Cultura e Literatura Africana e Indígena Claudia Amorim Mariana Paladino 2010 © 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. A524 Amorim, Claudia ; Paladino, Mariana / Cultura e literatura africana e Indígena. / — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2010. 180 p. ISBN: 978-85-387-0965-7 1. Literatura africana 2. Cultura africana 3. Indígenas – Cultura 4. Literatura Africana (Português) – História e Crítica I. Título II. Paladino, Mariana. CDD 896 Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Jupiter Images/DPI Images Todos os direitos reservados. IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Claudia Amorim Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Graduada em Letras Português – Literaturas de Língua Portuguesa pela UFRJ. Mariana Paladino Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ). Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRJ. Licenciada em Antropologia pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina. Sumário A África lusófona: um pouco de história........................... 11 Breve panorama histórico da África lusófona.................................................................. 12 A colonização das ilhas do Atlântico e da Costa Africana........................................... 14 O Império Colonial Português nas ilhas e nas terras africanas.................................. 14 A independência dos cinco países africanos lusófonos............................................... 16 Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau...................................................................... 29 Cabo Verde: história, cultura e literatura............................................................................ 31 São Tomé e Príncipe: história, cultura e literatura.......................................................... 34 Guiné-Bissau: história, cultura e literatura........................................................................ 37 Cultura e literatura em Angola............................................. 45 Angola: história, cultura e literatura.................................................................................... 46 Cultura e literatura em Moçambique . .............................. 59 Moçambique: história, cultura e literatura........................................................................ 61 África lusófona e Brasil: laços e letras................................. 77 Os africanos no Brasil: um pouco de história................................................................... 77 Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade........................................................... 90 História e historiografia indígena......................................101 O sistema colonial e missionário (1549–1755)..............................................................102 O Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária (1755–1910) . ................108 O Regime tutelar (1910–1988) ...........................................................................................110 As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX..............................................114 Visões indígenas do contato................................................................................................115 Situação contemporânea dos povos indígenas...........123 Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil ..................................123 Diversidade linguística e cultural.......................................................................................128 Formas de organização social e parentesco...................................................................132 Economias indígenas..............................................................................................................133 Religiões indígenas..................................................................................................................134 Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena.......................................................143 Lutas do movimento indígena............................................................................................143 Conquistas legais ....................................................................................................................146 O avanço no processo de escolarização dos povos indígenas................................149 Escritores e literatura indígena ..........................................................................................152 