - musical course - media - festivals. 358 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia Diante de um espetáculo qualquer, uma ação, um acontecimento ou qualquer circunstância, se ouvimos os sons de uma música adequada, ela parece nos revelar um sentido mais profundo do fato, que se ilumina com a máxima precisão e nitidez. Arthur SCHOPENHAUER S abemos que um traço fundamental da modernidade é a liberdade de expressão estética, geradora de uma pluralidade de ismos, desdobrados, em última instância, da liberdade instaurada pelo Romantismo, a partir de meados do século XVIII europeu (notadamente na Inglaterra e Alemanha). Neste processo, que encontra seu apogeu em Paris nas primeiras décadas do século XX, rompem-se as noções de periodização estética no sentido tradicional – vários movimentos, afins ou contraditórios entre si, convivem sincronicamente, Cubismo e Dadaísmo, entre outros, de extração européia, Verde-Amarelismo e Antropofagia, no cenário brasileiro. É o tempo da proliferação das vanguardas com seus manifestos, e inúmeras vezes o principal objetivo do artista é chocar um público ávido por novidade e escândalo. Como bem observa Antonio Candido: Nessa espécie de necessidade do nosso tempo, há riscos muito graves, porque a vanguarda não é feita para permanecer, e sim para provocar a mudança e dar lugar a uma fase estável. Mas como na verdade ela só suscita estabilizações fugazes, surge automaticamente, e logo após, uma nova e aflita vanguarda; e a gente fica pensando o que será de uma literatura só movimento, sem as paradas indispensáveis. Mas não é assim também no resto?1 Sem dúvida, o resto – a realidade não-artística, em seus múltiplos aspectos – vive de mudanças em alta rotatividade, e nesse sentido as vanguardas são miméticas dessa realidade – realistas – e conhecemos bem as limitações do realismo... Vale lembrar, como exemplos radicais desse voluntarismo vanguardeiro, a exposição, como “obra de arte”, de um vaso sanitário intitulado “A fonte”, pelo 359 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 dadaísta Marcel Duchamp, ou as conferências pronunciadas por Ramón Gomes de la Serna, montado num trapézio ou no lombo de um elefante. Mas, gestos para causar impacto não são suficientes para produzir obras esteticamente qualificadas, embora o sejam para dar publicidade ao artista. Com humor, Jorge Luis Borges escreve que “las cosas que se dicen desde un trapecio pueden ser memorables, pero lo son menos que el hecho, deliberadamente singular, de que nos llegaron desde un trapecio” 2 . Essa promiscuidade das manifestações do artista com as obras de arte propriamente ditas resulta numa contaminação que bloqueia a apreciação estética em si mesma, favorecendo a criação de rótulos (publicidade), tanto mais aderentes ao artista, quanto mais escândalo causar sua atuação. Em síntese: nesse embaralhamento de papéis, a propaganda torna-se mais importante do que a obra de arte propriamente dita. Exemplificando com a literatura, o mesmo Jorge Luis Borges aponta para o caráter corporativo e vanguardeiro da arte no século XX. Numa entrevista em que não falta humor, ele responde a Osvaldo Ferrari: Todos (os escritores) são geniais, mas não são nada mais que geniais, quer dizer, extravagantes. Todo escritor quer ter o seu lugar na história da literatura, de modo que o importante é inovar, o importante é fundar uma escola. E isso é o que vemos neste país: por exemplo, os poetas que fundaram uma escola são recordados. Em compensação, poetas que foram meramente perfeitos, como Enrique Banchs, em “La urna”, ou Arturo Capdevilla em “Aulo Gelio”, não, foram esquecidos; porque, como não são chefes de escola, como não exerceram uma influência, não importa que as suas composições sejam simplesmente perfeitas, ou muito belas. Não, isso não interessa, o importante é poder figurar como caudilho de uma seita qualquer, ainda que essa seita seja disparatada. Quer dizer, por exemplo, se eu escrevo um romance sobre os carteiros, esse romance pode ser ruim, mas, quem sabe, esse romance pode ser o princípio de uma escola, pode acontecer que muita gente se dedique aos carteiros e então já 360 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia passo a figurar na história da literatura3 . Jards Macalé (1943- ) é um desses artistas que, paralelamente à criação musical como violonista, compositor, cantor e arranjador, teve sua atuação marcada pela irreverência – condimento que de certo modo alimentava os festivais de MPB dos anos 60 e 70. O resumo que se segue não desobriga – antes, solicita – a audição da música de Macalé. Estávamos sob a ditadura militar, e o protesto assumia as formas mais variadas, para chocar o público e/ou driblar a censura. Assim, os rótulos de “maluco” ou “maldito” fixaram-se em Macalé desde o IV Festival Internacional da Canção da Rede Globo, em 1969, passando pelo Festival Abertura da mesma rede, em 1975, permanecendo até hoje nas mentes duras de ouvido, que não conseguem discernir o gesto político do fato estético propriamente dito. Até intelectuais com trânsito intenso no âmbito musical manipularam os rótulos com desenvoltura, como no caso de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. Referindo-se também a Waly Salomão (um dos parceiros de Macalé), afirmaram: “compositores de obra extravagante, Salomão e Macalé podem ser incluídos no rol dos chamados artistas “malditos” 4 . No IV FIC, Macalé, de bata, barba longa, e acompanhado de guitarras elétricas, cantou “Gotham City”, composta em parceria com José Carlos Capinam; no Abertura, interpretou “Princípio do prazer”, ao mesmo tempo que mastigava pétalas de rosa. Essas performances, aliadas ao rigor de Macalé, que nunca se precipitou em lançar um disco – em vinil ou CD – só para atender às necessidades do marketing, fazem dele quase um desconhecido como músico, e no entanto ele dialoga, silenciosamente, com o violão de Garoto, com as interpretações de Orlando Silva e com as composições e os arranjos de Radamés Gnatalli ou Tom Jobim. A ditadura da cultura de massa – corolário da democracia – impõe o “gosto” pela repetição, e quem não repete será soterrado pelo entulho que banaliza o estético e, no caso da música, insensibiliza o ouvido. Já faz algum tempo que “criar cultura”, nas sociedades industrializadas, significa lançar uma moda e repeti-la à exaustão. Não por acaso vivemos uma crise da melodia, correlata à supremacia do ritmo e/ou de harmonias dissonantes. Simbolicamente, a crise da melo361 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 dia representa a ruptura com o princípio-meio-fim da História e do homem – anulação do encadeamento subordinativo que deve embasar a linguagem argumentativa. Mas argumentar , nos dias de hoje , tornou-se um procedimento descartável, pois vivemos numa época opinativa – propagandística – em que a razão é dada para quem grita mais alto. É a supremacia dos decibéis sobre a sensibilidade. Por isso torna-se necessário, como procedimento metodológico e de assepsia, limpar a figura de Jards Macalé dos estereótipos a que está vinculada, e entendê-la em sua significação estéticomusical propriamente dita: o autor de uma obra que, apesar de toda diversificação rítmica e temática, em nenhum momento concede à banalização do gosto para adular o ouvido, nunca posando de vanguarda ou maquiando-se de marginal para subornar o ouvinte. Os happenings em que Macalé foi protagonista nos festivais de música, fazem parte de sua concessão ao momento histórico e não devem ser confundidos com sua arte. Pairando acima, renovando-se mais com o passar dos anos, está sua obra musical, feita de solidão, rigor e uma sensibilidade rara no universo sonoro de nossos dias. O título do CD lançado em 1998 explicita seu verdadeiro papel no cenário artístico brasileiro: O q faÁo È m­sica. É verdade que nos anos oitenta – principalmente com o lançamento de Quatro batutas e um coringa – vários segmentos da crítica musical impressa acolheram favoravelmente o trabalho de Macalé. Registramos alguns depoimentos: Macalé não precisa dizer, com seu último disco, o que tem a fazer em matéria de música popular brasileira[...] Se há algo que ele prova, é que não precisa provar nada a ninguém[...] E se há algo que Jards Macalé prova, é que tem lugar garantido e privilegiado no cenário. (WOLFF, 1987) Trata-se de uma obra rara [...] Macalé revisita a obra de Paulinho, Nelson, Geraldo Pereira e Lupicínio quase que de dentro delas – com o milagre de não sacrificar jamais as suas características de intérprete singular. Desafio qualquer amante da música brasileira a não gostar de Quatro batutas & um 362 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia coringa. Em Bolinha de papel, de Geraldo Pereira, Macalé radicaliza a incrível noção de divisão do compositor – e vai mais longe que a gravação célebre de João Gilberto... (MOURA, 1987) Como tratar esteticamente quatro dos mais peculiares (e fortes) compositores e um intérprete de música popular. Cada um se caracteriza pela força própria. Jards Macalé também[...] O disco tem uma unidade estética de tratamento, montada a partir da busca de precisão. Macalé trabalha muito com a divisão, arte fundamental e um tanto esquecida da música popular, na qual ele é bamba. Tanto Lupicínio quanto Nelson Cavaquinho ganham sentidos novos. Por contraste, Geraldo Pereira e Paulinho da Viola também [...] É uma viagem pelo belo. (CALDEIRA,1987). Mas como Macalé não responde à crítica (favorável ou não) com um disco novo, só para manter-se em evidência, preferindo projetá-lo sem pressa, com rigor e carinho, seu nome retorna à obscuridade, já que uma das leis do mercado é preencher os vazios, não importando a qualidade do produto. O renovar-se da arte de Macalé através dos anos corresponde a um renovar-se intimamente através de cada interpretação “repetida”. Nas palavras do próprio Macalé: Eu não sei fazer nada absolutamente igual. Nos shows, cada momento depende de minha relação com a platéia, onde muitas coisas podem acontecer. Então absorvo e devolvo. Da mesma forma não sei cantar ou tocar uma música exatamente igual outra vez. Então, pra mim, um trabalho criativo é um trabalho essencialmente dinâmico. Estou sempre buscando. E uma coisa que me dá muito prazer é justamente buscar. ( www.brazilianmusic.com.br/macalÈ) 363 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Essa vontade de não repetir é fruto de sua sensibilidade aliada a uma formação musical que incorporou vários gêneros, sem distinção entre o popular e o erudito. Carioca, na infância viveu rodeado de música – nasceu no Morro da Formiga –, e em casa convivia com o piano da mãe e o acordeão do pai executando valsas, foxes e modinhas. Pelo rádio aprendeu a admirar os grandes cantores da época, entre eles Vicente Celestino e Gilda de Abreu, Marlene, Emilinha Borba e Orlando Silva. Os Beatles e Jimmy Hendrix também marcaram sua formação. Inicia o aprendizado de violão aos 14 anos, quando freqüenta a Escola Pró-Arte e estuda piano e orquestração com o maestro Guerra Peixe, violoncelo com Peter Daulsberg e violão com Turíbio Santos. A estréia musical se dá em 1964, como letrista parceiro de Roberto Nascimento na composição Meu mundo È seu, gravada por Elisete Cardoso, em 1965. Nesse mesmo ano é o violonista do show Opini„o, substituindo Roberto Nascimento, e diretor musical do show Arena conta Bahia. Em 1966 fez a direção musical do Recital, espetáculo protagonizado por Maria Bethânia. Em 1967, quando o Tropicalismo começa a configurar um movimento, Macalé opta por reiniciar os estudos musicais: orquestração, com Guerra Peixe, e análise musical, com Ester Scliar. O ano de 1971 é passado em Londres, onde faz os arranjos e a produção do LP Transa, de Caetano Veloso, sem que seu nome seja creditado no disco. Outro fato notável na carreira de Macalé foi o “mutirão musical” que ele organizou em dezembro de 1973, apoiado pela ONU que comemorava os vinte e cinco anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O encontro reuniu dezesseis nomes significativos da MPB: Paulinho da Viola, Pedro dos Santos, Edu Lobo, Jorge Mautner, Luiz Gonzaga Jr., Johnny Alf, Raul Seixas, Soma, Edison Machado, MPB4, Chico Buarque, Luiz Melodia, Milton Nascimento, Jards Macalé, Dominguinhos e Gal Costa. O show foi gravado ao vivo no Museu de Arte Moderna e recebeu o nome de Banquete dos mendigos. No intervalo entre as músicas liam-se artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Transformado em álbum duplo (vinil) pela RCA e contendo um belíssimo encarte, O banquete dos mendigos foi censurado, sendo liberado só em 1979. Em 1976, Macalé iniciou a parceria com o sambista de breque Moreira da Silva, com apresentações no Projeto Seis e Meia (shows populares no 364 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia Teatro João Caetano). Em 1978 participaram do Projeto Pixinguinha, que cobria várias cidades do Brasil. Macalé também fez incursões pelo mundo do cinema – como ator ou autor de trilha sonora. Entre outros diretores, trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade como participante da trilha sonora de MacunaÌma (1968). Também participou das trilhas dO drag„o da maldade contra o santo guerreiro (1968), de Glauber Rocha, e dA rainha diaba (1970), de Carlos Fontoura. Em 1973 fez a trilha sonora do Amuleto de Ogum e participou como ator no papel do cego do violão. Também compôs a trilha integral do documentário Get­lio Vargas (1974), de Ana Carolina. Essas e outras atuações nos fazem pensar num Macalé essencialmente dramático, bastando lembrar suas interpretações musicais carregadas de emoção, sem que esta afrouxe o rigor da expressão. Lembre-se o aludido LP lançado pela Continental em 1987 – Quatro batutas e um coringa – relançado em CD pela Warner Music Brasil Ltda., em 1994. Aí, após dez anos sem gravar (o último disco havia sido o LP Contrates, de 1977), num exemplo de despojamento