O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss Hermes Antônio Pedroso UNESP - IBILCE - Departamento de Matemática - Campus de São José do Rio Preto Professor Assistente hermes@ ibilce. unesp. br Juliana Conceição Precioso UNESP - IBILCE - Departamento de Matemática - Campus de São José do Rio Preto Professora Doutora precioso@ ibilce. unesp. br Resumo: Entre todos os problemas de construção, o de traçar com régua e compasso o polígono regular de n lados sempre teve grande interesse. Para alguns valores de n, por exemplo, n = 3, 4, 5, 6 a solução é conhecida desde a antiguidade e é parte importante da geometria elementar. O pentágono regular, (n = 5), por exemplo, aparece no livro IV de Os Elementos de Euclides (330 − 275a.C.) e posteriormente, também foi usado nas construções de tábuas trigonométricas. Decidir se um polígono era construtível ou não, só foi possível com o desenvolvimento da álgebra. Para o heptágono regular, (n = 7), foi demonstrado que a construção é impossível. Aos dezenove anos, Gauss (1777-1855) investigou a construtibilidade dos p−ágonos regulares (polígonos de p lados), sendo p um número primo. Só se conhecia até então a construção para p = 3 e p = 5. Gauss descobriu n que os p−ágonos regulares são construtíveis se, e somente se, p é um número primo de Fermat, isto é, p = 22 +1. Como aplicação desse teorema, será apresentado a construção de Gauss do polígono de 17 lados. 1 Introdução As construções com régua e compasso apareceram no século V a.C., época dos pitagóricos, e tiveram enorme importância no desenvolvimento da matemática grega. Na Grécia antiga, a palavra número era usada só para os inteiros e uma fração era considerada apenas uma razão entre números, até o aparecimento dos irracionais. Estes conceitos, naturalmente, causavam dificuldades nas medidas das grandezas. A noção de número real estava ainda muito longe de ser concebida, mas, na época de Euclides uma idéia nova apareceu. As grandezas, no lugar de serem associadas a números, passaram a ser associadas a segmentos de reta e a álgebra era completamente geométrica, onde a palavra resolver era sinônimo de construir. Em Euclides, o livro IV, trata das construções de certos polígonos, inclusive o pentágono regu- lar que foi muito importante nas construções posteriores de tabelas de cordas (trigonométricas). Até o desenvolvimento da teoria dos números complexos, com a representação gráfica, não houve um progresso significativo nas construções (com régua e compasso) ditas euclidianas. Neste sentido, tem-se a contribuição de Euler (1707-1783), que além de introduzir notações importantes no assunto, desempenhou um papel fundamental na teoria das equações algébricas, pois, quando buscava resposta à questão de como extrair uma raiz enésima de um número complexo, provou que qualquer número complexo não nulo (inclusive os reais) tem exatamente n raízes enésimas. Gauss foi o primeiro a relacionar o problema da construção de polígonos regulares com as raízes da equação xn − 1 = 0, que seriam os vértices de tal polígono inscrito na circunferência. Em 1796, Gauss construiu, segundo as regras euclidianas, o polígono regular de dezessete lados. Desde os gregos antigos os geômetras sabiam construir, com régua e compasso, o triângulo equilátero e o pentágono regular, assim como outros polígonos, cujo número de lados fosse múltiplo de dois, três 110 FAMAT em