Estranhos Helion Póvoa Neto Ali, Khaled e Karam são egípcios. Vendem pizzas e massas, mas principalmente o kebab assado no espeto rotativo da entrada da sua rosticceria-pizzaria. Aroma que atrai ao estabelecimento, dia e noite, os esfomeados da redondeza, moradores e passantes. Vindo tarde do Centro, após a longa caminhada no frio desde a estação, fica difícil resistir e não entrar para um sanduíche árabe ou uma das especialidades italianas. O lugar em si é interessante, um ponto de encontro de imigrantes e nativos, idiomas sobrepondo no ar e se misturando aos diferentes cheiros da comida. Quase sempre vou de kebab, servido pelo único não egípcio, o tunisino Mohammed - devidamente italianizado para Mimmo. Naquela noite, quando entrei e pedi meu sanduíche, Khaled servia um pedaço de pizza e discutia exaltado com um homem baixo, mal vestido, de bigode. Estrangeiro também, mas certamente não árabe. O tom de voz enfático de ambos evidenciava a polêmica. Talvez fosse o Iraque, que acabara de ser invadido. Impossível que num estabelecimento de árabes o tema não fosse abordado, era o que imaginava. Porém, ao me ver, o desconhecido interrompeu a conversa. E dirigiu-se a mim, curioso para saber de onde eu era. Ou, melhor, o que eu era. Tratava-se, aparentemente, de condição prévia para definir se eu participaria do debate. Brasiliano, respondi. "Muçulmano?", quis saber. Não, não, brasiliano. "Certo, mas... muçulmano?", insistiu, em italiano tosco, mostrando-se despreocupado com detalhes geográficos. Logo comigo, que vivo deles. Tentei explicar toscamente, também - que, tal como muitos se definem em meu país, eu não seguia nenhuma religião, não era praticante. Ele me olhou incrédulo e silenciou por alguns instantes. Como eu também queria perguntar, aproveitei e parti para a ofensiva: e você, de onde é? "Iugoslávia", foi a resposta. Iugoslávia. Uma terra das minhas curiosidades. Pela incrível diversidade do país, pela notícia das terríveis guerras recentes, pela informação que tinha sobre a migração iugoslava para a Itália. Um país - antes da separação - deste tamanhinho, para os vaidosos padrões continentais dos brasileiros, mas com tantas histórias e tradições diferentes e conflitantes, num espaço que não devia superar em extensão a nossa Minas Gerais. E no mínimo singular para quem, quando no Rio, toma um ônibus Cometa e, seis horas depois, desembarca numa cidade que, de estranho, pronuncia apenas o "r" diferente e pede "um chopps, dois pastel". Diferenças que, entre brasileiros, rendem tanta conversa e mal-entendido, mas que não se comparam ao que ocorria na antiga Iugoslávia. Onde, após um deslocamento dessa mesma distância você estaria provavelmente desembarcando numa região com outra religião majoritária, com outro idioma falado ou mesmo com outro alfabeto. E sabendo que, apenas pela sua origem, poderia estar sendo encarado, ali, como inimigo histórico. Grandes tinham sido, sempre, as minhas perplexidades quanto àquela terra. Pois agora estava frente a frente com um autêntico iugoslavo. Só que, para ele, eu era o estranho. "Você é judeu, não é?", recomeçou. Não... "E não é Cristão Católico? Bem, então é muçulmano", concluiu. Resolvi facilitar as coisas: bem, a minha origem familiar é católica, mas não pratico a religião, capisce? Ele balançou a cabeça: "como você pode não ser da religião da sua família? Claro que é!" Olhando melhor, reparou na aliança em meu dedo. Com ar triunfante, apontou-a e perguntou: "É casado, certo? Onde se casou, então?" Quando tentei explicar que não me casara em nenhum templo, a sua paciência pareceu estar perto do fim. "Cristão Ortodoxo?", arriscou uma última vez, com o ar de quem tinha enfim descoberto o meu segredo. Após mais uma negativa, era minha vez de novo. E decidi insistir quanto aos detalhes geográficos que ele tanto desprezava. Afinal a Iugoslávia me fascinava, entre outras coisas, justamente por ser tão diversa, e eu ainda não satisfizera devidamente a curiosidade sobre o homenzinho. Então perguntei de qual região ele era. "Muçulmano!" fez ele, subindo ainda mais o tom de voz. Seria possível que eu custasse tanto a entender coisa tão evidente? E ao perceber que eu perguntara a região, não a religião, corrigiu-se: "Ah, sim, Montenegro. Mas... muçulmano!", emendou por fim. Deixava assim claro, de uma vez por todas, o que lhe parecia realmente relevante. O resto era o resto. Convidou-me então para tomar algo e conversar "a sério" sobre Deus. Agradeci mas resolvi me despedir, considerando que era tarde e que meu interlocutor, embora indiscutivelmente muçulmano, parecia já ter tomado suficientes doses não sei bem do que, mas certamente nada que o Profeta aprovaria. Quando saí, após pagar o kebab, pensei em como o iugoslavo e eu tínhamos, ambos, nos frustrado com a breve conversa. Pois o que parecia caro a um era banal para o outro, e vice-versa. Cada um buscara extrair do outro o que lhe parecia verdadeiramente importante em termos de um posicionamento diante da vida. Cada um se decepcionara com a definição fornecida por esse outro. Cada um exprimira, ainda que brevemente, um juízo sobre as delimitações e os pertencimentos que realmente contavam. E se olhara intrigado, mais uma vez, no espelho do outro, do estranho. Do incompreensível. Daquele abismo onde nascem tanto os grandes desafios quanto as grandes tragédias. Roma, março de 2003 (finalizado em 12 de março de 2004) Helion Póvoa Neto nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, em 1959 e é geógrafo. Interessa-se pelas migrações no mundo atual, em suas dimensões cultural e política. É professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena um núcleo de Estudos Migratórios (NIEMRJ). Atualmente, finaliza em Roma, Itália, um período de pesquisa sobre as políticas de recepção a imigrantes e refugiados