Os Constituintes da Moral - Maxwell - PUC-Rio

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DEPARTAMENTO DE DIREITO
Os Constituintes da Moral:
Do sistema ético à sua relação com o direito
por
Thomaz Alvares de Azevedo e Almeida
orientador: Antonio Carlos de Souza
Cavalcanti Maia
2005.1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900
RIO DE JANEIRO - BRASIL
Os Constituintes da Moral:
Do sistema ético à sua relação com o direito
por
Thomaz Alvares de Azevedo e Almeida
Monografia
apresentada
ao
Departamento de Direito da
Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para
a obtenção do Título de Bacharel
em Direito.
Orientador: Antonio Carlos de
Souza Cavalcanti Maia
2005.1
Agradeço a Richard Dawkins por me ensinar o valor da etologia, a Robert
Trivers por me introduzir a uma nova biologia e a Daniel Dennett por me mostrar
uma forma diferente de fazer filosofia. Agradeço também à Ellen Lau, que mais do
que ter me apresentado estes três autores, me ensinou que vale a pena ousar ir além.
Dedicado este trabalho à teimosia do meu irmão em nunca aceitar
argumentos metafísicos acerca da moral.
Resumo
A estória que contarei nesta monografia tem início com o aparecimento das
primeiras moléculas replicadoras. Elas não eram nada mais complexas ou melhores
que as outras, elas apenas tinham a capacidade de replicar. Como a seleção natural
não tratou de acabar com elas, essas moléculas continuaram fazendo o que sabiam, e
replicando-se sempre deram nos genes. Cada planta, cada animal, cada ser vivo foi
construído pelos genes, mas não porque os genes queriam construir, simplesmente a
replicação continua dos genes oposta pela seleção continua do mais apto levou a isso.
É nesse mundo sem propósito que surge um certo primata, e com esse primata surge
um novo replicador: o meme. A grosso modo, enquanto os genes construíram as
máquinas de sobrevivência que caminham (ou não) pelo mundo, os memes
construíram as idéias, mais especificamente: a moral. Este será o tema da primeira
parte da monografia.
Já na segunda parte da monografia, irei investigar o modo como diferentes
genes encontraram para sobreviverem à seleção natural. Esta investigação abordará
as capacidades, habilidades e formas de cooperação para vida em grupo. Isto feito,
me voltarei para a forma como diferentes memes encontraram para sobreviverem à
seleção natural: do sistema ético ao direito.
Ora, neste mundo sem propósitos, seria um absurdo dizer que os constituintes
da moral são os genes e memes, e que cabe ao Homem ser apenas o seu
promulgador?
I – Pode a Ética ser Naturalizada?
1. Religião e Humanismo Secular, a falácia naturalista e o naturalismo
Ao se propor uma investigação acerca da origem da moral, uma das primeiras
questões que se apresentam é: Os seres humanos não são colocados na Terra por
Deus para cumprir os desígnios divinos?
Há pessoas que têm motivos para acreditar que sim, que os textos sagrados são
literalmente a palavra de Deus. Para estes os preceitos éticos encontrados nos textos
sagrados têm uma garantia especial. Visto que esta posição se baseia na fé e que ter
fé significa confiar, é simplesmente impossível combater esta versão através de
provas ou argumentos racionais. Por outro lado, caso se acredite que os textos
sagrados são um produto não milagroso da cultura humana, então não se deve haver
espanto em se perceber que estes textos podem conter versões dos melhores sistemas
éticos que qualquer cultura humana foi capaz de imaginar. Contudo, um agente
racional deveria antes de aceitar estes preceitos testá-los. Afinal, seria uma
temeridade enfiar a boca em certos cogumelos “sagrados” só porque uma tradição
milenar diz que eles ajudam a ver o futuro. Esta visão de que a ética não deve ser
estabelecida, mas na melhor das hipóteses orientada pelas doutrinas religiosas é
chamada de “humanismo secular”1.
A má fama do humanismo secular se deve a impaciência com que supostos
humanistas seculares lidam com as complexidades das antigas tradições, deixando de
respeitar as heranças culturais alheias. Estes humanistas seculares pensam que todas
as questões éticas se resumem a uma definição ou a umas poucas definições –
se é ruim para o ambiente, é ruim; se é ruim para a arte, é ruim; se é ruim para os
negócios, é ruim; ou mais precisamente se é ruim para o homem, é ruim.
Pode-se identificar duas semelhanças entre as versões, religiosa e humanista
secular sobre a origem da moral. Primeiro, ambas tentam expor certos aspectos
fundamentais da vida boa para o homem com base em considerações sobre a natureza
humana. Ou seja, ambas as versões se baseiam no naturalismo. Segundo, ambas
derivam um “deve” de um “é”. Ou seja, ambas as versões cometem a “falácia
naturalista”. Deve-se ser observado que a muito se faz a distinção entre encontrar as
1
KURTZ, Paul. Secular Humanism Declaration, 1980. Tradução portuguesa disponível
http://portugal.humanists.net/declaracao-humanista-secular.html. Acesso em 07 de março de 2005.
em
condições necessárias e as suficientes. Uma coisa é negar que conjuntos de fatos
sobre o mundo natural sejam necessários como base para uma explicação ética. Outra
coisa é negar que o conjunto de tais fatos seja suficiente. Daí surgir uma nova
questão. Se “deve” não pode ser derivado de “é”, de que “deve” pode ser derivado?
A resposta mais atraente parece ser que a ética precisa de alguma maneira se
basear em uma apreciação da natureza humana – o que o ser humano é, o que poderia
ser e o que poderia desejar ser. Ora, se isso é ser naturalista então a falácia não está
no naturalismo, mas na tentativa simplista de se concluir precipitadamente valores a
partir de fatos. A falácia é, portanto, este reducionismo ganancioso e não o
reducionismo com circunspecção que tenta unificar as visões de mundo de forma que
os princípios éticos não entrem irracionalmente em conflito com o que o mundo é.
Portanto, a tarefa que se apresenta é de que maneira teve o ser humano que evoluir
para ter-se tornado um ser moral. Sem dúvida Deus poderia ter feito ou evoluído o
ser humano desta forma, mas dispense-se o uso de um intermediário entre homem e
natureza. Qual a possibilidade que aparece?
2. Hobbes e os organismos multicelulares
Thomas Hobbes pode ser considerado o primeiro sociobiólogo2 (mesmo tendo
vivido duzentos antes de Darwin). Foi Hobbes quem percebeu que tinha que haver
uma história a ser contada sobre como o Estado foi criado, e como tendo sido criado
trouxe consigo algo de novo – a moral. Sua história só poderia ser uma reconstrução
racional.
Para Hobbes, inicialmente o homem vivia em um estado de pré-história aonde
não havia moral. Haviam seres humanos e estes possuíam uma linguagem e esta
tinha palavras para bom e ruim. Mas não havia a idéia de bem e mal éticos. “As
noções de certo e errado, justiça e injustiça ali não têm lugar.” E Hobbes explica.
Não haviam os conceitos de certo e errado porque “estas são qualidades que se
referem aos homens em sociedade, não em isolamento.” Hobbes chamou esta época
da pré-histórica do homem de “estado natural”.
2
Termo criado por E. O. Wilson em Sociobiology: the new synthesis. Cambridge, Havard University Press,
1975.
No estado natural “não há lugar para o trabalho sistemático porque o fruto
disso é incerto; (...) não há arte; não há letras; não há sociedade e, o que é pior de
tudo, há o medo constante e o perigo de morte violenta, e a vida do homem é
solitária, pobre, desagradável, grosseira e breve”. E então um belo dia surgiu uma
mudança, uma mutação. Em vez de persistir em políticas de traição visando
benefícios egoístas, os seres humanos tiveram a idéia de cooperação para benefício
mútuo. Teriam feito assim um “contrato social”.
A história criada por Hobbes lhe serviu para descrever as condições em foi
possível fazer a transição de pessoas sem moral para cidadãos, passo que uma vez
dado passou a ser imposto evolutivamente. Até porque se assim não o fosse haveria
a convivência entre homens no estado natural e homens sob o contrato social..
Obviamente Darwin não era um historiador, sequer poderia ser um
antropólogo (ciência que no século XXVII ainda não existia). Sua história padece de
evidente ingenuidade. Em primeiro lugar pressupõe a racionalidade, (também
chamada por Hobbes de prudência), de seres cuja solução mútua fosse a sociedade.
Ou seja, o nascimento da sociedade seria um movimento forçado pela razão – um
“bom truque”. Isto significa que a história de Hobbes é uma história adaptacionista,
(o que não vem a ser um problema). Mas em segundo lugar Hobbes simplesmente
aceita que a racionalidade em grupo (ou cooperação) um dia surgiu e trouxe consigo
a moral. Para melhor examinar este ponto considere-se a metáfora sugerida pelo
próprio Hobbes: “(...) aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em
latim Civitas), que não é senão um homem artificial”3. Noutros termos, examine-se
em que sentido a sociedade se parece com um organismo gigante e em que sentido é
diferente.
Ao se observar os organismos multicelulares fica evidente que estes
solucionaram o problema da solidariedade em grupo. Nunca se viu insurreição de um
dedo contra um outros ou de um olho contra um rim. Mas se cada célula em um
organismo multicelular tem suas próprias cadeias de DNA – um conjunto completo
de genes para fazer um organismo inteiro, por quê estas rebeliões não acontecem?
“Um ser humano comum normalmente é hospedeiro de bilhões e bilhões de organismos
simbióticos pertencentes a talvez um milhar de espécies diferentes (...) O seu fenótipo não é
3
HOBBES, Thomas. Leviatã-I. São Paulo, Coleção os Pensadores, 1979, p. 5.
determinado por seus genes humanos apenas, mas também pelos genes de todos os simbiontes com
4
os quais acaso ele estiver infectado.”
Existe uma enorme diferença entre as células que fazem parte do eu
multicelular – hospedeiras; e as que não fazem – visitantes. Além disso, as células
podem ser da linhagem somática – células do corpo; ou da linhagem germinativa –
células sexuais. As células somáticas estão destinadas a morrer sem ter se
reproduzido, são escravas totalmente comprometidas com o sumo bem do corpo do
qual são parte. Elas podem ser enganadas ou exploradas por células visitantes,
porém, em situação normal jamais irão se rebelar, o sumo bem projetado dentro delas
não é “pense primeiro em si mesmo”. Muito pelo contrário, a célula somática é uma
cooperadora pela sua própria natureza. Já as células visitantes têm cada uma seu
próprio sumo bem projetado dentro de si, e este diz respeito a promover suas próprias
linhagens –esta perspectiva é chamada de olho do gene. Felizmente há condições que
permitem que um entendimento cordial seja mantido para benefício mútuo.
Entretanto esta é uma escolha das células visitantes exclusivamente.
Isto se dá pois, apesar de obviamente nenhuma célula ser um agente racional,
a condição que cria a escolha é a “votação” irracional de reprodução diferencial. É
esta oportunidade de reprodução diferencial que permite às linhagens das células
visitantes “reconsiderarem” as escolhas que fizeram, explorando políticas
alternativas. Já as células hospedeiras foram determinadas de modo definitivo por um
único “voto” no momento em que o zigoto foi formado. Por isso que, caso em meio
às células hospedeiras ocorrer uma mutação que propicie uma nova estratégia
dominante ou egoísta, a célula que carrega a mutação não florescerá em relação às
demais células hospedeiras. Há simplesmente escassez de oportunidades para a
reprodução diferencial.
Note-se que o destino dos genes paterno e materno é uma loteria. É através de
um sistema irracional que se determina se os genes serão transmitidos por meiose ou
mitose para as células-filhas do zigoto original. Isto é, ou os genes terão uma rica
linhagem germinativa ou farão parte da estéril linhagem somática. O certo é que uma
vez formado o zigoto, as células cumprirão o sumo bem que lhes foi incubido.
4
DELIUS, Juan. The nature of culture. In M. S. Dawkins, T. R. Halliday, e R. Dawkins. orgs., The timbergen
legacy, Londres, Chapman & Hall, 1991, p. 85.
O filósofo e lógico Bryan Skyrms mostrou5 que quando os elementos
individuais de um grupo, seja de organismos inteiros seja de suas partes, estão ou
intimamente ligados (clones e semi-clones) ou são capazes de se envolver em um
reconhecimento mútuo de acasalamento entre semelhantes, o modelo simples de
teoria dos jogos do dilema do prisioneiro – a traição sempre domina, não funciona. É
por isso que as células somáticas não traem, elas são clones. Esta é uma das
condições em que grupos, tais como os das células hospedeiras de alguém, podem
atingir a harmonia e coordenação necessárias para se comportarem como se fossem
um organismo só.
Mas antes de se aceitar isso como modelo para uma sociedade, deve-se atentar
que o comportamento exigido das partes é não apenas a absoluta xenofobia, mas
também a renúncia à personalidade. Seja-se lembrado que este modelo funciona com
as células somáticas porque elas são todas clones umas das outras. Dificilmente este
mesmo comportamento seria um ideal para a emulação humana. O ser humano é,
afinal de contas, não somente capaz de conspirar e trair como também de depois
ainda trair a conspiração. Isso evidencia como o homem enfrenta constantemente
oportunidade sociais e dilemas para os quais a teoria dos jogos oferece o campo e as
regras, mas não as soluções. Daí, como escreveu Daniel Dennett: “Qualquer teoria
sobre o nascimento da ética terá de integrar cultura e biologia.”6
3. Nietzsche e a biologia social
Friedrich Nietzsche pode ser considerado o segundo sociobiólogo (mesmo
sem nunca ter lido Darwin). Sua obra “Genealogia da Moral” repudiava não as idéias
darwinistas, mas os darwinistas sociais. Darwinistas sociais tais como Paul Rée7 e
Herbert Spencer8 eram sem dúvida, como Niezsche, sociobiólogos, porém não eram
muito bons.
A “sobrevivência do mais apto” para os darwinistas sociais não era apenas o
modo de agir da “Mãe Natureza”, deveria ser o modo de agir do homem. Segundo
5
SKYRMS, Brian. Darwin meets the logic of decision: correlation in evolutionary game theory. Philosophy of
Science, 61, dezembro de 1994, pp. 503-28.
6
DENNETT, Daniel C. A perigosa idéia de Darwin. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 483.
7
Autor de Orign of Moral Sensations, Rée apesar de amigo de Nietzsche teve na Genealogia da Moral uma
violenta resposta à sua obra.
8
Autor de The Principles of Psychology, Spencer foi um dos principais alvos de Nietzsche.
eles, é “natural” que o forte vença o fraco e que o rico explore o pobre. Contudo,
Hobbes já demonstrara que é igualmente “natural” morrer jovem e analfabeto – pois
assim o era no estado natural. A questão não está, portanto, no que já foi o “natural”.
Até porque foi igualmente natural para o homem se afastar do estado natural e adotar
uma multiplicidade de práticas sociais visando o benefício mútuo. O equívoco dos
darwinistas sociais pode ser identificado, portanto, em dois momentos distintos.
Em primeiro lugar a “Mãe Natureza” – seleção natural, precisaria ser vista
como tendo intenções no sentido restrito de ter propositadamente endossado certas
características, o que é por si só bastante discutível. Em segundo lugar, ainda que seja
aceita esta natureza intencional, seus endossos anteriores podem não significar nada
frente a circunstâncias que não são mais as mesmas.
Também em sua agenda política os darwinistas sociais equivocam-se. Eles
defendiam que cuidar dos membros menos afortunados da sociedade seria um
evidente erro – seria permitir a reprodução daqueles a que a “Mãe Natureza”
sabiamente eliminaria. Ora mais uma vez a sistemática adotada carece de melhor
sustento. A possibilidade de se mudar de “classe social” – de deixar de ser um
membro menos afortunado ou passar a sê-lo, representa bem quão dinâmica é a
sociedade . E em uma sociedade dinâmica, como saber quem está melhor adaptado?
Pela acumulação de riqueza e poder não pode ser, visto a vulnerabilidade a fatores
externos tais como herança ou golpe. A resposta dos darwinistas sociais é recorrer a
moral. Os mais aptos são aqueles que têm a razão (ou prudência) adaptada à moral. E
é justamente esta crença sobre a pronta adaptabilidade da razão à moral que
Nietzsche critica.
“Estes psicólogos ingleses9 – que querem eles afinal? Voluntariamente ou não, estão sempre
aplicados à mesma tarefa (...) procurar o elemento operante, normativo, decisivo para o
desenvolvimento, justamente ali onde o nosso orgulho intelectual menos desejaria encontrá-lo (por
exemplo, na vis inertea [força da inércia] do hábito, na faculdade do esquecimento, numa cega e
casual engrenagem ou trama de idéias, ou algo puramente passivo, automático, reflexo molecular e
fundamentalmente estúpido) – que impele esses psicólogos sempre nesta direção?”10
Nietzsche iniciou sua obra, assim como Hobbes, imaginando um mundo prémoral de vida humana. Hobbes notara que a existência de práticas de formação de
contratos dependia da capacidade dos seres humanos de fazer promessas sobre o
9
Nietzsche se refere aos darwinistas sociais como “psicólogos ingleses”.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo, 2001, p. 17.
10
futuro.11 Nietzsche percebeu que esta capacidade não surgiu gratuitamente. É
justamente este o tema do segundo ensaio da Genealogia da Moral: “Criar um animal
que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs,
com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?”12 São a
capacidade de detectar a fraude, lembrar as promessas não cumpridas e punir o
fraudulento os supedâneos da criação de uma sociedade. Mas como explicar que
tenha o homem estas capacidades? Segundo Nietzsche; “Nesta esfera, a das
obrigações legais, está o foco da origem desse mundo de conceitos morais: ‘culpa’,
‘consciência’, ‘dever’, ‘sacralidade do dever’ – o seu início, como o início de tudo
grande na terra, foi largamente banhado em sangue.”13 Também aqui Nietzsche
repete Hobbes. Suas história carece evidentemente de provas (só o que Nietzsche tem
para usar são o princípio de uma filologia e muita imaginação). A sua sugestão de
que nossos ancestrais “criaram” um animal não somente com a capacidade inata para
manter uma promessa, mas também com a capacidade de detectar as quebras de
promessa e o talento de punir os infratores, serve apropriadamente para seu fim –
demonstrar as capacidades necessárias à formação de uma sociedade. Contudo
apenas isso, conforme inclusive o próprio Nietzsche, não é suficiente para explicar
uma moralidade.
