1 GT Religião e Sociedade/ANPOCS 2. Sessão – 24/10/2002 Profa

Propaganda
1
GT Religião e Sociedade/ANPOCS
2. Sessão – 24/10/2002
Profa. Vitória Peres de Oliveira
Departamento de Ciência da Religião/ICHL
Universidade Federal de Juiz de Fora
O Islã e a política
A discussão sobre religião e política não pode deixar de abordar a questão
dentro da religião muçulmana pela singularidade do seu enfoque e sua persistência ao
longo da história. Esta relação da religião com a política no Islã, que assusta ainda na
atualidade como um contraponto ultrapassado a uma modernidade que buscou separar
as esferas política e religiosa, pode ser melhor compreendida caso se conheça um pouco
mais sobre ela. É possível também, que esta compreensão, por tratar de caso extremo,
traga alguma luz para o debate que ora se dá no Brasil entre a religião e a cultura
política.
Minha apresentação se desdobrará em duas partes. A primeira parte será
histórica e tratará sobre o Islã e sua concepção de política na época de Maomé, seu
fundador e de seus primeiros sucessores. A segunda parte situará a religião muçulmana
no Brasil, religião minoritária e de imigrantes, que ultimamente tem tido alguma
proeminência devido a ocorrências internacionais que estiveram ligadas a um uso
terrorista e político do islamismo.
A escolha de um retrato histórico para começar, se deve ao pouco conhecimento
que se tem do Islã e a necessidade de tornar relevantes certas questões que se
relacionam com os primórdios da religião e que continuam no imaginário muçulmano
como uma grande força e fonte de recursos simbólicos no presente.
O Islã e a política – tudo é sagrado
“Que terra está vazia de ti para que nos lancemos a buscar-te no
céu.” Al Hallaj1
O Islã, desde seus primórdios, apresentou uma proposta total para a vida do
crente. O seu princípio fundamental é o tawid, unidade divina que permeia tudo. A
separação entre sagrado e profano é marcada diferentemente, pois o muçulmano entende
que a única divindade é Deus, a única realidade é Deus, tudo é manifestação ou sinal
(ayat) de Deus e sagrado por sua relação com Deus. O mundo é, portanto, uma epifania
e o crente busca ver através do mundo fragmentário, a realidade transcendente que
permeia todas as coisas.
A idéia de secularização é algo estranho ao Islã e oposto ao seu princípio básico,
o tawhid. O movimento da modernidade ocidental em direção ao Islã tem se defrontado
com esse primeiro obstáculo, um obstáculo de princípio.
Historicamente, a política é parte da religião muçulmana desde o seu início,
quando Muhammed, era não apenas o líder religioso, o Profeta, mas o líder político e
militar, o legislador e o árbitro das contendas entre seu povo. A mesquita era o centro
onde todas as questões dos fiéis muçulmanos eram discutidas, tanto as mundanas quanto
as religiosas. O Profeta estava presente e atuava junto a sua primeira comunidade,
vivendo lado ao lado com todos os demais muçulmanos e atuando como seu líder
1
Místico sufi que viveu em Bagdá no século XI da nossa era ( IV século da Hégira) e foi queimado vivo
por um califa abássida.
2
inconteste, recebendo as revelações divinas que tratavam das relações do ser humano
com Deus e também dos seus deveres e obrigações para com a comunidade.
Durante a vida do Profeta, portanto, os crentes seguiam os princípios da religião
muçulmana e qualquer dúvida tinham o Profeta por perto para aclarar. Algumas das
revelações de Muhammed respondiam a perguntas que lhe haviam sido feitas. Era um
tempo muito intenso em que a comunidade partilhava da vida religiosa, política e militar
junto com o Profeta que vivia com sua família em aposentos muito simples anexos à
primeira mesquita em Medina.
Antes da morte do Profeta, o Islã já havia se expandido e muitas tribos vizinhas
se haviam convertido, mas esse caráter de proximidade e interação ainda estava bastante
presente. Sua morte trouxe consigo a grande questão: quem deveria sucedê-lo.