Revista Figura 1.1: Leonhard Paul Euler (1707-1783) e cinco. Segundo consta, Gauss, sensibilizado com sua descoberta, disse em carta que gostaria de ter o polígono de dezessete lados esculpido em sua lápide, após sua morte. Figura 1.2: Karl Friedrich Gauss (1777-1855) “...com toda certeza eis uma bela figura que poderiam esculpir na pedra sob a qual repousará o meu corpo para o sono eterno..." O propósito deste trabalho é reconstituir etapas importantes das construções geométricas, com régua (sem marcas) e compasso, desde as construções elementares até a construção do polígono de dezessete lados. 2 Construções Geométricas Fundamentais A chave de uma compreensão mais profunda consiste em traduzir os problemas geométricos para a linguagem algébrica. Para isso, considera-se uma reta r, determinada pelos pontos A e B. Adotando a abscissa 0 para A e 1 para B, cada ponto de r determina um único número real e reciprocamente. Um segmento AP será construtível a partir de AB se o ponto P, ou, equivalentemente, sua abscissa x, for construtível. Assim, em vez de segmentos ou figuras construtíveis, considera-se números construtíveis. Esses segmentos, aparecem com frequência, como lados de um triângulo, como raios de círculos, ou como coordenadas retangulares de certos pontos. Introdução Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 2.1 111 Exemplos de Algumas Construções Básicas Dados os segmentos OA e AB de comprimentos a e b, respectivamente (segundo uma unidade √ a dada), pode-se construir a + b, a − b, r.a (em que r é qualquer número racional) , , ab e a. b Adição: Para construir a + b, traça-se uma reta e transporta-se com o compasso as distâncias a e b; então OB = a + b. Figura 2.1: Construção de a + b Subtração: Para a − b , transporta-se OA = a e AB = b , mas desta vez AB no sentido oposto a OA, então OB = a − b. Figura 2.2: Construção de a − b a Divisão: No caso , transporta-se OA = a sobre uma reta e traça-se uma segunda reta por O. 3 Sobre esta, transporta-se um segmento arbitrário OC = c, e determina-se OD = 3c. Une-se A com D e traça-se desde C uma reta paralela a AD, que corta OA em B. Os triângulos OBC e OAD são OB OB OC 1 a semelhantes, portanto, = = = e OB = . a OA OD 3 3 Figura 2.3: Construção de Faculdade de Matemática a 3 Construções Geométricas Fundamentais 112 FAMAT em Revista a Mais geralmente, para se construir transporta-se OB = b e OA = a sobre os lados de um ângulo b O, e sobre OB transporta-se OD = 1. Desde D traça-se uma paralela a AB, que corta OA em C. a Então, OC será a distância . b Figura 2.4: Construção do caso geral a b Multiplicação: Para construir 3a soma-se a + a + a, de forma análoga, pode-se construir pa, sendo p qualquer inteiro. Figura 2.5: Construção de 3a A construção de ab encontra-se ilustrada na figura abaixo, onde AD é uma paralela a BC desde A. Figura 2.6: Construção do caso geral ab Destas considerações resulta que os processos algébricos racionais - adição, subtração, multiplicação e divisão de quantidades conhecidas podem efetuar-se por meio de construções geométricas. Raiz quadrada: Dado um segmento a, pode-se construir também, utilizando só a régua (sem √ marcas) e o compasso a. Sobre uma reta transporta-se OA = a e AB = 1, traça-se uma circunferência com diâmetro OB = a + 1. Traça-se uma perpendicular a OB por A, a qual corta a circunferência em C. O triângulo OBC tem um ângulo reto em