Artistas e cineastas indígenas..............................................................................................154 Gabarito......................................................................................165 Referências.................................................................................173 Apresentação Muito bem-vindos aos estudos de cultura, história e literatura africana e indígena. Esses estudos visam proporcionar a vocês, alunos dos cursos de graduação em Letras, sólidos subsídios para o conhecimento das culturas e literaturas africanas de língua portuguesa e da cultura, história e literatura indígena, a fim de que esses conhecimentos ampliem a compreensão da diversidade da cultura brasileira na qual nos inserimos. Além disso, a obrigatoriedade de abordar nos currículos das escolas públicas e privadas conteúdos da África e dos descendentes de africanos no Brasil (Lei 10.639/2003) e da história indígena e a cultura desses povos (Lei 11.465/2005) propiciou a demanda por esses conhecimentos. Também a homologação do Acordo Ortográfico, que unificou a grafia do português, estimulou uma aproximação entre as culturas irmãs de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, que constituem a África de língua portuguesa, e o Brasil. Resumir em alguns capítulos a cultura e a literatura de cada um dos países africanos de língua portuguesa e a cultura, a história e a literatura indígena no Brasil não foi tarefa fácil. No primeiro caso devido à necessidade de nos remetermos à história e à cultura secular dos países africanos referidos. No segundo caso, pela diversidade de formas de vida, cultura e organização social dos povos indígenas existentes hoje no país, o que torna complexa a composição de um quadro geral. Privilegiamos em primeiro lugar as informações históricas para, em seguida, focalizarmos a cultura e a literatura africana e indígena, uma vez que sem um conhecimento prévio da história dos povos da África de língua portuguesa, dos povos indígenas e de como os portugueses, nos séculos XV e XVI, provocaram essa ligação entre regiões tão distantes, por meio das navegações, qualquer estudo que estabeleça associações entre essas culturas não será completo. No caso dos indígenas também se privilegiou a compreensão dos processos de mudança ocorridos a partir da Constituição de 1988, quando o Estado reconheceu sua condição de povos e o direito à posse dos territórios tradicionalmente ocupados por eles. Decorrente desses processos situa-se a produção de uma literatura indígena que procura expressar, por meio da escrita, uma diversidade de conhecimentos e relatos orais, de modo que possam ser conhecidos pela sociedade não indígena. Assim, com o intuito de facilitar as informações, dividimos o conteúdo deste curso em 8 capítulos, dedicando os cinco primeiros aos estudos da história, da cultura e da literatura dos cinco países africanos de língua portuguesa, os chamados Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), e os 3 capítulos restantes para os estudos sobre a história, a cultura e os modos de vida contemporâneos dos povos indígenas no Brasil. Esperamos, então, que vocês façam uma boa leitura dos capítulos que ora se apresentam e descubram, nesses estudos, a presença africana e indígena ao longo da história do Brasil e a relevância atual que suas culturas possuem, enriquecendo a diversidade de nosso país. A África lusófona: um pouco de história Claudia Amorim O objetivo deste capítulo é apresentar um breve panorama da ocupação portuguesa, na África, que se iniciou na segunda década do século XV (1415), com a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, e se finalizou na segunda metade do século XX, com a independência dos cinco países africanos colonizados pelos portugueses. Durante esses cinco séculos de ocupação portuguesa na África, a cultura do colonizador se misturou, ainda que timidamente, com a do colonizado, malgrado os esforços dos europeus em impor a cultura dominante. Antes da chegada do europeu na África, quase nada se sabia sobre o modo de vida ou sobre a organização dos grupos étnicos que lá viviam, porém é inegável que a cultura secular e ágrafa desses povos permaneceu e se difundiu por outros territórios ocupados pela nação lusa, como o Brasil, por exemplo, que recebeu um grande número de escravos provenientes da África, especialmente do Congo, da Guiné e de Angola (grupo étnico banto) e da Nigéria, Daomé e Costa do Marfim (grupo étnico sudanês). No