Para Nietzsche uma segunda14 transição ocorreu em épocas históricas. Seus
proto-cidadãos15 viveriam em uma espécie de sociedade, não no estado natural de
Hobbes. Porém, a vida descrita por Nietzsche nesta sociedade era quase igualmente
desagradável e rude. O poder governava, as pessoas tinham conceitos de bom e mau
mas não de bem e mal e certo e errado – a moral simplesmente não existia. Até que
um dia ocorreu uma “transvaloração de valores”. O que tinha sido bom se tornou
mau e o que tinha sido mau se tornou bom. Para Nietzsche este foi o evento-chave
para o nascimento da ética.
“(...) a teoria oposto (nem por isso mais verdadeira –), defendida por Herbert Spencer, por
exemplo: que estabelece o conceito ‘bom’ como essencialmente igual a ‘útil’, ‘conveniente’, de
modo que nos conceitos de ‘bom’ e ‘ruim’ a humanidade teria sumariado e sancionado justamente as
suas experiências inesquecidas e inesquecíveis acerca do útil-conveniente e do nocivo11
HOBBES, Thomas. Op. cit.pp. 78-85.
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 47
13
Idib. p. 55.
14
A primeira transição, evidentemente, foi a passagem do estado natural para a vida em sociedade.
15
Primeiro ensaio da “Genealogia da Moral”.
12
inconveniente. Bom é, segundo essa teoria, o que desde sempre demonstrou ser útil: assim pode
querer validade como ‘valioso no mais alto grau’, ‘valioso em si’. Também essa via de explicação é
16
errada, como disse, mas ao menos a explicação mesma é razoável e psicologicamente sustentável.”
Mas a contribuição mais importante de Nietzsche para à biologia social está
longe de ser a “transvaloração de valores”. Nietzsche foi o primeiro a simplesmente
aplicar constantemente umas das idéias fundamentais de Darwin ao reino da
evolução cultural:
“Assim, em toda a natureza quase todas as partes de cada coisa viva têm provavelmente
servido, em uma condição ligeiramente modificada, a diversos propósitos, e têm atuado no
17
mecanismo vivo de muitas formas específicas antigas e distintas.”
Uma das passagens que melhor evidência a união da renovação de propósitos
de uma coisa – proposta por Darwin, à uma evolução cultual – como proposto por
Nietzsche, pode ser encontrada quando Nietzsche comenta a completa diferença entre
origem a e a finalidade de algo.
“(...) descobrem no castigo uma ‘finalidade’ qualquer, por exemplo a vingança, a
intimidação, colocam despreocupadamente essa finalidade no começo, como causa fiendi [causa de
origem] do castigo, e – é tudo. Mas a ‘finalidade no direito’ é a última coisa a se empregar na
história da gênese do direito: pois não há princípio mais importante para toda ciência histórica do
que este, que com tanto esforço se conquistou, mas que também deveria estar realmente conquistado
– o de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção
em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente]; de que algo existente, que de algum
modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova,
18
transformado e redirecionado para uma nova utilidade” .
Outro tema darwiniano enfatizado por Nietzsche é justamente a idéia de
evolução, usada por Nietzsche para explicar a evolução cultual.
“(...) o ‘desenvolvimento’ [evolução] de uma coisa, um uso [costume], um órgão, é tudo
menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido
com um dispêndio mínimo de forças – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela
ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências
que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os
19
resultados de ações contrárias bem-sucedidas.”
16
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 20
DARWIN, Charles. De l´Origine des Espèces, 1859.
http://www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 17 de maio de 2005.
18
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. pp. 65-6.
19
Idib. p. 66.
17
Encontrado
disponível
em
É claro que Nietzsche não é um darwinista, sua teoria de “vontade de poder”20
é um bom exemplo disso. Contudo, o desfecho da “Genealogia da Moral” trouxe uma
importante lição à sociobiologia:
“A questão: que vale esta ou aquela tábua de valores, esta ou aquela ‘moral’? deve ser
colocada das mais diversas perspectivas; pois ‘vale para quê?’ jamais pode ser analisado de maneira
suficientemente sutil. Algo, por exemplo, que tivesse valor evidente com relação à maior capacidade
de duração possível de uma raça (ou ao acréscimo do seu poder de adaptação a um determinado
clima, ou à conservação do maior número) não teria em absoluto o mesmo valor, caso se tratasse,
digamos, de formar um tipo de homem mais forte. O bem da maioria e o bem dos raros são
considerações de valor opostas: tomar o primeiro como de valor mais elevado em si, eis algo que
21
deixamos para a ingenuidade dos biólogos ingleses” .
Em conformidade com a lição nitzschiana, Daniel Dennett bem resumiu-a:
“Devemos ter extremo cuidado em não tirar da história que extrapolamos sobre a
natureza conclusões simplistas sobre valor”22.
4. Sumário
Ao longo desta seção descartou-se a possibilidade de uma seleção artificial
para o surgimento da moral. Foi então visto o naturalismo, a evolução multicelular e
a biologia evolutiva. Mas ao término de tudo isso ainda não foi dada uma resposta
satisfatória a questão. Como explicar o surgimento da Moral?
Seria muito pouco provável que simplesmente devido a um conjunto de
circunstâncias naturais repentinamente tenha surgido no homem um senso moral.
Contudo, é bastante provável que existam caminhos graduais divergentes pelos quais
o homem poderia através de pequenas mudanças ter gerado por si próprio uma moral.
Como Colin Mcginn sugere:
“(...) segundo Chomsky, é plausível ver nossa capacidade ética como sendo análoga à nossa
capacidade da linguagem; adquirimos conhecimento ético com muito pouca instrução explícita, sem
grande esforço intelectual, e o resultado final é notavelmente uniforme dada a variedade de
informações que recebemos. O ambiente serve apenas para detonar e especializar um esquematismo
inato. (...) Com base no modelo chomskyano, tanto a ciência quanto a ética são produtos naturais da
psicologia humana contingente, limitada por seus princípios constitutivos específicos; mas a ética
parece ter uma base mais firme em nossa arquitetura cognitiva. Existe o elemento sorte que em nossa
posse de conhecimento científico que está ausente no caso do nosso conhecimento ético.”23
20
Para Nietzsche a essência da vida, sua vontade de poder, é “a primazia fundamental das forças espontâneas,
agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja a ação
necessariamente precede a ‘adaptação’.” – Genealogia da Moral, p. 67.
21
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 46.
22
DENNET, Daniel C. Op. cit. p. 489.
23
McGINN, Collin. In and Out of Mind (crítica de Hilary Putnam, Renewing Philosophy). London Review of
Books, 2 de dezembro de1993, pp. 30-1.
Faz-se necessário portanto dar um passo a frente. Na próxima seção ver-se-á
os memes, seu conceito e sua importância na busca de uma explicação para este
fenômeno chamado moralidade.
II – Seleção Natural: biologia e cultura – o
Homem e seu replicador
1. Dos replicadores à cultura
Uma das mais primeiras questões ensinadas no curso de Direito é: Cui bono?24
Esta mesma questão surge no âmbito da teoria evolutiva. Em geral os biólogos
responderiam: “O que é bom para o corpo é bom para os genes assim como o que é
bom para os genes é bom para o corpo.” Sem dúvida o destino de um corpo e o
destino de seus genes estão intimamente ligados, contudo não são plenamente
coincidentes – há casos de situações cruciais nas quais os interesses do corpo
conflitam com os interesses dos genes. Para compreendê-lo veja-se o argumento de
Richard Dawkins:
“Num dado momento, uma molécula particularmente notável foi formada
acidentalmente. Nós a chamaremos de Replicadora. Ela não precisa necessariamente ter
sido a molécula maior ou a mais complexa existente, mas possuía a propriedade
extraordinária de ser capaz de criar cópias de si mesma.”25
Contudo o próprio Dawkins afirma que uma propriedade importante dos
processos de cópia é que eles não são perfeitos – cópias irregulares ocorrerão.26 São
esses erros que tornam a evolução possível. A medida que cópias errôneas foram
feitas e propagadas criou-se uma população com diversas variedades de replicadores.
Até este ponto, os replicadores com maior longevidade tenderiam a se tornar mais
numerosos. E novamente Dawkins faz importante ressalva:
“Mas, outros fatores provavelmente não permaneceram iguais e outra propriedade de
uma variedade de replicador que deve ter tido importância ainda maior na sua disseminação
pela população foi a velocidade de replicação ou ‘fecundidade’.”27
O passo seguinte na evolução foi previsto pelo próprio Darwin ao enfatizar a
competição – a Terra é um território limitado com recursos limitados. Desta
competição resultou um processo de melhoramento e seleção dos replicadores.
24
Quem se beneficia?
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, tr. Geraldo H. Florsheim, p. 36
26
Idib. p. 37
27
Idib. p. 38
25
“Os replicadores que sobreviveram foram aqueles que construíram maquinas de
sobrevivência para aí morarem. (...) Estas se tornaram maiores e mais elaboradas, o processo
sendo cumulativo e progressivo.”28
Se haveria um fim para o melhoramento gradual nas técnicas e artifícios
utilizados pelos replicadores para garantir a sua própria permanência é uma pergunta
ainda sem resposta. O que se sabe é que havia tempo. Quatro bilhões de anos depois
os replicadores não estão mais flutuando no ar, ou dentro de um caldo de primitivo.
“Eles abandonaram esta liberdade nobre há muito tempo. Agora eles apinham-se em
colônias imensas, em segurança dentro de robôs desajeitados gigantescos, murados do
mundo exterior, comunicando-se com ele por vias indiretas e tortuosas, manipulando-o por
controle remoto. Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua
preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se muito esses
replicadores. Agora eles recebem o nome de genes e nós somos suas máquinas de
sobrevivência.”29
Ou seja, Dawkins mostrou que do ponto de vista dos genes, o corpo é apenas
uma máquina de sobrevivência. Foi daí que Dawkins pôde mostrar “para o bem do
organismo” é uma visão tão míope quanto o foi “para o bem das espécies”. A
perspectiva menos ilusória assim parece ser, é perguntar o que é bom para o gene.
“Sempre que você tiver um enigma evolutivo, o ponto de vista dos genes estará apto
a dar uma solução em função de algum gene sendo favorecido por algum motivo. (...) em
uma situação, o que é bom para os genes determina o que acontecerá no futuro. Eles são
afinal de contas, os replicadores cujas perspectivas variantes nas competições de autoreplicação acionam todo o processo de evolução e o mantém em movimento.”30
Essa perspectiva centrada no gene – ponto de vista do olho-do-gene, gerou
diversas críticas. Uma das críticas mais recorrentes foi acusar a perspectiva do olhodo-gene de ser um reducionismo. Ora, o olho-do-gene oferece explicações em função
das análises de intrincadas interações entre fatos ecológicos de longo e amplo
alcance, fatos históricos de longo prazo e fatos locais moleculares. É evidentemente
um reducionista, um reducionista com cirscunspecção. Outra das críticas foi argüir se
a descrição pela perspectiva do olho-do-gene não estaria se aproveitando do fato dos
genes serem o armazém de informações sobre mudanças genéticas, para elaborar
28
Idib. p. 40.
Idib. p. 40-1
30
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 340
29
uma mera tabela fazendo assim uma “contabilidade”31. Este é um rótulo polêmico,
mas que se aceito não traz qualquer revés à perspectiva do olho-do-gene. A idéia de
que uma “contabilidade” não apenas existe, como ocorreu no passado, é justamente o
que dá à teoria da seleção natural o seu poder profético. Contudo deve ser ressaltado
que a afirmação da perspectiva do olho-do-gene como a melhor perspectiva não diz
respeito à importância da biologia molecular, mas a algo mais abstrato. Não é por
acaso que Dennett afirma: ”Esta é uma das áreas mais brilhantes na recente filosofia
da ciência.”32
Muitas são as pessoas que tendem a se sentirem ameaçadas pela perspectiva
do olho-do-gene. Pessoas que querem ser responsáveis pelos seus próprios destinos –
que querem ser ao mesmo tempo o elemento que decide e o principal beneficiário da
decisão. Para elas, o darwinismo com sua perspectiva centrada no gene atenta contra
as suas autonomias pessoais. Por isso não são poucos os que se opõe à vívida
imagem feita por Dawkins dos organismos como meros veículos criados para
transportar um aglomerado de genes para veículos futuros. O argumento usado em
geral é que os genes simplesmente não podem ter interesse e uma vez que não têm
interesse lhes é impossível controlar seus supostos veículos. Assim ficaria provada a
autonomia dos organismos. Isto é um equívoco. Talvez os genes não ajam baseados
em interesses da mesma maneira como os seres humanos o agem, mas isso não
significa que os genes não têm interesses. Até recentemente os genes eram os
principais beneficiários de todas as forças seletivas existentes no planeta.
“(...) não havia força cujo principal beneficiário fosse alguma outra coisa. Havia
acidentes e catástrofes (raios e maremotos), mas nenhuma força constante agindo para
favorecer algo que não os genes.”33
Mas então, no interesse de quê os verdadeiros tomadores de decisão da seleção
natural reagem mais diretamente? Não se discute o fato de surgirem conflitos entre
genes e corpos. Dificilmente alguém duvidará que, em geral, a exigência do corpo
quanto a ser o principal beneficiário desaparece assim que sua missão reprodutiva é
31
Termo criado por William Wimsatt em Reducionist research strategies and their bieses in the unit o
Selection Controversy. In T. Nickles, org., Scientific Discovery: Case Studies. Hingham, Mass.: Kluver, pp.
213-39.
32
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 342.
33
Idib. p. 343.
completada. Talvez o exemplo mais famoso seja o do salmão que tendo lutado para
subir o rio e desovado com êxito, morre. Este comportamento se perpetua porque não
há pressão evolutiva nenhuma que favoreça uma revisão no projeto dos salmões. Isto
é, em geral o corpo é apenas um beneficiário instrumental, e assim secundário, das
decisões “tomadas” pela seleção natural. Objetivos de melhoria de vida são difíceis
de serem levados a sério quando se considera a vida de um salmão. Em verdade um
animal pode até pensar momentaneamente em si mesmo, mas isso só se dá porquê
assim seus genes terão melhores chances de se replicarem no futuro.34 Contudo essa
não parece ser uma regra compartilhada pelos homens – na vida humana há uma
gama enorme de políticas alternativas. A dúvida então passa a ser como se estabelece
esta gama.
Muita gente lúcida e bem-informada escolheu renunciar aos riscos e às dores
do parto em troca da segurança e conforto de uma vida estéril – o exato inverso da
estratégia fundamental de toda vida. Isto se dá pois os homens reconhecem que parir
e criar filhos é apenas um dos projeto possíveis de vida, mas de modo algum é o mais
importante. A importância é, para os homens, um produto de seus valores culturais.
De onde esses valores podem ter vindo e como os sistemas de controle dos homens
ficaram equipados com essa cultura é a pergunta a ser respondida.
“Como foi que conseguimos estabelecer uma perspectiva rival que freqüentemente pode
superar os interesses de nossos genes enquanto as outras espécies não foram capazes de fazer o
mesmo?”35
2. Das diferenças entre inovação genética e inovação cultural
O senso comum diz que os seres humanos são imensamente diferentes das
demais espécies. Contudo o DNA dos seres humanos difere do DNA dos gorilas em
apenas 2,3%. Muitos então defendem que esta pequena diferença é o necessário para
pôr o ser humano no topo da cadeia evolutiva – o rei dos animais. O homem e o
chipanzé têm a apenas sete milhões de anos atrás seu ancestral comum. E os genes
presentes neste ancestral comum continuaram sofrendo mutações e concorrendo de
modo que depois de diversas seleções naturais este novo amálgama de características
34
Um bom exemplo são os pássaros que podem abandonar um ninho cheio de ovos, mas apenas porque podem
começar um novo ninho – “se não for nessa estação será na próxima”.
35
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 345.
genéticas produziu o chipanzé pigmeu, que tem o DNA apenas 1,6% diferente do
DNA humano e é quatro milhões de anos mais recente. Nem por isso se acredita que
o chipanzé pigmeu está o topo da cadeia evolutiva. Ora, mas se não é nem a
diversidade genética nem o tempo dado para a competição e seleção de seus genes, o
quê é que tanto destaca os homens das demais espécies?
A resposta é evidente, os seres humanos são a única espécie que tem um meio
extra de preservação e comunicação do seu projeto de vida: a cultura. Sem dúvida
outras espécies também têm uma capacidade de transmitir informações pelo
comportamento – um rudimento de cultura, mas nenhuma desenvolveu uma
linguagem tal como os homens fizeram que permitisse abrir novas possibilidades
para seu projeto de vida.
“A cultura é um conjunto tão poderoso de gruas que seus efeitos podem fazer submergir
muitas – mas não todas – das pressões e processos genéticos anteriores que a criaram e continuam
coexistindo com ela. Costumamos cometer o erro de confundir uma inovação cultural com uma
inovação genética.”36
É um fato notório que nos últimos séculos houve um aumento na altura média
dos seres humanos. A primeira reação de muitos frente a este dado é alegar que
houve uma mudança genética que levou a este rápido incremento na altura humana.