C. Construções Geométricas Fundamentais Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 113 [ = ABC \ por serem semelhantes os triângulos retângulos OAC e CAB, e tem-se, para Logo OCA x = AC, a seguinte relação √ a x = ⇒ x2 = a ⇒ x = a. x 1 Figura 2.7: Construção de 2.2 √ a Polígonos Regulares Por aplicação das operações básicas tratadas anteriormente, pode-se considerar agora alguns problemas de construção um pouco mais complicados. Decágono regular: Supondo que um decágono regular de lado x, está inscrito em uma circunferência de raio unitário, o ângulo O, vale 36◦ como pode-se notar na figura abaixo. Os outros dois ângulos do triângulo devem valer cada um 72◦ e, portanto, a bissetriz do ângulo A, divide o triângulo OAB em dois triângulos isósceles, cada um com dois lados iguais de comprimento x. O raio do círculo será dividido assim em dois segmentos x e 1 − x. Por ser OAB semelhante ao triângulo isósceles menor 1 x temos = ; ver figura 2.8. x 1−x Figura 2.8: Decágono regular √ 5−1 . Desta proporção deduz-se a equação quadrática x +x−1 = 0 e uma de suas soluções é x = 2 √ 5+1 A outra é − que é negativa, por esta razão deve ser desprezada. 2 Portanto, é possível construir o decágono regular, transportando-se a corda de comprimento x para a circunferência. 2 Pentágono regular: O pentágono regular pode ser construído, unindo dois a dois os lados do decágono regular. Faculdade de Matemática Construções Geométricas Fundamentais 114 FAMAT em Revista Figura 2.9: Construção dos lados do decágono e do pentágono regulares Os matemáticos gregos chamavam a razão OB : AB do problema anterior de razão áurea, pois consideravam que um retângulo cujos os lados estivessem nesta relação era mais agradável esteticamente. Seu valor é 1, 62 aproximadamente. De todos os polígonos regulares inscritos numa circunferência de raio r, o hexágono é o de construção mais elementar, pois o comprimento do seu lado será igual a r. Assim, o hexágono pode ser construído transportando-se a partir de um ponto da circunferência a corda de comprimento r, obtendo assim os seis vértices. Figura 2.10: Hexágono N-ágonos regulares: A partir do n-ágono regular pode-se obter o 2n-ágono regular dividindo-se 2π ao meio cada arco de comprimento . Por exemplo, do diâmetro da circunferência (o 2-ágono), n pode-se construir os polígonos de 4, 8, 16, . . . , 2n lados. Analogamente é possível obter a partir do hexágono os polígonos de 12, 24, 48 . . . lados, e a partir do decágono os polígonos de 20, 40, . . . lados. Proposição 2.1. Se sn designa o comprimento do lado do n-ágono regular, inscrito na circunferência q p unitária, então o lado do 2n-ágono regular tem comprimento s2n = 2 − 4 − s2n . 1 Demonstração. De acordo com a figura 2.11, sn = DE = 2DC, ou seja, DC = sn ; s2n = BD; AB = 2 2 e a área do triângulo ABD é 1 1 BD AD = AB CD. (2.1) 2 2 √ Uma vez que AB 2 = AD2 + BD2 segue que AD2 = AB 2 − BD2 , isto é, AD = = AB 2 − BD2 . 1 Substituindo AB = 2 e BD = s2n e CD = sn em (2.1), tem-se 2 Construções Geométricas Fundamentais Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 115 Figura 2.11: Representação de sn e s2n p 1 1 s2n AB 2 − BD2 = sn . 