Fenocópia: nem tudo é o que parece RELATO DE CASO Descritores Neoplasias da mama Gene BRCA1 Fenótipo Keywords Breast neoplasms BRCA1 gene Phenotype Fenocopy: not everything is what seems to be Antonio Abilio Santa Rosa1, Mariana Costa Abad2, José Cláudio Casali da Rocha3 RESUMO O câncer de mama e de ovário são apresentações fenotípicas altamente prevalentes da síndrome de câncer de mama e ovário hereditário (HBOC) associada com mutações germinativas nos genes BRCA1, BRCA2, RAD51C, PALB2, entre outros. Fenocópia é o individuo cujo fenótipo, originado por influências principalmente ambientais, é idêntico ao fenótipo produzido por um determinado genótipo, de certo modo mimetizando um fenótipo produzido por um gene. Neste artigo apresentamos um caso clínico de uma mulher com carcinoma ductal in situ (CDIS) após ooforectomia bilateral redutora de risco, pertencente a uma família com HBOC e cujo teste genético BRCA1 foi inconclusivo. Insistimos no rastreamento genético em outro membro da família afetado. A investigação genética feita em sua sobrinha com câncer de ovário foi conclusiva, com a identificação da mutação c.5083del19 no gene BRCA1. Concluímos que a mulher com CDIS era de fato uma fenocópia, tendo desenvolvido um CDIS esporádico (não hereditário). ABSTRACT Breast and ovary cancers are highly prevalent phenotypes of the hereditary breast and ovary cancer syndrome (HBOC) associated with germline mutations in one of the susceptible genes BRCA1, BRCA2, RAD51C, PALB2, among others. A phenocopy is an individual whose phenotype, under a particular environmental condition, is identical to the one of another individual whose phenotype is determined by the genotype, someway mimicking the phenotype produced by a gene. In this article we described a woman with breast ductal carcinoma in situ (DCIS) after profilactic bilateral oophorectomy belonging to a family with HBOC whose genetic testing BRCA1 was inconclusive. We insisted with the genetic screening of another affected family member. The genetic testing of her nephew with ovary cancer was clarifying, with the identification of deleterious mutation c.5083del19 in the BRCA1 gene. We concluded that the woman with CDIS was in fact a phenocopy, and developed a sporadic (not hereditary) CDIS. Trabalho realizado na Clinica COI – Rio de Janeiro (RJ) e no CGEN – Centro de Genética – São Paulo (SP), Brasil. 1 Clínica COI e Hospital Federal de Bonsucesso – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 2 Clínica COI – Rio de Janeiro (RJ); Instituto Oncológico, Hospital Nove de Julho – Juiz de Fora (MG), Brasil. 3 Clínica COI – Rio de Janeiro (RJ); Centro de Genética (CGEN) – São Paulo (SP); Hospital Erasto Gaertner e Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) – Curitiba (PR), Brasil. Endereço para correspondência: José Cláudio Casali Da Rocha – Rua Barata Ribeiro, 490, cj. 77 – CEP: 01308-000 – São Paulo (SP), Brasil – E-mail: [email protected] Conflito de interesse: nada a declarar. Recebido em: 15/05/2012. Aceito em: 15/01/2013. 34 Rosa AAS, Abad MC, Rocha JCC Introdução O câncer de mama constitui-se na segunda neoplasia mais frequente no mundo e a mais incidente em mulheres. Em 2008 representou 23% do total de casos de câncer, com aproximadamente 1,4 milhão de casos novos, sendo a quinta causa de morte por câncer (458.000 óbitos). Na população feminina, corresponde à causa mais frequente de morte por câncer1. No Brasil, excluídos os tumores de pele não melanoma, o câncer de mama também é o mais incidente em mulheres de todas as regiões, exceto na região Norte, onde o câncer do colo do útero ocupa a primeira posição. Para o ano de 2012 foram estimados 52.680 casos novos, que representam uma taxa de incidência de 52 casos por 100.000 mulheres2. Tais taxas são elevadas em nosso país em virtude de grande parte dos casos ainda serem diagnosticados em estádios avançados. Na população mundial, a sobrevida média após cinco anos é de 61%3. Por ser relativamente raro antes dos 35 anos, a partir daí observa-se um crescimento progressivo em sua incidência tanto nos países desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento. Como fatores que elevam significativamente o risco, podemos citar obesidade, sedentarismo, menarca precoce, menopausa tardia, história familiar de câncer e radioterapia torácica prévia. Nesse aspecto, pacientes que sobrevivem a tumores malignos na juventude e tratados com radioterapia na região torácica têm o câncer de mama como o tumor secundário mais frequente4. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nas décadas de 1960 e 1970 registrou-se um aumento de dez vezes nas taxas de incidência ajustadas por idade nos Registros de Câncer de Base Populacional de diversos continentes. Tal aumento de incidência também se observa ao longo do tempo. Mesmo levando-se em consideração o grande impacto representado pela adoção do rastreamento por mamografia5, nos Estados Unidos o risco de 1:9 corresponde ao dobro do que era na década de 1940 e vem aumentando paulatinamente. Com relação ao câncer de ovário, ele representa 25% dos cânceres genitais em mulheres, sendo sua mortalidade bastante elevada. Pouco frequente, o câncer de ovário é o tumor ginecológico mais difícil de ser diagnosticado e o de menor chance de cura, uma vez que cerca de 3/4 dos cânceres desse órgão apresentam-se em estágio avançado no momento do diagnóstico. A herança genética é o principal fator de risco, na maioria das vezes com histórias associadas a câncer de mama. A exemplo do que ocorre no câncer de mama, a história familiar é o fator de risco isolado mais importante. Cerca de 10% dos casos apresentam componente genético ou familiar, e 90% são esporádicos, isto é, sem fator de risco conhecido. História prévia de câncer de mama, útero ou colorretal e nuliparidade também aumentam o risco. Alguns estudos sugerem que a ingestão do hormônio estrogênio (sem progesterona) por dez anos ou Rev Bras Mastologia. 2012;22(1):33-38 mais pode aumentar a chance de a mulher vir a ter este tipo de câncer6. O câncer de mama identificado em estágios iniciais apresenta prognóstico mais favorável e elevado percentual de cura, justificando um rastreamento populacional, já que, em países que implantaram programas efetivos de rastreamento, a mortalidade por câncer de mama vem diminuindo — entendendo-se por rastreamento a aplicação de teste ou exame numa população assintomática, aparentemente saudável, com o objetivo de identificar lesões sugestivas de câncer e encaminhar as mulheres com resultados alterados para investigação e tratamento. Nesse sentido, existem mulheres que apresentam risco elevado de vir a desenvolver câncer de mama. Elas estão representadas na Tabela 1. Para esse grupo, a rotina de investigação inicia-se aos 35 anos com exame clínico e mamografia anual8. No entanto, tais medidas de rastreamento ainda são bastante gerais e de modo algum abrangem a singularidade de famílias específicas, identificadas como sendo de risco elevado de câncer de mama e ovário. Já está bem estabelecido que uma história familiar positiva é o fator de risco mais importante para o desenvolvimento de ambos os tumores, mais do que quaisquer outros fatores de ordem hormonal, dietética ou reprodutiva7. Essas mulheres necessitam de acompanhamento clínico individualizado e de uma abordagem diagnóstica diferenciada, incluindo o aconselhamento genético realizado por profissional especializado. A definição clássica de Kessler10 para o aconselhamento genético ainda é válida. Trata-se de um processo de comunicação que lida com problemas associados à ocorrência de uma condição genética em uma família10. Baseia-se na utilização voluntária dos serviços e na ação não diretiva e não coercitiva, de modo a capacitar o paciente a uma tomada de decisão informada, tendo assegurados sua privacidade e confidencialidade. No câncer de