Muhammed não deixou dito quem deveria sucedê-lo e a comunidade se viu
diante de um enorme desafio. Este desafio foi sendo respondido com a escolha dos
companheiros mais próximos ao Profeta, entretanto a tensão resultante não ficou
resolvida e terminou levando ao principal cisma dentro do Islã, a divisão entre sunitas e
xiitas.
É interessante que, por exemplo, no cristianismo os grandes cismas foram a
partir de questões teológicas, mas no Islã a questão foi política e se deu por diferenças
de interpretação de quem deveria suceder o Profeta. Para os sunistas a sucessão seria
definida pelo mais capaz e para os xiitas, a sucessão deveria ser familiar, sendo Ali,
primo e genro do Profeta a inaugurar essa sucessão e seus descendentes a dar-lhe
prosseguimento. Os muçulmanos que se opunham a Ali, inclusive Aisha,mulher do
Profeta era parte deste grupo, o faziam por entender que Muhammed tinha tido como
meta estabelecer novos laços, laços esses que deveriam se sobrepor aos antigos laços
tribais e familiares e que a sucessão familiar seria uma volta às origens tribais préislâmicas.
Como diz a socióloga marroquina Fátima Mernissi, a história do Islã tem girado
em torno de dois eixos, eleger um chefe político justo e não equivocar-se no sentido da
interpretação da sharia, lei divina, extraída do Corão e da Sunna.
Após a morte do Profeta, a comunidade deparou-se, portanto, com esses dois
problemas: o político, a sucessão de Muhammed, e o legislativo. Para o primeiro, os
muçulmanos desenvolveram uma teoria política do califado que discute as qualidades
necessárias para ser califa, ou chefe de estado muçulmano. E entre essas qualidades está
o assegurar a justiça social, inspirado pela sharia. O chefe político deve ser justo e
guiar-se pela sharia.
O segundo problema, o legislativo, foi resolvido com o estabelecimento da
sharia, lei divina, o que se fez por meio de uma ciência religiosa, chamada Fiqh. Os
estudiosos da religião procederam com grande rigor (precursor inclusive do método
histórico) a coleta e verificação dos ditos e comportamentos do Profeta e utilizaram a
compilação dessa tradição (sunna) profética, para esclarecer o caminho do Islã.
A sharia, lei divina, se constitui a partir do Corão, dos hadiths (ditos) e sunna
(tradição) do Profeta, junto com os princípios do raciocínio analógico e consenso dos
estudiosos ou doutores da lei. Em seu conjunto forma a jurisprudência muçulmana. O
seu domínio é, como diz Mircea Eliade, “mais amplo do que os sistemas jurídicos de
tipo ocidental. Por um lado ela codifica não só as relações do fiel com a comunidade e o
Estado, mas também com Deus e com sua própria consciência. Representa a expressão
da vontade divina” (Eliade: 1984: 137, 138).
O chefe de Estado deve apoiar-se na sharia. E a sharia cobre todos os aspectos
da vida do crente: sua relação com Deus, sua relação com outras pessoas e sua relação
com a comunidade. Nela pode-se encontrar respostas: desde como fazer as abluções
3
antes das orações e se comportar na noite de núpcias, até o que fazer em caso de guerra
civil (fitna).
Duas coisas precisam entretanto, ser ressaltadas para aqueles que desconhecem a
história do Islã, uma em relação a sharia e outra em relação a sucessão política.
Nos primeiros 30 anos, desenrolou-se o governo do que é conhecido no Islã,
como os quatro califas corretamente guiados (Rashidun). Esses califas haviam sido
companheiros do Profeta e buscavam manter o modelo inicial, ainda com a capital em
Medina, cidade pequena e pouco sofisticada. O império, entretanto, continuava a se
expandir e com o Califa Omar, o segundo a suceder o Profeta, o Islã já abarcava toda a
Arábia, parte do vizinho Império Sassânida, Síria e Egito. Com a morte de Ali, o quarto
e último califa corretamente guiado, estabeleceu-se o califado Omíada e a situação
começou a mudar. A capital passou a ser Damasco e a realidade de um grande império
foi se impondo. O cargo de califa passou a ser praticamente hereditário, apesar de ainda
precisar de reconhecimento pelos líderes da comunidade, e o poder ficou nas mãos de
uma família, a Omíada.