Brasil colonial, a cultura portuguesa do colonizador, a cultura africana e a cultura indígena foram os pilares da constituição do caráter brasileiro, ainda que o colonizador europeu, branco, tenha subjugado o negro e o índio e suas culturas não cristãs e, por isso, naquela época, consideradas “inferiores”. Contemporaneamente, os laços culturais que aproximam a cultura brasileira da África lusófona são inúmeros e passam, entre outras coisas, pela música, pelas crenças religiosas, pela culinária e pela literatura que se expressa em português. Assim, para falarmos da cultura e da literatura africana, e de seus inegáveis laços com o Brasil, precisamos voltar no tempo e observar que, sem os empreendimentos marítimos dos portugueses que os levaram a algumas regiões da África, e também ao nosso território, essa história seria bem diferente. Comecemos, então, por estudar a África lusófona, ou seja, a África dos cinco países que falam hoje o português (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique), focalizando primeiramente a chegada do português a essas regiões. A África lusófona: um pouco de história Breve panorama histórico da África lusófona No ano de 1415, os portugueses tomaram dos mouros, em apenas um dia de combate, a cidade de Ceuta, no Marrocos. Essa importante vitória da cristandade sobre os “infiéis”, já nos primórdios do Renascimento, guarda um significado simbólico também por ter sido exatamente de Ceuta que Tarik e o seu exército de 7 mil berberes partiram no ano de 711 para invadir a Península Ibérica, permanecendo na Península durante sete séculos. Para além do espírito cruzadístico dessa empreitada, a conquista de Ceuta foi o primeiro passo do caminho que levou os navegadores portugueses da Península Ibérica ao Extremo Oriente e ao Brasil no final do século XV e início do século XVI. A cidade de Ceuta era o ponto de chegada das rotas comerciais oriundas do sul da Berbéria (nome com que os europeus designaram, até o século XIX, a região que hoje compreende o Marrocos, a Argélia, a Tunísia e a Líbia – o atual Magreb com exceção do Egito), e das caravanas com o ouro proveniente da Guiné. Essas riquezas encontradas em Ceuta fizeram com que os portugueses adivinhassem que havia outras maiores espalhadas em alguns pontos do continente africano. Na intenção de dominar esse comércio, ao mesmo tempo em que buscava contato com um suposto soberano cristão na África – Preste João das Índias1 –, a política de expansão portuguesa adotou a exploração da África em detrimento da ocupação de territórios ao longo do Mediterrâneo. Assim, a expansão portuguesa teve início no norte da África, seguiu para o sul ao longo da costa ocidental africana, alcançando as ilhas do Atlântico e depois avançou pela costa oriental do continente africano ao longo do Oceano Índico, em direção ao Oriente e ao Extremo-Oriente, chegando finalmente à região do Atlântico Sul com a colonização do Brasil. O desejo de lutar contra os mouros e de alargar o império de Cristo entre os povos não cristãos vai se misturando, pouco a pouco, a perspectivas economicamente mais enriquecedoras. A exploração da Costa Africana onde os navegantes encontraram pimenta malagueta, canela e outras especiarias, além do marfim e do ouro, se mostrava bastante lucrativa. Assim, novas expedições se organizaram pelos mares já navegáveis da Costa ocidental e oriental da África, marcando um período da história conhecido como Descobrimentos Portugueses. O mapa a seguir indica os territórios ocupados pelos portugueses e a rota das navegações portuguesas a partir de 1415 até meados do século XVI. 1 Nos séculos XV e XVI corria uma lenda na Europa de que havia um rei cristão no Oriente, cujo nome era Preste João das Índias, e acreditava-se que seu reino, que não se sabia precisar exatamente onde ficava, mas que se pensava ser na África, poderia ser aliado europeu para a exploração do caminho marítimo para as Índias. A Coroa Portuguesa, a partir dos relatos de viajantes e peregrinos, tentou encontrar o reino de Preste João com o desejo de fazer possíveis alianças. 12 2 O tratado de Tordesilhas, assinado pelas Coroas de Portugal e da Espanha, em 1494 para dividir as terras descobertas, ou a descobrir, por amabas as Coroas, delimitava uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das linhas de Cabo Verde. As terras a oeste desse meridiano pertenciam à Espanha e as terras a lesta dessa linha seriam portuguesas. Territórios ocupados pelos portugueses e rota das navegações lusas nos séculos XV e XVI. Observe que o território português na América é delimitado pelo Tratado de Tordesilhas12, assinado em 1494 entre Portugal e Espanha. Fonte disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wikiImp%C3%A9rioPortugu%C3%AAs>. A África lusófona: um pouco de história IESDE Brasil S.A. Adaptado. 