Esta interpretação está baseada em um claro engano. Todos sabem que o que mudou
drasticamente nos últimos séculos foram a saúde, a dieta e as condições de vida dos
seres humanos. E, portanto, foram essas as mudanças que levaram ao aumento da
altura média humana. Diga-se agora que essas mudanças se devem às inovações
culturais transmitidas culturalmente – nível escolar, divulgação de novas práticas de
plantio, medidas visando a saúde pública, e não a uma inovação genética. Apesar de
o surgimento de uma nova doença ou uma erupção vulcânica poderem
repentinamente criar novas pressões evolutivas, direcionando uma inovação genética,
a evolução cultural atua muitas ordens de grandeza mais rapidamente. Uma inovação
cultural tal como a agricultura pode inclusive levar à mudanças ambientais que
modifiquem as pressões seletivas genéticas. É a evolução cultural e não a evolução
genética que permitiu aos homens se transformarem em uma espécie com uma
perspectiva de vida totalmente diferente da de qualquer outra espécie. Na verdade, já
é duvidoso se supor que outras espécies tenham uma perspectiva de vida – parece
36
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 352.
mais razoável se supor que tenham apenas um projeto de vida. Já os homens têm
diversos projetos de vida – podem ter motivos para escolher o celibato, para criarem
leis que regulamentem o que podem comer ou para criar sistemas que incentivam e
punem certos comportamentos sexuais. O que o homem é, é em grande parte uma
questão de quais inovações culturais ele escolheu para seu projeto de vida. Mas que
revolução evolutiva deve ter havido que possibilitou ao ser humano ser capaz de
transmitir essas inovações culturais apenas para os outros homens?
3. A transmissão cultural: os memes
Sem dúvida afirmar que a cultura é o que diferencia os seres humanos das
demais espécies não é o suficiente para explicar o porquê de o ser humano ser capaz
de inová-la e transmiti-la. Para Dawkins “a transmissão cultural é análoga à
transmissão genética no sentido de que embora seja basicamente conservadora, pode
gerar um tipo de evolução.”37 Ora, as linhas gerais da teoria da evolução pela criação
natural indicam que haverá evolução sempre que houver certas condições.38
1) Variação: há contínua abundância de elementos diferentes;
2) Hereditariedade ou replicação: os elementos têm a capacidade de criar ou
cópias ou réplicas de si mesmos;
3) Aptidão diferenciada: o número de cópias de um elemento criadas durante
certo tempo varia dependendo das interações entre as características do
elemento e as características do ambiente no qual o elemento subsiste.
Dawkins compõe estas três condições em um princípio geral: “toda a vida
39
evolui pela sobrevivência diferencial de entidade replicadoras.” É da análise deste
princípio geral que se depreende não ser a molécula de DNA o único elemento
replicador. Para tanto basta se atentar que a existência de um outro caldo – a cultura
humana e uma outra replicação – a transmissão cultural tem como corolário a
existência de um outro elemento replicador.
“Precisamos de um nome para o novo replicador, um substântivo que transmita a idéia de
uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. ‘Mimese’ provém de uma raiz
grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como ‘gene’. Espero que meus
amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimese para meme. Se servir de consolo, pode-se
37
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 211.
Esta definição encontra similares versões em: DENNETT, Daniel. Op. cit., p. 357; LEWOTIN, Richard. The
Encyclopedia Einaudi – vocábulo “Adaption”.
39
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 213.
38
alternativamente, pensar que a palavra está relacionada com ‘memória’, ou com a palavra francesa
même.”40
Os memes, tal como os genes, são invisíveis e potencialmente imortais. A
existência de ambos depende uma cadeia contínua de veículos físicos, sendo a
imortalidade mais uma questão de replicação do que de longevidade dos veículos
individuais. Já a materialização dos memes se dá de modo um pouco diferente. Os
genes são transportados por veículos genéticos – organismo – nos quais reproduzem
efeitos característicos – efeitos fenótipos – que ocorrem na biosfera. Os memes são
transportados por veículos meméticos – quadros, livros frases – e seus efeitos se dão
na infosfera. Visando explicar a infosfera Dennett escreveu: “A linguagem humana,
primeiro falada e depois, bem recentemente escrita, é sem dúvida o principal meio de
transmissão cultural, criando a infosfera, onde ocorre a evolução cultural.”41 Ou em
outros termos, uma locomotiva a vapor não transporta apenas grãos de um lugar para
outro, transporta também a idéia de locomotiva a vapor de uma mente para outra.
Mas nem só locomotivas são memes.
“Exemplos de memes são melodias, idéias, ‘slogans’, modas do vestuário, maneiras de fazer
potes ou construir arcos. Da mesma forma como os genes se propagam no ‘fundo’pulando de corpo
para corpo através dos espermatozóides e dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no
‘fundo’ de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado
no sentido amplo, de imitação.”42
É contudo fundamental se atentar que existir na infosfera43 não garante um
meme que lhe seja correlato. Isto se dá pois os memes são entidades memoráveis
distintas. Os memes precisam ter limites para terem uma unidade identificável.
Portanto, os memes são os menores elementos a se replicarem com confiabilidade e
fecundidade.
E é nesse sentido que se pode entender porque assim como os genes de
animais não poderiam ter evoluído antes da evolução das plantas – que criaram uma
atmosfera rica em oxigênio e nutrientes – tampouco a evolução dos memes poderia
ser iniciada antes da evolução dos seres humanos, que com seus cérebros puderam
40
Idib. p. 214.
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 362.
42
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 214.
43
Interessante se observar que a infosfera não é um mundo metafísico ao qual o homem tem um acesso
limitado. É pelo contrário, um mundo que surge com o homem, mas que junto à biosfera integra o mundo
sensível
41
proporcionar não apenas abrigo como ainda hábitos de comunicação capazes de
fornecer meios de transmissão para os memes.
4. A concorrência memética e seus fenômenos: filtragem e feedback positivo
Sendo o número de seres humanos limitado, o estoque de mentes é limitado. E
como cada mente tem uma capacidade limitada de memes há uma clara competição
entre os memes para entrarem no maior número possível de mentes. Essa competição
é a principal força seletiva da infosfera. Como um vírus irracional o futuro de um
meme depende de seu projeto – não do seu projeto interno que é se replicar, mas do
projeto que o meme apresenta – o seu fenótipo, a maneira como ele é afetado pelas
coisas em seu ambiente. É certo que todos os memes têm em comum um efeito
fenótipo que sistematicamente tende a invalidar as forças seletivas armadas contra
eles. É assaz esclarecedor um dos exemplos dados pelo próprio Dawkins:
“Outro membro do complexo religioso de memes é chamado fé: significa confiança cega, na
ausência de evidência ou mesmo diante dela. A história de São Tomé é narrada não para que o
admiremos, mas para que possamos admirar, por comparação, os outros apóstolos. Tomé exigiu
evidência. Nada pode ser mais letal para certos tipos de memes do que a tendência a procurar
evidências. Os outros apóstolos, cuja fé era tão forte que não precisavam de evidências, nos são
apresentados como dignos de serem imitados. O meme para fé cega garante sua própria perpetuação
pelo recurso inconsciente simples de desencorajar a indagação racional.”44
Mas as vezes apenas o efeito fenótipo do meme não é o suficiente para
garantir sua propagação. A loci encadeados45 é uma estratégia na qual dois memes se
ligam fisicamente de tal forma que tendem a sempre se replicarem juntos, o que afeta
sensivelmente suas chances. Um exemplo de dois memes cuja loci encadeados
favorece a replicação são o meme de marcha nupcial e o meme do casamento. Já um
exemplo no qual dois memes são prejudicados pela loci encadeados são o meme de
nazismo e o meme de genocídeo. Cabe portanto a perguntar: O quê faz alguns memes
encontrarem uma facilidade de replicação que outros memes não têm?
A resposta está em um dos fenômenos mais importantes da infosfera – a
filtragem de memes devido às associações. As pessoas, em geral, tendem a acreditar
que os “bons” memes irão de alguma forma vencer as pilhas de filtros colocados em
seu caminho e chegarão aos refletores de sua atenção. Isto é evidentemente uma
balela. Para tanto basta se observar que a própria estrutura de filtros é em si mesma
44
45
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 220.
Encadeamento específico.
uma construção memética. Os memes de edição e crítica, mesmo os idiotamente
absurdos46, sempre poderão encontrar na infosfera um nicho para sua propagação.
Isto porque esses memes florescem em razão da escassez de memes concorrentes e
da limitada capacidade das mentes. Portanto é bastante clara a dificuldade de se
encontrar um veículo de transmissão de memes que tenha um tal filtro de memes que
lhe permita selecionar os memes “bons”.47 E isso é facilmente explicável, basta se
atentar que os memes não são um conceito metafísico – logo não se pode aplicar a
eles um conceito metafísico de Bom. Eles são um fenômeno natural regido pelas leis
da seleção natural – a competição de memes em um dado ambiente da infosfera
selecionará o meme mais bem equipado, o mais dificilmente refutável.
“A competição entre os memes para conseguir passar pelos filtros leva a uma ‘corrida
armamentista’ de manobra e contramanobra, com número cada vez maior de ‘anúncios’ comparados
com camadas cada vez mais numerosas de filtros seletivos.”48
Outro fenômeno na concorrência dos memes por atenção é o feedback49
positivo. Os veículos meméticos habitam o mundo junto a fauna e flora, mas eles são
visíveis apenas à espécie humana.50 E como os homens são potencialmente capazes
de abrigar qualquer meme, uma outra forma de seleção que não a filtragem ocorre
quando um veículo memético reforça a tendência à adoção de um meme que não o
que representa. Isto é, enquanto na filtragem um meme é comparado a outro a fim de
avaliar sua compatibilidade, no feedback positivo um meme se apropria do veículo
memético de outro para se fortalecer. E veja-se que não há qualquer loci encadeado,
o meme desapropriado nada ganha com isso.
“As listas dos livros mais vendidos são publicadas semanalmente, e não há dúvida de que,
assim que um livro vende o suficiente para constar de uma dessas listas, as vendas crescem ainda
mais só por causa disso.”51
46
“Vou aceitar todos os memes que quando positivados em palavras começam com a letra Q.” Um filtro como
esse encontraria abrigo em uma seita que acredite ser a letra Q sagrada. Evidentemente uma seita como essa
dificilmente será popular. Assim, dificilmente este filtro de meme terá grandes chances de se propagar, porém
sempre existe a possibilidade.
47
Muito dificilmente será encontrado um palestino que ache o “Washington Post” uma boa fonte de memes.
Mais provavelmente este palestino desconfiará do filtro de memes aplicado pelo jornal.
48
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 366.
49
Regeneração.
50
Veja-se que invisível são os memes. Os veículos onde os memes se materializam, salvo se oralmente, serão
sempre visíveis. Ou será que há alguém achando uma locomotiva a vapor algo difícil de ser visto? O que torna
os veículos meméticos invisíveis aos animais é o desconhecimento que eles têm do meme representado.
51
DAWKINS, Richard. The blind watchmaker. Londres, Longmans, 1986, p. 219 Apud. DENNETT, Daniel
C. Op. cit. p. 367.
Não há nesse exemplo um filtro memético “qualitativo” testando a
compatibilidade do livro ao que o leitor considera ser seu gosto. Há pelo contrário a
aceitação do livro simplesmente porque ele passou à integrar uma lista. Ou seja, o
conteúdo do livro – os memes que o livro carregam, são desconsiderados em favor do
meme da lista – livros mais vendidos. É assim evidente que, “se um meme quiser
dominar a atenção de um cérebro humano, ele deverá fazê-lo às custas de memes
‘rivais’.”52
Fica deste modo desnudado como cada meme é um amigo ou inimigo em
potencial da mente que o recepciona. O meme poderá tanto trazer uma dádiva que
aguçará os filtros meméticos de seu hospedeiro, quanto poderá ser um cavalo de
Tróia que servirá apenas para atrapalhar a capacidade escolha deste. Cabe agora se
argüir: Sob que diretriz comportam-se os memes?
5. A perspectiva do olho-do-meme e o Homem
Tal como a perspectiva do olho-do-gene, também é possível que os memes
apenas se interessem em garantir a sua própria sobrevivência – através da
propagação. Contudo, a suposição de existir uma perspectiva de olho-do-meme
desafiaria um dos axiomas fundamentais das ciências humanas ao propor que “uma
característica cultural pode ter evoluída da maneira como o fez simplesmente porque
é vantajosa para ela própria.”53 Será portanto a suposição do olho-do-meme uma
uma boa suposição?
O argumento mais importante de Dawkins a favor do olho-do-meme é que
inexiste uma conexão necessária entre o poder replicador de um meme, a saúde do
meme visto do seu ponto de vista, e a saúde do hospedeiro após a contribuição do
meme. “Basta que o cérebro seja capaz de imitação: haverá então a evolução dos
memes que explorem plenamente a capacidade.”54 Dennett acrescenta a este
princípio geral uma fórmula que explicita a relação entre meme e hospedeiro.
“(...) memes benignos ou inofensivos tenderão a florescer, se não houver desequilíbrios, e os
que tendem a ser fatais para aqueles cujas mentes os transportam só podem florescer se tiverem
alguma maneira de se divulgar antes de afundar junto com o navio – ou durante o naufrágio.”55
52
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 219.
Idib. p. 221.
54
Idib. p. 221.
55
DENNET, Daniel C. Op. cit. p. 378.
53
A explicação dada pela perspectiva do olho-do-gene responde ainda a uma
pergunta feita continuamente ao longo da história da filosofia – por quê há casos em
que uma idéia virtuosa não é aceita, ou que uma idéia maligna o é. E mais, responde
sem precisar recorre à suposições ou acerca da natureza do homem56, ou acerca da
origem metafísica dos valores57. Aliás, a resposta dada prima por ser deveras simples
e demonstra o quão acurada é a perspectiva do olho-do-meme: O meme se espalhará
entre as pessoas se o meme for um bom replicador.
Mas não por acaso os memes que mais se replicam tendem a ser os que trazem
benefícios aos seus hospedeiros – não tanto para a sua saúde biológica, mas para
aquilo que prezam. E é justamente esse o ponto fundamental da questão: o que é
prezado – os valores mais altos – são produtos dos memes espalhados com sucesso.
Afirmar que são os homens os encarregados de estabelecer o sumo bem que devem
perseguir será um contra-senso caso não se admitida também que aquilo que o
homem é, é algo que o homem, superando sua herança animal, aprendeu a ser.
Portanto, o sumo bem pode ser qualquer coisa capaz de convencer o homem que este
é o modo como deve ser considerada. Mas a biologia impõe certos limites ao que se
pode ser valorizado, até porque não poderia ter o homem sobrevivido caso não
tivesse um hábito mais do que apenas casual para escolher os memes que lhe
infectam – um sistema meme-imunológico. Contudo, veja-se que a idade da
experiência da Natureza com a cultura tem uns poucos milhares de anos, tempo
insuficiente para que este sistema meme-imunológico seja infalível. Apesar das
falhas, Dennett acredita que o sistema atual basta para se começar a esboçar ao
menos uma regra prática.
“Podemos confiar, como regra prática geral e grosseira, na coincidência de duas
perspectivas: em geral os bons memes – os memes bons para os nossos padrões – tenderão a ser
aqueles também são bons replicadores.”58
Ora, se por trás de todo meme e todo filtro de meme – que é também um
meme – existe um imperativo biológico – um instinto de preservação que toma no
homem a forma de um sistema meme-imunológico – então parece que deveria ser o
homem submisso à sua biologia. Ou seja, seu sumo bem deveria ser ditado por
56
Como fez Maquiavel em O príncipe.
Como fez Protágoras, ao negar a possibilidade desses valores ou Platão, ao indicar que estão em um outro
mundo
58
DENNET, Daniel C. Op. cit. p. 381.
57
imperativos genéticos. Mas no homem existe uma tensão constante entre os
imperativos culturais e os imperativos genéticos, que lhe permite ter diferentes
projetos de vida, ao invés de apenas um. Isto se dá pois também os memes fazem
parte da biologia humana. Na verdade esta tensão não é entre o homem e a Natureza,
mas entre dois replicadores, gene e meme, ambos igualmente naturais. Ora, mas se o
sumo bem do homem não é ditado pelos genes, e se a capacidade replicadora do
meme não é plenamente confiável, então qual será o ideal final com relação ao qual
os homens poderão julgar o valor dos memes?
Deve-se ser observado que os memes para conceitos normativos – dever, bom,
verdade, beleza – estão extremamente entranhados nas mentes humanas. Será que
não seriam portanto os próprios memes, os seus atribuidores de valores? Essa
perspectiva parece arriscada. Se considerar o homem como apenas um sistema
complexo de interações entre corpo e os memes que o infestam é passar a
responsabilidade dos genes para os memes. Nem um, nem outro, romper com a
tirania dos genes egoístas para cair na tirania dos memes egoístas não é uma escolha
razoável. Mais uma vez Dennett oferece uma solução.
“Considere o exemplo mais óbvio de meme: o meme do celibato (e castidade, eu poderia
acrescentar para fechar uma famosa brecha). Este complexo de memes habita os cérebros de muitos
padres e freiras. Do ponto de vista da biologia evolutiva, esse complexo é nocivo à saúde por
definição: qualquer coisa que virtualmente garanta que a linha germinativa do hospedeiro esteja em
um beco sem saída, sem poder seguir em frente, reduz o estado de saúde. ‘E daí?’, o padre pode
responder: ‘Eu não quero ter descendentes! Exatamente. No entanto, você poderia dizer, o corpo
dele continua querendo. (...) o meme foi incorporado pelo padre – pelo menos por enquanto – a sua
identidade.”59
As identidades dos homens foram criadas a partir da interação de memes
explorando e redirecionando o mecanismo que a Natureza lhes deu. Os cérebros
podem abrigar os memes de castidade e celibato, mas isso não significa que eles
assumirão o controle, simplesmente o seu hospedeiro pode não se identificar com
eles. Nenhum meme controla seu hospedeiro, o que faz uma pessoa ser o que ela é,
são as coalizões dos memes com os quais a pessoa escolhe se identificar.
6. Sumário
Nesta seção foi analisado o surgimento de um novo replicador: os memes. Foi
também visto como esses memes oferecem em troca aos organismos aonde residem
59
Idib. p. 383.
uma série de vantagens, além de alguns cavalos de Tróia. Foi descartada a
possibilidade de haver uma mente independente que lutasse para se proteger deles –
se viu que os memes fazem parte da natureza humana. Assim, tal como as pernas
fazem arte do corpo, os memes fazem parte da mente.