A situação tornou-se muito mais complexa e o chefe de Estado passou a ser cada
vez mais um chefe político, deixando as questões religiosas para os estudiosos da
religião, os sheiks ou ulemás. E apesar de não haver uma separação explícita do político
e religioso, o chefe de governo era ainda o chefe da religião, cada vez mais existia uma
separação na prática.2
A segunda questão em relação a sharia, lei divina, é que ela foi codificada por
estudiosos três séculos após a morte do Profeta, ou seja no século X, mesmo assim é
considerada sagrada. Alguns historiadores entendem que o crescimento do Império
demandava uma religião mais institucionalizada que o ajudasse na tarefa de disciplinar
o povo. E, portanto, como diz Alessandro Baussani (1980), a sharia veio ao encontro de
diferentes anseios e foi o instrumento ideal para administrar um estado teocrático.
Entre esses anseios mencionados, pode-se também dizer que a sharia veio
responder ao anseio dos crentes por uma volta a um modelo exemplar num império em
expansão que tinhas por vezes outras agendas e onde o poder levava a corte a um estilo
de vida excessivamente luxuoso e muitas vezes corrompido.
O Império Islâmico conheceu seu apogeu e foi uma civilização triunfante entre
os séculos VIII e XI, a unidade política, o califado único que regia toda a comunidade
muçulmana, entretanto só resistiu até o século X. Depois de três séculos de unidade
política o califado desmoronou e a partir daí surgiram califados rivais no Egito e na
Espanha, havendo entretanto, ainda unidade social e cultural no mundo muçulmano.
Aqui, torna-se interessante observar como o Islã, em geral, olha esse passado e
como há uma tendência a mitificá-lo. Alguns idealizam a época dos quatro primeiros
califas corretamente guiados, como sendo, junto com a época do Profeta, o período
ideal, modelo exemplar a se copiar. Esquecendo que dos 4 califas corretamente guiados,
três morreram assassinados. E que a sucessão do último califa Ali foi extremamente
disputada em duas guerras civis, uma delas liderada por Aisha, uma das esposas do
Profeta.
Outros muçulmanos estendem esse período mítico ainda mais longe. É o caso do
sheik Ali, sheik brasileiro da mesquita de São Bernardo, que em entrevista a periódico3
afirmou que durante os 14 séculos do Império Islâmico (até a queda do Império
Otomano após a primeira Guerra Mundial) reinou um estado ideal. Passando por cima,
portanto, de toda uma história de muitos conflitos e embates dentro deste mundo. O imã
2
Este califado Omíada foi deposto por Abu’l ‘Abbas em 749 e com ele iniciou-se o califado Abássida,
com nova capital em Bagdá
3
Caros Amigos, ano V, n. 56, nov. 2001, pgs. 30-35.
4
do Rio de Janeiro, um sudanês criado na Líbia, defende esse estado ideal, mas
reconhece que ele se realizou apenas no período inicial do Islã e que nenhum estado
moderno vive essa situação.
Os muçulmanos de hoje ainda sonham com esse estado ideal, apesar de
normalmente o associarem, menos ambiciosamente do que o sheik Ali, à época do
Profeta e dos quatro primeiros califas. Esse estado ideal tem como marca esse chefe
político e religioso justo que inspirado na sharia, luta pela justiça social para o seu
povo.
Motivados por esse passado, muitas vezes mítico, muitos muçulmanos buscam
defender a união da política e da religião, idealizando a possibilidade de trazer com esta
união justiça social para o povo.
Entretanto, há vozes discordantes no Islã, alguns intelectuais têm sido portavozes desta tendência, sinalizando que ao lembrar o passado muita coisa tem sido
propositadamente deixada de lado, por não interessar ao presente de tantos muçulmanos
que vivem em estados autoritários. Entre elas, principalmente a liberdade que havia nos
primeiros tempos, antes da institucionalização religiosa e política que permitia ao crente
sua interpretação direta das escrituras, sem mediação. 0 que se chama em árabe ijtihad,
o estudo pessoal da lei. O fechamento da porta do ijtihad aconteceu no século X, em
todo o Islã sunita, quando houve a institucionalização da religião propiciada pela sharia.