13 A África lusófona: um pouco de história A colonização das ilhas do Atlântico e da Costa Africana Nos anos seguintes à tomada de Ceuta, os navegadores portugueses empreenderam seu movimento para o sul, chegando em 1418 à ilha de Porto Santo, em 1419 à Ilha da Madeira, em 1427 aos Açores, em 1460 às ilhas de Cabo Verde e em 1470 às ilhas de São Tomé e Príncipe, todas desabitadas. Nos primeiros arquipélagos – Porto Santo, Madeira e Açores – o clima favorecia a ocupação e o trabalho na terra, e ali se estabeleceram, então, as primeiras colônias de povoamento. Nos demais arquipélagos – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe –, os portugueses fundaram colônias de plantação, não se preocupando com o povoamento da região. Nas terras continentais, no ano de 1446, os portugueses alcançaram a Guiné-Bissau (a que colonizaram com o nome de Guiné Portuguesa), em 1483 chegaram à região que hoje se conhece como Angola e, após a viagem de Bartolomeu Dias, que venceu o Cabo das Tormentas (renomeado para Cabo da Boa Esperança, devido ao sucesso da empreitada), Vasco da Gama pôde preparar sua armada para uma viagem até a Índia. Em 1488, Gama partiu da Praia do Restelo em Lisboa, onde está atualmente a Torre de Belém, avançando para o sul até alcançar o Oceano Índico. Antes que o propósito de sua viagem se concluísse, as caravelas portuguesas aportaram em Moçambique no ano de 1489. Em cada lugar em que as caravelas portuguesas aportavam, um padrão de pedra com as armas e o brasão português era fincado. O padrão simbolizava a posse oficial do território. Essa medida da Coroa Portuguesa visava a desencorajar intrusos e reforçar o senhorio sobre as terras ocupadas. O Império Colonial Português nas ilhas e nas terras africanas A extensão do Império Português no Oriente e no Extremo Oriente obrigou a Coroa Portuguesa à fragmentação das possessões portuguesas na África. O alto custo da manutenção em algumas cidades do Marrocos fez com que a Coroa abandonasse essa região. Os gastos numerosos com a defesa da Costa da África, especialmente com os ataques de corsários e comerciantes de outros países europeus, enfraqueceram a Coroa Portuguesa. Porém, mesmo com esses 14 A África lusófona: um pouco de história revezes, nos séculos seguintes, o Império Colonial Português se sustentou e as colônias portuguesas na África continuaram a ser sistematicamente exploradas. Para garantir as terras na África, a Coroa Portuguesa concedia as terras, por um período de tempo limitado (cerca de três gerações), aos colonos que desejassem explorá-las. Ao fim desse período, a concessão deveria ser renovada. Os colonos tinham como tarefa defender os interesses portugueses nas terras do além-mar e pagar por essa concessão com o produto dos territórios que lhes eram confiados. No entanto, gradativamente, o mundo dos senhores ia se misturando com o dos africanos e indianos locais, alterando as relações de poder. Nesse período, outro “negócio” começou a ganhar força – o tráfico negreiro. Por volta de 1648, os portugueses ocuparam os locais estratégicos no comércio de escravos, que se tornou indispensável a todas as colônias da América. A economia de plantação – especialmente na América – demandava uma maior exportação de escravos africanos que se tornou sistemática. Entre os anos de 1502 e 1860, 9,5 milhões de africanos foram deportados para o continente americano, e no século XVIII, com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a necessidade de extraí-lo, muitos negros da região de Angola foram enviados ao Brasil. A Guiné Portuguesa foi inicialmente a principal fornecedora de mão de obra escrava para o continente americano, sendo depois substituída por Angola, país que manteve essa posição até o século XVIII. Nos fins desse mesmo século e durante o século XIX a região do Golfo da Guiné3 ocupou a supremacia do tráfico negreiro, que havia sido de Angola no século anterior, e a feitoria de São Jorge da Mina4, em Gana, foi o principal porto de escoamento de escravos para a América. O início do século XIX trouxe mudanças significativas para a situação da África portuguesa. Com a independência do Brasil, em 1822, Portugal se viu pressionado a enfrentar as demais potências europeias para assegurar seus “direitos” sobre os territórios africanos ocupados. Pressionado pela política europeia, Portugal extingue o tráfico negreiro no Império em 1842, e em 1869 declara o fim da escravidão, embora esse tráfico continuasse a ser feito durante os anos seguintes. Nas colônias, a política de exploração das riquezas tinha seguimento e, para tanto, Portugal precisou instituir uma legislação trabalhista que obrigava o nativo ao trabalho forçado nas plantações de algodão ou nas obras públicas. 