“Somos construídos como máquinas gênicas e cultivados como máquinas mêmicas, mas
temos o poder de nos revoltarmos contra nossos criadores. Somente nós, na Terra, podemos nos
rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas.”60
Os memes sem dúvida fazem parte da ecologia do mundo – são parte da
natureza do homem. E, visto ser a pessoa um produto das coalizões dos memes com
os quais escolheu se identificar – dependendo do projeto de vida que escolheu ter – o
passo seguinte exige a análise da seleção das características genéticas que levaram o
homem ao seu comportamento em sociedade, e como os memes puderam servir para
aprimorá-lo.
“Não somos só projetados, somos projetistas, e todos os nossos talentos como projetistas, e
nossos produtos, devem emergir de forma não milagrosa dos processos cegos, mecânicos dos
mecanismos darwinianos de um tipo e de outro.”61
O próximo passo será dedicado a se descobrir se a moralidade se resume a
certos imperativos biológicos ou se é um produto dos memes. Construir-se-á no
próximo passo a moral.
60
61
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 222.
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 142.
I – Os fundamentos para o surgimento da
moral
1. Pode a genética compreender a moral?
Segundo Dawkins “os genes também controlam o comportamento de suas
máquinas de sobrevivência.”62 Essa afirmação deve ser examinada com extremo
cuidado. O que Dawkins defende é que os genes preparam suas máquinas de
sobrevivência de antemão, controlam-na indiretamente.63 Surge então a questão: Ora,
se os genes são egoístas e têm o poder de controlar suas máquinas de sobrevivência,
por quê não exercer seu controle diretamente?
A resposta qualquer pessoa com um conhecimento básico de biologia sabe –
os genes funcionam controlando a síntese protéica. Essa, apesar de ser uma forma
poderosa de controle, tem como característica básica ser um controle que precisa de
longos intervalos de tempo para ser realizado. Já a característica básica do
comportamento é ele ser realizado mediante um curto intervalo entre a tomada da
decisão e sua realização. Simplesmente os genes não têm um tempo de reação que
permita um controle em tempo real. Por isso precisam preparar suas máquinas com
regras para lidar com tantas eventualidades quantas possam ser as previstas.
“Como um programador de xadrez, os genes têm que ‘instruir’ suas máquinas de
sobrevivência não quanto a aspectos específicos, mas quanto a estratégias e truques gerais
da arte de viver.”64
2) Memória e previsão
O dispositivo desenvolvido pelos animais para conseguirem se movimentar foi
o músculo. Seu funcionamento, como notoriamente divulgado, consiste em utilizar a
energia armazenada no combustível químico para gerar movimento mecânico, sendo
a força mecânica imediata de um músculo gerada sob forma de tensão, contração e
distensão. A fim de se obter um relacionamento eficaz entre a regulagem de
62
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 76
Para explicar o controle dos genes sobre o corpo Dawkins usa de uma analogia. Propõe que os genes ajam
“não diretamente com seus dedos nos cordões dos bonecos, mas indiretamente como o programador de um
computador.” - idib. p. 76
64
Idib., p. 78
63
acontecimentos no mundo e a regulagem das contrações musculares, se chegou a
uma evolução genética surpreendente – a memória. Por meio desta tornou-se possível
a regulagem de acontecimentos não apenas do passado imediato, mas também de
acontecimentos do passado distante. O controle sobre o movimento permitiu aos
genes que optaram por máquinas de sobrevivência móveis, uma revolução em seus
comportamentos. Contudo, para definir o comportamento de sua máquina de
sobrevivência os genes precisavam ainda considerar as outras características das suas
máquinas e o ambiente aonde se encontravam, incluindo-se aí as outras máquinas.
Sem dúvida, em um mundo aonde genes egoístas competem até a extinção, a
previsão tornou-se uma tarefa difícil, porém necessária. Para os genes, cada decisão
traz um risco, programar os cérebros de antemão de modo que em média eles tomem
decisões que compensem torna-se fundamental. Feliz é a comparação de Dawkins:
“A moeda corrente utilizada no cassino da evolução é a sobrevivência, mais
exatamente a sobrevivência do gene.”65 Como é conhecido, o órgão responsável pela
reação da máquina gênica aos acontecimentos externos são ou os gânglios ou os
cérebros. São ou em um ou em outro que os “conselhos gerais” genéticos estão
impressos, a tomada de decisão – o comportamento, é realizado por eles. Mas é
evidente que isto não significa que os animais fazem os cálculos de custo-benefício
conscientemente, muito pelo contrário. Em primeiro lugar, são os genes que
constituíram os cérebros ou gânglios, portanto se algo fosse fazer tais os cálculos,
seriam eles. E em segundo lugar acreditar que existe uma realização de cálculos é um
equívoco contumaz. Simplesmente, os indivíduos cujos genes construíram cérebros
ou gânglios que tendam a adotar comportamentos bem-sucedidos terão como
conseqüência direta a maior probabilidade de sobreviverem, o que se estenderá aos
genes. Mas isso não significa que os genes estarão fadados a experimentação e erro.
Métodos que permitam se fazer previsões em ambientes assaz imprevisíveis foram
incorporadas.66
2.1) Aprendizagem
65
Idib., p. 79
O desenvolvimento de métodos de previsão é um passo tão evidente quanto o desenvolvimento de método
de alimentação, tal como usar a mão para levar a comida à boca. Não há aqui nenhum meme envolvido.
66
Uma das maneiras dos genes resolverem o problema de fazerem previsões é
criando listas. Com base na perspectiva do olho-do-gene, Dawkins interpreta a
aprendizagem como se fossem instruções dadas pelos genes aos seus veículos de
sobrevivência.
“Eis aqui uma lista de coisas definidas como gratificantes: gosto doce na boca,
orgasmo, temperatura moderada, uma criança sorrindo. E eis aqui uma de coisas
desagradáveis: vários tipos de dor, náusea, estômago vazio, uma criança gritando. Se por
acaso você fizer alguma coisa for seguida por uma das coisas desagradáveis, não o faça
novamente, mas se por outro lado, repita qualquer coisa seguida por uma das coisas boas.”67
A vantagem deste tipo de previsão é que com ele se reduz o número de
tentativa que teriam que ser feitas a fim de se encontrar um comportamento mais
bem-sucedido. Além disso, com a aprendizagem se diminui ainda a influência das
mudanças ambientais – não se retorna a estaca zero como ocorreria com a tentativa e
erro. Contudo, é importante se ressaltar que a necessidade de se fazer novas
tentativas permanece existindo.
2.2) Simulação
Se descobrir se um comportamento específico será mais bem-sucedido do que
comportamentos alternativos é outro dos problemas da previsão. A tentativa, mesmo
com a aprendizagem, envolve riscos materiais significativos. Melhor, portanto, é se
fazer tentativas imaginárias. O cérebro estabelece um modelo de um conjunto restrito
de entidades68 do ecossistema. É contudo, pouco provável que haja no cérebro um
modelo espacial real dos acontecimentos imaginados.
“As máquinas de sobrevivência que podem simular o futuro estão um passo à frente
das máquinas de sobrevivência que podem apenas aprender com base na tentativa e erro
manifestos. O problema com a tentativa manifesta é que ela custa tempo e energia. E o
problema com o erro manifesto é que ele é freqüentemente fatal. A simulação é ao mesmo
tempo mais segura e mais rápida.”69
2.3) Consciência subjetiva
67
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 80.
O termo se refere aqui ao ambiente – clima, terreno, geografia, e as outras máquinas de sobrevivência.
69
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 82.
68
O desenvolvimento de um método que permite não apenas a construção de
modelos mentais, como também o teste imaginário destes modelos, levou à
emancipação das máquinas de sobrevivência como tomadoras das decisões
executivas. “A evolução na capacidade de simular parece ter culminado na
consciência subjetiva.”70
Deste modo, são os cérebros que estão encarregados do controle contínuo das
máquinas de sobrevivência e da sua preservação, e não os genes. O desenvolvimento
das habilidades de previsão e simulação foi apenas um truque desenvolvido pelo
cérebro para apurar a sua capacidade de escolha comportamental. Assim, é evidente
que quanto melhores truques o cérebro desenvolver, mais gerais serão as instruções
dadas pelos genes.71 Contudo deve-se salientar que o comportamento está, apesar de
indiretamente, sob o controle dos genes.72 Isto é, a consciência subjetiva permite se
fazer escolhas comportamentais, desde que essas não contrariem as instruções gerais
dadas pelos genes.
3) Comunicação
Em um mundo habitado por uma multiplicidade de máquinas de
sobrevivência, a interação torna-se inevitável. “Pode-se dizer que uma máquina de
sobrevivência se comunicou com outra quando ela influencia seu comportamento”.73
Ou seja, é através do comportamento que uma máquina de sobrevivência interage
diretamente com outra – o comportamentos de uma é causa direta do comportamento
da outra.74 Influenciar o comportamento das outras máquinas de sobrevivência é mais
um recurso que indiretamente promove o bem-estar dos genes. A questão que se
coloca é, pode uma máquina de sobrevivência adotar comportamentos, tais como
blefar e mentir, que visem ludibriar as outras máquinas?
A resposta é conhecida pelo senso comum, claro que sim. Mas é preciso se
tomar cuidado com uma freqüente confusão – as máquinas de sobrevivência não têm
70
Idib. p. 82
Talvez um dia a única instrução genética seja “cérebro, faça o que achar melhor para manter-nos vivos.”
72
As instruções gerais dadas pelos genes podem ser resumidas em “faça o que for preciso, mas me propague.”
73
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 86.
74
Quando um gato eriça os pêlos da calda ele está comunicando: “Estou disposto a lutar.” Com isso ele pode
convencer um predador a procurar uma presa mais vulnerável – afeta assim seu comportamento.
71
a intenção consciente de enganar. O que elas fazem é realizar um efeito
funcionalmente equivalente ao do engano.75 Quando quer que um sistema de
comunicação se desenvolva, algumas máquinas de sobrevivência irão o explorar para
os seus próprios fins – se perpetuar para perpetuar os seus genes. O engodo é um
método desenvolvido a partir da comunicação, que visa aumentar as chances de
sobrevivência. É um truque, tal como a memória e simulação, que tenta oferecer
vantagens quando há conflito de interesses entre as máquinas de sobrevivência.
4) Estratégia Evolutivamente Estável
Para uma máquina de sobrevivência outra máquina de sobrevivência é alguma
coisa que ou a atrapalha ou pode ser explorada por ela. A seleção natural favorece os
genes que controlam suas máquinas de sobrevivência de modo tal que estas máquinas
façam o melhor uso do seu ambiente. Isto inclui fazer o melhor uso das outras
máquinas de sobrevivência, quer sejam de espécie diferente, quer sejam da mesma
espécie.
As máquinas de sobrevivência de espécies diferentes influenciam-se
mutuamente de diversos modos – presa e predador, parasita e hospedeiro, ou mesmo
como concorrente por algum recurso raro.
Já as máquinas de sobrevivência da mesma espécie tendem a se influenciarem
mutuamente de forma mais direta. O motivo disto é óbvio, os membros da mesma
espécie são muito semelhantes entre si. A proximidade genética os faz seguirem as
mesmas instruções gerais, usarem os mesmos truques, enfim, buscarem um mesmo
tipo de vida para realizar um mesmo projeto de vida. Membros da mesma espécie
são, deste modo, competidores particularmente diretos por todos os recursos
necessários à sua sobrevivência. Mas então por quê os animais não saem a matar os
membros da sua própria espécie em todas as oportunidades possíveis?
A resposta é que não há benefício algum em se matar indiscriminadamente os
rivais mais semelhantes. Em um sistema aonde atuam diversos membros da mesma
espécie, a remoção de um não traz benefício àquele que o eliminou. Muito pelo
75
A estratégia de fingir estar dormindo ou morto para permitir a aproximação da presa é apenas um exemplo,
dos mais variados existentes na natureza.
contrário, todos os demais membros serão também beneficiados pela eliminação, e
apenas o que eliminou terá gastado tempo e energia. Por outro lado, lutar com certos
rivais de modo discriminado pode ser bastante proveitoso. A decisão de lutar ou não
deveria ser precedida de um cálculo, inconsciente, de custo-benefício. Da mesma
forma, durante uma luta cada decisão que leve a uma escalada ou a um resfriamento
tem custos e benefícios. Deve haver portanto, uma política de comportamentos préprogramada do tipo “ataque o oponente, se ele fugir persiga-o, se ele retaliar fuja.”
Ao se debruçarem sobre estes comportamentos, Maynard Smith e G. R. Price
perceberam a existência de “estratégias evolutivamente estáveis.”76
Uma estratégia evolutivamente estável é uma estratégia que se adotada pela
maioria dos membros de uma população, não poderá ser sobrepujada por nenhuma
estratégia alternativa. Maynard e Price perceberam que uma vez que a estratégia
evolutivamente estável é alcançada ela será mantida e a seleção natural punirá os
desvios. Assim, a estabilidade da estratégia não decorre dos benefícios diretos que
ela traz aos indivíduos, mas da sua imunidade a traições internas.
4.1) Defesa territorial
Até aqui foi tratado apenas de disputas, chamadas por Maynard e Price, de
“simétricas.” Isto é, disputas nas quais se assume que as partes são idênticas.
Contudo, é certo que os membros de uma mesma espécie são semelhantes, mas isso
não significa serem gêmeos. Maynard junto a G. A. Parker prosseguiu no estudo das
disputas assimétricas, tendo chegado à conclusão de que parece haver três tipos de
assimetria.77
A primeira assimetria concerne às diferenças de tamanho e de qualidade dos
equipamentos de luta, tais como a força da mandíbula ou o tamanho das garras. A
segunda assimetria é que os membros de uma mesma espécie podem diferir no que
cada um tem a ganhar com a vitória – um velho com pouco tempo de vida terá menos
a perder do que um jovem com toda a vida reprodutiva pela frente. A terceira
76
Maynard Smith, J. e Price, G. R. The logic of animal conflict. Nature, 246, 1973, pp. 15-8.
Maynard Smith, J. e Parker, G. A. The logic of asymmetric contests. Animal Behaviour, 24, 1976, pp. 15975.
77
assimetria é a que merece maior atenção. Geralmente uma das partes envolvida no
conflito chega ao local da disputa mais cedo do que a outra, condição esta que pode
ser de um benefício tal que abrevie a disputa. Isto porque os residentes – aquele que
chegou antes, têm a tendência a ter uma vantagem prática sobre os intrusos – o que
chegou depois. Talvez seja o melhor conhecimento do terreno ou o cansaço do
intruso devido ao deslocamento até o local, são numerosas as vantagens que o
residente pode receber. Para Maynard e Parker isso explica a tendência de diversas
espécies em seguirem uma estratégia evolutiva estável do tipo “se residente ataque,
se intruso afaste-se.”
“Os biologistas frequentemente se perguntaram quais são as ‘vantagens’ biológicas
do comportamento territorial. Numerosas sugestões têm sido feitas (...) mas podemos ver
agora que talvez a própria pergunta seja supérflua. A ‘defesa’ territorial talvez seja
simplesmente uma EEE [estratégia evolutivamente estável] que origina-se devido à
assimetria no tempo de chegada, a qual geralmente caracteriza a relação entre dois
indivíduos e uma porção de terreno.”78
4.2) Hierarquia de dominância
A lembrança do resultado de lutas passadas tem o efeito de diminuir
gradativamente o número de lutas sérias dentro do grupo. O tipo de memória exerce
um papel de relevo na organização do grupo. Se a memória for geral79 cada membro
atualizará a estimativa de sua habilidade de luta tendo como parâmetro uma
estimativa média geral, não há porque se supor haver reconhecimento mútuo. Assim,
aqueles que têm uma estimativa abaixo da média tendem a perder suas lutas enquanto
os que a têm acima da média tendem a vencer. Um grupo de indivíduos com uma
memória geral mantido junto por um certo tempo desenvolverá uma hierarquia
baseada no conhecimento da sua própria estimativa. Esta ao passar a representar o
nível hierárquico dentro da sociedade, torna os combates de fato desnecessários.
Mas se a memória for específica haverá o reconhecimento individual. Nestes
casos a lembranças das lutas passadas serão específicas. A melhor estratégia passa a
ser “não enfrente quem ganhou de alguém que lhe venceu e enfrente quem perdeu de
78
79
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 105.
Como nos grilos.
alguém que perdeu de você.” Se este grupo for mantido junto por certo tempo as
lutas diminuirão, mas por motivos diferentes que os das espécies com memória geral.
Neste caso cada indivíduo do grupo “aprende qual é o seu lugar” em relação a cada
um dos outros indivíduos.
“Não se pode dizer que a hierarquia de dominância per se tenha uma ‘função’ no
sentido evolutivo, pois é uma propriedade de um grupo e não de um indivíduo. Pode-se
dizer que os padrões individuais de comportamento que se manifestam sob a forma de
hierarquias de dominância quando vistos ao nível do grupo têm funções. É ainda melhor, no
entanto, abandonar a palavra ‘função’ completamente e pensar em termos das EEEs
[estratégias evolutivamente estáveis] em contextos assimétricos nos quais há
reconhecimento individual e memória.”80
4.3) Pool genético
O ambiente no qual um grupo de genes envolvidos no desenvolvimento de
uma estratégia evolutivamente estável compete é o pool genético81. “Os genes ‘bons’
são selecionados cegamente como sendo aqueles que sobrevivem no ‘fundo’. Isto
não é uma teoria e nem mesmo um fato observado: é uma tautologia.”82 Cabe então
se perguntar: O que torna um gene bom?