Macalé não interpreta nenhuma composição de sua autoria, apenas as de quatro bambas da música popular – Nelson Cavaquinho, Lupicínio Rodrigues, Geraldo Pereira e Paulinho da Viola. É peculiar a estrutura de Quatro batutas e um coringa: as composições de Geraldo Pereira e Paulinho da Viola são executadas apenas pela voz de Macalé acompanhada de seu violão e algum instrumento de percussão; as de Lupicínio e Nelson Cavaquinho receberam um arranjo sinfônico dos maestros Adilson Godoy, Amilson Godoy e Júlio Medaglia. Foi fantástico o resultado obtido: dois compositores essencialmente populares – Nelson e Lupicínio – acompanhados por violinos, clarones, violoncelos e oboés, e dois outros, não menos importantes, tendo ao fundo o violão de Macalé e percussões elementares (até uma garrafa de cerveja Antárctica vazia e um chaveiro, manejados pelo percussionista Luizão). E, sobressaindo, as interpretações dramáticas e contidas de Macalé, fazendo lembrar seu amor pelo cinema: O cinema me revela um outro lado. Todas as coisas são músi365 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ca, o tempo inteiro. Os pássaros, o corpo humano, a respiração, a fala das pessoas. E as pessoas ouvem a música no cotidiano que é feita só de ruídos. (www.brazilianmusic.com.br/macalÈ). *** O poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856) escreveu um artigo – Discutindo sobre m­sica – que se destaca por sua objetividade e laconismo – pouco mais de uma página em letra de corpo 10. O artigo integra uma coletânea de textos do poeta, traduzidos por Eurico Remer e Maura R. Sardinha para a Civilização Brasileira, sob o título de Prosa polÌtica e filosÛfica (Rio de Janeiro, 1967). No artigo em questão Heine faz uma crítica rigorosíssima àqueles críticos musicais, que, dominando certos jargões da teoria musical, os impingem aos ouvintes, simulando terem desvendado a natureza da peça musical em foco. Enfim, querem reduzir a um discurso pomposo uma arte que é irredutível ao código verbal: quanto mais falamos sobre determinada peça musical, menos revelamos seu significado íntimo. A única crítica possível, no caso da música, é a crítica empírica, e Heine conta um caso exemplar, ocorrido na mesa de um albergue: A melhor crítica musical, a única que talvez comprove alguma coisa, ouvi o ano passado em Marselha, na grande mesa do albergue, onde dois caixeiros-viajantes discutiam sobre o assunto do dia – Rossini ou Meyerbeer, quem seria o mestre maior. Bastava que um atribuísse ao italiano qualidades superiores, para que o outro manifestasse opinião contrária: mas isso não foi feito com palavras secas; um deles cantarolava melodias particularmente belas de Robert le Diable. Os argumentos mais convincentes do outro eram, por sua vez, trechos do Barbiere di Siviglia e os dois continuaram nisso pelo resto da refeição; em vez de uma barulhenta troca de lugares-comuns nos ofereciam, na mesa, um delicioso acompanhamento musical, findo 366 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia o qual fui forçado a admitir que sobre música, ou se discute por meio deste método realista, ou se deixa de discutir. *** Em 1995, o Instituto de Estudos Literários “Antônio Soares Amora”, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Assis, convidou Macalé para uma apresentação no Teatro São Vicente. Munido apenas da voz e do violão, ele brindou o público com um espetáculo simples e, ao mesmo tempo, sofisticado. Não se furtou, ainda, sem cachê adicional, a um diálogo aberto e franco com os alunos da faculdade. Pudemos, então, conviver com o outro lado de sua personalidade: o ser humano humilde, com grande senso de humor, que não hesita em apanhar o seu violão e mostrar sua arte em cidades distantes daquela em que reside, o Rio de Janeiro, sem exigir um cachê elevado, que seria condizente com a qualidade de seu trabalho: enfim, Macalé não fabricou um rótulo só para faturar. *** Seguem, em ordem cronológica, as principais gravações de Jards Macalé: ó J a rds MacalÈ. LP. Philips, 1972. CD. Rock Company, s/d.O banquete dos mendigos. LP (duplo). RCA, 1973. ó Aprender a nadar. LP. Philips, 1974. CD. Rock Company, 1995. Contrastes. LP. Som Livre, 1977. ó Quatro batutas e um coringa. LP. Continental, 1987. CD Warner Music Brasil Ltda., 1994. ó L e t ís play that. CD. Rock Company, 1994. ó O q faÁo È m­sica. CD. Atração Fonográfica, 1998. ó MacalÈ canta Moreira. CD. Lua Discos, 2001. ó Amor, ordem e progresso. CD. Lua Discos, 2003. ó Contrastes. CD. Dubs Música, 2003. 367 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 NOTAS Antonio Candido e os condenados à vanguarda. Entrevista à Revista Escrita nº 2, ano I, São Paulo, 1975. In: CANDIDO, Antonio. Textos de intervenÁ„o. Seleção, introdução e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2002, p. 223. Coleção Espírito 1 Crítico. Prólogo a la obra de Silverio Lanza. In: BORGES, J. L. Biblioteca personal ñ prólogos. Madrid: Alianza Editorial, 1988, p. 93. 2 3 Borges em di logo – conversas de Jorge Luis Borges com Osvaldo Ferrari. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 194. SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H. de. A canÁ„o no tempo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 1999, v. 2, p. 179. 4 REFERÊNCIAS BORGES, Jorge Luis. Borges em di logo – conversas de Jorge Luis Borges com Osvaldo Ferrari. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. ______.. Biblioteca personal ñ prÛlogos. Madrid: Alianza Editorial, 1988. CALDEIRA, Jorge Folha de S. Paulo, 24/7/1987. CANDIDO, Antonio. Textos de intervenÁ„o. Seleção, introdução e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2002. (Coleção Espírito Crítico). FIGUEIREDO, Luiz Antônio de. Schopenhauer ñ antologia progressiva. 3 ed. (digitada) revista e aumentada, Assis, 2002. HEINE, Heinrich. Prosa polÌtica e filosÛfica. Tradução de Eurico Remer e Maura R. Sardinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. MOURA, Roberto M. O Dia, 19/7/1987. 368 Luiz Antônio de FIGUEIREDO Jards Macalé – música e mídia SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H. de. A canÁ„o no tempo. 3. ed., São Paulo: Editora 34, 1999, v. 2. (Coleção Ouvido Musical). WOLFF, Jocca. O Estado. Florianópolis, 26/6/1987. 369 O livro, a criança, os meios de comunicação: problemas, passes e impasses de leitura The book, the child, the mass media: problems, entries and barriers to reading Sílvia Craveiro GUSMÃO-GARCIA Professora Doutora da Faculdade Integrada de Mirassol – FAIMI / Mirassol – SP – Brasil, e do Instituto Superior de Educação CERES – UNICERES – São José do Rio Preto / SP – Brasil. Antonio Manoel dos Santos SILVA Professor Doutor e Livre-Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR - Marília / SP – Brasil, e do Programa de Pós-Graduação em Letras (Voluntário) do IBILCE – UNESP – São José do Rio Preto – SP – Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO Este artigo trata das relações entre a criança, o livro e os produtos dos meios de comunicação, bem como do desenvolvimento do gosto pela leitura face a esses produtos, as dificuldades que se interpõem neste processo e alguns modos de superá-las. Das dificuldades interpostas destacam-se a obrigatoriedade da leitura na escola, o absenteísmo familiar, a concepção da criança como ser improdutivo, a cultura massiva e industrializada. Sugeremse a regulação livre, a seleção de textos conforme a experiência das crianças, a prática familiar da leitura como objeto social e atitudes críticas, abertas e não preconceituosas quanto às influências dos meios de comunicação de massa e seus produtos. PALAVRAS-CHAVE: leitura - processo comunicacional - meios de comunicação - motivação familiar - criança. ABSTRACT This paper discusses the relationship between the child, the book and the products of the mass media, as well as the development of the taste for reading, the difficulties intervening in this process and some ways of overcoming them. Compulsory reading at school, family omission, the notion of the child as an unproductive being, and industrialized and mass culture are some of the main intervening difficulties. Free control, text selection according to children’s experience, the practice of reading within the family as a social aim and open, critical attitudes, free of prejudice concerning the influence of the mass media, are suggested (as possible solutions). KEY WORDS: reading - communicational process - mass media - family motivation - child. 372 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação H istoricamente costuma-se associar a leitura ao livro e a responsabilidade do “ensinar a ler” à escola. Mesmo quando se amplia o conceito de “leitura” para a esfera da contemplação ativa do mundo, atribuindo-se ao livro um caráter não exclusivo de mediação entre a consciência humana e a realidade, não se põe em dúvida que cabem à escola as principais tarefas de ensinar a ler. E ainda que alguns considerem seja a escola um espaço negativo de aprendizagem da leitura – pois ela constitui um instrumento de coerção social sobre uma atividade que demanda o exercício da liberdade – é por intermédio da ação da escola que a criança se habilita à leitura, no sentido mais amplo da palavra. Urge, porém, esclarecer o seguinte ponto: antes de ser objeto de ocupação e de preocupação da escola, a leitura é um ato de sociedade e, no caso da sociedade moderna, um ato exigido de inserção social que se relaciona com atos comunicativos massivos e não letrados. Deve, portanto, ser ensinada ao aluno para que este compreenda, assimile e incorpore o significado funcional do seu uso em toda a sua complexidade de relações. Todo aluno deve saber que a leitura pode ser útil para muitas coisas, que não se restringe a um exercício ou a uma tarefa escolar distante de sua realidade e que tampouco se esgota enquanto fonte de sabedoria e poder de sedução nas mesmas carteiras em que ele se esforça por aprender a escrever, a fazer contas, a se informar e até, na melhor das hipóteses, a construir os rudimentos possíveis do saber científico. A leitura pode começar, de modo formal e disciplinado, na escola, mas não pode encerrar-se nesta. E, nesta, o professor desempenha uma função fundamental e positivamente contraditória. Espera-se que o professor exerça o papel de um verdadeiro mediador entre o texto e os alunos; trata-se de uma expectativa geradora de muitas outras, já que o peso da mediação torna-se duplo, pois o texto, em si mesmo, já é um mediador. Aceitemos, pois, que o professor seja um mediador de segundo grau. Nesse caso, o professor não só tem a tarefa de iniciar a criança nas letras, mas também de incentivar-lhe o gosto pela leitura e desenvolver-lhe o interesse 373 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 pelo livro. O aprendiz leitor, por sua vez, precisa da informação, do incentivo e dos desafios proporcionados pelo professor. É lógico que, para que esse professor obtenha êxito, deveria – pois nem sempre isso acontece – ser sensível às situações ocorridas em sala de aula, dotando-se de meios que façam emergir condições concretas para essa aprendizagem, que possibilitem encontrar soluções criativas e avaliar seu impacto. Tarefa nada simples! O que se pratica normalmente em nossas escolas é o que podemos chamar de “desprazer” da leitura, ou seja, uma leitura escolarizada que tem servido aos propósitos de memorização de normas gramaticais, de preenchimento de fichas de compreensão do texto, de aumento de vocabulário, de indução programática para a produção escrita, etc. Nem seria preciso lembrar aqui, por sua escandalosa freqüência, aquele jogo de simulações (que os antigos denominariam “farsa”): os professores fingem que ensinam leitura e os alunos fingem que lêem. O professor adota um livro segundo sua escolha, o aluno é obrigado a “providenciar” a leitura, comprando, tomando emprestado ou xerocando o material. Aquele enfeite fica dentro da mochila ou encostado, como um traste, num canto da casa até um ou dois dias antes da cobrança “oficial” da leitura. O mestre, então, pede aos alunos uma síntese do texto “com suas palavras” ou dá-lhes uma folha com algumas questões sob a alegação de interpretarem a obra. Detalhe: “para nota”. Quase nada foi ensinado, o gasto com o livro agradou às livrarias e editoras e a aprendizagem aconteceu enquanto representação; para a maioria, entretanto, tudo uma grande ilusão. Conseqüência: o professor fica com a falsa idéia de que ensinou e os alunos convictos de que sabem alguma coisa ou de que tapeiam bem (sabe-se lá quem), ou de que cumpriram uma tarefa penosa. Os resultados não poderiam ser outros: contam-se nos dedos os alunos que desenvolvem uma atitude favorável em relação aos livros. E, para constatar essa precariedade, não precisamos, se formos pais, ir muito longe não; os nossos próprios filhos, que por estarem mais próximos acabam sendo textos de nossa fala, dizem coisas do tipo: “tenho que ler o livro que o professor ‘mandou’ para tirar nota para ele”; “não agüento mais ler os livros chatos que o professor manda e depois ficar respondendo uma folha de perguntas”; ou ainda, “meu professor só manda ler livro difícil e 374 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação chato e depois fazer resumo da história”. Se isso acontece desde as primeiras séries, não se pode estranhar que para os mal falados vestibulares, os alunos sejam preparados por esquemas, resumos e dicas de leitura de livros previamente indicados para isso: “para se testado no vestibular”. Os cursinhos nada mais fazem do que seguir, inercialmente, o que desde as primeiras séries foi incutido nos “futuros” candidatos. Muitos autores, de reconhecida competência, afirmam que nossos professores ainda colocam em prática uma didática ultrapassada para o encaminhamento da orientação da leitura, e que a seleção de textos a serem colocados à disposição dos alunos obedece ao critério da