Esses muçulmanos lembram a liberdade e o papel que desempenhava a razão e a
opinião dos fiéis no começo da história do Islã. Este espaço que promovia o fiel e o seu
conhecimento foi sendo fechado, restringido e substituído pela obediência. Dentro desse
Islã, sempre houve intelectuais, juízes apaixonados pela justiça, sufis (os místicos
muçulmanos) e poetas que se rebelaram contra califas e sua sharia, essa leitura
tremendamente autoritária da lei divina,como diz Mernissi (1992).
A tradição racionalista que defendia a razão (aql) e a opinião individual (ra’y) é
apontada como atuante nesses primeiros tempos, junto com uma tradição sediciosa que
surgiu com seitas rebeldes. Nessas seitas uma democracia espontânea é exercida e o
poder do povo estava em suprimir, ou seja assassinar os chefes políticos, sem realizar
qualquer mudança estrutural.
Essa dupla visão do passado ancorada na história e no mito convive no Islã da
atualidade e é sempre lembrada e trazida à tona pelos muçulmanos em busca de
legitimação e também de mudança.
Antes de concluir essa parte histórica, vou tratar brevemente de duas questões:
uma é sobre a utilização do modelo de Muhammed pelos fundamentalistas, que querem
lutar no presente reatualizando o modelo de luta passado do Profeta e outra é sobre a
democracia e o Islã.
Sayyid Qutb, intelectual egípcio executado pelo presidente Nasser em 1996, é
um dos mentores dessa ideologia fundamentalista baseada na carreira profética de
Muhammed. A vida do Profeta foi uma epifania, revelou um programa divino, o único
caminho para criar uma sociedade justa. O Profeta combateu no seu tempo a barbárie
pré-islâmica, como se diz em árabe a jahiliyah (idade da ignorância). Como toda época
está rodeada de ignorância e barbárie, é observando e repetindo os passos do Profeta na
atualidade que se pode derrotar a ignorância e estabelecer a sociedade islâmica.
De novo, é a idealização de um passado que leva a uma prática fundamentalista
presente onde é necessário lutar e combater a ignorância exatamente como fez o Profeta.
E segundo Sayyid Qutb, primeiro é preciso se retirar do centro da ignorância, depois
criar uma vanguarda bem disposta que possa vir a lutar, como fez Muhammed em
Meca. Retirar-se então totalmente do meio ignorante e criar uma verdadeira sociedade
islâmica, como foi Medina, um enclave de fé e aí se preparar para a batalhar. Lutar a
5
jihad confiantes no sucesso tal como o Profeta que no seu tempo conquistou Meca e
unificou a Arábia sob as leis islâmicas. 4
Este intelectual é citado por um líder da comunidade muçulmana do Rio, como
veremos na segunda parte deste trabalho, onde trato do Islã no Brasil.
Outra questão que vou levantar é a relação complexa do Islã com a democracia.
A democracia moderna não reconhece nenhuma via traçada de antemão, pois ela tiraria
a liberdade dos indivíduos. Para o Islã, entretanto, existe a sharia, lei divina, caminho
pré-estabelecido que deve ser seguido e orientar a prática democrática.
Se por um lado o muçulmano entende que só deve obediência ao Califa ou Imã
se ele for justo, o que fragiliza o poder e permite a liberdade de mudança. Por outro
lado, há a sharia que estabelece os limites da democracia e reafirma a união de todas as
instâncias da vida do crente.
Como se vê, a democracia, como o Islã a entende, tem que partir de princípios
religiosos e por eles ser guiada.
Esta breve e pontual caminhada pelo passado histórico muçulmano buscou
discutir as relações da religião muçulmana com a política e ressaltar o apego a um
passado mítico que ainda continua vivo no imaginário do muçulmano hoje.
Citando Ibn Khaldun, grande historiador árabe do século XIV:
“Desconfiemos daqueles que nos redigem narrativas bem ordenadas dos tempos
remotos(...) Estes pecam pelo gosto detestável de querer, por força, tornar claro o que é
confuso(...) A história dos homens e dos países antigos parece uma roupa cheia de
furos e cada orifício representa as coisas que ignoramos. De que serve, afinal, ostentar
um saber que dá a impressão de que o narrador conhece tudo, ao passo que o leitor
pouco sabe?”