O primeiro impulso é responder que o que faz um gene ser bom é a sua
habilidade em construir uma máquina de sobrevivência eficiente. Esta é uma resposta
precipitada. O pool genético é uma estratégia evolutivamente estável que serve para
selecionar um conjunto evolutivamente estável de genes. A maioria dos genes que
surgem após o desenvolvimento do conjunto evolutivamente estável – seja por
mutação, rearranjo ou imigração – serão punidos pela seleção natural. Contudo,
ocasionalmente um gene novo conseguirá invadir o conjunto evolutivamente estável,
difundindo-se pelo pool. Nestes casos ocorre um período transitório de instabilidade
que resultará em um novo conjunto evolutivamente estável – um pouco de evolução
terá ocorrido. A evolução progressiva pode ser tanto uma escalada para um novo
conjunto, quanto pode ser o desenvolvimento de pontos de estabilidade alternativos
para um mesmo conjunto que foi apenas expandido.
80
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 107.
Fundo de genes
82
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 111.
81
“Talvez pareça que a população como um todo está se comportando como uma única
unidade auto-reguladora. Mas esta ilusão é produzida pelo fato da seleção ocorrer ao nível
do gene isolado. Os genes são selecionados por ‘mérito’. Mas este é julgado com base na
performance contra o pano de fundo do conjunto evolutivamente estável que é o ‘fundo’
atual de genes.”83
Assim, o que torna um gene bom são as interações entre este gene e os demais
que compõe a máquinas de sobrevivência. Corpos bem integrados existem porque
são o produto de um conjunto evolutivamente estável de genes egoístas. Mas a
influência dos genes não se limita a sua máquina de sobrevivência individual apenas.
A interação entre as diferentes máquinas de sobrevivência também importam na
seleção dos genes que compõe o conjunto evolutivamente estável.
Um fato bem observado é que, quanto mais próximos são as máquinas de
sobrevivência, mais comumente estratégias evolutivamente estáveis – defesa
territorial, hierarquia de dominância – são desenvolvidas. Isto ocorre porque a
proximidade entre as máquinas de sobrevivência significa que elas partilham uma
porção substancial dos mesmos genes. Ou seja, pool genético não se limita à máquina
de sobrevivência individual. “Cada gene, portanto, tem sua lealdade dividida entre
corpos diferentes.”84
5) Altruísmo de seleção de parentesco
Um gene poderá ser capaz de auxiliar réplicas dele mesmo locadas em outros
corpos? Segundo W. D. Hamilton85, a razão para o altruísmo dos pais em relação aos
filhos ser tão comum decorre justamente desse compartilhamento genético. Mas
Hamilton vai além, defende ainda que se a razão do altruísmo é o compartilhamento
genético, então este deveria existir também entre parentes próximos – irmãos e irmãs,
tios e sobrinhos, e até primos e primas. 86 A argumentação de Hamilton se baseia na
83
Idib. p. 111.
Idib. p. 112.
85
HAMILTON, W. D. Altruism and the related phenomena, mainly in social insects. Annual Review of
Ecology and Systematics, 3, pp. 193-232.
86
Interessante se observar que Hamilton calcula a distância de geração do mesmo modo como no Direito
Brasileiro contamos os graus de parentesco – é o Direito se utilizando das ciências. Mas para fins genéticos o
cálculo vai um pouco além. Para cada grau de distância de parentesco se multiplica ½. Feito isto, se multiplica
o resultado pelo número de antepassados comuns. Por exemplo: primos de terceiro grau têm oito degraus de
parentesco: (½)8 e têm 2 antepassados em comum. Daí 2 x (½)8 = 1/128 que é a probabilidade de dois
indivíduos quaisquer compartilharem o mesmo gene. Já co-irmãos têm dois graus de parentesco e dois parentes
84
idéia de que, se um indivíduo morre a fim de salvar vários parentes próximos então
uma cópia do gene do altruísmo de parentesco será perdida, mas um número maior
de cópias será salvo.87 O âmago deste argumento é demonstrar que a distinção entre
família e não família pode ser reduzida à probabilidade matemática.88 Deste modo, o
cuidado com a própria prole é apenas mais um caso de altruísmo de seleção por
parentesco. O fato dos pais transmitirem genes aos filhos é irrelevante –os irmãos
apesar de não transmitirem os genes uns aos outros, recebem réplicas idênticas dos
mesmos genes, dos mesmos pais. Logo, não está aí o diferenciador.
Os cálculos simétricos de parentesco de Hamilton precisam ser modificados
quando confrontados com outras variáveis que não as relações puramente genéticas.
Ora, avôs e netos têm do ponto de vista genético razões idênticas para se
comportarem altruisticamente uns em relação aos outros.89 Mas ao se considerar a
expectativa de vida, talvez o benefício liquido resultante do auxílio a um parente
jovem distante possa exceder aquele resultante do auxílio a um parente próximo
velho. Outro fator a ser considerado é o risco que comportamento altruísta, tal como
dar um grito de alarme, pode significar. O ponto central aqui é se observar que, para
um comportamento altruístico evoluir, o risco líquido para o altruísta deve ser menor
do que o benefício líquido para o seu receptor multiplicado pelo seu parentesco. E
mais, deve-se calcular ainda o resultado dos comportamentos altruístas alternativos,
caso existam. O que padrão comportamental que obtiver o melhor resultado será o
selecionado.90 Mas não seria este cálculo complicado demais para se esperar de uma
mera máquina de sobrevivência?
Os corpos são máquinas programadas por genes que sobreviveram às
condições que caracterizaram o ambiente da espécie no passado. As estimativas de
em comum: 2 x (½)2 = ½. Mesmo resultado têm pais e filhos, são um grau de parentesco com um parente
comum: 1 x (½)1 = ½.
87
Um gene para o salvamento suicida de cinco primos co-irmãos (1/8) não entraria em um conjunto
evolutivamente estável, mas um gene suicida para o salvamento de cinco sobrinhos (1/4) provavelmente
entraria.
88
Não há que se decidir se primos de segundo grau devem ou não ser membros família,
simplesmente eles recebem 1/16 do altruísmo recebido por filhos ou irmãos.
89
Cada um compartilha 1/4 dos genes do outro.
Por exemplo, no caso dos comportamentos beneficiarem dois irmãos o cálculo será: Benefício líquido de
cada padrão de comportamento = benefício para si próprio – risco para si próprio + ½ benefício para um irmão
- ½ risco para um irmão + ½ benefício para outro irmão - ½ risco para outro irmão. O valor a ser atribuído ao
risco e ao benefício variará segundo o comportamento adotado.
90
custo-benefício são simplesmente o fruto das experiências passadas. Isto significa, o
pool genético está cheio de genes que influenciam os corpos de tal maneira que estes
comportam-se como se tivessem efetivamente feito cálculos.
Mas ao se aceitar que os genes são capazes de auxiliar, através do altruísmo de
seleção de seleção de parentesco, réplicas dele mesmo em outros corpos outra
relevante indagação se impõe: Os genes podem reconhecer suas cópias em outros
indivíduos?
Evidentemente os genes não podem reconhecer diretamente outros genes.
Contudo é possível aos genes em uma máquina de sobrevivência terem uma
estimativa de certeza de que uma outra máquina de sobrevivência compartilha seus
genes. Em outros termos, embora o relacionamento entre pai e filho não seja
geneticamente mais próximo que o relacionamento entre co-irmãos, normalmente é
possível se ter mais certeza sobre quem os seus filhos do que sobre quem são os seus
irmãos. Em um mundo no qual os conjuntos evolutivamente estáveis nas máquinas
de sobrevivência estão em constante seleção natural, genes que permitam explorar o
altruísmo de seleção por parentesco para favorecer à máquina de sobrevivência são
bons concorrentes. Assim, a máquina de sobrevivência tem que ter limites ao
considerar em quem ela pode confiar.
Segundo a probabilidade de compartilhamento genético, um gene para o
egoísmo individual seria deslocado por um gene rival para o salvamento altruísta de
dois filhos ou co-irmãos, mas o gene de para o egoísmo individual tem a enorme
vantagem da certeza da identidade individual. O gene rival arrisca-se a cometer erros
de identidade, quer legitimamente acidentais, quer deliberadamente planejados por
parasitas. Portanto, deve-se esperar o egoísmo individual no mundo em um grau
maior do que aquele que apenas considerações de parentesco genético iriam previr.
Além da questão das expectativas de vida das máquinas de sobrevivência, do
risco-benefício do comportamento altruísta e do problema da identificação dos genes,
há ainda outra assimetria: a competência na ocupação de viver. É evidente que uma
máquina de sobrevivência mais velha, com compartilhamento genético e certeza de
parentesco com um filhote, está em uma situação prática melhor para ajudar o filhote
do que este está para ajudar a máquina de sobrevivência. Simplesmente um filhote
não está suficientemente equipado para poder se comportar altruisticamente – o risco
para os seus genes ainda é grande demais. Fica assim demonstrado como o altruísmo
de seleção de parentesco só é possível graças ao egoísmo dos genes.
6) Investimento parental
As máquinas de sobrevivência que ainda não são capazes de servir ao seu
propósito – sua sobrevivência e propagação dos seus genes – precisam de mais do
que apenas comportamentos altruístas genéricos, tais como gritos de alarme ou de
alimento. Máquinas de sobrevivência nestas condições precisam de outras máquinas
de sobrevivência que as auxiliem diretamente, protegendo-as e lhes levando comida.
Dawkins concebe a “mãe como uma máquina programada para fazer tudo o que
estiver a seu alcance para propagar cópias dos genes que são levados dentro dela.”91
Enfrentar riscos, gastar energia e tempo, são recursos que a mãe pode investir nos
filhotes – estas máquinas de sobrevivência ainda indefesas demais.
“Nós podemos definir o investimento parental como uma relação custo-benefício. O
benefício é o quanto o investimento parental aumenta a chance de sobrevivência do
descendente. O custo é o quanto o investimento diminui a habilidade dos pais em investir
em outros descendentes (incluindo-se aí aqueles que estão para nascer).”92
Assim, quando um filhote consome o leite da sua mãe, a quantidade de leite
utilizada pode ser representada em unidades de investimento parental que medem o
quanto amamentá-lo afetará a expectativa de vida dos outros filhotes. Em verdade, o
investimento parental ao observar apenas a relação entre os pais e os filhotes é
excessivamente específico. O ideal parece ser considerar o investimento parental
como sendo, na verdade, um investimento altruísta. O investimento parental em um
filhote qualquer pode ser medido em quanto isto leva a um detrimento da expectativa
de vida não apenas dos filhotes, mas também dos sobrinhos, primos, e mesmo da
expectativa de vida dos próprios pais. Isto nos leva uma importante questão: Como as
máquinas de sobrevivência sabem em qual filhote investir?
91
92
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 147.
TRIVERS, Robert. Social Evolution. Menlo Park, Benjamin/Cummings Publishing Company, 1985, p. 148
Cabe-se ressaltar que não há qualquer razão genética que justifique um filhote
ser preferido aos outros. O que pode ocorrer é, sendo um filhote menos sadio que os
demais, ele precisará de mais do que apenas o seu quinhão de investimento parental
para terminar no mesmo nível que seus irmãos. Dependendo das circunstâncias, será
melhor para a propagação dos genes ter menos máquinas de sobrevivência com
melhores chances de se propagarem. Ou seja, pode ser mais benéfico uma mãe
recusar-se a alimentar um filhote distribuindo para seus irmãos a porção de
investimento parental que lhe seria destinada. Outro fator que pode influir na
determinação de qual filhote receberá o investimento parental é a sua idade. Se
houver uma situação na qual há igual risco para se salvar dois filhotes, tendo eles o
mesmo parentesco genético e diferentes idades o mais velho será o escolhido. Isto
porque a morte do mais velho significa para as máquinas que nele investiram uma
maior perda na proporção do investimento parental de suas vidas. Em outros termos,
salvar o mais novo significaria investir nele dispendiosos recursos apenas para trazêlo à idade do mais velho. Contudo, se a situação não for de vida e morte, mas de
distribuição de alimento, pode ser mais compensador dar uma porção de alimento
maior ao filho menor do que ao mais velho, que tem mais probabilidade de conseguir
alimento sem auxílio. A desmama nos mamíferos é justamente o momento em que
vale mais para a mãe desviar os investimentos de um filhote para filhotes futuros. E
mesmo que uma mãe soubesse que um filhote é o último ela não o alimentaria até o
resto da sua vida. Para entender o porquê é preciso se observar como se resolve a
questão de quanto investir em um filhote.
Após certo tempo, os genes em uma máquina de sobrevivência enfrentam o
dilema de se não valeria mais a pena investir em seus netos e sobrinhos do que em
novos filhos. O grau de parentesco entre sobrinhos e netos é o mesmo, sendo este a
metade do grau de parentesco que sobrinhos e netos têm com os filhos.93 Assim,
quando a capacidade dos sobrinhos e netos for maior que o dobro da capacidade dos
filhotes de se beneficiarem com o investimento, as mães tenderão a auxilia-los em
lugar de seus filhos.94 Portanto faz sentido imaginar que, quando uma mulher atingia
93
Tanto netos quanto sobrinhos têm o mesmo grau de parentesco e o mesmo número de ascendentes comuns: 2
x (1/2)3 = 1/4. Metade do o compartilhamento genético com os filhos: 1/2.
94
O envelhecimento da mãe pode levá-la a não mais conseguir ser a principal mantenedora dos filhotes.
Contudo, pode passar a servir como excelente complemento na oferta de investimento parental.
a idade na qual a probabilidade média de cada filho atingir a idade adulta era um
pouco menor do que a metade da probabilidade de cada neto ou sobrinho da mesma
idade atingi-la, um gene para investir nos netos ao invés de nos filhos tenderia a
prosperar. Esse gene seria carregado em apenas um a cada quatro netos, enquanto
que o gene rival é carregado em um a cada dois filhos. Mas a maior expectativa de
vida dos netos compensaria isto, e o gene para investimento parental nos netos
prevaleceria no pool. Segundo Dawkins “essa é uma explicação possível para a
evolução da menopausa nas mulheres. O motivo da fertilidade dos homens diminuir
gradativamente e não abruptamente é, talvez, que esses não investem, de qualquer
forma, tanto em cada filho como as mulheres.”95 Ou seja, enquanto os machos
puderem produzir filhos através de mulheres jovens sempre compensará, mesmo para
um macho muito velho, investir em filhos e não em netos. Fica assim demonstrado
como o quanto a ser em cada filhote varia do sexo e do grau de parentesco.
Uma questão que urge ser tratada é como os filhotes se comportam frente ao
investimento parental. Será que genes para obtenção egoísta de maior investimento
parental não tornar-se-iam mais numerosos no pool do que os genes rivais de
aceitação de apenas o próprio quinhão?
Um filhote está igualmente relacionado a cada um de seus irmãos, tal como
sua mãe também o está.96 Portanto, do ponto de vista genético, o filhote está
inclinado altruisticamente aos seus irmãos tanto quanto sua mãe. Mas ele está
relacionado a si próprio duas vezes que o está a qualquer um de seus irmãos.97 Isto
incliná-lo-á a buscar meios de fazer sua mãe investir nele mais do que em qualquer
outro. Contudo, caso haja uma assimetria entre o benefício que um filhote teria e o
benefício que outro teria com o investimento parental, talvez compense aos genes do
filhote que teria o menor benefício deixar que o outro filhote obtenha o investimento
parental. Dawkins chega a afirmar que “Um irmão mais velho pode ter exatamente os
mesmos motivos para o altruísmo que seus pais.”98 Ou seja, um filhote pode até
pegar mais do que o seu quinhão de investimento parental, mas somente enquanto o
custo liquido resultante para seus irmãos, já nascidos ou por nascer, não ultrapasse o
95
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 151.
O parentesco é de 1/2 em todos os casos.
97
O parentesco consigo mesmo é de 1: 100%.
98
DAWKINS, Richard. Op. cit. p. 152.
96
dobro do benefício advindo do pegar para si próprio. Há discórdia entre mãe e filho
se dá durante o período intermediário – período no qual o filhote está recebendo mais
do que o seu quinhão, mas menos que o dobro do benefício. Deve-se atentar que
nesta discórdia a mãe está assumindo o lugar de todos os seus filhos, nascidos ou
não.
Com isso pode-se entender ainda o porquê do tamanho ideal de uma família
para um investidor parental ser maior do que o tamanho ideal para alguém que recebe
o investimento. Enquanto os genes do investidor parental se beneficiariam mais com
uma distribuição isonômica do seu investimento, os genes dos que recebem o
investimento se beneficiariam mais caso conseguissem receber um investimento
parental maior do que o seu quinhão, desde que o custo deste benefício não seja o
inverso do parentesco vezes maior do que outros obteriam.99 Assim, de acordo com
Trivers100, o motivo de um filhote só pegar mais do que o seu quinhão até certo
ponto, é o perigo de perder seus irmãos – máquinas de sobrevivência que carregam
metade dos seus genes. O mesmo se dá entre pais e filhos, o custo líquido para uma
mãe de investir mais em um filho é o perigo de perder outros filhos – máquinas de
sobrevivência que compartilham metade dos seus genes. E assim por diante. Os
genes para investir em indivíduos mais indefesos em detrimento de si próprio podem
prevalecer no pool, apesar dos beneficiados compartilharem apenas uma porção dos
mesmos genes, porque os mais indefesos podem beneficiarem-se mais de cada
unidade de investimento parental do que o próprio investidor poderia. É por isso que
os animais mostram tanto investimento parental quanto altruísmo de seleção por
parentesco.
7) Altruísmo recíproco
Para os animais viverem juntos em grupos, seus genes devem obter com a
associação um benefício superior ao investimento feito. Se o grupo contém parentes
próximos, um gene para o comportamento altruísta prosperará no pool genético –
esse gene tem boa chance de estar também em algumas das máquinas de
99
Dobro para um filho (1/2), quádruplo para um sobrinho ou neto (1/4) e assim por diante.
TRIVERS, Robert. Op. cit. pp. 148-55.
100
sobrevivência que forem salvas. Mas e no caso dos membros do grupo não
compartilharem genes, utilizando um extremo, e se forem de espécies diferentes?
Uma relação de benefício mútuo entre membros de espécies diferentes é
chamado de mutualismo ou simbiose. É justamente pelo fato de terem poucos ou
nenhum gene em comum que os membros de espécies diferentes têm muito a
oferecer uns aos outros – podem trazer habilidades diferentes à sociedade. É este tipo
de assimetria fundamental que pode levar a estratégias evolutivamente estáveis de
cooperação mútua.