2 2 Portanto, sn = s2n q 4 − s22n ou s2n = s22n (4 − s22n ). (2.2) 2 2 Fazendo s22n = x, tem-se s2n = x(4 − x), ou seja, p p −x + 4x − sn = 0. Resolvendo esta equação obtem-se x = 2 − 4 − s2n . Despreza-se a solução x = = 2 + 4 − s2n , pois sn ≤ 2. Como x = s22n , então q p s2n = 2 − 4 − s2n . (2.3) Observações: sn 1. É importante notar que < s2n . Por exemplo, no caso do hexágono inscrito na circunferência 2 de raio 1, tem-se q √ s3 = s6 4 − s26 = 3 ∼ = 1, 732051. Portanto, s3 = 0, 866026 < 1 = s6 . 2 √ 2. Da fórmula (2.3) e do fato de que s4 (lado do quadrado) é igual a 2, deduz-se que s r r q q q √ √ √ s8 = 2 − 2, s16 = 2 − 2 + 2, s32 = 2 − 2 + 2 + 2, ou mais geralmente, para n > 2 s s 2n r 2− = | q √ 2 + 2 + ··· + 2. {z } n−1 raizes quadradas 3. O perímetro do 2n -ágono regular inscrito é 2n s2n . Fazendo n tender ao infinito, o 2n -ágono tende a confundir-se com a circunferência do círculo unitário, que por definição é 2π . Obtem-se assim, substituindo n − 1 por m e suprimindo o fator 2 da fórmula s r q √ m 2 2 − 2 + 2 + · · · + 2 → π quando m → ∞. | {z } m raizes quadradas Faculdade de Matemática Construções Geométricas Fundamentais 116 FAMAT em Revista Relação entre os lados do pentágono, do hexágono e do decágono regulares: Como já √ p 5 − 1 foi visto, s5 = s10 4 − s210 , em que s5 é o lado do pentágono e s10 = é o lado do decágono. 2 Assim, √ s5 = = = ∼ = √ ( 5 − 1)2 4− 4 s √ √ 5−1 (5 − 2 5 + 1) 4− 2 4 s √ √ 5 − 1 (10 + 2 5) 2 4 1, 175571. 5−1 2 s Logo, s5 ∼ = 0, 618034 e, portanto, = 1, 175571 , s10 ∼ s5 = 0, 5877855 < 0, 618034 = s10 . 2 Proposição 2.2. Os lados de um pentágono, de um hexágono e de um decágono regulares, inscritos na mesma circunferência, formam um triângulo retângulo. Demonstração. Traça-se uma circunferência de centro A0 e diâmetro B 0 D0 = 2. Determina-se M 0 , o ponto médio de A0 D0 e traça-se uma circunferência de raio M 0 E 0 por M 0 , que interceptará o diâmetro B 0 D0 em C 0 , como na figura (2.12). Figura 2.12: s25 = s210 + r2 Assim, M 0 E 02 = A0 E 02 + A0 M 02 r = r+ . 4 √ √ √ 5 5 1 5−1 Logo, M 0 E 0 = r e, portanto, A0 C 0 = M 0 C 0 − M 0 A0 = r− r= r. 2 0 0 2 2 2 Como já foi visto, A C é o lado do decágono e A0 E 0 é o lado do hexágono. Resta então mostrar que C 0 E 0 é o lado do pentágono, ou seja, s25 = s210 + r2 , em que s5 é o lado do pentágono, s10 é o lado do decágono e r é o lado do hexágono. Construções Geométricas Fundamentais Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 117 Figura 2.13: Representação dos lados do pentágono (AE) e decágono (AB) 1 1 Conforme a figura (2.13), x = OC = s10 , AD = s5 e DB = (r − s10 ). 2 2 No triângulo retângulo ADB tem-se AD2 + DB 2 = AB 2 ou Então, ou seja, 1 2 1 s + (r − s10 )2 = s210 . 4 5 4 1 2 1 2 s + (r − 2rs10 + s210 ) − s210 = 0, 4 5 4 s25 = 3s210 + 2rs10 − r2 . Como já foi visto, os triângulos OAB e ABC são semelhantes e assim, r x = , isto é, x2 + rx − r2 = 0. x r−x Como x = s10 , segue que s210 + rs10 − r2 = 0. Substituindo rs10 = r2 − s210 na equação s25 = 3s210 + 2rs10 − r2 , tem-se s25 = s210 + r2 , o que conclui a demonstração. Construção de alguns polígonos regulares: Processo prático 1. Triângulo e hexágono: Traça-se uma circunferência de centro O e diâmetro BD e determinase M , o ponto médio de BO. A seguir, traça-se o segmento AC passando pelo ponto médio M e perpendicular a BD. Assim, AC será o lado do triângulo inscrito na circunferência e o raio OD será o lado do hexágono. 2. Quadrado e octógono: Traça-se uma circunferência de centro O e diâmetro BD e considerase OA perpendicular a BD. O segmento AB é o lado do quadrado inscrito na circunferência. d interceptará a circunferência Considera-se agora, o triângulo OAB. A bissetriz por O do arco AB no ponto E e M E será o lado do octógono regular. 