3 Golfo da Guiné é uma reentrância próxima às Ilhas de São Tomé e Príncipe e compreende o litoral da Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial e a parte norte do Gabão. 4 A feitoria de São Jorge da Mina, em Gana, é a construção europeia mais antiga ao sul do deserto do Saara. 15 A África lusófona: um pouco de história Paralelamente às pressões externas, ao longo do século XIX, a vida nos territórios africanos mudava lentamente. A essa altura, uma população mestiça e burguesa, ainda que em número reduzido, vai se formando nas colônias do ultramar, reivindicando melhores condições para essas terras. Aparecem os primeiros assimilados, nome pelo qual eram identificados os descendentes de portugueses, geralmente mestiços, nascidos na África, que recebiam uma educação mais formal. Nessa época, alguns poucos jornais circulavam pelas mais importantes cidades da África portuguesa, instaurando a necessidade de uma educação nas regiões mais importantes do ultramar. As demais nações europeias, interessadas em repartir a África, pressionaram Portugal a abrir mão de alguns de seus territórios. Na Conferência de Berlim, de 1885, Portugal perdeu o Congo e teve que se contentar com o enclave de Cabinda, região próxima a Angola. No entanto, apesar desse recuo, Portugal é, no fim do século XIX, senhor de dois milhões de quilômetros quadradros no território africano. A independência dos cinco países africanos lusófonos A Guerra Colonial durou treze anos – de 1961 a 1974 – e pôs fim à ocupação portuguesa no território africano. Essa guerra ficou conhecida, ainda, entre os portugueses, como Guerra do Ultramar ou Guerra da África. Entre os povos dos territórios ocupados duas denominações foram adotadas: Guerra de Libertação Nacional e Guerra pela Independência. Ao longo desses cinco séculos de domínio português nas colônias da África, houve muitas tentativas de resistência dos povos locais, mas a supremacia bélica dos portugueses, aliada às disputas políticas entre as diversas etnias das regiões ocupadas, favoreceram o domínio lusitano, dando lugar ao Império Colonial Português que abrangia não só territórios na África, mas também na América do Sul, com o Brasil, e, ainda, na Índia e na Ásia. Como afirma Kabengele Munanga (1986), quando os primeiros europeus desembarcaram nas terras africanas, encontraram estados organizados politicamente, mas essa organização não foi capaz de reverter a ocupação europeia, pois o desenvolvimento técnico dos estados africanos, incluída a tecnologia de guerra, era inferior ao dos portugueses. 16 A África lusófona: um pouco de história A República Portuguesa e o golpe militar de 1926 No início do século XX, a situação das colônias africanas lusófonas não se alterou muito em relação ao século anterior. Segundo Enders (1997, p. 69), para “Portugal, como para as outras potências europeias, a colonização supõe a conquista, o desenvolvimento de uma economia de exportação e a submissão da mão de obra indígena para o trabalho e para o imposto”. Com isso, o trabalho de exploração das terras africanas, sem nenhum investimento econômico, continuou e se agravou com o início das duas grandes guerras mundiais. A curta vida da República Portuguesa, que surgiu em 1910 e foi derrubada pelo golpe militar de 1926, põe fim às pretensões dos republicanos, inaugurando um longo período ditatorial marcado por perseguições de toda ordem, retrocesso político e econômico, com reflexos graves nas colônias do ultramar. Em 1928, Antônio de Oliveira Salazar – um professor de Coimbra – foi convidado a assumir a Pasta das Finanças do país e a partir dessa data inaugurou-se um período difícil da história de Portugal. É o início da ditadura salazarista, nome pelo qual ficou conhecido o regime ditatorial em Portugal, que teve início em 1926 e só terminou em 1974, com a Revolução dos Cravos. Como observa José Paulo Netto (1986, p. 18), durante a ditadura salazarista “[...] um projeto econômico-social se integra organicamente à repressão antipopular e