O Islã no Brasil
“Deus é tão perfeito que as leis dele jamais poderão ser modificadas por
um homem, seja ele quem for.” Sheik Ali5
Como disse antes, no Brasil o Islã é uma religião de imigrantes e seus
descendentes, mas já se pode observar algumas conversões de brasileiros não
descendentes de imigrantes muçulmanos.
Esta parte de minha apresentação está baseada em pesquisa de campo feita com
a socióloga Cecília Mariz, nas comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro, com maior
ênfase em São Paulo. É uma pesquisa ainda incipiente e exploratória, mas que já serviu
para apontar possibilidades de reflexão e aprofundamento.
Como a pesquisa se situa no Brasil, país de tradição católica, mas um estado
secular, laico, onde a crença de cada crente é sua opção pessoal, buscamos perceber a
diferença entre o Islã como crença enquanto opção pessoal, em um estado secular, e o
Islã como religião de estado. Ser muçulmano em um país muçulmano é muito distinto
de ser muçulmano em um estado laico. Como diz Mernissi (1987) ser muçulmano em
um estado muçulmano “é um estado civil, uma constituição, um passaporte, código de
família e um código preciso de liberdades públicas”. Com certeza é muito diferente de
uma escolha pessoal em um estado civil, onde as esferas políticas e religiosas se
entendem como separadas.
4
5
Ver Armstrong, 2002.
Sheik Ali, líder da mesquita de São Bernardo em São Paulo.
6
É este dilema que nos parece fundamental para a compreensão do fenômeno e
que tende a enfraquecer ou esmaecer um pouco a religião muçulmana vivida no Brasil.
A população muçulmana do Brasil está, segundo fontes muçulmanas, em torno
de 500.0006, ou seja 0,4% da população brasileira, dos quais 219.300 encontram-se no
estado de São Paulo e destes, 200.000 filiados a Sociedade Beneficente Muçulmana da
cidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, há em torno de 5.000 em todo o estado. Há
também grupos expressivos em Mato Grosso, Paraná e Brasília e representações
menores em vários outros estados. Atualmente há também uma concentração
muçulmana significativa em Foz de Iguaçu, principalmente constituída por uma
imigração recente de palestinos.
Vou tratar aqui de duas questões que reputo interessante para o debate. Primeiro
o papel das novas lideranças que estão se formando dentro das sociedades muçulmanas
brasileiras. E segundo, o tipo de interesse que pode surgir em comunidades muçulmanas
que vivem dentro de um estado laico.
O papel das novas lideranças
É dever de um estado muçulmano prover os meios para que os muçulmanos que
vivem no exterior possam praticar a sua religião. Por isso é comum encontrar nas
grandes mesquitas, sheiks estrangeiros, sírios, egípcios, etc, que vem liderar a
comunidade muçulmana no Brasil, em geral financiados por seus governos ou pela
Arábia Saudita.
Recentemente entretanto, de uns 20 ou 15 anos para cá, começou a surgir a
tendência de enviar brasileiros, filhos de imigrantes sírios ou libaneses7, para estudar na
Arábia Saudita e fazer a faculdade de Teologia que permite que se tornem sheiks ou
doutores da lei, o que os capacita a liderar a comunidade muçulmana. Os dois sheiks,
que entrevistamos, aparentam ter menos de 40 anos e são filhos de prósperos
comerciantes libaneses de São Bernardo, ambos fazem parte da primeira geração
nascida no Brasil. Ainda adolescentes, um estava com 15 anos e o outro com 17, foram
estudar na Arábia Saudita com bolsas de estudo desse país. Eles fazem parte do
primeiro grupo de jovens brasileiros que ganharam essas bolsas. Segundo o relato, o
número de jovens que embarcou para a Arábia Saudita com eles foi bem maior, mas
muitos desistiram e voltaram ao Brasil, sem concluir os estudos.
Os dois sheiks brasileiros formados na Arábia Saudita são ligados às mesquitas
de São Bernardo e São Paulo. Eles têm sido os porta-vozes da comunidade nesses
últimos acontecimentos, prestando esclarecimentos e falando em nome dos fiéis.