3. Pentágono e decágono: Traça-se uma circunferência de centro O e diâmetros BD e AC perpendiculares. Determina-se M, o ponto médio de OD e traça-se uma circunferência de raio M A por M, que interceptará o diâmetro BD em C. Os segmentos AC e OC são respectivamente, os lados do pentágono e do decágono regulares. Faculdade de Matemática Construções Geométricas Fundamentais 118 FAMAT em Revista Figura 2.14: Triângulo e hexágono Figura 2.15: Quadrado e octógono Figura 2.16: Pentágono e decágono 4. Pentadecágono: Traça-se uma circunferência de centro O e raio OC. Como o arco que suben360◦ = 24◦ , pode-se relacioná-lo aos arcos de 60◦ e 36◦ , tende um lado do pentadecágono mede 15 (24◦ = 60◦ − 36◦ ) que são respectivamente, os relativos aos lados do hexágono e do decágono. Figura 2.17: Pentadecágono Construções Geométricas Fundamentais Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 119 Após a construção por Euclides dos polígonos regulares vistos anteriormente, não houve progresso nesse assunto, até que em 1796 Gauss concluiu o seu trabalho sobre a construção do polígono de 17 lados. Posteriormente, Gauss demonstrou o teorema, a seguir, que exibe quais os possíveis polígonos regulares que são construtíveis segundo as regras euclidianas. Teorema 2.3. Um polígono regular de n lados pode ser construído com régua e compasso se, e somente se, n = 2α ou n = 2α p1 p2 · · · pr , em que p1 , p2 , · · · , pr são números primos “distintos” da forma β p = 22 + 1 e α e β são números inteiros não negativos. Consequências do Teorema 2.3: 1. É possível construir os seguintes polígonos (até 20 lados): de 3, 4, 5, 6, 8, 10, 12, 15, 16, 17 e 20 lados, incluindo todos os construidos por Euclides e com destaque para o polígono de 17 lados, que será apresentado a seguir. 2. Os polígonos regulares de 7, 9 e 27 lados, por exemplo, não são construtíveis, pois 7 = 20 .7, β mas 7 não é um primo da forma 22 + 1; 9 = 20 .3.3, mas p1 = p2 = 3; 27 = 20 .3.3.3, mas p1 = p2 = p3 = 3. 3. Os polígonos regulares com um número primo de lados são, portanto, o triângulo e o pentágono, β construidos por Euclides e os de lados n = 22 + 1. Como se sabe, n é primo para β = 0, . . . , 4, 5 ou seja, n = 3, 5, 17, 257, 65.537. Euler mostrou que para β = 5, n é composto, isto é, 22 + 1 = 641 × 6.700.417 e até o momento não foi encontrado outro número primo dessa forma. 3 A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono) Deve-se ressaltar que antes de Gauss, L. Euler (1707 − 1783) ao demonstrar que qualquer número tem n raízes enésimas, também provou que elas, quando representadas no plano complexo, formam 2π entre si, sucessivamente, ângulos de . Em outras palavras, a extração da raiz enésima da unidade n produz n números complexos, cujas representações gráficas formam um polígono regular de n lados, inscrito em uma circunferência de raio unitário. Por este motivo, a equação xn − 1 = = 0 recebeu a denominação de equação ciclotônica e foi intensamente estudada no final do século XV III e início do século XIX, principalmente pelo jovem Gauss. É interessante observar algumas propriedades das raízes enésimas da unidade. Ao denominá-las 2kπ 2π 2π 2kπ por Rk = cos + i sin , k = 0, . . . , n − 1, nota-se algo curioso; tomando R1 = cos + +i sin n n n n como ponto de partida R2 = R12 ; R3 = R13 ; . . . ; Rn−1 = R1n−1 . 