pressa, sem um trabalho de busca e análise mais profundo. Em verdade, os professores “presos” à uma submissão ideológico-curricular, apresentam um baixo repertório literário, o que vem facilitar, inclusive, a penetração de marketing direto das editoras. Se o professor não reduzir a leitura a pura descodificação técnica, mas levar a criança a perceber tudo o que contém um texto – a mensagem intelectual, valor estético, significações múltiplas de um mesmo elemento, variações possíveis da interpretação individual, etc. – estará formando uma criança disponível e aberta ao poético e ao fantástico. Esse professor estará abrindo a dimensão do lúdico, do imaginário, da criação, que, além da lógica da gramática e da utilidade em futuras competições (vestibular, por exemplo) fazem parte do esquema interpretativo da criança. A família é de grande importância ao despertar na criança uma motivação para a leitura pelo simples fato, na prática, de o livro ocupar um lugar importante e de destaque em sua vida. Wells citado por Isabel Solé (1998, p.54) diz que o fundamental é que o escrito transmite uma mensagem, uma informação, e que a leitura capacita para ter acesso a essa linguagem. Na aquisição deste conhecimento, as experiências de leitura da criança no seio da família desempenham uma função importantíssima. Para além da existência de um ambiente em que se promova o uso dos livros e da disposição dos pais a adquiri-los e a ler, o fato de lerem para seus filhos relatos e histórias e a conversa posterior em torno dos mes375 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 mos parecem ter uma influência decisiva no desenvolvimento posterior destes com a leitura. Vê-se que Wells aponta para um fato pouco percebido: que a leitura transcende os espaços em que, especializadamente, ela possa confinar-se: biblioteca familiar ou institucional, salas de leitura. Seu lugar se caracteriza pela ação de ler. Normalmente observamos, porém, que este lugar de destaque é reservado para a TV (que em casas modernizadas ocupam todos os ambientes, com o lugar privilegiado do home theater), para o videogueime e para a internet. E isto sem pensarmos que a própria arquitetura das casas, em geral, não contribui para a formação do leitor: não há biblioteca, escritório ou uma área destinada à prática da leitura. Se os pais praticam a leitura, a criança possivelmente crescerá valorizando naturalmente aquele objeto que consegue prender a atenção por tanto tempo e que estimula a imaginação, desenvolve a sensibilidade e a inteligência, oferece prazer. Entendemos que não existem fórmulas mágicas para se aprender a gostar de ler, mas nenhum pesquisador há de discordar da seguinte premissa: “a leitura é um instrumento básico na trajetória escolar e no sucesso acadêmico das pessoas, acompanhando-as pela vida afora” (SILVA, 1991, p.77), além de ser um fator essencial para estimular a memória e o aprendizado. Em visita à uma determinada escola, certa vez, Rubem Alves 1 teve a oportunidade de ler no quadro de “regras para leitura”, entre outras estabelecidas pelas próprias crianças, a seguinte: “toda criança tem o direito de não ler o livro que não lhe dá prazer”. Num primeiro momento, pode nos parecer estranho ou pouco comum, mas as crianças já se põem tais exigências e sem a necessidade de consultar pais, psicólogos ou educadores. Com pressão ou imposição, ninguém aprende a gostar de ler. É o prazer de investigar, de julgar, de selecionar que faz da leitura uma coisa gostosa de ser vivida, sentida. E como o próprio Rubem Alves (1986, p.105) nos lembra, é preciso que a aprendizagem seja uma extensão progressiva do corpo, que vai crescendo, inchando, não apenas em seu poder de com376 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação preender e de conviver com a natureza, mas em sua capacidade para sentir o prazer, o prazer da contemplação da natureza, o fascínio perante os céus estrelados, a sensibilidade tátil ante as coisas que nos tocam, o prazer da fala, o prazer das estórias e das fantasias, o prazer da comida, da música, do fazer nada, do riso, da piada... Afinal de contas, não é para isto que vivemos, o puro prazer de estar vivos? Acham que tal proposta é irresponsável? Mas eu creio que sÛ aprendemos aquelas coisas que nos d„o prazer2 . [...] E creio mais: que é só do prazer que surge a disciplina e a vontade de aprender. É justamente quando o prazer está ausente que a ameaça se torna necessária. Talvez Rubem Alves esteja certo em não culpar os meios de comunicação pelo afastamento da leitura por parte das crianças e dos jovens. Importa, porém, dizer que ele nos aponta para além das linhas imaginárias de seu dedo indicador, arguto e sensível, por quê a TV, os jogos visivos (videogueimes) e internet se tornaram cada vez mais presentes na vida das crianças que têm acesso a esses meios: simplesmente dão prazer. Embora não aceitemos que a vida se reduza à finalidade do puro prazer de viver, seria bom ressaltar este aspecto da aprendizagem prazerosa como especialmente fundamental para as crianças, num mundo e numa sociedade em que as vidas se descaracterizam de sua plenitude. Por esses motivos convém que nos demoremos um pouco sobre os réus que costumeiramente se costumam acusar como culpados do pouco gosto pela leitura ou da diminuição do número de leitores. Em si mesmos, os meios de comunicação eletrônica, com suas linguagens próprias ou emprestadas, não constituem barreira para a formação de leitores. Nem mesmo os jogos eletrônicos, os programas televisivos e a internet podem ser acusados indiscriminadamente de serem nocivos à educação idealizada pelos teóricos da pedagogia, pelos especializados pedagogos e pelos professores, principalmente por estes cuja maior parte foi e está fisgada por essas tecnologias e seus produtos. Aliás, tudo que se pode afirmar dessas novas linguagens, pode-se afirmar dos livros, menos no que diz respeito às 377 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 reiteradas e progressivas inovações. Na realidade, esses meios impregnaram de tal modo os contextos de comunicação e as mensagens verbais quotidianas (a conversação, o diálogo, os diferentes tipos de discurso escrito) e estas se cruzam, em simultaneidade, com outras mensagens não verbais com tamanha freqüência e intensidade que seria necessário hoje prepararem-se os professores não apenas para a leitura dos diferentes discursos escritos, mas para a leitura dessa hiperlinguagem ou desse transdiscurso em que os signos promovidos por diferentes códigos se harmonizam de modo indissociável. No nosso entender, o professor está hoje em condições de compreender que: os meios de comunicação são muitos e que o texto escrito é um deles; que muitos dos argumentos postos pela indústria editorial a favor do livro contra os produtos midiáticos, estão viciados pelos mesmos postulados da competição mercadológica e do lucro; dentre os produtos dessa indústria da comunicação massiva, há alguns que respondem mais imediatamente às necessidades individuais ou sociais sentidas ou não sentidas, espontâneas ou induzidas, geralmente prazerosas; que outros meios, como os livros, que têm produtos (e não são todos eles, pelo contrário) que buscam responder a carências mais profundas e complexas e solicitam mais tempo de uso e experiência participativa. Se desejamos a sublimação de nossos instintos de luta e de guerra sem passar pelo desgaste ou pelo sofrimento físico, valendo-nos, pois, da contemplação que permite identificar-nos com a contenda, em estado de distanciamento por assim dizer estético, no instante mesmo do conflito, ligo a televisão, se a tenho, e assisto ao jogo de futebol, de vôlei, de basquete. Se sinto necessidade de saberes sobre a guerra, sobre as razões que movem ou moveram, as nações ou os homens que as dirigem, a promovê-las e a prolongá-las, se desejo penetrar nelas vivendo-as imaginariamente, se desejo recriá-las e a seus atores, purgando-me ou não, pela catarse, de minhas culpas coletivas, participando de sua complexidade irracional, ainda que determinística, leio o livro pertinente, que me solicita tempo e disposição para a recursividade. Lê-se, às vezes, que o videogueimes absorvem em demasia o tempo das crianças e dos jovens, impedindo-os de desenvolver o gosto pela leitura de livros. Reiteremos, com Rubem Alves, que muitos livros são um chute na canela: fazem as crianças e os jovens detestarem ler não só os livros indicados, 378 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação mas todos os outros que, podendo causar prazer, acabam sofrendo as conseqüências. Por outro lado, seria necessário fazer-se uma pesquisa séria sobre a distribuição do tempo das crianças e dos jovens e de que crianças e jovens estamos falando, pois nem todas as crianças possuem videogueime ou tem acesso a eles; nem todas as crianças têm tempo ou podem ter tempo para assistir aos programas de entretenimento focados no público infantil. Isto quer dizer que, antes de tudo, não podemos homogeneizar as condições sociais das crianças que têm oportunidade de freqüentar as escolas de ensino fundamental. Imaginemos, portanto, que exista uma pesquisa que demonstre (vai ser difícil demonstrar) que nossas crianças têm um tempo demasiadamente absorvido pelos jogos visivos e pelos entretenimentos televisivos. Evidentemente, tal absorção não se verifica em ambiente escolar, mas a preocupação vale para elucidar três fatos: o primeiro diz respeito ao jogo; o segundo ao jogo como instrumento educativo; e o terceiro, a um equívoco. Vamos ao jogo em si mesmo e ao entretenimento Afirma-se, dos videogueimes e dos programas de entretenimento focados no público infantil, que alimentam a passividade. Sem distinguilos, torna-se difícil aceitar a afirmação. Entre os programas de entretenimento focados no público infantil, há os espetáculos de diversão e distração, as adaptações literárias, as transcodificações e modernizações mitológicas geralmente por meio dos desenhos animados, os desenhos animados que transfiguram histórias em quadrinhos, muitos dos quais transcodificadores de mitologias, os desenhos animados de estrutura fabulística e moral, as ficções científicas (por animação com desenhos, sem animação e mistas). Se verificarmos as críticas dos pedagogos a esses programas, fica evidente o total despreparo para descodificar essas linguagens, o que não se pode condenar, e uma evidente má vontade, que não condiz com a pedagogia crítica. Normalmente os alvos da crítica negativa têm sido os programas que, centrados em algumas artistas tecnicamente competentes, “distraem” as crianças, naqueles horários em que se supõe que os pais estejam fora e que as crianças não estejam na creche ou na escola. O que aprendem as crianças no momento em que se divertem? Os pedagogos acham que nada e muitos deles acham que se procede a uma de379 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 formação. Que instrumentos aferidores dessa deformação e desse cultivo da ignorância foram utilizados? Com que método? Movidos por que ideologia ou abstração? Não se sabe. Não se indaga, por exemplo, de onde as crianças (que assistem a tais programas de entretenimento) tiram algumas coreografias que se enlaçam historicamente com danças brasileiras que vêm dos séculos de nossa formação. Uma observação empírica: muitas crianças hoje conhecem parlendas e cantigas populares brasileiras porque as aprenderam em programas de diversão televisivos e que não constam do repertório das escolas, constante ou não dos livros didáticos. E quanto a afirmar que as crianças fruem passivamente tais programas, é preciso não conhecer como se comportam elas até por meios interativos e por iniciativa própria. Quanto aos videogueimes, que também são referidos negativamente, e às vezes com razão, lembremos dois aspectos deles que podem ser vistos como nocivos: a possibilidade do esgotamento na mesmice mecânica dos atos repetidos e a possibilidade do desenvolvimento de atitudes individualistas, competitivas em função de comportamentos agressivos e violentos. Entretanto, não há diferença profunda entre esses perigos possíveis e os que muitos livros didáticos oferecem para os alunos com o seu discurso imperativo e os textos que oferecem aos alunos: aqui, a repetição e a redundância se observam nos questionários que acompanham cada texto, nas respostas induzidas e unidirecionais, nas fichas de livros, nos resumos. A leitura única constitui o caminho mais fácil para a resistência ao diálogo, à compreensão do outro, à sociabilidade educada e não servil. Acrescente-se que a leitura com uma única direção e com perguntas que admitem apenas a resposta já embutida na formulação faz com que ao fastio se some a agressividade contra a própria leitura e, principalmente, contra a leitura de obras literárias. Os videogueimes também podem levar ao esgotamento na mesmice dos atos repetidos: entretanto essa repetição acaba em fastio e o fastio, neste caso, conduz à mudança do jogo ou do programa. O fastio com o livro didático muito dificilmente determina sua substituição. Alguns jogos visivos também carregam o perigo de incutir, subliminarmente ou explicitamente, o desenvolvimento de condutas agressivas, mas junto com esse perigo trazem o alerta sobre as conseqüências negativas dessa conduta e sobre a própria realidade iníqua que a engendra. Acima de tudo, porém, ou melhor, acima desses 380 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação riscos reais, os videogueimes estão longe de pressupor a passividade do jogador ou dos jogadores; pelo contrário exigem atividade e destreza tanto psicomotora quanto intelectual e mostram na própria prática do jogo a importância do poder de concentração. Outro fato do qual se costuma esquecer é o de que o jogo, em si mesmo, constitui um instrumento educativo. Aliás, para alguns, o jogo está na raiz e no desenvolvimento da poesia e das artes; está mesmo na base