Também são eles que recebem visitantes, ou pesquisadores, já que os sheiks
estrangeiros não falam português, muitas vezes sabendo apenas o árabe.
As organizações muçulmanas como a União dos Estudantes Muçulmanos do
Brasil, o Centro Internacional de Divulgação do Islã e o World Assembly of Youth são
dirigidos por esses dois sheiks.
Essas instituições são apoiadas por verbas
internacionais, principalmente enviadas pela Arábia Saudita. É a World Assembly of
Youth que organiza a peregrinação à Meca dos jovens muçulmanos no estrangeiro e é
um desses sheiks que seleciona os muçulmanos brasileiros que participam.
Esses sheiks também participam de encontros com representantes de associações
islâmicas do Brasil e América Latina. Em abril de 2000 foi organizado em São
6
Nos artigos após os atentados em Nova Iorque, os jornais falam de uma população muçulmana no Brasil
de 1.000.000 e até de 1.500.000, citando também como fonte as lideranças muçulmanas (ver Folha de São
Paulo, 23/09/2001; O Globo, 23/09/2001). Partindo dos dados do IBGE em 1991, deduz-se que havia uma
população muito menor, em torno de 22.000 muçulmanos.
7
Os muçulmanos brasileiros são em sua maioria sírios e libaneses.
7
Bernardo do Campo, onde vivem os dois sheiks, o encontro da Comissão de Estudos
para Defesa das Minorias Islâmicas, organizada pela OCI (Organização da Conferência
Islâmica).
Ao mesmo tempo que estes novos sheiks, por serem brasileiros, possibilitam
uma aproximação com a comunidade muçulmana, principalmente da segunda ou
terceira geração quando muitos já não falam o árabe dos seus pais, eles também vêm
aportando uma visão mais ortodoxa do Islã, principalmente por realizarem sua formação
na Arábia Saudita, que é um dos países muçulmanos mais estritos8.
Tanto na entrevista que fizemos com os dois sheiks, quanto nas entrevistas que
eles vêm concedendo aos jornais, percebe-se uma visão do Islã mais ortodoxa e as vezes
um leve tom missionário ou proselitista. É importante ressaltar que nas mesquitas há
bastante material de divulgação do Islã impresso e que é distribuído gratuitamente.
Os sheiks, quando conversaram conosco, procuraram sempre mostrar a justeza e
importância das regras da sharia, defendendo, por exemplo, o estilo de vida da Arábia
Saudita como vantajoso e argumentando que vale a pena sacrificar alguns aspectos da
liberdade individual tal como se vive no Brasil, para viver em segurança e criar a
família.
O sheik Ali defendeu em entrevista que a sharia não poderia ser mudada, por seu
caráter divino. Como disse ele:
“Deus é tão perfeito que as leis dele jamais poderão ser modificadas por um
homem, seja ele quem for.”
Interessante observar, que há um total esquecimento de que a sharia foi
estabelecida três séculos após a morte do Profeta pelos doutores da lei.
Também defendeu a justeza do estado muçulmano ao longo de toda sua história,
como mencionei anteriormente. O que de novo vem a reforçar uma visão mítica e até
mesmo equivocada do passado.
A pergunta que desponta é a seguinte: O papel dessas novas lideranças pode
chegar a mudar a cara da comunidade muçulmana do Brasil?
Essa é uma questão a ser observada e pesquisada. Se por um lado um discurso
mais ortodoxo, principalmente em questões morais e de costumes, que diferencie o
crente muçulmano pode chegar a ser atrativo para novos conversos. Por outro lado a
inserção social dos muçulmanos do Brasil esvazia o discurso político e de justiça social
do Islã. Os muçulmanos brasileiros (imigrantes e filhos de imigrantes de segunda e
terceira geração) já estão adaptados ao país e a maior parte deles totalmente inserida na
vida econômica e social brasileira. Isto fica ainda mais claro quando se contrasta esta
comunidade com as comunidades muçulmanas na Europa, onde o imigrante muçulmano
e seus descendentes constituem uma comunidade separada e muitas vezes marginalizada
da sociedade em que vivem.