“O comportamento altruísta ocorre quando um comportamento traz a seu realizador
um benefício maior do que o custo inicial. Neste sentido, o altruísmo se torna uma forma de
cooperação. Consideremos, por exemplo, certa interação que ocorre no oceano entre alguns
peixes grandes e um peixe limpador Labroides dimidiatus. (...) Uma vez que os peixes
grandes nunca são da espécie dos Labroides dimidiatus, parentesco não pode ser a
explicação para o comportamento altruísta que ocorre entre eles. (...) O que ocorre é que
dois indivíduos podem negociar a troca de comportamentos altruístas. Essa reciprocidade
pode ser chamada de altruísmo recíproco.”101
Os genes para o comportamento altruísta de uma parte em relação a outra são
favorecidos no pool genético de cada uma. Ou seja, não há que se falar em
comportamento para o bem da espécie, mas em comportamento que melhore as
chances de sobrevivência de cada um – o que ocasiona melhores chances de
propagação dos genes da máquina de sobrevivência – integrando assim o seu
conjunto evolutivamente estável. Portanto, não há qualquer motivo para se distinguir
as associações entre membros de espécies diferentes e membros da mesma espécie.102
A regra para a evolução das associações de benefício mútuo é cada parte obter mais
do que introduz, independentemente de com quem se esteja associando. Sem dúvida
é fácil se imaginar as evoluções de benefício mútuo quando os favores são feitos e
recebidos em um mesmo momento. O problema surge quando há atraso entre a
realização de um favor e a sua retribuição. Por quê a parte que recebe o favor não
trapaceia recusando-se a retribuí-lo?
101
TRIVERS, Robert. Op. cit. pp. 47-8.
Uma das principais questões da biologia atual é descobrir se as mitocôndrias não eram originalmente
bactérias simbiontes que se juntaram ao tipo de células dos animais logo no início da sua evolução. Esta
mesma indagação têm sido feita a certa de outros corpúsculos presentes nas células animais.
102
A teoria dos jogos103 permitiu se desenvolver o dilema do prisioneiro104. O
resultado deste é justamente demonstrar que a melhor estratégia é trair: receber o
favor e não retribuí-lo. Contudo, Robert Axelrod e W. D. Hamilton105 demonstraram
que esta estratégia é a melhor somente quando a relação das partes não é freqüente.
Ao elaborarem um torneio virtual de dilema do prisioneiro – múltiplas rodadas com
diferentes estratégias sendo adotadas – o resultado foi surpreendente. A estratégia
que teve melhor resultado foi a “pagar na mesma moeda”, isto é, comportar-se
altruisticamente na primeira rodada e depois passar a repetir o comportamento feito
pela outra parte na rodada anterior.
“Considerando o altruísmo recíproco como uma série de dilemas do prisioneiro, é
possível se derivar resultados deveras interessantes. Recentemente, Robert Axelrod e
William Hamilton foram capazes de provar que uma estratégia é a superior a todas as outras
quando jogadas repetidas partidas de dilema do prisioneiro. Essa estratégia é chamada:
‘Pagar na mesma moeda’ (...) ‘Pagar na mesma moeda’ pode ser caracterizada como uma
estratégia de cooperação baseada no altruísmo recíproco.”106
Os torneios virtuais de dilema do prisioneiro podem ser vistos como analogias
do processo evolutivo – mutações e recombinações permitem séries de novas
estratégias, essas competem e uma aparece com o melhor benefício médio – sendo
cada rodada uma geração de seleção natural.107 Trivers constata serem três as
características responsáveis pelo sucesso do “pagar na mesma moeda.”108
1) Nunca ser o primeiro a trair.
2) Retaliar apenas depois de ser traído pelo outro.
3) Começar a esquecer a traição logo após ter retaliado.
103
Criação de John von Neumann e Oskar Morgenstern em Theory of games and economic behavior.
Princeton: Princeton University Press, 1944.
104
Duas pessoas cometem um crime e são presas separadamente. Elas têm três opções de comportamento:
confessar; negar e culpar o outro; e confessar e culpar o outro. Surge assim uma quarta opção que é confessar,
não culpar o outro, mas ser culpado pelo outro. Para cada opção é estabelecido um resultado: se ambos
negarem, ambos são libertados; se ambos confessarem, ambos recebem a pena mínima; e se um negar e culpar
o outro e o outro confessar, o que negou será libertado e receberá um prêmio pela colaboração e o outro
receberá a pena máxima. O resultado é que é sempre melhor trair o outro. No pior dos casos a pena é a mínima
(ao invés da máxima) e no melhor ganha a liberdade e mais um prêmio (ao invés de só a liberdade).
105
Robert Axelrod e W. D. Hamilton em The evolution of cooperation. Science, vol. 211, 1981, pp. 1390-6.
106
TRIVERS, Robert. Op. cit. p. 391.
107
As simulações virtuais, nas quais se definem centenas de milhares de indivíduos imaginários, dotados de
dezenas de centenas de milhares de estratégias e colocados para jogar milhões de vezes, é uma das principais
técnicas de investigação da ética evolutiva.
108
TRIVERS, Robert. Op. cit. p. 392.
Isto significa que não retribuir o comportamento altruísta recebido será
prejudicial apenas nos casos em que a outra parte retaliar. Portanto, evoluir o
comportamento de enganar não deixa de ser uma opção a ser explorada pelos genes.
Pode-se distinguir basicamente dois tipos de comportamento enganador: a trapaça
flagrante e a trapaça sutil. Na trapaça flagrante a parte enganadora nunca retribui – o
altruísta sofre o custo de todo altruísmo dispensado sem receber nenhum benefício.
Esta estratégia levaria ou a contínua retaliação – o enganador flagrante nunca
retribuindo e a outra parte copiando sempre o seu último movimento de não
retribuição – ou ao abandono da relação pela parte enganada. Já na trapaça sutil a
parte enganadora retribui o comportamento altruísmo, mas sempre com menos do
que o benefício recebido. Neste caso a parte enganada pode através da retaliação
tentar restaurar o equilíbrio da relação ou pode simplesmente procurar outro com
quem trocar altruísmo. Contudo, é fato que a percepção de uma trapaça sutil pode ser
algo extremamente difícil de ser detectado.
“Dada o caráter instável de um sistema no qual graus de trapaça são adaptáveis, a
seleção natural rapidamente irá favorecer um complexo sistema psicológico no qual, cada
indivíduo regule tanto a sua tendência a ser altruísta e a ser enganador, quanto a sua resposta
à tendência altruísta ou enganadora do outro.”109
Este sistema psicológico resultante deve permitir ao indivíduo: colher os
benefícios das trocas de altruísmo; se proteger dos comportamentos enganadores,
quer flagrantes ou sutis; e praticar estes comportamentos enganadores em condições
que o ambiente façam adaptáveis. Trivers divide as características emocionais em
cinco.110
1) Amizade: Provê a recompensa emocional imediata pelo comportamento
altruísta. Motiva assim novos comportamentos altruístas e a formação de
novas relações. Quando uma máquina de sobrevivência amiga encontra uma
altruísta a relação tende a ser positiva para ambas – se é mais altruísta com
quem se é amigo e se é mais amigo de quem é altruísta.
2) Agressão moralista: Uma vez que a amizade evoluiu para motivar o
comportamento altruísta, o amigo encontra-se em uma posição vulnerável.
109
110
Idib. p. 388.
Idib. pp. 388-9.
Genes para o comportamento enganador sutil irão ser selecionados para tirar
vantagem do amigo – cria o falso amigo. Esta seleção, a seu turno, cria uma
pressão para que se selecione um mecanismo de defesa. Uma agressão
desproporcionalmente maior contra um falso amigo que haja traído é um
modo de coibir novos comportamentos trapaceiros.
3) Gratitude e simpatia: Se o custo-benefício é um importante fator para
determinar o quão adaptável é um comportamento altruísta, então deve haver
uma seleção que torne possível se sentir o quanto determinado comportamento
é custoso ou benéfico. A emoção de gratitude deve ter sido selecionada para
regular a resposta aos comportamentos altruístas, enquanto a emoção de
simpatia serve para criar um senso de compromisso entre o paciente do
comportamento e o seu realizador. Isto significa que quanto maior o possível
benefício para o paciente do comportamento, maior será a simpatia para com o
seu realizador.
4) Altruísmo reparativo e culpa: A realização de um comportamento enganador,
esteja este para ser descoberto ou já o tenha sido, com uma parte que tende a
encerrar a relação como resposta, pode ser prejudicial para ambos os
envolvidos. Assim, o que realiza o comportamento enganador deve selecionar
um modo de demonstrar evidências convincentes que não irá enganar
novamente. Esse modo é o comportamento altruísta reparativo. Já a culpa
parece ser uma emoção selecionada para motivar o que realizou o
comportamento enganador a compensar seu comportamento, evitando assim
uma futura ruptura na relação de altruísmo recíproco.
5) Senso de justiça: Em um sistema no qual múltiplos indivíduos estejam
engajados em comportamentos recíprocos, é evidente a necessidade de um
parâmetro com o qual comparar os comportamentos.111 Isso se acentua ainda
mais em um sistema aonde o altruísmo retardado é tal que a retribuição pelo
comportamento não necessariamente é realizada pelo paciente daquele
comportamento altruísta, mas por um terceiro. O senso de justiça envolve dois
componentes: de um lado um parâmetro compartilhado por outros indivíduos;
111
Recentes pesquisas feitas no Instituto Jean Nicodet, tiveram como resultado a revolta de um macaco contra
os cientistas que sempre lhe remuneravam com uma cenoura enquanto outro macaco recebia uma banana pelo
mesmo trabalho. Diga-se, aliás, que o dinheiro é uma forma de altruísmo recíprocos retardado.
e por outro lado a infração a este parâmetro estar associada à agressão
moralista.
“Filósofos da moralidade sustentam que uma organização social é justa quando
indivíduos aprovam-na mesmo desconhecendo a posição que irão ocupar dentro dela.112 Em
outras palavras, uma organização social precisa parecer igualmente justa para cada um dos
indivíduos envolvidos nela.”113
Deste modo, a distinção entre os indivíduos não se faz mais entre altruístas e
trapaceiros, mas baseada nos graus de altruísmo e trapaça que cada um utiliza no seu
comportamento – as características emocionais aparecem como moldadas pela
seleção natural para melhorar a habilidade de trapacear, de detectar trapaças, e de
restaurar relações. São a resposta dos genes ao altruísmo retardado.114
8. Sumário
Nesta seção foram-se visto diversos requisitos para o surgimento da sociedade.
Viu-se as capacidades necessárias para a vida em grupo: memória e previsão – que
possibilitaram o surgimento da aprendizagem, simulação e consciência subjetiva – e
comunicação. Viu-se as habilidades que organizam a vida em grupo: as estratégias
evolutivamente estáveis – que levaram à defesa territorial, à hierarquia de
dominância e ao pool genético. E viu-se as formas de cooperação, responsáveis por
fazer do grupo uma sociedade: o altruísmo de seleção de parentesco, o investimento
parental e o altruísmo recíproco.
Ora, uma vez dado os requisitos para se chegar à vida em sociedade, não seria
a moral uma ilusão criada pelos genes para fazer as máquinas de sobrevivência
cooperarem?
112
Parece estar se endereçando Teoria da Justiça de John Rawls.
TRIVERS, Robert. Op. cit. p. 389.
114
Interessante, segundo esta concepção as emoções teriam surgido para aprimorar a capacidade de relação
com o outro.
113
II – A moral e o direito
1. O homem e os seus imperativos
Com o desenvolvimento da explicação evolutiva acerca de como os genes
interagem para criar políticas de cooperação, surgiu a tese de que seria a moral uma
mera ilusão criada pelos genes para fazer os homens cooperarem com seus
imperativos biológicos. Neste sentido, incluem-se o filósofo da biologia Michel Ruse
e o sociobiólogo E. O. Wilson:
“(...) a moral, ou para ser mais preciso, a nossa crença na moral, é apenas uma adaptação
determinada para favorecer nossas metas de reprodução.” (...) a ética como a compreendemos é uma
ilusão que nossos genes nos impingiram para nos fazer cooperar (...) a maneira como nossa biologia
impões os seus fins é nos fazendo pensar que existe um código superior objetivo, ao qual todos nós
estamos sujeitos.” 115
Ora, esta abordagem padece de dois equívocos. O primeiro equívoco é se
assumir que, por terem sido as metas de reprodução a fonte histórica dos valores
atuais, seriam elas as principais beneficiárias das ações morais. O absurdo deste
argumento é evidente, segundo seus termos o projeto de vida dos homens deveria ser
o mesmo que o das amebas, uma vez que estas são seus ancestrais. Ora,
simplesmente não faz sentido para os genes que uma fonte histórica seja a
beneficiária de ações atuais. A perspectiva do olho-do-gene e a do olho-do-meme
justamente demonstraram que o que importa para o replicador é a sua replicação.116
O segundo equívoco é se concluir que, apenas a evolução dos genes propiciou as
políticas de cooperação que ocorrem nas sociedades. Sempre que podem, outros
replicadores também exercem sua influência nas máquinas de sobrevivência. O caso
dos homens é emblemático, nestes também os memes podem influenciar a criação de
políticas de cooperação. Portanto, é evidente que o sumo bem de um homem não
pode ser a conformidade com os imperativos genéticos – diferentemente do que
ocorre com todas as outras espécies que não hospedam memes ou outros replicadores
que não os genes.
115
RUSE, Michel, e WILSON, Edward O. The Evolution of Ethics. New Scientist, vol. 17, outubro de 1985,
pp. 50-2.
116
Na verdade não é que importe aos replicadores. Os replicadores são irracionais, eles simplesmente replicam,
e replicam até serem impedidos de se replicar.
“Mas não devemos transformar esse fato importante sobre nossas limitações biológicas na
idéia extremamente errada de que o summum bonum na origem de qualquer cadeia de raciocínio
prático é o imperativo dos nossos genes.”117
Contudo isso não significa que os imperativos genéticos deixem de influenciar
os homens. Para tanto basta se atentar que independente do quão potente possam ser
as forças culturais, elas sempre terão de agir com base nos materiais que as forças
genéticas moldarem. Já às forças culturais cabe redirecionar, explorar ou subverter os
projetos endossados pelos genes, podendo estes ser aumentados, atenuados ou
mesmo combatidos.
2. Os constituintes da moral e o seu promulgador
Desde Platão os filósofos vêm tentando organizar os imperativos dados pelas
forças culturais em um único sistema ético racionalmente defensável e universal. E
ainda hoje não se chegou a qualquer consenso. Defender racionalmente um sistema
ético implica a existência de uma razão. A pergunta que surge é: Será que existe uma
máquina de sobrevivência com uma razão tal que seja capaz de criar um sistema
ético?
Ao analisar os truques e estratégias gerais da arte de sobreviver genética
genéticas, a consciência subjetiva foi a que mais se pareceu com uma capacidade
racional – capacidade de ter e julgar decisões. Contudo, sua tomada de decisões não é
livre – é limitada pelo egoísmo dos genes. Desta maneira, a consciência subjetiva
pode até ser uma capacidade racional, mas não é uma capacidade racional livre o
bastante para criar um sistema ético – este parece precisar de uma capacidade
racional que não esteja limitada por forças genéticos. Há duas possibilidades: Esta
capacidade racional pode advir de algo com uma Razão metafísica que compreende a
tudo, incluindo-se assim os genes; ou pode ter surgido devido a algo que seja sensível
e que simplesmente compreenda mais do que apenas os genes.
É possível que a razão seja inexoravelmente metafísica: advém do toque de
Deus ou do acesso a um mundo inteligível. O problema em explicações como estas, é
que elas transferem os objetos que apreciam para um ambiente não sensível, o que
dificulta em muito o trabalho de engenharia reversa para busca de provas, algo que
117
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 496.
pode transformar a hipótese em uma especulação. Porém, indubitavelmente, muitos
dos modelos construídos com base em hipóteses metafísicas são modelos verossímeis
– alguns tão verossímeis que devem ser verdadeiros. Mas isto não impede que se
construam modelos que evitem a metafísica.
Para existir um sistema ético em um modelo não metafísico e livre do
determinismo dos genes, deve haver algo sensível que permita às máquinas de
sobrevivência terem a capacidade racional necessária para criar um sistema ético. As
máquinas de sobrevivência, em geral, têm a sua tomada de decisão – consciência
subjetiva – vinculada ao projeto de vida programado pelos genes egoístas – propagálos. Apenas os seres humanos têm sua tomada de decisão vinculada a algo outro que
não apenas o projeto de vida programado pelos genes: o ser humano está também
vinculado ao projeto dos memes. É a existência de memes, que podem tanto se opor
ao projeto de outros memes quanto podem subverter o projeto dos genes, o quê
permite ao homem ser a mais livre das máquinas de sobrevivência.118 Simplesmente
a consciência subjetiva passa a ter múltiplos projetos de vida aos quais pode ser
vinculada. Em outros termos: Graças aos memes é possível existir uma máquina de
sobrevivência livre o bastante para escolher o seu projeto de vida. Está máquina de
sobrevivência é o homem, e sua liberdade para escolher seu projeto de vida é o
resultado dos memes conferindo projetos alternativos à consciência subjetiva.
“Pessoas, de acordo com o modelo de meme que esboçamos, são estas entidades maiores,
superiores, e as políticas que elas adotam, resultantes de interações entre seus cérebros infestados de
memes, não são obrigadas a atender aos interesses de seus genes apenas – ou de seus memes apenas.