da criação literária. Sendo assim, por que não criar videogueimes educativos ou deles se valer para a formação intelectual e moral dos alunos, e para que esses possam construir o conhecimento. Será que com eles não seria possível que as crianças se impregnassem das regras de conduta positiva próprias da sociabilidade que se idealiza para a vida plena e adulta? Se há programas televisivos de entretenimento voltados para a instrução e a educação, por que não há os videogueimes educativos? E já que a vítima está sendo a leitura de obras literárias, e como há pedagogos a par de novas tecnologias em educação, muito provavelmente deve haver videogueime programado como instrumento de acesso não superficial, mas instigante e prazeroso, aos textos de poesia e de narrativa de ficção. O equívoco, nosso terceiro fato, consiste em considerar os jogos visuais (videogueimes e outros) como menos participativos do que os jogos tradicionais; nem são menos participativos nem menos complexos, são diferentes. A desvantagem dos jogos midiáticos está noutro ponto, também essencial na formação infanto-juvenil: o aspecto da educação física ou corporal. Mas este problema está em outra esfera e se resolve pelo controle do tempo e por políticas de incentivo (que deveriam ser também de obrigatoriedade) à educação física, educação física que sofre os mesmos preconceitos pedagógicos que os jogos visivos, os programas de entretenimento e a comunicação por internet. Devemos começar a pensar a realidade infanto-juvenil a partir do que ela é diante do jogo: tanto as crianças como os jovens, em sua maioria, não sentem conflito algum em participar dos dois tipos de jogos, os naturais ou tradicionais e os artificiais ou midiáticos. Empenham-se com igual denodo, sem estranhamento e assimilando as normas de cada atividade, tanto na participação do jogo da amarelinha, da bolinha de gude (biroca, triângulo, esteca, etc.), do pega-pega, do esconde-esconde, do 381 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 futebol de rua, do futebol de salão, do vôlei, do basquete, todos esses jogos socializados e mais os múltiplos outros inventados a partir deles, quanto na participações dos jogos de vídeo que, se bem traduzidos, representam, com outras figurações, aqueles que, com o próprio corpo, vivem em suas horas de lazer. Pois os entretenimentos e os jogos midiáticos constituem-se em bens culturais, talvez marcados pela provisoriedade, que é também a nossa condição existencial. O contato da criança com os bens culturais, entre os quais, o livro, deve ser estimulado e anteceder à idade escolar. O aprender a ler tornarse-á fundamental para a sua integração no contexto sócio-econômico e cultural, por propiciar-lhe instrumentos que lhe permitirão assumir uma postura consciente e crítica frente à realidade. Só que, como nos lembra Regina Zilberman (1985, p.17), “sabendo ler e não mais perdendo esta condição, a criança não se converte necessariamente num leitor, já que este se define, em princípio, pela assiduidade a uma instituição determinada – a literatura”. Costumamos pensar na criança apenas como um ser em formação, um pedaço inacabado de uma seqüência de etapas, um ser dependente, sem vontade própria, um dado etário, algo imperfeito e incompleto que necessita ser educado pelo adulto, este, sim, considerado completo e evoluído. Mas a criança, mais que isso, é um ser complexo, com suas próprias necessidades e aspirações, é pessoa que tem sentimentos e fantasias em relação ao que vê, é um ser criador, é cidadã. O adulto pode respeitar suas criações, suas idéias, encorajando-a, e ainda que não imponha soluções feitas, pode proporcionar-lhe a descoberta e a invenção. Edmir Perrotti (1982, p.18) diz que “pensamos sempre na criança recebendo (ou não recebendo) cultura, e nunca na criança fazendo cultura ou, ainda, na criança recebendo e fazendo cultura ao mesmo tempo”. Como nas sociedades capitalistas, centrais ou periféricas, o indivíduo se identifica como força de trabalho, o adulto, enquanto produtor, se torna mais privilegiado que a criança, pois é tido como mais produtivo que ela, considerada um peso negativo na determinação da renda per capita. Portanto, a criança dentro do modo como está organizada a produção, por força de uma transubstanciação conceitual indevida, é tratada como um elemento cultural382 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação mente passivo e que não serve às necessidades do sistema produtivo. Ao contrário, todavia, a criança, além de ter-se tornado a gênese de muitos movimentos culturais, cria cultura ainda que os adultos não reconheçam o seu trabalho e ainda que só os que produzem e reproduzem o sistema econômico vigente sejam passíveis de reconhecimento. Isto é ainda mais verdadeiro quando pensamos na literatura: escrita por um adulto para um pequeno leitor; tal literatura apresenta na origem do seu processo comunicacional uma relação de “para” e não “entre”, o que implica distribuição desigual do poder. Neste sentido, a literatura se nivela a outros produtos culturais de comunicação massiva. O adulto exerce poder sobre a criação de um texto ou de uma imagem, sobre a produção, difusão, crítica e consumo de um livro, de um programa televisivo, de um videogueime, de um jogo internáutico. Camargo (1982, p.180) escreve que “quando se reflete no que é produzido para a criança, percebese o quanto muitas dessas produções estão distantes da arte, da criança e da vida”. Em outras palavras: o leitor criança, apenas recebe um produto gerado por adultos, quase nunca opinando na compra do produto que consome; ele é manipulado e visado pela cultura de massas que o quer somente como provável comprador. Atualmente, e felizmente, um fenômeno vem ocupando espaço em muitas das nossas escolas: exemplos de livros de textos feitos pelas próprias crianças, que criam e recriam contos, músicas, poemas, etc., buscam e interpretam os acontecimentos mais importantes do dia, partem para a descoberta do mundo que as cerca, com papel, lápis, caneta, máquina fotográfica. Dentre os bens culturais com os quais a criança convive, a produção literária vem apresentando uma substancial revitalização no país nas duas últimas décadas, devido em parte ao número crescente de obras dirigidas à infância, oferecendo oportunidade para o surgimento de novos escritores e ilustradores, e favorecendo economicamente a indústria editorial brasileira. Entretanto, assiste-se também a uma falta de entrosamento entre a criança e o livro, e os eventuais responsáveis apontados por muitos especialistas são os meios de comunicação de massas, “convertidos em inimigos da literatura: a televisão, a revista em quadrinhos e até a música pop, disputando uma 383 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 preferência que, segundo o bom senso dos adultos, deveria ser concedida ao livro” (ZILBERMAN, 1982, p.94). Será que a revista em quadrinhos, a televisão, o videogueime, absorvem tanto a criança a ponto de distanciá-la do livro? Aqueles marginalizam a literatura com a qual a criança se envolve? Já observamos que estas interrogações, vindas de uma das maiores conhecedoras de literatura infantil e de literatura dirigida para crianças, não podem ser respondidas com a mediação de preconceitos, mas somente após medições feitas por pesquisas sérias sobre que crianças, e de que classes sociais, são absorvidas por esses inimigos, quando e por quanto tempo; pesquisas sobre que famílias possuem nas casas as mesmas condições de acesso aos livros que as crianças têm em relação às histórias em quadrinhos, à televisão e à música pop; qual a natureza desses inimigos, já que o maior dos quais, a televisão, tem sido incentivadora de leitura; e, pesquisa principal, quais as causas, sem mistificações, da conversão desses meios em inimigos da literatura. Tais pesquisas precisam ser realizadas sob pena de a própria realidade colocar em descrédito as afirmações sobre esta guerra entre os produtos culturais modernos. Só para introduzir outra questão instigante: por quê grandes escritores da literatura e da dramaturgia brasileira estão despidos desses medos e preconceitos? Assinalou Lígia C. Magalhães (1982, p.83) que as histórias em quadrinhos “não transmitem os valores formativos que a escola consagra e, tampouco, presta-se ao ensino das normas lingüísticas”, mas “trata-se de uma produção voltada ao entretenimento, geralmente eivada de humor”. Sem defender as histórias em quadrinhos, aqui também há que distinguirse quais delas não transmitem valores formativos consagrados pela escola e, antes disso, há que se perguntar que valores formativos a escola consagra. Também se deve esclarecer que não constitui função das histórias em quadrinhos, assim como as das obras de arte literárias se prestarem ao ensino das normas lingüísticas, bastando lembrar que bons autores se servem da ruptura das normas para erigirem criações surpreendentes, muitas delas eivadas de humor e quase todas, senão todas, voltadas para um tipo de entretenimento, seja ingênuo, seja sentimental, seja intelectual. O que ocorre com a televisão e com o videogueime é que, em alguns casos, se transformam em verdadeiras “babás eletrônicas”, substituindo os 384 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação brinquedos, os jogos, o livro, o contato da criança com as outras crianças e adultos. “Na busca de tempo livre, por impossibilidade ou comodismo, muitos pais simplesmente transferem para a televisão os cuidados maternos ou paternos, principalmente nos centros urbanos onde não existe espaço para lazer” (CAPARELLI, 1982, p.63). Não obstante tudo isso, as críticas feitas à televisão, apontam a mesma como sendo um aparelho do Estado, ao buscar a hegemonia da classe dominante, especialmente entre crianças, visando a interesses comerciais e ao consumo. Esse meio de comunicação, quando explorado pela iniciativa privada, tem como objetivo primordial o lucro e não a própria criança; mas isso acontece também com boa parte dos livros dirigidos para as crianças. A psicóloga Maria Antonieta Campos dos Santos, citada na matéria de Marcelo Ferroni (2000, p.57), chama a atenção para o fato de que “a TV limita a inteligência, porque leva a uma atuação passiva”. Ainda faz a seguinte ressalva com relação ao videogueime: “quando jogado em excesso, limita a inteligência”, além do que, “a criança fica quieta durante horas e deixa de se relacionar com amigos e com a família. Não adquire outros estímulos fundamentais para desenvolver a inteligência”. Já apontamos que essas observações, com esses sinais generalizantes, são contrariadas pelos fatos. Há que ler os jornais e se prestar atenção nas entrevistas dadas pelos jovens que participam, com sucesso, de jornadas científicas e literárias, ou que conseguem os primeiros lugares nos vestibulares mais exigentes do país. E, para equilibrar o jogo, há que se ler os vários depoimentos de escritores constantes em revistas e jornais e coletâneas como os da série O Escritor nas Bibliotecas3 (2000). Podemos agora voltar as perguntas para dois tipos de livros que circulam, se não se assentam definitivamente, na Escola; o paradidático e o didático. O livro paradidático colocado à disposição das crianças, tem desempenhado função alienante ou colaborado para o desenvolvimento de sua inteligência? O lúdico suscita o escapismo, integra a criança no sistema vigente ou, ainda, identifica-se com ela por ser jogo, brincadeira, magia? De acordo com Edmir Perrotti, à racionalidade do sistema produtivo interessa somente o tempo de produção e não o tempo dos homens. Daí que o lúdico não é viável, pois o tempo do lúdico não pode ser medido, regulável. 385 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Por isso, ele é banido da vida cotidiana dos adultos e permitido à criança por ela não estar apta para servir ao sistema de produção em virtude de não ter ainda sucumbido à racionalidade. Regina Zilberman (1985) registra que o ludismo foi banido para uma literatura popular que, devido ao seu baixo custo e às necessidades do mercado cultural, produtor dessas obras que devem ser logo absorvidas e substituídas por outras, expandiu-se enormemente e sem parar, até os dias de hoje. O livro de literatura identifica-se com a criança por ser jogo, brincadeira, e porque geralmente se prende a conteúdos ligados ao seu interesse. O livro fantástico, lúdico e poético ensina a ver, a escutar, a pensar e a viver por si mesmo e, literalmente, ele des-regula, des-moraliza. Mas esse mesmo livro que apenas diverte e apresenta concessões ao ludismo, torna-se inconciliável com a ideologia dominante na indústria cultural do livro didático, que ainda nos dias de hoje, usa a escola para justificar e transmitir às crianças as suas normas e os seus valores4 . “O conteúdo ideológico veiculado pelos textos do livro didático é definido por valores preestabelecidos na sociedade e que são mantidos sutilmente através de estereótipos sociais registrados em suas páginas” (SILVA et al., 1997, p.63). Já o livro didático é apresentado para o aluno como uma, e em alguns casos, como “a” fonte de conhecimento do mundo. Além disso, apesar das revisões sofridas nos últimos anos, o livro didático ainda apresenta atividades de leitura e escrita desprovidas de sentido e alheias ao funcionamento da língua. Ainda usa uma linguagem artificial, mecânica e inadequada, referindo-se a situações que não correspondem às vividas pela criança, excluindo a sua interpretação e, por fim, ainda atua dentro da escola tentando passar uma atitude ou um saber à criança, utilizando fragmentos de obras. O livro didático virou método e as imposições deste texto são tão fortes que deixam pouca oportunidade à iniciativa do leitor. Tanto é que a criança não incrementa seu discurso e criatividade, sua cabeça se incha com atitudes não críticas e ela apenas aprende a imitar ou repassar a linguagem que o livro (e o