antidemocrática. Trata-se, explícita e nitidamente, do projeto fascista do grande capital, de que Salazar se fez um funcionário coerente, lúcido e pertinaz”. Entre 1929 e 1933, Salazar acumulou os Ministérios das Finanças e das Colônias, e com mão de ferro tomou medidas duras contra a enfraquecida oposição. Em 1932, instaurou o Ato Colonial, que instituiu o trabalho forçado para os nativos das colônias, obrigando a população negra a servir por um determinado período de sua vida ao Estado ou a um patrão europeu. Esse Ato Colonial era, na verdade, uma reedição do trabalho forçado instituído no século XIX pela Coroa Portuguesa aos nativos dos territórios africanos ocupados. Além disso, a ditadura salazarista criou a polícia política portuguesa – PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), mais tarde conhecida como PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que também teve sua área de atuação nas colônias do ultramar, especialmente nos anos 1960 quando se inicia um movimento de grande revolta nas colônias contra a política da Metrópole. 17 A África lusófona: um pouco de história Além do trabalho forçado nas colônias africanas, instituído pelo Ato Colonial, o regime português continuou a explorar vorazmente suas riquezas, especialmente algodão, cana-de-açúcar, café, petróleo, entre outros produtos. Os lucros obtidos com essa exploração eram revertidos para a Metrópole, ao passo que as colônias amargavam uma situação de penúria e ausência de perspectiva. O descontentamento com essa política de exploração aumentou visivelmente na década de 1950 e, durante essa mesma época, disseminaram-se na África as ideias do Movimento da Negritude, criado em 1934, em Paris, por um grupo de poetas e intelectuais negros. O Movimento da Negritude defendia uma revolução na linguagem e na literatura, a fim de reverter o sentido pejorativo da palavra negro e dela extrair um sentido positivo. Em 1939, o poeta negro martinicano Aimé Césaire o utilizou pela primeira vez em um trecho do ”Cahier d’un Retour au Pays Natal” (Caderno de um Regresso ao País Natal), poema que se tornou a obra fundadora da Negritude. Inspirados pela luta dos negros norte-americanos, que combatia a discriminação racial e a intolerância, os adeptos do Movimento da Negritude defendiam o respeito à diferença e a valorização das características próprias da cultura negra. Nesse ínterim, a situação de alguns dos territórios africanos colonizados por franceses ou ingleses, por exemplo, ganhava outro estatuto. Alguns novos países independentes surgiam na África acelerando o processo de descolonização. Todas essas lutas eram estimuladas pela ação do Movimento da Negritude que defendia a valorização dos negros e da sua cultura e pelas lutas dos negros norte-americanos contra o racismo. Desse modo, a grande insatisfação com a política salazarista para as colônias, a disseminação das ideias do Movimento da Negritude, a luta dos negros norte-americanos contra o racismo e a independência de países africanos colonizados pela França e pela Inglaterra foram os propulsores dos movimentos independentistas nas “províncias ultramarinas” portuguesas. A criação dos movimentos pela independência das colônias na África Portuguesa Na esteira desses acontecimentos, em meados da década de 1950, surgia, na Guiné Portuguesa, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), cujo líder era Amílcar Cabral, e em Angola o MPLA (Movimento 18 A África lusófona: um pouco de história Popular de Libertação de Angola), sob a liderança do poeta Agostinho Neto. Na década seguinte, em 1962, um ano após o início da guerra pela independência em Angola, surgia em Moçambique a FRELIMO (Frente Nacional de Libertação de Moçambique), sob o comando de Eduardo Mondlane. Todos esses movimentos africanos pela independência têm entre seus líderes escritores, poetas, jornalistas e outros intelectuais, muitos dos quais antigos estudantes da Casa do Estudante do Império (CEI), em Lisboa – (havia uma em Coimbra também). Essas casas funcionavam como um ponto de reunião de jovens estudantes oriundos de vários territórios do ultramar, especialmente dos países africanos, e especificamente a CEI de Lisboa acabou se tornando um local estratégico e decisivo para a tomada de consciência e organização dos jovens estudantes africanos, em sua maioria angolanos, que se aliaram aos estudantes e intelectuais portugueses contrários ao regime fascista. Centro de articulação política e resistência, a CEI de Lisboa também funcionou como um espaço para o surgimento