Em pesquisa realizada por geógrafos franceses em 1991, foi constatado que a
posição financeira e o nível educacional da comunidade muçulmana brasileira estava
muito acima da média da realidade nacional. É importante lembrar ainda que os
muçulmanos que imigraram para o Brasil, principalmente os sírios e libaneses, não se
diferenciam muito fisicamente da média brasileira (morenos claros, cabelos lisos ou
levemente cacheados), o que não acontece com os imigrantes muçulmanos na Europa,
onde eles são, em geral, diferentes da média européia em termos de cor e traços físicos.
Esta inserção social e econômica parece que vem levando, ou ameaça levar a
comunidade a se diluir. Em conversa com um membro antigo e de liderança na
8
Vigora nesse país o wahhabismo, movimento considerado muito conservador mesmo entre os
muçulmanos.
8
comunidade muçulmana de São Paulo, ficava até patente o temor da possibilidade real
de um afastamento da religião por parte das novas gerações, não somente pelos
casamentos com pessoas de fora da comunidade, como por um afastamento da tradição
dos mais velhos. Sem a prática da religião e afastados da tradição familiar, como será
possível manter a comunidade.
Resta saber qual dessas tendências irá dominar, se uma diluição da comunidade
por sua profunda inserção na comunidade brasileira mais ampla. Ou se um
reavivamento da prática muçulmana a partir da mensagem reafirmada pelos novos
sheiks, que aborde mais questões morais e de comportamento, e menos questões
políticas radicais de justiça social, esvaziadas que estão dentro da comunidade devido a
situação econômica e social dos fiéis.
O ressurgimento islâmico na comunidade do Rio de Janeiro
O Islã no Brasil também parece ter buscado outras questões, questões estas que
apesar de estarem distantes da comunidade local, inserem o grupo dentro do circuito
internacional islâmico e trazem de volta e com força a questão política. É o caso da
comunidade do Rio de Janeiro.
Segundo pesquisa de Montenegro (2000) junto à comunidade do Rio de Janeiro,
haveria nesta comunidade interesse por destacar a questão da arabização versus a
desarabização ou islamização. Naturalmente esta questão não é revelante na
comunidade de São Paulo, constituída basicamente por árabes e seus descendentes. No
Rio de Janeiro, entretanto há um núcleo intelectual dentro da comunidade, que foi
basicamente o centro da pesquisa da autora, que reivindica a separação do Islã do seu
aspecto basicamente árabe, chamando atenção para o Islã, enquanto uma cultura mais
ampla e não atrelada apenas à tradição árabe originária.
Na minha opinião, apesar disto não ter sido enfatizado por Montenegro, é
importante que fique claro que esta tendência é bem restrita mesmo no seio da
comunidade carioca. Entretanto, escolhemos ressaltá-la aqui, por que ela traz consigo
algumas questões políticas ligadas ao Islamismo. Primeiro uma crítica aos estados
muçulmanos atuais que não vivem em sua inteireza a mensagem muçulmana. Junto com
esta crítica vem uma simpatia com vozes fundamentalistas. Como diz a pesquisadora o
projeto de construção social de identidade do pequeno grupo de intelectuais da
comunidade atravessa esse duplo dilema: arabismo ou islamização e o reconhecimento
ou não do fundamentalismo como categoria de auto-adscrição.
O grupo do Rio não tem sheiks ou imans vindos de países muçulmanos como o
grupo de São Paulo, segundo ela, por não aceitarem sua presença e por repelirem o
arabismo como ideologia.
A questão da política ou de um Islã político é para este grupo uma questão
redundante, já que o Islã, não é uma religião apenas, mas um sistema total ou din, como
se diz em árabe. Por ser um sistema, o político, o legal e o ideológico lhe seriam
intrínsecos e a instauração do Estado Islâmico9, o meio para efetivar a aplicação do
referido sistema. Esse grupo defende uma modernidade islâmica como distinta da
modernidade ocidental. A modernidade islâmica traria a islamização do conhecimento
mediante a compreensão de que os princípios da religião são norteadores de toda prática
do crente.
A comunidade do Rio não se alinha a um centro, que seria segundo eles
basicamente o reconhecimento da Arábia Saudita, mas estão alinhados à corrente de
9
Ver mais sobre isto em Montenegro, 2000: 270.