docente) lhe delegou; linguagem essa que tem pouco a ver com suas necessidades reais de comunicação. Assim é que seu progresso dentro da instituição escolar dependerá da sua capacidade em reproduzir os conceitos emitidos pelo livro didático ou pelo professor, este último, aliás, um dos componentes do sis386 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação tema hegemônico, e que tende, pelas próprias condições de um trabalho estafante, a reproduzir e não a transformar. A criança até se transforma em autora e leitora, sim, pois “absorveu” o saber produzido para ser introduzida no universo letrado. Mas não nos parece demais dizer que, ela pára de olhar para a “vida do livro” (literatura) porque tem que passar a olhar para o “livro da vida” (didático) da classe. Será que já não está na hora de levarmos em conta o universo de experiências e conhecimentos, predileções e aptidões que o indivíduo-aprendiz traz para o momento da aprendizagem, sem deixar fora desse universo as experiências, mesmo que sejam acríticas ou sentimentais, com os produtos veiculados pelos meios de comunicação? Mesmo sabendo que cada um de nós é detentor de uma competência natural para ler e interpretar um texto, há que se relacionar a obra lida com a história pessoal de leitura de textos e do mundo, entendendo aqui, leitura do mundo como um ato de compreensão do que se vê ou se sente. A leitura e interpretação de um texto depende também de outras questões próprias do leitor, entre as quais, o conhecimento prévio (valores, ideologia, sistemas conceituais, etc.) para abordar a leitura, os objetivos (estipulados por ele ou por outro, mas aceitos por ele) e a motivação que o levaram à leitura. De posse destas leituras, o aluno terá menos oportunidades de permanecer passivo diante de um texto; pelo contrário, poderá questioná-lo, se apossando do que o autor escreveu ou discordando dele. Por isso mesmo, não se deve negar à criança que ela recorra à sua “real realidade”, caso contrário aumenta-se a dificuldade de envolvimento com a escrita e a leitura, tirandolhe a capacidade de assimilar, compreender, interpretar e gostar do que escreve e lê. A escola acolhe o “ler livros” em sua programação escolar – haja vista os horários de biblioteca, a hora da leitura nas salas de aula, etc. – mas não tem como objetivo formar um leitor, aguçando-lhe o potencial cognitivo e criativo ou despertando-o para a leitura por puro prazer. Normalmente ocorre em sala de aula que, ao ser incumbido de ler um livro proposto pelo professor, não raro o aluno logo faz a associação do ato de ler a um outro fator que em muito contribui para aumentar sua aversão pela leitura: a cobrança de fichas, questionários (supostamente) de interpretação e compreensão e outras atividades com que a esco387 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 la circunda a leitura. A leitura consiste num processo de enriquecimento mútuo, exige espaço e tempo para que os leitores expressem os significados a que chegaram durante a interação com o texto, e o professor deve escutá-los e conduzir, sistematizando, as idéias geradas e, buscando, sempre que necessário, outros significados que os leitores não tenham destacado. Além disso, parece-nos correto afirmar que a leitura de um texto será motivada para alguém se o conteúdo estiver ligado aos interesses do leitor, e se corresponder a um objetivo. Sendo assim, fica difícil que numa classe uma mesma leitura possa contentar os interesses de todas as crianças e coincidir, ainda por cima, com os do professor. Por outro lado, tudo nos faz acreditar (como nos ensinam os meios de comunicação) que interesse também se cria, se educa e que, na maioria das vezes, depende do entusiasmo e da apresentação que o professor faz do texto ou obra e de suas possibilidades de exploração. Isto vale muito quando, por exemplo, o professor pretende desenvolver a compreensão de um fato social, o que vai exigir a leitura e discussão de um único texto. O problema metodológico não se restringe a esta ou àquela escola, a este ou àquele professor, é de todo o sistema educacional que tradicionalmente pratica um ensino de leitura desvinculado da vida que corre fora da escola. Se ler livros se aprende nos círculos da escola, outras leituras se aprendem na escola da vida; na interação cotidiana com o mundo. Ao lermos, processamos e atribuímos significado àquilo que está escrito no texto e realizamos essa atribuição graças aos nossos conhecimentos prévios, a partir daquilo que já fazia ou faz parte da nossa bagagem experiencial, na qual, contemporaneamente, se ajeitam, meio caoticamente, as informações chegadas por outras vias tecnológicas. A nossa escola não enxerga assim e a criança não entende a relevância do aprender, praticar e aprimorar a leitura, pois não consegue saber como a leitura faz sentido em sua vida. É como se houvesse uma cisão entre o que se aprende na escola e a sua aplicabilidade no cotidiano, ou seja, a criança não enxerga a relação entre o que lê dentro da escola e o que lê fora dos muros da escola. Pensamos ser crucial que nossos professores se apropriem verdadeiramente da leitura com prazer e gosto; caso contrário, será difícil que consigam desenvolver esta mesma capacidade em nossos alunos, acostumados que foram e estão 388 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação sendo ao entretenimento e à provisoriedade que boa parte dos produtos midiáticos lhes proporcionam. Não se pode temer aquele, nem se contentar com esta. Como se sabe, os estudantes de primeiro e segundo graus são atualmente compelidos a ler, além dos manuais didáticos, livros de ficção de autores nacionais, a fim de desenvolver o gosto pela leitura. Abriu-se desse modo um amplo e promissor mercado. Pena é que ele tenha nascido sob o signo negativo da obrigatoriedade. Para que o prazer da leitura firme raízes e continue a ser cultivado pela vida afora, é de boa política não o atrelar, de saída, à esfera dos deveres escolares. Parece-me um erro de estratégia querer cobrar dos estudantes respostas a questionários de leitura ou dissertações sobre aspectos das obras lidas. Isso os predispõe negativamente para o desfrute do livro, degradando o prazer em obrigação. Tudo quanto competiria ao professor seria assegurarse de que o livro foi mesmo lido e ajudar o estudante a esclarecer eventuais dúvidas de compreensão quando ele espontaneamente5 as comunique. O mais seria contraproducente. Há que confiar no silencioso poder de sedução do livro; desnecessário realçá-lo através de artifícios pedagógicos, quaisquer que possam ser. Já não se disse que cultura é o que fica em nós depois de termos esquecido tudo o que lemos? Ao esquecimento, pois, e ao entretenimento! (PAES, 1990, p.38). Esquecimento ou entretenimento, o certo é que precisamos de professores que ousem mais, afrontando e superando o medo das tecnologias modernas, e de leitores que não se contentem com menos. NOTAS 1 Palestra proferida no 1º Encontro de Educação em São José do Rio Preto – 7 a 9 de setembro de 2000 2 Grifo do autor 389 COMUNICAÇÃO: VEREDAS 3 Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Ver PRADA, Cecília (Org.). O Escritor nas Bibliotecas. São Paulo: Departamento de Bibliotecas Públicas, 1999, 192p.; 2000, 128p. 4 Duas obras que nos dão uma consciência crítica dos perigos do ilusionismo didático e que merecem ser lidas são: ECO, H. & BONAZZI, M. Mentiras que parecem verdades. São Paulo: Summus, 1980; NOSELLA, M. de L. C. D. As belas mentiras. São Paulo: Moraes, 1981. 5 Grifo do autor E REFERÊNCIAS ALVES, R. EstÛrias de quem gosta de ensinar. 8.ed. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1986. (Polêmicas do nosso tempo, 9) CAMARGO, L. A criança e as artes plásticas. In: ZILBERMAN, R. (Org.). A produÁ„o cultural para a crianÁa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.14781. (Novas Perspectivas, 3) CAPARELLI, S. Televisão, programas infantis e a criança. In: ZILBERMAN, R. (Org.). A produÁ„o cultural para a crianÁa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.61-80. (Novas Perspectivas, 3) FERRONI, M. Os ingredientes da inteligência. Galileu, v.9, n.109, p.50-7, 2000. MAGALHÃES, L. C. Em defesa dos quadrinhos. In: ZILBERMAN, R. (Org.). A produÁ„o cultural para a crianÁa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.81-92. (Novas Perspectivas, 3) PAES, J. P. A aventura liter ria: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. PERROTTI, E. A criança e a produção cultural. In: ZILBERMAN, R. (Org.). A produÁ„o cultural para a crianÁa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.9-27. (Novas Perspectivas, 3) SILVA, Ana Cláudia da et al. A leitura do texto didático e didatizado. In: CHIAPPINI, Lígia (Coord. geral), BRANDÃO, Helena N. & MICHELETTI, Guaraciaba (Coord. do volume). Aprender e ensinar com textos did ticos e paradid ticos. São Paulo: Cortez, 1997. v.2, cap.1, p.31-93. (Aprender e ensinar com textos) 390 GUSMÃO-GARCIA & SILVA O livro, a criança, os meios de comunicação SILVA, E. T. da. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1991. SOLÉ, I. EstratÈgias de leitura. Trad. Cláudia Schilling. 6.ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998. ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In: ___ (Org.). A produÁ„o cultural para a crianÁa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p.91115. (Novas Perspectivas, 3) ______. A leitura na escola. In: ___ (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 5.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p.9-21. (Novas Perspectivas, 1) 391 Do regional ao existencial: o espaço como personagem em Grande Sertão: Veredas na mídia televisiva From regional to existential: the space as a character in Grande Sertão: Veredas on telly media Suely Fadul Villibor FLORY Professora Doutora - Livre-docente e Coordenadora do Programa de PósGraduação em Comunicação da Universidade de Marília – UNIMAR – Marília / SP - Brasil. E-Mail: [email protected] COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 RESUMO O objetivo deste artigo é analisar como se concretizam as abordagens da minissérie televisiva Grande Sertão: Veredas, em relação às propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literário, que lhe serviu de base, detectando as estratégias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memória, que dialogam com o leitor, através de uma simbologia construída pelo entrelaçamento da trama ficcional e do percurso do herói. Acrescente-se, também, que sendo a televisão uma mídia de massa, opera numa escala de audiência tão grande que não se pode falar em elitismo, constituindo-se a minissérie analisada num marco de qualidade na produção televisiva brasileira destacando-se para fora da massa amorfa da trivialidade. PALAVRAS-CHAVE: minissérie televisiva - romance roseano - estética da recepção - espaço textual. ABSTRACT The objective of this article is to analyze how the approaches on Grande Sertão: Veredas, a television mini-series, happen related to what Rosa’s novel proposes. We will try to work backwards, from TV to the literary text on which it was based. We want to find out the strategies used to presentify the development of the narrator’s subjectivity and the landscape that are retrieved by the memory. Both dialogue with the reader through a symbology which was built by the interlacement of the fictional plot and the hero course. Moreover, television is a mass media and it operates with large audience so we cannot talk about elite. The mini-series analyzed was considered a quality mark on Brazilian TV production, going beyond the amorphous mass of triviality. KEY WORDS: television mini-series - Rosa’s novel - Aesthetics of reception - textual space. 394 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem [...] é preciso (também) pensar a televisão como o conjunto dos trabalhos audiovisuais (variados, desiguais, contraditórios) que a constituem, assim como cinema é o conjunto de todos os filmes produzidos e literatura o conjunto de todas as obras literárias escritas ou oralizadas, mas, sobretudo, daquelas obras que a discussão pública qualificada destacou para fora da massa amorfa da trivialidade. O contexto, a estrutura externa, a base tecnológica também contam é claro, mas eles não explicam nada senão estiverem referidos àquilo que mobiliza tanto produtores quanto telespectadores: as imagens e os sons que constituem a mensagem televisual. (MACHADO, 2000, p. 19). A minissérie Grande Sert„o: Veredas, levada ao ar em 1985 pela rede Globo de televisão, com roteiro de Walter George Durst e direção de Walter Avancini, do romance original de Guimarães Rosa, destaca-se na produção televisiva brasileira, para fora da massa amorfa da trivialidade por três razões capitais: a competência do roteirista em explorar os recursos da linguagem roseana, qualidade maior dessa obra literária inovadora, aproveitando diálogos e falas do original; a qualidade da direção, empenhada em conseguir fidelidade na criação de personagens, na ambientação das cenas, nos planos abertos que ressaltam as paisagens (regiões do sertão de existência real e mítica) recuperadas pela memória do narrador no texto literário e transformadas em imagens/símbolos, verdadeiros actantes que dialogam com os telespectadores e o sucesso da minissérie que conseguiu, a partir do regional, manter o eixo existencial, mensagem central do romance, que questiona a existência do bem e do mal dentro do próprio homem: o direito e os avessos do homem. O que h È homem humano. O objetivo deste artigo é analisar como se concretizam as abordagens da minissérie televisiva em relação às propostas do romance roseano. Tentaremos realizar o trabalho de volta; do texto televisivo ao literário, que lhe serviu de base, detectando as estratégias utilizadas para presentificar os desdobramentos da subjetividade do narrador e as paisagens recuperadas pela memória, que