Essa é a nossa transcendência, nossa capacidade de nos ‘rebelar contra a tirania dos replicadores
egoístas’, como diz Dawkins”.119
Contudo, é inegável que o simples fato do homem passar a ter projetos de vida
alternativos, não significa absolutamente que o antigo projeto de vida programado
pelos seus genes deva ser abandonado e que um projeto programado por certo meme
118
Pode-se admitir uma espécie animal que dentro de determinadas circunstâncias opte pelo celibato
– um desequilíbrio extremo aonde há muitos machos para poucas fêmeas poderia desencadear a
decisão de machos com certas características desistirem da reprodução. Neste caso ainda que exista
uma tomada de decisão contraria aos genes dentro das máquinas genéticas celibatárias, o pool de
onde estes genes fazem parte estará sendo beneficiado, logo estes genes também. Um outro exemplo
poderiam ser as formigas, aonde a maioria operária é infértil. Estas são meras estratégias tentadas
pelo pool genético que foram selecionadas Porém o caso dos animais com mais de um replicador é
diferente. É simples, cada replicador quer ser propagado, mas nem sempre seus interesses se
coadunam. Logo, este animal terá a liberdade de escolha, poderia propagar um ou outro replicador.
Enquanto houver equivalência, nenhum deles conseguirá programar o animal.
119
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 494.
deva ser escolhido.120 A questão que se coloca é: Por quê o homem passaria a optar
por outros projetos para sua vida?
Talvez os seres humanos passem a optar por novos projetos para a sua vida
por ser esta é a decisão mais racional a ser feita. A racionalidade pode ser expressada
aqui como um princípio de não-burrice. É importante se observar que a racionalidade
como não-burrice é algo que já existe em máquinas de sobrevivência de um
replicador só. O que acontece é que o surgimento de um novo replicador capaz de
programar novos projetos leva a máquina a um estado novo, um estado de maior
liberdade.
“(...) casamento da sociobiologia com a psicologia cognitiva, recentemente conhecida pelo
nome de psicologia evolutiva (...) nos dará um bom contraste entre o bom e o mau uso do
pensamento darwiniano no estudo da natureza humana, e esclarecerá a posição sobre a racionalidade
(ou apenas a não-burrice)”.121
Ora, será que seria racional ao ser humano, esta máquina de sobrevivência
livre – capaz de transcender à tirania dos replicadores egoístas – usar justamente
desta liberdade, para escolher um projeto – tal como o de sistema ético – cujo projeto
é rejeitar projetos – o que fatalmente reduziria a sua liberdade uma vez que reduz o
número de projetos possíveis?
3. Escapando à tirania dos constituintes: a liberdade humana
Para responder à pergunta sobre se é racional o ser humano escolher um
projeto – tal como o de um sistema ético – que restrinja sua liberdade, é necessário
antes se atentar para o quão abrangente é a sua liberdade.122 Para explicar a
abragência da liberdade humana – a capacidade de transcender à tirania dos
replicadores egoístas – far-se-á uma recapitulação de tudo o que foi dito.
Tanto os genes quanto os memes programam os seus veículos de
sobrevivência com o projeto de vida que deveriam seguir. A fim de realizar este
projeto de vida, expressões fenótipas – projetos de sobrevivência – são criados.123
Ambos os projetos têm como escopo o veículo de sobrevivência. O veículo de
120
Equivale ao famoso ditado: “em time que está ganhando não se mexe.”
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 512.
122
A resposta sobre se é racional um sistema moral é aqui adiada pela primeira vez.
123
O projeto de vida das gazelas é propagar os seus genes. E para tanto utiliza de uma adaptação – suas pernas
– que têm como projeto correrem; o movimento é um truque muito explorado pelos genes. O projeto de
sobrevivência: ter pernas para se movimentar é a expressão fenótipa de alguns genes que através da estratégia
do conjunto evolutivamente estável, costumam estar presentes nas gazelas – é sempre possível uma mutação.
121
sobrevivência dos genes são as máquinas de sobrevivência. O veículo de
sobrevivência dos memes são os cérebros de uma dessas máquinas de sobrevivência:
o homem. Os cérebro dos seres humanos são tão parte da máquina de sobrevivência
humana quanto a garganta o é. É, portanto razoável se admitir que tal como a
garganta humana pode ser infectada, o cérebro humano também o possa ser. Chamase meme o que infecta o cérebro humano. Os memes são tais como os genes,
replicadores. Assim, enquanto o projeto de vida das máquinas de sobrevivência é
propagar seus genes, o projeto de vida dos cérebros humanos é propagar seus memes.
Como os cérebros são também parte da máquina de sobrevivência humana, então os
cérebros humanos também têm por projeto de vida propagar os genes da sua máquina
de sobrevivência. Esta recapitulação remete a um ponto fundamental. Os memes têm
como caldo primitivo uma máquina de sobrevivência construída por genes. É isto que
possibilita aos memes poderem redirecionar, explorar ou subverter os projetos
endossados pelos genes, podendo aumentar, atenuar ou mesmo combater os produtos
dos truques e estratégias gerais da arte de sobreviver genética – memória, previsão,
aprendizagem,
simulação,
consciência
subjetiva,
comunicação,
estratégias
evolutivamente estáveis, defesa territorial, hierarquia de dominância, pool genético,
altruísmo de seleção de parentesco, investimento parental e altruísmo recíproco.
Toda esta recapitulação foi feita para se deixar bem claro um outro ponto
fundamental: Se um sistema ético racional existir, ele será uma construção memética
sobre alicerces genéticos. É esta necessidade de genes e memes que explica porque
apenas o homem pode construir um sistema ético. Com isto se termina a
recapitulação e se retoma a pergunta: Por quê o ser humano, esta máquinas de
sobrevivência livre – capaz de transcender à tirania dos genes e memes – optaria por
uma construção que restringe a sua liberdade?
A resposta é deveras óbvia: Porque mesmo esta máquina de sobrevivência
livre, que é o ser humano, não é tão livre assim. A seleção dos genes é realizada pela
seleção natural. Os memes, tal como os genes, são replicadores, e por isso também
sujeitos à seleção natural. Este fato não é tão surpreendente quanto se possa
imaginar: mesmo entre pessoas que desconhecem a perspectiva do olho-do-meme se
aventa a possibilidade de algum mecanismo externo ao homem selecionar suas idéias
– seus memes. Esta foi uma situação bem compreendida por Trivers: “Muita gente
tem apontado que há uma similaridade entre evolução genética e as inovações
mentais humanas.”124 Portanto, o ser humano transcender à tirania dos replicadores
egoístas não significa que tenha transcendido também à seleção natural. Isto porque a
seleção natural não incide apenas sobre a tirania dos replicadores, mas sobre os
replicadores, seus veículos, e tudo o que existe.125 Antes de responder a pergunta
sobre se é racional o ser humano escolher um projeto – tal como o de um sistema
moral – que limita ainda mais a sua liberdade já limitada pela seleção natural, faz-se
preciso responder à uma outra pergunta:126 Por quê a seleção natural limita a
liberdade humana, e o como isso importa à racionalidade, na escolha por um projeto?
4. A seleção natural e a liberdade humana
O projeto de Darwin pode ser dividido em dois: provar que as máquinas de
sobrevivência que existem hoje eram descendentes de outras anteriores – ou seja, que
havia evolução – e mostrar porquê esta evolução ocorria.
“Se, no longo decorrer das eras e sob diversas condições de vida, os seres orgânicos variam
nos diferentes segmentos de sua organização, e considero isso incontestável; se, devido à grande
capacidade de crescimento geométrico de cada espécie, houver uma séria luta pela vida em alguma
era, estação ou ano, e isso certamente não se pode contestar; então, considerando a infinita
complexidade das relações de todos os seres orgânicos uns com os outros e com suas condições de
existência, fazendo com que uma diversidade infinita na estrutura, na constituição e nos hábitos lhe
seja vantajosa, penso que seria extraordinário não ter ocorrido nenhuma variação útil para o bemestar de cada ser, da mesma forma como tantas variações úteis ocorreram para o homem. Mas se
ocorrem variações úteis a qualquer ser orgânico, certamente os indivíduos assim caracterizados terão
mais chances de se preservar na luta pela vida; e, segundo o sólido princípio da hereditariedade, eles
tenderão a ter uma prole com as mesmas características. A este princípio de preservação eu chamei,
querendo ser breve, de Seleção Natural.”127
Ora, a grande idéia de Darwin não é a evolução, mas evolução pela seleção
natural.128 E o mais impressionante, Darwin criou este conceito mesmo sem conhecer
a teoria genética de Gregor Mendel.129 Mas foi apenas com a introdução do conceito
de gene que a teoria darwinista passou a ter uma unidade adequada de
hereditariedade.
124
TRIVERS, Robert. Op. cit. p. 391.
Biosfera, infosfera, e tudo o mais que existir no mundo sensível.
126
A resposta sobre se é racional um sistema moral é aqui adiada uma segunda vez.
127
DARWIN, Charles. Op. cit.
128
O primeiro a registrar a idéia de seleção natural foi Patrick Matthew em Naval timber and arboriculture.
Darwin apesar de desconhecer a sua obra à época que escreveu A Origem das Espécies, reconhece-o.
129
Para Dennett a síntese de Gregor Mendel e Charles Darwin só ocorreu na década de 1940, com os trabalhos
de Theodosius Dobzhansky, Julian Huxley e Ernst Mayr.
125
“Darwin estava oferecendo a um mundo cético o que podemos chamar de esquema de
enriquecimento lento, um esquema para tirar do Caos um Projeto sem a ajuda da Mente (...) Darwin
havia descoberto o poder de um algoritmo.”130
Apresentar a seleção natural como uma classe de algoritmos131, como fez
Darwin, significa dizer que a seleção natural é um tipo de processo formal que
produz um determinado resultado sempre que posto para funcionar. As três
características-chave dos algoritmos são:132
1) Neutralidade do substrato: a eficiência do procedimento deve-se à sua
estrutura e não à efeitos casuais dos materiais utilizados para a comprovação.
2) Irracionalidade subjacente: embora o desenho do procedimento possa parecer
genial, cada uma das etapas, bem como a transição entre elas, é simples o
bastante para um idiota obediente fazer ou para um dispositivo totalmente
mecânico executar – há uma decomposição do processo em etapas repetitivas
simplíssimas.
3) Resultados garantidos: seja o que for que o algoritmo fizer, ele o faz sempre –
o algoritmo é uma receita infalível.
Uma vez que o conceito de algoritmo foi aplicado com sucesso à seleção
natural, Dennett reformula a idéia de Darwin: “A vida na Terra teve origem há
bilhões de anos em uma única árvore ramificadora – a árvore da Vida – por um
processo algoritmo qualquer.”133 Ou seja, sendo um algoritmo, a seleção natural pode
ter adotado a tática de gerar ao acaso um candidato e depois testá-lo mecanicamente.
Este procedimento quando aplicado a um conjunto de competidores garante a
identificação de um vencedor com as propriedades necessárias para avançar até uma
nova etapa do torneio, na qual um novo teste ocorre.
Os algoritmos podem fazer dois tipos torneios: os de sorte; e os de habilidade.
Os torneios de sorte têm o ganhador selecionado ao acaso – o fato de alguém ser o
vencedor em uma etapa não indica qualquer propensão a ser ganhador em uma
outra.134 Já nos torneios de habilidade o critério é mais restrito do que apenas ter sorte
– há algo nos competidores que faz com que um se saia melhor do que o outro.135
130
DENNETT, Daniel C. Op. cit. pp. 51-2.
Darwin não descobriu um algoritmo, mas vários algoritmos relacionados.
132
Idib., pp. 51-4.
133
Idib., p. 53.
134
É o caso de se ganhar na loteria. Aqui o ganhador não tem uma probabilidade maior a ganhar novamente.
135
É como os torneios de esportes funcionam.
131
Contudo, é importante se atentar que o poder de um torneio discriminar diferenças de
habilidade com o passar do tempo pode ser diminuído por catástrofes acidentais. Por
isso em uma competição real a seleção de um vencedor envolverá tanto habilidade
quanto sorte, variando, no entanto, os coeficientes de cada um na determinação do
resultado.
O interessante da relação do algoritmo com o resultado obtido – no caso de
um torneio, um vencedor – é que o algoritmo é indiferente ao resultado.
Simplesmente os algoritmos não precisam de objetivos ou propósitos, eles “fazem o
que fazem, e fazem isso sempre.”136 Isso desmistifica um dos mais arraigados memes
da cultura ocidental: o meme de que o homem foi escolhido, dentre todas as
máquinas de sobrevivência, por um propósito maior. O ser humano foi produzido por
um processo algorítmico, e este processo algorítmico não tinha qualquer propósito: O
ser humano foi produzido como é porque uma série de torneios ocorreram –
envolvendo assim o acaso – o que levou à seleção de certos genes, que tendo certas
tentativas de truques e estratégias selecionadas, resultaram em um pool genético de
uma máquina de sobrevivência, algo que possibilitou o surgimento de um outro
replicador – os memes – e que veio a resultar no surgimento do homem. Stephen Jay
Gould inclusive parece ter demonstrado que, se fosse possível realizar o processo de
seleção natural do início uma segunda vez, a probabilidade do homem existir seria
infinitesimal.137 Algo que Dennett considera “ indubitavelmente verdadeiro.”138
Portanto, uma vez que a evolução é fruto de um processo algoritmo – um
processo irracional e sem propósito – a liberdade do homem da tirania dos
replicadores egoístas não permite à sua racionalidade encontrar nada ao que se
agarrar além dos genes e memes. A esperança de se encontrar um skyhook139 moral
que pudesse proporcionar ao homem um propósito maior aos genes e memes é
frustrada pelo descobrimento de que além só há um processo irracional e contínuo.
Um processo que seleciona o mais apto, e o seleciona sempre.140 A seleção natural
pode até explicar o porquê dos constituintes da moral serem os genes e os memes, e
136
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 58.
. GOULD. Stephen Jay. The burguess shale and the nature of history Apud. DENNETT, Op. cit., pp. 58-9.
138
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 59.
139
Artifício imaginário para fixação de algo no céu – equivaleria a usar um degrau que não existe para dar um
passo, e depois dizer que o passo tem fundamento.
140
Expressar isto matematicamente seria: sobrevivência do mais apton.
137
até confere força ao argumento de que o ser humano é um caldo primitivo de
memes,141 mas não parece poder explicar por quê se deveria escolher um projeto que
limitasse outros projetos. É hora de voltar à pergunta já por duas vezes adiada: É
racional o ser humano, esta máquinas de sobrevivência livre – capaz de transcender
ao projeto de genes e memes – escolher um projeto, tal como um sistema moral, que
restrinja ainda mais a sua liberdade já restringida pela classe de algoritmos que é a
seleção natural?
“(...) a verdadeira biosfera é muito mais sofisticada, em muitas grandezas de magnitude. Isso
pode ser realmente o resultado apenas de uma sucessão de processos algorítmicos alimentando-se ao
acaso? E se assim o for, quem planejou esta sucessão? Ninguém. Ela mesma é produto de um
processo algorítmico cego. (...) Esta idéia, de que todos os frutos da evolução podem ser explicados
como produtos de um processo algorítmico, é a perigosa idéia de Darwin.”142
5. Condições de possibilidade do sistema ético e da moral
A resposta para porque é racional escolher um projeto – tal como o de sistema
moral – que restringe a liberdade para escolha de projetos é agora assaz óbvia: Será
racional escolher um projeto que restrinja a liberdade caso este confira vantagens
evolutivas – tal como otimizar o comportamento em sociedade. Ora, o sistema ético é
justamente um projeto que restringir a liberdade em troca da otimização do
comportamento em sociedade. Em outros termos, o projeto de sistema ético é um
bom meme – é um meme que tende a se replicar. Por mais que o ser humano seja
livre para não escolher o projeto dado por esse meme, é racional que o escolha – e
caso não o faça a seleção natural se assegurará de corrigir a burrice de não tê-lo
escolhido. Para tanto, a seleção natural simplesmente seleciona os seres humanos
com bons projetos.
“Paley143 estava certo ao dizer que era maravilhoso explicar um Projeto, mas também que
para haver um Projeto era preciso haver Inteligência. Só lhe faltou – e Darwin forneceu – a idéia de
que esta Inteligência podia ser partida em pedacinhos, tão minúsculos e burros que nem podiam ser
considerados inteligência, e depois distribuídos pelo espaço e pelo tempo em uma gigantesca rede de
processos algorítmicos.”144
141
Se não há qualquer propósito maior, por quê o ser humano pode ter idéias? Porque elas são moléculas
replicadores que surgiram naturalmente conjuntamente ao surgimento do homem – que surgiu com a
modificação do pool genético de um primata: assim ocorre a evolução.
142
DENNETT. Daniel C. Op. cit. p. 62.
143
William Paley, autor de Theology: or evidences of the existence and attributes of the deity.
144
DENNETT. Daniel C. Op. cit. pp. 139-40.
Mas, o fato do projeto de restringir a liberdade em troca da otimização do
comportamento em sociedade ser um bom projeto, isto significa que permanecer
livre é um projeto ruim? Esta é mesma pergunta que Hobbes e Nietzsche tentaram
responder, cada um com uma just so story145. Em um modelo não metafísico, livre de
qualquer determinismo, no qual a seleção natural é um algoritmo e a racionalidade
equivale a não-burrice, não há nada que garanta ser a otimização do comportamento
em sociedade um projeto melhor do que o projeto de ser livre. Aliás, tampouco há
algo que garanta que estar vivo é melhor do que estar morto. Simplesmente este
modelo é indiferente há julgamentos de valor – não há um propósito maior nos
projetos, estes são selecionados simplesmente porque são melhores adaptados ao seu
ambiente e contexto histórico.146 Ora, mas então é possível seres humanos que optem
pela liberdade – é possível seres humanos sem um sistema moral? No que concerne
ao ser humano, o que ocorre é que ele só tem duas escolhas: ou ele se opõe à vida em
sociedade e, consequentemente deixa de ser selecionado pela seleção natural; ou ele
segue a vida em sociedade e necessariamente cria um sistema ético. É razoável
admitir que muitos foram os ermitões que preferiram uma vida solitária, e que a
tiveram.147 Porém, é flagrante que a maioria optou pela vida em sociedade, fato que
em nada importa ser este projeto melhor – indica apenas que é um projeto que se
propaga bem. Mas uma afirmação feita demanda maiores esclarecimentos: Por quê o
homem viver em sociedade necessariamente leva à criação de um sistema ético, e
continuando a investigação, agora mais focada: Por quê esse sistema ético seria
escolhido?