2π Isto ocorre porque, ao se elevar R1 às sucessivas potências inteiras, o ângulo θ = vai sendo n multiplicado por 2, 3, 4, etc. Há ainda outros fatos relacionando as raízes enésimas. Por exemplo: Rn−1 = 1 1 1 ; Rn−2 = ; · · · ; Rn−i = ; R1 R2 Ri R1n−1 = 1 1 1 ; R1n−2 = 2 ; · · · ; R1n−i = i . R1 R1 R1 ou Faculdade de Matemática A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono) 120 FAMAT em Revista Figura 3.1: Representação das n raízes da unidade Isto acontece porque, para se calcular o inverso de um número complexo de módulo 1, que é o nosso caso, basta inverter o ângulo em relação ao eixo real. Se for considerada qualquer outra raiz, R2 , R3 , etc, como ponto de partida, vê-se que, por exemplo, R4 = R22 ou R9 = R33 , etc. Seja agora a equação x17 − 1 = 0. Descartando a raiz x = 1, a equação torna-se x16 + x15 + x14 + . . . + x4 + x3 + x2 + x + 1 = 0. Pelo que foi observado sobre as relações entre as raízes da equação acima, pode-se escrever R116 + R115 + R114 + . . . + R13 + R12 + R1 + 1 = 0 ou R16 + R15 + R14 + . . . + R3 + R2 + R1 + 1 = 0. Foi nesse ponto que se fez presente a genialidade de Gauss que usou resultados de suas pesquisas anteriores sobre congruência, um tópico por ele introduzido na teoria dos números. As 16 raízes foram colocadas em uma ordem conveniente e a razão disso pode ser compreendida ao longo da exposição. Tal ordem é R1 , R3 , R9 , R10 , R13 , R5 , R15 , R11 , R16 , R14 , R8 , R7 , R4 , R12 , R2 , R6 . Nesta sequência cada raiz é o cubo da anterior. Por exemplo, 3 (R16 ) = R116 3 = R148 = R117 R117 R114 = R114 . A partir da ordem estabelecida, as raízes foram agrupadas em dois blocos de 8 elementos y1 = R1 + R9 + R13 + R15 + R16 + R8 + R4 + R2 e y2 = R3 + R10 + R5 + R11 + R14 + R7 + R12 + R6 , e assim, tem-se y1 + y2 = −1. Uma vez que Rm Rn = Rm+n , segue que y1 y2 = 4(y1 + y2 ) = −4 e, portanto, y1 e y2 satisfazem a equação y 2 + y − 4 = 0. Considerando-se, alternadamente, os termos de y1 e y2 , encontra-se z1 = R1 + R13 + R16 + R4 , z2 = R9 + R15 + R8 + R2 e w1 = R3 + R5 + R14 + R12 , w2 = R10 + R11 + R7 + R6 . A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono)Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss Assim, z1 + z2 = y1 z1 z2 = −1 e 121 w1 + w2 = y2 w1 w2 = −1, ou seja, z1 , z2 e w1 , w2 satisfazem, respectivamente, às seguintes equações: z 2 − y1 z − 1 = 0 e w2 − y2 w − 1 = 0. Finalmente toma-se os termos de z1 da forma v1 = R1 + R16 , v2 = R13 + R4 e nota-se que v1 + v2 = z1 e v1 v2 = w1 , ou seja, v1 , v2 satisfazem a equação v 2 − z1 v + w1 = 0 e R1 , R16 satisfazem a equação r2 − v1 r + 1 = 0. Desse modo pode-se encontrar R1 resolvendo-se uma série de equações quadráticas. 2π 2π 2π 1 2π Lembrando que nesse caso, R1 = cos = cos + i sin , tem-se que, − i sin = R16 e 17 17 R1 17 17 1 2π assim v1 = R1 + = 2 cos . R1 17 Desse modo pode-se construir um polígono regular de 17 lados por um processo em que estão envolvidas somente operações racionais e extrações de raízes quadradas, ou seja, apenas com régua e compasso. 