dialogam com o leitor, através de uma simbologia construída pelo entrelaça395 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 mento da trama ficcional e do percurso do herói. Acrescente-se, também, que sendo a televisão uma mídia de massa, opera numa escala de audiência tão grande que não se pode falar em elitismo. Como produzir um trabalho de qualidade, que consiga a penetração indispensável em uma audiência necessariamente tão heterogênea? Vale lembrar que já é um bestseller literário no Brasil um livro que venda 10.000 exemplares e a TV, por menor que seja a audiência do programa, tem cifras de milhões de espectadores. O desafio de Avancini em transformar a sedução das palavras em uma sedução de imagens, respeitando o livro e a mídia televisiva que exige um ritmo mais ágil e dinâmico, fez com que a ordem da narrativa original, configurada por superposição de planos temporais de diferentes épocas do passado, fosse reconstruída na minissérie, numa ordem evolutiva linear, permitindo que a grande maioria do público, na medida de seus conhecimentos, visão de mundo e repertório, pudesse entrar em contato com a obra de Guimarães Rosa e compreendê-la com sua capacidade interpretativa. A minissérie, dramatização televisiva da obra maior de Guimarães Rosa – Grande Sert„o: Veredas, apoia-se, intrinsecamente, na tematização infinita da dúvida – o bem e o mal, Deus e o Diabo, o homem e seus avessos – estão sempre no limite do ser e do não ser, da essência e da aparência. Ressalta-se a constatação da relatividade de todas as crenças, a consciência do homem como um ser em processo, que se constrói diante de nós, juntamente com a própria narrativa literária e televisiva. Configura-se uma dialética entre o regional e o universal, entre a história e a estória, entre a realidade e a ficção, tendo como espaço de diálogo o sertão, e, implicitamente, a dicotomia sertão/cidade. A partir das lutas regionais, dos embates dos federalistas e dos senhores do antigo regime questiona-se o destino do homem em sua vertente existencial, dilacerado entre o bem e o mal, à procura da razão última do ser. [...] O sertão está em toda a parte [...] (GS:V,p.9)1 O sertão é dentro da gente [...] – Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga ao senhor, conforme o senhor mesmo. [...] 396 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem Viver – não é? – é muito perigoso. Por que ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração? [...] (GS:V, p. 443) A produção televisual permite, pela maior extensão, um acompanhamento mais minucioso da trajetória e sentimento dos atores/personagens da narrativa, reiterando-se temas secundários ligados à base cultural cristã de sacrifício, purgação e até mesmo de degradação, uma verdadeira descida aos infernos para se atingir a paz e a melhoria. O amor aparece ligado à honra e ao poder patriarcal e a mulher para fugir ao seu papel secundário de vítima ou simples parceira amorosa assume, muitas vezes, a violência e a coragem para lutar por suas idéias, ainda que tenha que se travestir em homem, como Diadorim/ Reinaldo. Grande Sert„o:Veredas é uma obra em metamorfose, uma obra aberta que, embora espacialmente limitada, modeliza um objeto ilimitado – a realidade – substituindo toda a vida representada no seu conjunto, pelo seu próprio espaço – o espaço textual. O espaço no texto literário é construído a partir das descrições feitas pelo narrador personagem ao contar sua história de vida. Por sua vez o espaço no texto televisivo é montado através de seqüências de imagens criadas a partir das descrições do discurso roseano, apresentadas em plano aberto, típico do cinema e muito usado nessa minissérie, ou em plano fechado, focalizando objetos, detalhes, personagens, animais aliando-se à focalização da câmera, como se fosse o olhar dos espectadores. A necessidade de cortes, a montagem de cenas e os efeitos sonoros e visuais fazem da narrativa televisiva um mosaico de tramas paralelas e signos diversos, que o receptor deve decodificar para compreender a mensagem última que mantém a linha mestra da obra original. A ficção de TV utilizou toda a experiência desses dois veículos, o teatro e o cinema, e lhes acrescentou os recursos do rádio, sem esquecer uma das mais ricas e permanentes fontes de matéria ficcional, a narrativa pura, a literatura de gênero épico, escrita ou não. (PALLOTTINI, 1998, p. 24) 397 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Em Grande Sert„o: Veredas, tanto no romance quanto na minissérie, o destino de Riobaldo—Tatarana—Urutú-Branco é individual, restrito, parte do universo reproduzido pela arte e, no entanto, representa, simultaneamente, a trajetória de qualquer homem, de qualquer indivíduo conduzido e levado pelo “destino”, envolvido por acontecimentos que fogem ao seu controle. E o Urutú-Branco? Ah, não me fale. Ah, esse [...] tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino [...] (GS:V, p. 16) Esse eu que espelha o outro, que com ele se identifica, representa o reflexo de um objeto que tende a alargar-se até o infinito. Essa transferência garante a permanência da obra de arte, seja ela literária ou televisiva como objeto de sucessivas fruições. Acrescente-se, ainda que a minissérie propõe em sua releitura, uma visualização do país, uma volta às origens e às identidades regionais, com seus conflitos de posse de terras e violência de grupos rivais, configurando-se uma dinâmica de relações sociais, que ocupa um lugar no imaginário tanto das elites como dos demais segmentos da sociedade. A singularidade de Grande Sert„o: Veredas,que se estende ao texto transmutado, advém da sua específica organização sintagmática, da composição dos elementos da trama que passam antes por uma decomposição paradigmática, fundada em oposições, postas em evidência, dentro de um campo semântico, onde personagens, paisagens, cenários, ambiências, signos e símbolos interagem, com suas significações alteráveis no espaço textual, campo de energia da ficção narrativa. [Guimarães] [...] tomou um tipo humano tradicional em nossa ficção e, desbastando-se os seus elementos contingentes, transportouo, além do documento, até a esfera da nossa humanidade, desprendendo-se do molde histórico e social de que partiram (CANDIDO, 1995, p. 174) É através do jagunço Riobaldo, tipo humano tradicional em nossa ficÁ„o, que o receptor se reconhece, ambos inseridos na esfera de nossa humanidade e provenientes de um molde histórico social comum. 398 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem Longa fala de um narrador a um “doutor” – personagem/narratário parceiro do diálogo – figura do leitor presente dentro do próprio texto, a narrativa ficcional é reconstruída, pela recuperação de fatos, paisagens e sentimentos que são vida passada, reminicências e lembranças, organizadas por uma memória seletiva, por uma subjetividade que contamina e modifica a estrutura do narrado, enquanto na minissérie, nosso conhecimento das personagens, seus feitos, suas crenças e sentimentos, realiza-se através da ação dramática, dos diálogos que se desenrolam diante do telespectador. O romance inicia-se pelo fim dos acontecimentos, quando Riobaldo dono de terras, casado com Otacília, rememora sua vida contando-a ao doutor da cidade que o visita. A narrativa é a recuperação dos fatos que o levaram a fazer um pacto com o diabo, sendo conduzido pelo destino à sua revelia. Encontrase num presente do ato de narrar (plano da enunciação) relembrando os acontecimentos do passado (plano do enunciado ou da história contada), onde ele é o principal personagem.O texto literário inicia-se, portanto, pelo final da narrativa (in ultimas res) estratégia literária comum a muitos romances. A minissérie, no entanto, precisa criar cenas e imagens que falem por si e transmitam essa subjetividade do narrador/personagem, que é substituído pela câmera no texto transmutado. A abertura da minissérie, por necessidade da própria mídia televisiva, deve atrair os telespectadores, oferecendo-lhes as coordenadas principais da narrativa, apresentando-lhes os principais personagens e evitando superposições temporais que dificultem o entendimento. É preciso ordenar a cronologia temporal da matéria narrada e, assim, o início do texto televisivo seleciona um momento crucial da narrativa, pelo meio dos acontecimentos (in medias res), quando Riobaldo menino encontra-se, pela primeira vez, com Reinaldo/Diadorim também menino e atravessam juntos o Rio São Francisco. Encontram-se com um mulato, que insinua relações ambíguas entre os meninos e quer tomar parte delas, molestando Reinaldo. Este finge concordar e fere gravemente o agressor com uma faca, fazendo-o fugir. A coragem de Reinaldo, sua reação e iniciativa rápidas revelam-nos que ele está acostumado a se defender, e ao mesmo tempo, constata-se sua ternura e suavidade com a natureza e as belezas do rio. Instaura-se, de início um clima de ambigüidade que permanecerá até o fim da minissérie, sendo explorado em vários breaks, configurando-se um elevamento de tensão em finais de capítulo, 399 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 através da focalização do amor proibido entre os dois jagunços, insinuado pelas estratégias de closes nos atores envolvidos. Riobaldo, vindo de um passado de pactário, tendo praticado ações que necessita redimir, encontra-se, no início da narrativa literária, num momento ainda atormentado do presente. Somente o mergulho no abismo, uma descida aos infernos, poderá providenciar a necessária “catarsis”, que lhe poderá trazer um presente liberto de culpa. Inserido numa paisagem de outono, matizada por uma harmonia aparente e por uma paz provisória, – agora um homem de “range rede”– Riobaldo procura entender suas veredas na luta/ sertão em que se viu tragado e conduzido. O continuum espacial do texto (LOTMAN, 1978, p. 359) é o lugar das ações, onde a sucessão de paisagens, cenários – físicos e humanos – constroem atmosferas e ambiências, reproduzindo o mundo do objeto, ordenado segundo um certo plano, que intervém enquanto linguagem, expressando outras relações não espaciais do texto. No romance e na minissérie, a existência de determinados objetos, a descrição/invenção ou a focalização de paisagens, lugares e animais compõem o espaço, onde se movimentam e agem as personagens, estabelecendo-se mensagens de um indivíduo para outro, do narrador ao leitor, do criador ao coletivo, do particular ao social. Os objetos, paisagens e animais são mensagens em sua materialidade, em sua exterioridade, com sua própria presença, cuja simbologia ultrapassa o simples papel de elementos decorativos. A simbolização sobrepuja a significação funcional imediata, tanto no romance quanto na minissérie, através do jogo de imagens e das aproximações metonímicas e analogias metafóricas. Assim sendo, as paisagens recuperadas pela memória, em Grande Sert„o: Veredas, configuram-se como actantes que dialogam com o leitor, através de uma simbologia construída, no texto literário, pela subjetividade do narrador/ personagem Riobaldo e, no televisivo, pelo entrelaçamento da trama ficcional, epopéia épica de jagunços/cruzados, em busca de sua verdade e de sua razão de ser no mundo. Maurice-Jean Lefebve, ampliando o conceito de objeto e englobando paisagens, animais e cenários, observa que: [...] nas paisagens e nos objetos, por mais naturais e inertes que possam parecer, dormita sempre, sob o efeito de uma espécie de 400 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem feiticismo inconsciente, uma potencialidade mágica. O objeto não reenvia, de maneira puramente abstrata, a um traço de caráter, a uma condição social ou a uma ideologia; dele emana uma atmosfera, ele é portador de um poder, pelo menos virtual, de enfeitiçamento.(LEVEBVE, 1975, p. 259) Em Grande Sert„o: Veredas, o processo de constituição do espaço do sertão, como paisagem ficcional, articula-se no cruzamento do real e do simbólico, do particular e do universal, transfigurando-se um espaço real em um espaço mágico. Investido de uma dimensão arquetípica, ligada ao tema de construção de uma identidade nacional, é o cenário ideal para a epopéia do homem e o questionamento dos valores fundamentais do humano: amor, sofrimento, perda, vida e morte, Deus e o diabo, o homem retesado entre a essência e a aparência, o bem e o mal. O próprio título articula Grande Sert„o – um espaço amplo, coletivo com veredas – espaços individualizados, o espaço de cada um – caminhos. Espaço síntese da própria vida, O sert„o est em toda a parte/ O sert„o È o mundo... é, por excelência, um espaço matricial de onde brota, viceja e concretiza-se a própria vida. Os homens, seus encontros e desencontros, atos e pensamentos, nem sempre coerentes ou compreensíveis, vão desenhando caminhos, vertentes por onde enveredam pelo seu próprio querer, por injunções da própria vida ou por forças que não conseguem dominar ou compreender. Delineia-se um sertão, ao mesmo tempo mítico e tangível. Tangível pois recupera e re-inventa cenários e realidades sertanejas e mítico pois compõe o espaço vivencial do homem do sertão, de todos os homens, de todos os sertões. Walter Avancini em entrevista declara que precisou abandonar o sert„o realista e olhar o sert„o m gico para trazer Guimar„es o mais fiel possÌvel [...] (apud, LOBO, 2000, p. 200). As fronteiras entre a realidade do texto – mundo imaginário – e as realidades do receptor – senhor do conhecimento catalogável – tornam-se instáveis, estabelecendo-se, através da linguagem, novas articulações dos acontecimentos, vividos e rememorados, ultrapassando a realidade sensível. O autor flagra a vida, o estar no mundo, a partir do interior, da desmontagem de cada elemento do todo, seja um louco, um jagunço, uma 401 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 criança, uma onça, uma árvore, um objeto qualquer que se projeta, que se anima de vida à revelia de