O ser humano é uma máquina de sobrevivência com genes que a equiparam
com
memória,
previsão,
aprendizagem,
simulação,
consciência
subjetiva,
comunicação, estratégias evolutivamente estáveis, defesa territorial, hierarquia de
dominância, pool genético, altruísmo de seleção de parentesco, investimento parental
e altruísmo recíproco, e ainda pode ser infectada com memes que otimizem estes
truques e estratégias gerais da arte de sobreviver genética. Quando o ser humano opta
145
Livro de Rudyard Kipling, Just So Stories, inspirou um rótulo dado por Lewontin e Gould à explicações tão
boas que parecem ser presumivelmente verdadeiras, não sendo por isso testadas.
146
O celibato pode ser um bom projeto em meio a grandes populações, mas dificilmente este meme resistiria
em um grupo pequeno – ou o meme seria abandonado pelo grupo ou o próprio grupo com o tempo deixaria de
existir levando consigo o memes.
147
Diga-se que esta é uma decisão exclusivamente memética.
por viver em sociedade, ele está invariavelmente colocando os projetos dos seus
memes em contato com os projetos dos seus genes que permitem a vida em
sociedade.148 Com este contato, os memes que infectam um ser humano,
imediatamente passam a criar projetos que redirecionem, explorem, ou subvertem os
projetos dos seus genes.149 Um desses projetos meméticos poderia ser modificar150 o
projeto do conjunto evolutivamente estável de genes que permitem a vida em
sociedade.151 Outro projeto poderia ser criar um amálgama de memes que tivesse
como projeto filtrar os memes que tem como projeto modificar os projetos dos genes
que integram o conjunto evolutivamente estável que torna possível a vida em
sociedade. Em outras palavras: um projeto memético possível é a criação de um
amálgama de memes no qual todos os memes têm em comum um projeto: filtrar os
memes que possam modificar a vida em sociedade. Este projeto não significa que
todos os memes teriam o mesmo projeto – neste caso bastaria um meme – mas que
um meme cujo projeto é filtrar os memes com projetos de modificar a defesa
territorial, poderia se encadear a um meme cujo projeto é filtrar os memes com
projetos de modificar o investimento parental. Esta loci encadeados de memes-filtrode-memes, ao sofrer com a seleção natural tende a criar um conjunto de memes cujo
projeto é filtrar os memes que têm como projeto modificar a vida em sociedade. Ou
seja, a seleção do meme cujo projeto é um amálgama de filtros meméticos para a
vida em sociedade parece conduzir a um conjunto evolutivamente estável de memes
filtradores de memes. Este conjunto evolutivamente estável é o que usualmente se
chama de sistema ético, e o meme que o expressa é chamado de moral.152 Mas o que
garante que o projeto memético de modificar o projeto do conjunto evolutivamente
estável de genes que permitem a vida em sociedade, e que o projeto memético de
criar um conjunto evolutivamente estável de memes que tivesse como projeto filtrar
os memes que tem como projeto modificar os projetos dos genes que integram o
conjunto evolutivamente estável que torna possível a vida em sociedade, não sejam
148
O termo técnico para projetos seria “expressões fenótipas”.
As expressões fenótipas dos genes.
150
Quer seja direcionando, explorando, ou mesmo subvertendo.
151
A modificação memética das expressões fenótipas do conjunto evolutivamente estável genético, poderia
levar até mesmo a mudanças no conjunto evolutivamente estável – seleção de genes outros que tenham
fenótipos que mais se enquadrem na nova expressão fenótipa do conjunto evolutivamente estável.
152
Poder-se-ia chamar de metameme os memes que tem como projeto, expressar o projeto de outros memes. A
moral é portanto, um metameme.
149
apenas possíveis, mas também existam – em outras palavras: o que garante a
existência de um sistema moral e da moral propriamente dita? Aparentemente é a
afirmação de que todo homem que utilizar sua capacidade genética de viver em
sociedade imediatamente acionará a criação de um sistema moral.153 Assim se retorna
a pergunta: O quê faz conjuntos evolutivamente estáveis que filtram os memes com
projetos acerca de interação social – sistema ético – surgirem sempre que truques e
estratégias gerais da arte de sobreviver genética que realizam a interação social e a
isto se acrescenta, e por quê surge de imediato?
O que ocorre com o ser humano é que, enquanto ele estiver vivo ele estará
criando e sendo infectado por memes – tal como o ser humano não pode se negar a
ter genes, ele também não pode se negar a ter memes.154 Mas o fato de estar
continuamente criando e escolhendo memes leva necessariamente o ser humano à
criar um sistema ético? A resposta a esta pergunta será mais facilmente explicada
caso se inverta a pergunta: É possível existir um ser humano sem um sistema ético?
Ora, o ser humano é uma máquina tão equipada para interagir socialmente que parece
razoável se admitir que basta o ato do parto para esta interação social se configurar.
Como basta a interação social para um conjunto memético evolutivamente estável ser
criada, então basta o parto para o ser humano criar um sistema ético.155 Portanto, todo
ser humano é necessariamente social e tem necessariamente um sistema ético.156 O
sistema ético é uma adaptação memética dos truques e estratégias gerais da arte de
sobreviver genética que realizam a interação social.157 Ou seja, os memes que
projetam um sistema ético estão loci encadeados com os truques e estratégias gerais
da arte de sobreviver genética – simplesmente juntos memes e genes aumentam suas
chances de serem propagados. É preciso ter cuidado para não cair em um golpe de
retórica aqui. A inversão da pergunta apenas explicou porque o ser humano
153
Isto se aplica até mesmo a seres humanos que se relacionam apenas com animais, ou mesmo, apenas com
máquinas imaginárias – espíritos ou amigos imaginários.
154
É a famosa idéia de que o ser humano não pode não-pensar (não construir memes). Ao se relacionar em
sociedade o ser humano não pode optar por se comportar como um animal que não tenha memes. Interessante
relato é o sobre os hurerístas – grupo que ao copiar a vida de uma colméia, criou uma sociedade baseada
apenas em memes.
155
Sim, bebês têm um código moral, contudo este só se tornará mais evidente quando os filtros meméticos, que
são memes, surgirem – neste início a moral serve apenas como um alocador de memes. Não à toa os jesuítas
diziam: “Dêem-nos os primeiros cinco anos da vida de uma criança, e vocês podem ficar com o resto.”
156
Aristóteles já pontuava ser o homem um animal político-social: zoôn politkon. Parece razoável que os
memes que projetam um sistema sejam assim, uma loci encadeados das características genéticas que permitem
a sociabilidade.
157
Na verdade o mais correto parece ser dizer dos fenótipos dos genes que permitem a interação social.
necessariamente cria um sistema ético. Mas não explicou por quê o sistema ético
será necessariamente um projeto escolhido pelo ser humano.
‘“A alavancagem adicionada de previsão, a diminuição de incerteza, a redução do enorme
espaço de pesquisa para uns poucos caminhos ótimos ou quase ótimos é uma medida do projeto que
se pode observar no mundo. O nome que os biólogos dão a esse estilo de raciocínio é
adaptacionismo Ele é definido (...) como a “crescente tendência na biologia evolutiva de reconstruir
ou prever eventos evolutivos admitindo que todos os caracteres estão estabelecidos na evolução por
seleção natural direta do estado mais adaptado, isto é, o estado que seja uma ‘solução’ ótima para um
‘problema’ proposto pelo ambiente.””’158
No xadrez, quando só há um único movimento capaz de evitar um xequemate, diz-se que este movimento é um movimento forçado. Este não é forçado pelas
regras do jogo ou pelas leis da física, mas pelo Hume chamou de “ditado pela
razão.”159 Contudo, melhor seria dizer que é o produto de um dos algoritmos
presentes na seleção natural: a análise custo-benefício.160 Segundo esta, um custo
pode ser tão alto que só resta uma maneira de se proceder. No caso dos seres
humanos, o custo de não escolher no seu pool memético, os memes necessários a um
sistema moral, implicaria ao ser humano não ter como filtrar quais memes o
infectariam. O ser humano escolher o projeto memético de sistema ético é o que
impede que os projetos dos seus genes sejam modificados ao acaso.161 Desta
maneira, o custo de não escolher o projeto de sistema ético, deve-se admitir, é
deveras alto – uma máquina de sobrevivência que não tenha qualquer controle sobre
os seus projetos será sumariamente eliminada pela seleção natural. Portanto, ter a
estratégia evolutivamente estável de memes que tem como projeto um sistema ético –
que é uma adaptação memética dos truques e estratégias gerais da arte de sobreviver
genética que realizam a interação social – é a condição necessária para a existência
da máquina de sobrevivência que comporte genes e memes replicadores: o homem
cria o sistema ético ao nascer, e opta por ele para sobreviver.
Ora, mas alguém poderia alegar que há cá um vício. Ao se tratar do algoritmo
da análise custo-benefício viu-se ser este um algoritmo que integra a classe dos
algoritmos que é a seleção natural. Ao se analisar a seleção natural e liberdade
humana, estabeleceu-se que a seleção natural demonstrava ser racional se escolher
158
LEWONTIN, Richard. Elementary errors about evolution. Behavioral and brain sciences, vol 6, pp. 367-8
Apud. DENNETT, Daniel C. op. cit. p. 247
159
HUME, David. Tratado da natureza do homem.
160
É o que Aristóteles identificou como os princípios gerais do raciocínio prático.
161
Um dos projetos do meme de sistema moral é ser um firewall.
um sistema ético, caso esse fosse criado. Tendo sido demonstrado como esse é criado
– é uma adaptação memética dos truques e estratégias gerais da arte de sobreviver
genética genes que realizam a interação social feita no parto – poder-se-ia então
sinalizar que, o máximo que se pode afirmar é ser racional o homem escolher o
projeto de sistema ético – mas não necessário. Desta maneira, a afirmação de que o
ser humano necessariamente opta por um projeto de sistema ético não passaria de
uma just so story.
“(...) o adaptacionista que descobre uma explicação inteligente para justificar a prevalência
de uma determinada circunstância e depois não se preocupa mais em testá-la – porque é uma história
boa demais, presumivelmente, para não ser verdade (...) Gould e Lewontin chamam tais explicações
de Just So Stories”162
Alegar ser uma just so story a afirmação de que o homem necessariamente
opta por um projeto de sistema ético, tendo como fulcro a distinção entre
racionalidade e necessidade de um movimento forçado, é o fruto de uma evidente
confusão. Pois que jamais se confunda: o fato de algo ser racional não implica que
será um movimento forçado, mas caso seja um movimento forçado, então
necessariamente será racional. “A razão dita um movimento forçado.”163 A questão
que se poderia apresentar aqui é: O que leva este movimento forçado a ocorrer? Ora,
a resposta é a mesma que ao que leva o ser humano a existir: o sistema ético e seu
metameme – a moral – são o resultado de uma série de torneios que ocorreram,
envolvendo assim o acaso, que levaram à seleção de certos genes, que tendo certas
tentativas de truques e estratégias selecionadas, resultaram em um pool genético de
uma máquina de sobrevivência, o que possibilitou o surgimento de um outro
replicador – os memes – que veio a resultar no surgimento do homem, e na
necessidade de organizar o encadeamento dos projetos dos memes com o projeto dos
genes.164 Esta é a explicação macro para porque o sistema ético e seu metameme – a
moral – são típicos do ser humano. O próximo passo é a explicação de quais as
condições para um meme integrar o sistema ético – a explicação micro.
6. Os filtros meméticos: o Direito
162
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 251.
Idib., p. 268.
164
Portanto, o sistema ético e seu metameme – a moral – são típicos do ser humano.
163
Para o senso comum, os filósofos se contentaram em ignorar os problemas
práticos da tomada de decisão em tempo real. Simplesmente, a tomada de decisão
pressionada pelo tempo pouco significaria para o projeto ético que estavam
desenhando, e portanto o sistema que estavam criando pouco teria de prático. Isto é
evidentemente uma caricatura, mas opiniões próximas destas foram, infelizmente,
largamente difundidas. É preciso assim, se mostrar como os sistemas éticos são
práticos – e estão presentes na vida cotidiana.
Em primeiro lugar, deve-se atentar que a tomada de decisão pressionada pelo
tempo é pressionada o tempo todo. E em segundo lugar, é preciso que se esteja bem
claro que o sistema ético existe para aumentar as chances do seu hospedeiro. Então
como se poderia regular, ou até mesmo melhor, estes filtros de memes que
constituem o sistema moral, que são irremediavelmente heurísticas, míopes e
pressionadas pelo tempo? Uma solução é se cercar de colegas que sejam capazes de
oferecer bons filtros meméticos. Esta questão já fora abordada por Aristóteles na
construção do seu modelo moral.
“Ela [a pessoa] necessita, portanto, ter consciência igualmente da existência de seu amigo, e
isso se verificará se viverem juntos e compartilharem suas discussões e pensamentos; parece ser este
o significado de convivência no caso dos homens, e não, como no caso do gado, pastar junto no
mesmo lugar. (...) o homem necessita de amigos virtuosos.”165
Interessante se atentar que não faria sentido se ter mais de um colega, caso
estes fossem clones – com mesmos genes e memes. Ora, mas a convivência com
outros homens pode também trazer memes que não sejam lá tão benéficos. Para tanto
o homem precisa também do que Dennett chamou “tampões de conversa.”166 – bons
memes servindo como filtros. Ou seja, é importante estar se selecionando novos
filtros meméticos à medida em que se vai filtrando – sim, é possível filtrar um filtro,
uma vez que ambos são apenas projetos de memes. Foi justamente a concorrência
entre memes presentes no pool memético para integrarem um conjunto
evolutivamente estável de memes com o projeto de construir um sistema ético, o que
levou ao surgimento do direito. O direito nada mais é, do que um meme que tem
como projeto encadear memes que têm como projeto punições ao projeto do conjunto
evolutivamente estável que tem como projeto o sistema ético. Ou seja, o direito é um
165
166
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, IX, 1170 b 10-5
DENNETT, Daniel C. Op. cit. p. 531.
metameme que tem como projeto blindar o projeto do sistema moral do qual faz
parte. Fica assim demonstrada a relação da moral com o direito.
“Talvez falar de direitos de direitos seja absurdo sobre pernas de pau, mas um bom absurdo
(...) Pode parecer que um certo tipo de ‘adoração às regras’ seja uma coisa boa, pelo menos para
agentes projetados como nós. É bom não porque exista uma certa regra, ou conjunto de regras, que
provavelmente seja a melhor, ou que sempre produza a resposta certa, mas porque ter regras
funciona – um pouco – e não ter regras não funciona.”167
7. Sumário
Nesta seção foi visto não ser a moral inatingível: a moral não é nem uma
ilusão, nem um skyhook. Muito pelo contrário, a moral existe, e existe
necessariamente em todo homem. A moral é uma adaptação memética dos truques e
estratégias gerais da arte de sobreviver genética que realizam a interação social, uma
interação social que começa com o parto. E mais, uma adaptação que é um
movimento forçado por um dos algoritmos da seleção natural: a análise custobenefício. Portanto, a moral foi criada e escolhida pelo homem para sobreviver à
seleção natural E veja-se só, funcionou!
Já o direito foi uma solução criada pelo homem para impor o seu projeto de
sistema ético aos outros homens. O direito não é uma adaptação, o direito não é um
movimento forçado, o direito é um produto da liberdade humana, é um produto da
ausência de um propósito sendo imposto ao homem. Ou seja, é um artifício pelo qual
o homem impõe o seu projeto de vida ao homem. E veja-se só, também funciona.
Mas antes que se crie um maniqueísmo – a moral é boa, o direito é ruim – que
se ressalta que não existe um Bom e um Ruim, mas o que é melhor adaptado a em
um ambiente e contexto histórico. Simplesmente, criar propósitos e impô-los a quem
os possa ter é um propósito, ao menos hodiernamente, bem adaptado. E se isto é
desagradável para poucos, então que estes batalhem pela propagação de outro
propósito, que estes poucos se tornem muitos. Mas que não esperem que esta seja
uma batalha fácil: A seleção natural não comporta apenas torneios de sorte, comporta
também torneios de habilidade.
“Enquanto os animais são rigidamente controlados pela sua biologia, o comportamento
humano é em grande parte determinado pela cultura, um sistema largamente autônomo de símbolos
e valores, originando-se de uma base biológica, mas afastando-se indefinidamente dela. Capazes de
superar ou fugir aos limites biológicos na maioria dos aspectos, as culturas podem variar entre si o
167
Idib., p. 532.
bastante para que segmentos importantes da variação sejam sendo explicados (...) seres humanos
possuem tantas engenhocas de uso geral, e aprendem a utiliza-las com tanta versatilidade, que o
aprendizado pode com freqüência ser tratado como se fosse um dom de não-burrice de meio e
conteúdo inteiramente neutro.”168
168
Idib., p. 535.
Bibliografia
Livros principais:
DENNETT, Daniel C. A perigosa idéia de Darwin. Rio de Janeiro, Rocco, 1998,
tradução Talita Rodriguez.
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Belo Horizonte, Itatiaia, 1989, tradução
Geraldo H. Florsheim.
TRIVERS, Robert. Social Evolution. Menlo Park, Benjamin/Cummings Publishing
Company, 1985, pp. 19-67, 145-60, 361-95
Livros acessórios:
HOBBES, Thomas. Leviatã-I. São Paulo, Coleção Os Pensadores, 1979, tradução
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, pp. 5-6, 78-85 (introdução e
capítulo XIV).
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Companhia das Letras, 2001, tradução, notas e posfácio Paulo César Souza.
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Nassetti, pp. 56-102 (livros III-IV).
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http://portugal.humanists.net/declaracao-humanista-secular.html.
Acesso em 07 de março de 2005.
DARWIN, Charles. De l´Origine des Espèces, 1859. Encontrado disponível em
http://www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 17 de maio de 2005.
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