de uma literatura de valorização das raízes africanas. Como observa Manuel Ferreira (1977, p. 34): A partir do início da década de 1960 a vida literária (e cultural, de certo modo) de Angola só poderá ser apreendida na totalidade se estivermos atentos ao que se desenrola na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Aliás também em Coimbra onde tiveram lugar várias iniciativas, a partir da década de 1950. A Casa dos Estudantes do Império transforma-se no centro aglutinador dos estudantes e intelectuais africanos. Mas a predominância da sua composição é angolana, como predominantemente angolana é a sua atividade editorial. Na entrada dos anos 1960, a situação nas colônias portuguesas do ultramar se torna mais difícil, forçando-as à luta armada pela conquista da independência. Nesse momento, à exceção de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, cuja contribuição para os movimentos de independência consistiu em enviar guerrilheiros para engrossarem a luta armada das outras colônias, Angola, Guiné Portuguesa e Moçambique iniciam sua guerra pela independência. O movimento armado é deflagrado em Angola quando no norte do país um grupo de agricultores protesta violentamente contra a política de plantação compulsiva de algodão, queimando armazéns de algodão e escorraçando os compradores. O regime salazarista responde à revolta com violência e como reação a isso, em fevereiro de 1961, em Luanda, capital de Angola, um grupo organizado do MPLA toma de assalto a prisão da cidade para libertar os líderes do movimento. Munidos de catanas5 e algumas poucas armas automáticas, o movimento não logra bons resultados e a repressão que a ele se segue é extremamente dura. 5 Catana é um tipo de facão usado para cortar mato. 19 A África lusófona: um pouco de história Em razão desses acontecimentos, alguns antigos colonos e brancos que haviam chegado recentemente a Angola conseguem permissão do regime para invadir os bairros nos quais moravam os negros (os musseques) e ali atacar qualquer um que considerassem suspeito. Desse episódio resultaram muitas mortes, em sua maioria de jovens assimilados – que são justamente aqueles que se aculturaram, deixando suas raízes negras para frequentar as escolas de brancos. Reagindo a essa matança, os movimentos organizados em Angola respondem com a luta armada que irá se disseminar também por outras regiões da chamada África lusófona como a Guiné Portuguesa (1963) e Moçambique (1964). É o início da Guerra Colonial. A Guerra Colonial durou 13 anos em Angola (1961–1974), 11 anos na Guiné (1963–1974) e 10 anos em Moçambique (1964–1974). Durante essa época, cerca de 800 mil jovens portugueses foram mobilizados para a guerra na África, onde permaneceriam em média 29 meses, ou seja, quase 10% da população portuguesa e 90% da juventude masculina da época estiveram diretamente envolvidas com os conflitos na África. Do lado africano, a mobilização do contingente masculino foi massiva. Muitos se envolveram na guerra por motivações político-ideológicas, outros se aliaram às guerrilhas aliciados pelas necessidades que se criaram em razão especialmente da falta de mantimentos. Essa guerra também propiciou que, em Portugal, as forças contrárias ao regime Salazar/Caetano6 se unissem aos oficiais – especialmente tenentes e capitães – do Movimento das Forças Armadas (MFA), que iniciaram na madrugada do dia 25 de abril de 1974 uma revolução para derrubar o regime ditatorial e por fim à guerra na África. Esse movimento ficou conhecido como Revolução dos Cravos. A guerra na África marcou o início do fim do Império Colonial Português e foi um dos fatores que propiciou a queda da ditadura salazarista. No entanto, um legado cultural, para além da língua portuguesa – oficialmente adotada pelos países africanos já independentes, consolidou-se nos cinco países do PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Certos traços da cultura portuguesa e a adoção e o uso da língua portuguesa nesses países, ainda que modificada e enriquecida pelas diversas línguas locais, são exemplos de como a cultura portuguesa enraizou-se nos territórios africanos anteriormente ocupados. 6 Marcello Caetano (1906–1980) substituiu, em 1968, Antônio de Oliveira Salazar (1889–1970) que ocupava o cargo de Presidente do Conselho de Ministros em Portugal. Caetano, embora menos rigoroso que Salazar, levou adiante a política salazarista até o fim da ditadura em 25 de abril de 1974, quando o Movimento das Forças Armadas Portuguesas, apoiado pelas forças progressistas da sociedade portuguesa, pôs fim à longa ditadura que vigorava desde 1926 em Portugal. 