tudo. A minissérie através das imagens da natureza, das paisagens, cenários e efeitos especiais, realiza uma ficcionalização do real, criando a par do sertão físico, o espaço mítico do sertão/vida. Diluem-se os contornos entre homens e natureza, parceiros na luta entre o bem e o mal, na travessia onde caminhos e elementos da paisagem fazem-se aliados ou inimigos, como enigmas a serem decifrados, reflexos de olhos humanos que se revelam nas ações e visões dos próprios personagens. Um complexo jogo entre narração e focalização cria um espaço intersubjetivo onde ficção e realidade, bem como identidade (o eu/narrador) e alteridade (o outro/doutor-narratário e o próprio leitor) permitem uma reflexão sobre a razão do outro, materializando suas falas e pensamentos, preservando em cada ser, o que ele tem de irredutível, diferente e intangível. Afirma, com muita pertinência, João Adolfo Hansen – em sua mais recente publicação que, nesse romance: [...] Enunciação, tempo da narração, ordena-se, por justaposição de blocos, em que o contar de um pedaço a é suspenso para contar-se uma estória b contemporânea, suspensa para se narrar um ditado c simultâneo: o efeito é de alternância narrativa que, dissolve o modelo causal-linear do romance [...] (HANSEN, 2000, p. 189-190) Consequentemente, é preciso, em cada bloco, construir a paisagem, o cenário, a ambiência ou atmosfera, onde se inserem os acontecimentos, para que estes possam abrir-se a uma pluralidade de significações, por parte do espectador. A alegorização dos espaços, as metáforas simultâneas, articulando natureza, animais e objetos vão providenciar uma interrelação entre o real e o simbólico, baseando-se em dados da realidade, potencializados pela linguagem roseana, que os recobre de significação, mantida na minissérie, na medida do possível. Deste modo os espaços ficcionais, os locais onde se desenvolve a ação dramática, funcionam como narrativas dentro da narrativa, com descrições 402 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem altamente simbólicas, onde os signos estabelecem significações – (leitura vertical ou paradigmática) que iluminam a narração e permitem várias interpretações. Configura-se nas descrições das paisagens um sertão referencializável, legível e reconhecível pela emergência da geografia flora e fauna, usos regionais e conhecimento dos gerais, re-inventados pela fala e memória de Riobaldo, com sua justaposição contraditória de discursos e versões de palavras e fatos. O trabalho artesanal da descrição no romance e a montagem de cenas e ambientes, através do trabalho da câmera na minissérie, são responsáveis pela construção das paisagens e objetos e nelas encontraremos signos balizadores para a compreensão da trama, uma vez que as circunstâncias em que surgem são sempre indicadoras de leituras e interpretações dos receptores. A narração de Riobaldo é responsável pela mobilização dos eventos, deslocando objetos no tempo e no espaço, conferindo-lhes vida e sentido e na adaptação televisiva, o uso da câmera em closes, as focalizações, os planos abertos e fechados vão desempenhar a mesma função. Configura-se uma ligação indissolúvel entre diálogos e cenários e estes, enquanto pausa ou corte na diacronia do narrado, permitem que as paisagens passem para o primeiro plano, com todo o potencial simbólico dos objetos que os compõem, participando dos conflitos, atualizando comportamentos e envolvendo-se no próprio processo de representação. Deste modo, todas as passagens decisivas do romance e da minissérie estão intrinsecamente ligados ou, até mesmo, só podem ser compreendidas em suas virtualidades se forem decifrados os signos e símbolos do espaço. A fala repetida por Riobaldo na narrativa televisiva O diabo na rua, no meio do redemunho, assim como no texto literário, privilegia uma leitura da inserção do mal na rua, – espaço urbano, lugar de homens – e na natureza redemunho, ainda que caótica e em desordenado movimento – o diabo, È as brutas (GS:V, p.21). A primeira referência a Diadorim no discurso narrativo vem associada à vida, e à natureza, e será sempre ligada à beleza, ao amor, à delicadeza da vida, quando estão juntos e a sós. No entanto, nas cenas coletivas, 403 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 no convívio com os jagunços ou nas lutas revela-se o duplo de Diadorim – o jagunço Reinaldo que não conhece o medo – o Diá que luta com Hermógenes na rua, no paredão, no meio do redemunho. Hem? O senhor? Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu, moreno; meu, em belo, é o Urucúia – paz nas águas... É vida (GS:V, p. 24) [...] Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma bris-brisa. O ianso do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. . (GS:V, p.24) [...] Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. (GS:V, p.25) Ser duplo, de sexualidade ambígua, Diadorim – lembrada sempre pelos buritizais verdes, pelo topázio/ametista destinado por Riobaldo ao amor de sua vida e que nunca lhe chegou às mãos, acabando na posse consentida e certa de Otacilia. – estando às sós com Riobaldo é marcada pelo sintagmas verde/esperança/Urucúia/vida, vitualidades do “não ser”, potencialidades que são tragados pelo redemunho. A impossibilidade, o limite, o irrealizável, a busca constante que só a morte dá cobro sintetizam-se no mito da donzela guerreira que só é possível em um espaço aberto, em plena natureza. Como numa missa, o ato de comunhão com o sagrado tem o poder de re-ligar, ainda que por momentos, a harmonia homem/natureza pressentida pela descrição dos cenários (canto, pássaros, céu) e pelo amor platônico e sublimado. Por outro lado, entre os jagunços, a coragem de Diadorim sempre lembrada, transforma-se em ferocidade como se o “Diá”, inserido em seu próprio nome, tomasse corpo, reforçando um motivo recorrente em toda a narrativa – o diabo não existe por si só, indivÌduo, soberano – o que há é a maldade do próprio homem, os avessos do homem. 404 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem [...] Diadorim, travestida de jagunço mantinha com Riobaldo uma aliança de força e sangue: precisava vingar a morte de seu pai, matando o signo do mal, Hermógenes. Essa aliança passava também por uma sedução mútua, um amor que não podia ser dito, porque naquele momento e naquele lugar, a opção que se colocava para Diadorim era a masculinidade, no seu sentido mais beligerante.[...] (LOBO, 2000, 188). Na minissérie, o efeito surpresa da descoberta do verdadeiro sexo de Diadorim/Reinaldo, que no texto literário ocorre no final da história contada é prejudicado pelo conhecimento dos telespectadores de que a atriz Bruna Lombardi, intérprete da personagem Diadorim é uma mulher. Embora caracterizada como homem e assim vista por todos os personagens da minissérie, o receptor já conhece a verdade. Estabelece-se um pacto entre o emissor e o receptor, que partilham de indagações comuns: como, quando, onde a revelação será feita a Riobaldo e aos demais E assim é Diadorim, agora Reinaldo. Diadorim o suave, o Urucúia, os buritizais, o amante da natureza que ensina Riobaldo a sentir o prazer das coisas simples, da integração com a natureza. Reinaldo, o jagunço, o ser humano encerrando em si a maldade que também é parte intrínseca de cada um de nós: O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça:boca de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto campo, brabejando; cobra jararacussú emendando sete botes estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas se acreditam. O diabo na rua, no meio do redemunho [...]( GS:V, p.122/123). A ambigüidade de uma relação amorosa, inadmissível entre dois jagunços, vai propiciar momentos de grande tensão, aproveitados na minissérie nos breaks de fim de capítulo para prender o telespectador e motivá-lo para o capítulo seguinte, mantendo-o preso à continuidade da minissérie. 405 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Durante o desenrolar da minissérie com uma cronologia temporal linear mas feita por blocos de acontecimentos, enfocados a partir de uma lógica interior, psicológica, ligada ao fluxo da trama, os fatos vão se enredando e se auto-explicando, obrigando o leitor a preencher os vazios com sua própria interpretação. A paisagem, como já disse, é construída cena a cena, através da alegorização dos espaços, das metáforas simultâneas que articulam o real e o simbólico, passando a paisagem, com seus signos, ao estatuto de um personagem que, interagindo com o receptor, atualiza suas potencialidades num diálogo subliminar, numa concretização do que não foi dito mas deve ser assimilado pela fusão dos horizontes de expectativas do autor e do leitor, preparada pelas virtualidades do próprio discurso. Para salvar o texto — isto é, para transformá-lo de uma ilusão de significado na percepção de que o significado é infinito — o leitor deve suspeitar de que cada linha esconde um outro significado secreto; as palavras, em vez de dizer, ocultam o não-dito; a glória do leitor é descobrir que os textos podem dizer tudo.[...] (ECO, 1993, p. 46) As passagens decisivas da narrativa estão ligadas a um cenário específico, criando uma atmosfera, onde os acontecimentos tornam-se plausíveis, abrindose a muitas leituras e levando o leitor a preencher os brancos do texto com suas próprias projeções interpretativas. Temos assim, dentre outras: o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim na travessia do São Francisco, início da minissérie; o julgamento de Zé Bebelo (cena coletiva); a tentativa mal sucedida de transpor o Liso do Sussuarão, sob a chefia de Medeiro Vaz; o pacto com o diabo nas Veredas Mortas; a travessia do Liso do Sussuarão, sob a chefia de Riobaldo/Urutú-Branco, pactário; a morte de Diadorim e o resgate do pacto de Riobaldo. Vejamos cada uma delas e suas interrelações com a trama, comprovando a produtividade das paisagens, cenários físicos e humanos (cenas coletivas) como actantes, que dialogam com o receptor através de sua simbologia. 406 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem Encontro e Travessia do São Francisco O primeiro encontro entre Diadorim e Riobaldo, ambos ainda meninos/adolescentes ocorre às margens do São Francisco, e irá simbolizar um rito de passagem, do menino inocente que conhece o amor (embora não o reconheça) a maldade, a coragem e a morte. É necessário um batismo para aquele que virá a ser, num crescendo, o Tatarana e o Urutú-Branco. [...] Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. [...] Ai pois, de repente, vi um menino encostado numa árvore, pitando cigarro [...] e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. (GS:V, p. 79/80). […] Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu tinha sentido. (GS:V, p.81). [...] (Diadorim) Sou diferente de todo o mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente... E eu não tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome. (GS:V, p. 86). A presença da água lustral do batismo, o rio São Francisco, a paisagem amena das margens onde o sentimento do amor aflora muita coisa importante falta nome, a luxúria e o aparecimento do mulato com a primeira insinuação de homossexualismo – ì Voces dois, uÍ, hum? Que È que est„o fazendo?[...] (GS:V, p. 85), a valentia de Reinaldo, que ainda não era Diadorim, são revelações sublinhadas pela paisagem. É o de-Janeiro, riozinho verde, tranquilo, como a infância de Riobaldo, que vai dar, de repente, no São Francisco, largo, amedrontador, barrento, como a vida, prenhe de perigos e desafios: Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem esperar, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiura com 407 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de- Janeiro, quase só um rego verde só. (GS:V, p. 82). Riobaldo, menino, como o de-Janeiro, ribeirãozinho ameno é jogado na vida adulta e, como o São Francisco, irá derrocando tudo e todos à sua passagem para cumprir a travessia que lhe foi imposta pelo destino. Julgamento de Zé Bebelo É uma cena coletiva, que nos revela a quebra do código de honra da jagunçagem – onde Riobaldo, recém-chegado do grupo de Joca Ramiro defende a vida de Zé Bebelo, no julgamento entre os jagunços e influencia os chefes na sua decisão de poupar o inimigo. [...] A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na Sempre-Verde vieram se reunir os chefes todos de bandos, com seus cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...[...] (GS:V, p.209) A fala de Riobaldo é o espaço privilegiado no romance e na minissérie, é ela que possibilita a incorporação de velhas narrativas sertanejas ao universo ficcional do romance, fazendo da oralidade uma estratégia de aproximação do receptor e pondo em evidência o encontro de dois espaços culturais distintos: o sertão e a cidade, representados pelo narrador e pelo “doutor”. O homem culto da cidade precisa penetrar no universo sertanejo para compreendê-lo e captá-lo pelo lado de dentro. Redesenhando a cartografia da região, através dos elementos da paisagem, que se constrói a partir das descrições de minúcias, sons e cores, Guimarães 408 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem Rosa estabelece associações e analogias entre diferentes universos, próximos e distantes que se aproximam e se afastam. A minissérie faz uma montagem primorosa das cenas coletivas, com plano aberto nas batalhas, recuperando o épico através de imagens construídas sobre as descrições roseanas, carregadas de significação e duplos sentidos. Os homens compõem os cenários, configurando-se um espaço social que dialoga com os telespectadores envolvidos pela trama narrativa: Primeira passagem do liso do Sussuarão (sob a chefia de Medeiro-Vaz) Medeiro Vaz na chefia não consegue vencer o Liso do Sussuarão pois não estava preparado. O espaço do mal exige a purgação do herói, a entrega total e apenas Riobaldo, após o pacto com o diabo estaria em condições de atravessá-lo. A descrição, que serviu de base para os cenários em ambiente da minissérie, mostra um deserto sem água e sem vida, onde a morte é presença constante. Outras pessoas que haviam tentado atravessar o LISO desistiram ou morreram. Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem volvência ... E as árvores iam-se abaixando, menorzinhas ... Os urubus em vasto espaceavam. Se acabou o capinzal de capim redondo e paspalho, e paus espinhosos ... Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi o fim de pássaro que a gente divulgou. (GS:V, p.39) [...] Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta – feito cabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente. (GS:V, p.39) […] Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa!. (GS:V, p.41-42) A paisagem configura-se com o locus terribilis, como domínio do sofrimento 409 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 e da morte, como o inferno que só os iniciados têm condição de superar. A importância crucial de atravessar o LISO advém do fato que era esta a única forma de surpreender Hermógenes em sua fazenda, e conseguir vencê-lo pelo inesperado do ataque. Era quase impossível atravessar a região inóspita, que matava a todos que tentavam fazê-lo, o que representava uma certeza de segurança ao inimigo. É preciso o pacto com o mal para vencer o próprio mal. O herói é induzido pelo seu próprio destino a transformar-se de Riobaldo a Tatarana e Urutú-Branco, e é só este, o pactário, poderá vencer o espaço do inferno. O pacto com o Diabo Do mesmo modo já visto na primeira tentativa de atravessar o “Liso”, o cenário dialoga com o telespectador na passagem do pacto com o diabo nas Veredas Mortas. O monólogo interior de Riobaldo é sublinhado por uma atmosfera fantasmagórica, propiciando o questionamento sobre a existência do diabo, a validade de um pacto onde a alma do homem – pertencente a Deus, portanto inegociável – possa vir a ser moeda de troca. “Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminho.” . (GS:V, p.316/317) […] – “Lúcifer! Satanaz!...” Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. “Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!” Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido.” (GS:V, p.319) 410 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem A travessia do Liso do Sussuarão sob a chefia do Urutú-Branco A travessia do Liso do Sussuarão é obtida com a maior facilidade, depois do pacto de Riobaldo. Daí em diante assume a chefia o Urutú-Branco, único capaz de se defrontar com as forças do mal, de desafiar Hermógenes, também pactário. Todas as agruras, desespero e mortandade de homens e cavalos da primeira vez, desaparecem e os obstáculos são vencidos pois apenas os iniciados podem vencer o domínio da maldade, o espaço infernal.Na minissérie, o ritmo mais lento da travessia sublinha as dificuldades e o sofrimento do bando, verdadeiros cruzados numa guerra santa contra o mal A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo, usufruíam quinhão da minha andraja coragem. Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estralas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. Todos; bem, todos, tirante um. Que conto.” (GS:V, p.384) [...] “Os jagunços meus, os riobaldos, raça de Urutú-Branco. Além! Mas, daí, um pensamento – que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse pensamento – então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, que quanto de mim ia tirar cobro? – “Deixa, no fim me ajeito...” – que eu disse comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou não conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai, crescendo e se esquecendo...” . (GS:V, p.385) A morte de Diadorim A morte de Diadorim vai significar o resgate do pacto de Riobaldo. A rua deserta, de repente palco de uma luta sangrenta, o pé de vento, o redemunho, – espaços onde o Diabo, segundo as crenças populares, gosta de se esconder, – são testemunhas do sofrer de Riobaldo, que, definitivamente, perdeu parte de si mesmo. 411 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Diadorim/Reinaldo, seu duplo, parte integrante de sua alma, resgata, com sua morte, o pacto feito. O Urutú-Branco não existe mais. Riobaldo, daqui para a frente será um ser por metade. O pacto, existente ou não, cumpriu-se. Veredas mortas não existem mais. São agora Veredas Altas, um lugar como outro qualquer, esvaziado de sua alma maligna, de seu significado simbólico. Cenas do clímax do romance e da minissérie, as lutas dos bandos inimigos e a batalha final Reinaldo e Hermógenes são marcadas pela trilha sonora, pelos efeitos especiais e pela caracterização das personagens, que ressaltam a violência do encontro. Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que – fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar – e só um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse... Diadorim – eu queria ver – segurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba ... [...] (GS:V, p.450) O romance e a minissérie realizam um jogo entre a abertura para o exterior (natureza) e o fechamento para a interioridade (diálogos e falas) da personagem, dando um movimento ritmado à narrativa. Movimento ritmado de respiração, de vida, decorrente do alargamento e estreitamento do foco narrativo, do tempo e do espaço – tanto físico como psicológico. O narrador, partindo de um presente atormentado e, na minissérie, após todo o decorrer de sua própria vida, chega a catarsis, através da purgação, do sofrimento que o libertou do pacto com o Diabo. O rio aparece como a metáfora da existência humana, da vida em seu fluir. Sua travessia é a da vida, o espaço do homem, sua passagem ritual entre o nascer e o morrer. Riobaldo/São Francisco é homem de range rede, cuja imobilidade é compartilhada com o próprio personagem: Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de 412 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem mim? Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme[...] (GS:V, p.460) Verifica-se, portanto, que os desdobramentos da subjetividade imprimemse nas paisagens, que marcam as diferentes etapas e espaços da narrativa, tanto televisiva como literária, numa interrelação altamente simbólica e reveladora. Configura-se, como afirmamos no início, uma leitura vertical, uma decomposição paradigmática, fundada em oposições, onde personagens e paisagens dialogam com o receptor. Acumulam-se, no decorrer da minissérie e do genial romance roseano, indícios, signos e símbolos, que se presentificam no espaço textual, com interpretações alteráveis, interagindo com o repertório e com o horizonte de expectativas do receptor, parceiro indispensável para a travessia do texto/sertão, onde estamos todos imersos. NOTAS Passaremos a designar as citações do romance em estudo pela sigla GS: V seguido do número da página. ROSA, João Guimarães. Grande Sert„o:Veredas.10. ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1976, 1 REFERÊNCIAS Corpus Básico: MINISSÉRIE TELEVISIVA: Grande Sert„o: Veredas. Roteiro; Walter Jorge Durst, Direção: Walter Avancini, Realização: Rede Globo de Televisão 1985. ROSA, João Guimarães. Grande Sert„o: Veredas. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora José Olimpio, 1976 Obras consultadas: AGUIAR, Flávio et al. Oco do mundo ñ O Sert„o e os Sertões. Organizadora Beth Brait. São Paulo: Arte e Ciência, 1998. 413 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 ALLEN, Robert (org.) To be continuedÖ soap operas around the world. London: Routledge, 1995. BAKHTIN, Mirkail. Questões de literatura e de estÈtica. São Paulo: Editora Unesp/Hucitec, 1988. BALOGH, Ana Maria. ConjunÁões, disjunÁões e transmutaÁões: da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume/ECA-USP, 1996. CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa.In: V rios escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. ECO, UMBERTO. 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PALLOTTINI, Renata.Dramaturgia de Televis„o. São Paulo: Editora Moderna, 1998. 415 COMUNICAÇÃO: VEREDAS 416 Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem NORMAS PARA PUBLICAÇÃO COMUNICAÇÃO: VEREDAS publica artigos, resenhas de livros e teses, ensaios, resumos, comunicações, notas técnicas, contos, crônicas, poemas, traduções e textos de interesse na área da Comunicação, após ouvido o Conseho Editorial. Os trabalhos para apreciação poderão ser enviados pela Internet, no endereço [email protected] (atentando para o tamanho do arquivo, que não deveá ultrapassar 3 mega bytes, já inclusos tabelas e gráficos) ou via correio (secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo - Av. Higino Muzzi Filho, 1001 - campus Universitário - CEP: 17525-902 - Marília - SP - Telefones: (014) 421 4075 - Fax (014) 421-4074 - e-mail [email protected]) em disquetes 3 1/2 (devidamente identificado), gravado em editor de texto Word for Windows. Os textos devem conter de 15 a 25 páginas, com as seguintes especificações: página formato A4, fonte Times New Roman, corpo 12, entrelinha 1,5, com 3 cm de margem superior, e 2,5 inferior, esquerda e direita, parágrafo com recuo de 1 cm da margem esquerda, observando-se as regras de normalização da ABNT. O autor deve informar o endereço completo e e-mail na primeira página do trabalho, para contato. Serão aceitos trabalhos escritos no sseguintes idiomas: espanhol, inglês, português, francês e italiano. NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS a) PRIMEIRA PÁGINA : título completo do artigo no mesmo idioma do texto e, em seguida, traduzido para o inglês, seguido do nome cmpleto do(s) autor(es) (por extenso e apenas o último sobrenome em maiúscula); filiação científica, na seguinte ordem: titulação, Departamento, Instituto ou Faculdade onde atua, sigla, cidade, Estado e país. b)SEGUNDA PÁGINA contendo: resumo de, no máximo, 200 palavras e cinco palavras-chave; título em inglês, Abstract, e Key Words c) CORPO DO TEXTO - Títulos em negrito, corpo 14, alinhados à esquerda - Subtítulos destadaso em negrito, no mesmo corpo do texto, alinhados à esquerda. - Texto contendo, sempre que possível, INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO, (corpo do texto com as reflexões), CONCLUSÕES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. - Notas de rodapé devem ser, na medida do possível, incluídas no corpo do texto ou apresentadas no final do texto antes das referências bibliográficas. - Tabelas e gráficos deverão ser numerados consecutivamente, em algarismos arábicos, e encabeçados por seus respectivos títulos. - Fotografias e ilustrações serão publicadas em preto e branco e devem ser enviadas separadamente ou escaneadas em boa resolução 417 COMUNICAÇÃO: VEREDAS Ano 2 - nº 02 - novembro 2003 As citações bibliográficas devem seguir as normas da ABNT, ou seja: a)Citações curtas (até três linhas) são incorporadas ao texto, transcritas entre aspas, com indicações das fontes de onde foram retiradas. b)Citaçôes longas (mais de três linhas são transcritas em bloco, sem abrir parágrafo, e em espaço simples de entrelinhas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor que a do texto (fonte tamanho 10), e sem aspas, com indicação das fontes de onde foram retiradas. (Exemplo:KUNSCH, 1992, p.23) - Citações no corpo do texto deverão ser feitas pelo sobrenome do autor, entre parênteses e separado por vírgula da data de publicação EX: (SILVA, 1984). Caso o nome do autor esteja citado no texto, deverá ser acrescentada a data entre parênteses. Por exemplo “Silva (1984) aponta...”. Quando for necessário, especificar página(s), que deverá (ão) seguir-se à data, separada(s) por vírgula e precedirda(s) de pl, sem espaçamento (SILVA, 1984, p.128). As citações de diversas obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano deverá ser discriminadas por letras em ordem alfabética, após a data, sem espaçamento (SILVA, 1984a; 1984b). Qando a obra tiver dois autores, ambos deverão ser indicados, ligados por & (SILVA & SOUZA, 1987). No caso de três ou mais, indica-se o primeiro, seguido da expressão et al. (SILVA et al., 1986). - Anexos e ou apêndices serão incluídos somente quando imprescindível à compreensão do texto. - Referências bibliográficas: as referências bibliográficas deverão ser arroladas no final do trabalho, pela ordem alfabética do sobrenome dos autores, obedecendo às normas da abNT(NBR 6023, de agosto de 2002). Ex: LAKATOS. E. Marconi, M.A. Metodologia do trabalho científico. 2.ed. São Paulo: Atlas, 1986. INFORMAÇÕES GERAIS d)Os trabalhos deverão ser inéditos e os artigos deverão focar os objetos da Comunicação, isto é, as midias e seus produtos. e)Os direitos autorais dos trabalhos acietos serão cedidos à Revista COMUNICAÇÃO: VEREDAS. f)Os trabalhos que não estiverem de acordo com estas normas serão devolvidos ao(s) autor(es) g)Os casos não previstos por estas Normas serão resolvidos pelo Conselho Editorial da Revista. h)Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidação das referências bibliográficas., são de inteira responsabilidade dos autores. i)Os artigos só serão submetidos ao Conselho Editoral depois que a Comissão de Publicação da revista verificar o atendimento dos requisitos acimal. 418 Suely Fadul Villibor FLORY Do regional ao existencial: o espaço como personagem INDICE DE AUTORES / AUTHOR INDEX A Ana Carolina Rocha Pessôa TEMER 161 Ana Maria GOTTARDI 327 Antonio HOHLFELDT 195 Antonio Manoel dos Santos SILVA 375 C Cicilia M. Krohling PERUZZO 69 J Jorge Pedro SOUSA 15 Jussara Rezende ARAÚJO 255 L Linda BULIK 95 Lucilene dos Santos GONZALES 347 Luiz Antônio de FIGUEIREDO 361 M Maria Cecília GUIRADO 275 Maria Cristina GOBBI 257 Maria Érica de OLIVEIRA LIMA 131 N Narciso Júlio Freire LOBO 109 Nícia Ribas D’AVILA 177 R Romildo SANT’ANNA 291 S Sílvia Craveiro GUSMÃO-GARCIA 375 Suely Fadul Villibor FLORY 397 419 COMUNICAÇÃO: VEREDAS 420 Ano 2 - nº 02 - novembro 2003