3.1 Construção geométrica do heptadecágono Considera-se inicialmente um círculo unitário e duas perpendiculares aos diâmetros AB e CD que tangenciam o círculo em A e D e se cortam em S. Figura 3.2: Primeira etapa da construção do heptadecágono 1 A seguir dividi-se AS em quatro partes iguais e toma-se AE = AS. 4 Com centro em E e raio OE traça-se um círculo que corta a reta AS em F e F 0 . Com centro em F e raio F O traça-se um círculo que corta AS em H (fora de F 0 F ), e com centro em F 0 e raio F 0 O traça-se outro círculo que corta AS em H 0 (entre F 0 e F ). Verifica-se agora, que AH = z1 e AH 0 = w1 . De fato;√como foi visto anteriormente y1 + y2 = −1 e y1 y2 = −4, ou seja, y 2 + y − 4 = 0 e assim √ −1 − 17 −1 + 17 e y2 = . y1 = 2 2 2 Por outro lado, como z − y1 z − 1 = 0 e w2 − y2 w − 1 = 0 tem-se r r 1 1 2 1 1 z1 = y1 + 1 + y1 e w1 = y2 + 1 + y22 . 2 4 2 4 Com base na figura 3.2, conclui-se: 1. Como OE = AE + OA = 2 2 Faculdade de Matemática 2 1 AS 4 2 1 17 + 1 = AS 2 + 1 = , então OE = 16 16 √ 17 . 4 A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono) 122 FAMAT em Revista √ 2. AF = EF − EA = OE − EA = 17 1 − = 4 4 √ 1 17 − 1 = y1 . 4 2 √ 3. AF = EF + AE = EF + AE = OE − EA = 0 0 4. Como OF = OA + AF = 1 + r 1 1 + y22 . 4 2 2 2 1 y1 2 2 17 1 + AS = 4 4 , então OF = √ 17 + 1 1 = − y2 . 4 2 r 1 1 + y12 . Do mesmo modo OF 0 = 4 Finalmente chega-se às duas conclusões mais importantes: 1 1 AH = AF + F H = y1 + OF = y1 + 2 2 e r 1 1 + y12 = z1 4 r 1 1 1 AH = F H − F A = F O − − y2 = 1 + y22 + y2 = w1 . 2 4 2 0 0 0 0 0 Agora, considera-se o plano cujos eixos coordenados são as retas determinadas por SA e por SD e um círculo de diâmetro DD0 , em que D = (0, 1) e D0 = (z1 , w1 ) e cujo centro M é o ponto médio de DD0 . Figura 3.3: Segunda etapa da construção do heptadecágono A equação do círculo é x− 2 2 2 w1 + 1 1 + w1 z1 2 z1 2 z2 w1 − 1 + y− = + −1 = 1 + . 2 2 2 2 4 2 Para encontrar as abscissas dos pontos G e G0 considera-se y = 0 na igualdade anterior e obtem-se x− z1 2 + 2 w1 + 1 2 2 = z12 + 4 w1 − 1 2 2 . Desenvolvendo um pouco mais, chega-se a equação x2 − z1 x + w1 = 0, ou seja, as abscissas de G e G são precisamente v1 e v2 (já referidos anteriormente) que satisfazem a equação v 2 − z1 v + w1 = 0, em que v1 > v2 > 0. p z1 + z12 − 4w1 1 2π Logo, SG = v1 = . E assim , como v1 = R1 + = 2 cos , tem-se que 2 R1 17 2π SG = 2 cos . 17 Finalmente pode-se construir o polígono de 17 lados do seguinte modo: 0 A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono)Universidade Federal de Uberlândia O problema da construção de polígonos regulares de Euclides a Gauss 123 Transporta-se SG = v1 sobre a reta que passa por O e C a partir de O, obtendo-se ON. Encontrase o ponto médio P de ON e traça-se P Q perpendicular a ON por P e assim, P Q é o lado do 2π 2π b = 2π . heptadecágono, uma vez que ON = 2 cos , ou seja, OP = cos e, portanto, P OQ 17 17 17 Figura 3.4: Etapa final da construção do heptadecágono Referências Bibliográficas [1] Aaboe, A., Episódios da História Antiga da Matemática, 2. ed., Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Matemática, 2002. [2] Bold, B., Famous Problems of Geometry, New York: Dover Publications, 1982. [3] Courant, R. e Robbins, H., Que’es la matemática?, Madrid: Aguilar, S.A. Ediciones, 1964. [4] Dörrie, H., 100 Great Problems of Elementary Mathematics, New York: Dover Publications, 1965. [5] Wagner, E., Construções Geométricas, Coleção do Professor de Matemática, SBM, 1993. Faculdade de Matemática A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono) 124 FAMAT em Revista A construção de Gauss do polígono regular de 17 lados (Heptadecágono)Universidade Federal de Uberlândia