20 A África lusófona: um pouco de história Texto complementar O poema que você vai ler, do santomense Francisco José Tenreiro (1921– 1963), trata da saga africana, que se inicia com a chegada dos europeus à África. É interessante notar que, ao contrário da epopeia camoniana, Os Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões, a façanha heroica aqui abordada não é a façanha lusa, mas a façanha heroica dos negros que buscaram resistir à dominação branca, porém acabaram sendo levados como escravos para outras terras. O poema mostra, ainda, a saga do negro nessas terras, lutando para fazer existir a sua cultura e termina evocando-o à luta pela dignidade com novas armas, novas azagaias 1. Epopeia (TENREIRO, Francisco José in ANDRADE, 1975, p. 137-139) Não mais a África da vida livre e dos gritos agudos de azagaia! Não mais a África de rios tumultuosos – veias entumecidas dum corpo em sangue! Os brancos abriram clareiras a tiros de carabina. Nas clareiras fogos arroxeando a noite tropical. Fogos! Milhões de fogos num terreno em brasa! 1 Azagaia é uma espécie de lança curta usada pelos africanos, especialmente na África do Sul. 21 A África lusófona: um pouco de história Noite de grande lua e um cântico subindo do porão do navio. O som das grilhetas marcando o compasso! Noite de grande lua e destino ignorado!... Foste o homem perdido em terras estranhas!... No Brasil ganhaste calo nas costas nas vastas plantações do café! No norte foste o homem enrodilhado nas vastas plantações do fumo! Na calma do descanso nocturno só a saudade da terra que ficou do outro lado... – só as canções bem soluçadas – dum ritmo estranho!... Os homens do norte ficaram rasgando ventres e cavalos aos homens do sul! Os homens do norte estavam cheios dos ideais maiores 22 A África lusófona: um pouco de história tão grandes que tudo foi um despropósito!... Os homens do norte os mais lúcidos e cheios de ideais deram-te do que era teu um pedaço para viveres... Libéria! Libéria Ah! Os homens nas ruas da Libéria são dollars americanos ritmicamente deslizando... Quando cantas nos cabarés fazendo brilhar o marfim da tua boca é a África que está chegando! Quando nas Olimpíadas corres veloz é a África que está chegando! Segue em frente irmão! Que a tua música seja o ritmo de uma conquista! E que o teu ritmo seja a cadência de uma vida nova! ... para que a tua gargalhada de novo venha estraçalhar os ares como gritos de azagaia! 23 A África lusófona: um pouco de história Dicas de estudo História da África Lusófona, de Armelle Enders, Editorial Inquérito. Essa obra da historiadora francesa Armelle Enders, da Universidade ParisIV- Sorbonne, aborda a história da África de língua portuguesa, focalizando desde a chegada dos portugueses a Ceuta até o fim do Império Colonial Português com a saída dos portugueses da África, após o fim da Guerra Colonial. Negritude: usos e sentidos, de Kabengele Munanga, Editora Ática. Essa obra do antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, nascido no Zaire, é bastante interessante para quem quer iniciar seus estudos sobre cultura negra e negritude. Capitães de Abril. Direção: Maria de Medeiros. Elenco: Stefano Accorsi, Maria de Medeiros, Joaquim de Almeida, Frédéric Pierrot. Lusomundo Audiovisuais S.A., 2000. Esse filme, dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, ilustra bem o momento em que, ao som de “Grândola, Vila Morena”, é deflagrado em Portugal o movimento de revolta dos capitães das forças armadas contra os rumos da política de Marcello Caetano na África. Esse movimento, que depois ficou conhecido como Revolução dos Cravos, devolveu a liberdade política ao país que viveu sob a ditadura desde 1926 até o dia 25 de abril de 1974. Estudos literários 1. Em 1415, a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, foi estratégica para a empreitada portuguesa pelos mares do ocidente. Por que motivos partiram os portugueses até Ceuta? E por que quando lá chegaram abandonaram a ideia da ocupação dos territórios ao longo do Mar Mediterrâneo? 24 A África lusófona: um pouco de história 2. Como se desenvolveu a política de exploração das colônias na África? 25 A África lusófona: um pouco de história 3. Qual a importância dos encontros de jovens estudantes na Casa do Estudante do Império? 4. Quais foram os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias contra o regime fascista de Salazar? 26 A África lusófona: um pouco de história 27