9
pensamento do ressurgimento islâmico. Os muçulmanos desse grupo brasileiro, por não
viverem num Estado Islâmico, têm o papel de monitorar o possível surgimento desse
Estado, seja qual for o lugar de sua constituição.
A pesquisa de Montenegro foi realizada antes dos acontecimentos do 11 de
setembro de 2001, seria interessante pesquisar agora junto a esse grupo como fica esse
alinhamento ao ressurgimento islâmico e aos projetos fundamentalistas islâmicos de
modernidade e instauração de estados. Por ser um grupo pequeno e fechado sobre si
mesmo, claro está que a sua relevância é mínima ou nenhuma, entretanto é interessante
destacar o fato de que tenham ido buscar se alinhar com um dos programas mais
radicais dentro do Islã, como o ressurgimento islâmico do egípcio Saydd Qutb10. A
proposta revolucionária de Qutb toma como exemplo a vida de Muhammed como falei
na primeira parte e segundo alguns autores é o modelo no qual tem se pautado o
terrorismo internacional ligado a Bin Laden e outros.
Dentro desse pequeno grupo pesquisado por Montenegro é bom dizer que o líder
é um brasileiro convertido, que foi criado por família com vínculos muçulmanos.Isso
me lembrou que, na nossa pesquisa de campo, um aspecto se tornava logo visível, o zelo
dos convertidos, que, em geral, era maior e mais rígido do que o dos membros
muçulmanos imigrantes e seus descendentes.
Fica registrado aqui portanto, esse interesse, dentro da comunidade muçulmana
do Rio, de um modelo radical que traz de volta a união da religião e da política, como
partes constituintes de um único todo e como projeto viável e desejado para qualquer
estado atual.
Conclusão
Esta apresentação buscou ressaltar os aspectos do Islã ligados a sua compreensão
da política como parte constitutiva da vida religiosa muçulmana. O caso brasileiro é
interessante para o estudo porque se diferencia do que acontece, principalmente nos
países europeus, e que leva a comunidade a uma prática muçulmana peculiar.
No Brasil, a prática muçulmana enfatiza, em geral, mais o aspecto religioso do
Islã, deixando de lado seus aspectos mais associados à vida política e legal do crente.
Aspectos esses pertencentes à situação daqueles que vivem a religião dentro de um
estado muçulmano. Mesmo assim é possível observar a sombra desta parte política,
constitutiva do Islã, dentro da comunidade, umas vezes muito apagada, outras vezes
menos.
De qualquer forma é observando a prática desses crentes e procurando entendêla a partir de sua tradição e em relação com o campo religioso brasileiro que se pode
aportar alguma contribuição.
10
Em Montenegro 2000: 119, Qutb é principalmente apresentado como um crítico aos movimentos de
nacionalismo árabe e proclamador, como diz ela “(de) uma “ruptura islâmica” a partir de uma leitura
“revolucionária” do Corão.” A autora também cita outros pensadores do ressurgimento como Hassan Al
Banna, fundador da “Irmandade muçulmana” no Egito em 1929.
10
BIBLIOGRAFIA CITADA
ARMSTRONG, Karen. Muhammed. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
BAUSANI, Alessandro. El Islam en su cultura. México: Fondo de Cultura Económica,
1988 (c. 1980).
ELIADE, Mircea. Teologias e místicas muçulmanas. In. História das Crenças e das
Idéias Religiosas. Tomo III. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1984.
GARCÍA-ARENAL, Mercedes. Les conversions d’Européens à l’islam dans l’histoire.
Social Compass, vol. 46, n. 3, sept. 1999.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. Das Letras, 1994.
KEPEL, Gilles. Al oeste de Alá, la penetración del Islam en Occidente . Barcelona: Ed.
Piados Iberica, 1995.
MERNISSI, Fátima. El miedo
a la modernidad Madrid: Ed. Del Oriente y del
mediterráneo, 1992.
MONTENEGRO, Sílvia. Dilemas identitários do Islam no Brasil – a comunidade
muçulmana do Rio de Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia, IFCS, UFRJ, 2000. Orient. Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti.
Download