mama, apesar de fatores ambientais e culturais serem responsáveis por certa proporção dos casos na mesma família, a maior parte deles se deve à presença de genes capazes de levar ao surgimento de câncer. Tais genes de baixa penetrância levam a agregações familiares de casos, estimados em 5% dos cânceres de mama e 10% dos cânceres de ovário11. Sendo assim, dois genes de suscetibilidade hereditária a câncer de mama e ovário foram identificados e clonados a partir de estudos de ligação: o BRCA112 e o BRCA213. Estes genes foram, a partir de então, implicados em maior ou menor proporção, na gênese de uma série de tumores. Suas mutações conferem alto risco para câncer de mama (85% em mulheres e 10% em homens), câncer de mama contralateral (50% em mulheres), câncer de ovário/tubário/peritoneal primário (40% em BRCA1 e 15% em BRCA2), câncer colorretal (6% em BRCA1), câncer de pâncreas (2% em BRCA2), câncer de próstata (8% dos homens) e melanoma (<10% em BRCA2)14. A síndrome de câncer de mama e ovário hereditário ou HBOC (hereditary breast and ovarian cancer), na sigla em inglês, Fenocópia: nem tudo é o que parece é tida como a principal causa de câncer de mama e ovário hereditários. Tipicamente, essas famílias apresentam vários casos de câncer, com diagnóstico em idade jovem e tumores múltiplos11. A HBOC segue um padrão de herança autossômico dominante, sendo os homens portadores das mutações em BRCA1 e/ou BRCA2 capazes de transmitir a mutação, apesar de serem menos afetados pela doença15. Pacientes com história familiar sugestiva, a partir dos dados do National Comprehensive Cancer Network (NCCN), merecem uma abordagem diferenciada e personalizada, a qual deve incluir a testagem genética de tais genes. Diversos testes genéticos para confirmação molecular das síndromes de câncer hereditário foram desenvolvidos nos últimos 20 anos e muitos deles estão disponíveis comercialmente. Os testes genéticos baseados no DNA utilizam principalmente a técnica de sequenciamento das regiões codificadoras (éxons) e regiões de emenda (sítios de splicing) do gene e as técnicas de MLPA (multiplex ligation-dependent probe amplification), FISH (fluorescent in situ hybridization) e Southern-blot. Dessas, as mais utilizadas são o sequenciamento gênico e o MLPA. A primeira detecta inserções e deleções de pequeno tamanho, além de mutações pontuais, ou seja, troca de nucleotídeos. Se essa substituição modifica o aminoácido na proteína final, ela tem o potencial de alterar a conformação da proteína dependendo da região da molécula onde a troca se dá (mutação de sentido trocado, ou missense). E caso ela crie um códon de parada, ela interrompe prematuramente a síntese da proteína (mutação sem sentido ou nonsense). Já o MLPA é capaz de identificar inserções ou deleções de grande tamanho (ou In/Dels), frequentemente envolvendo éxons inteiros, as quais não são detectadas pelo sequenciamento convencional. Ambas as técnicas, por detectarem alterações diferentes, são frequentemente usadas em associação. Contudo, é importante ressaltar que a solicitação de tais exames passa necessariamente pelo processo de aconselhamento genético, em virtude da complexidade da investigação e da interpretação dos resultados obtidos pelas duas técnicas, o que normalmente não faz parte da experiência de mastologistas, oncologistas clínicos, cirurgiões oncológicos ou ginecologistas. O aconselhamento genético oncológico visa à avaliação dos riscos, prevenção e diagnóstico precoce de neoplasias. Em uma primeira parte da consulta, passa necessariamente pela elaboração de um heredograma, o qual traduz de modo gráfico o padrão de distribuição de casos dentro da família. Baseia-se em uma história familiar detalhada com anotação da etnia familiar, dos tipos de tumor (benigno ou maligno), bem como da localização destes, e idades dos indivíduos ao diagnóstico e no momento da consulta (ou ao óbito, se for o caso). Tais informações devem ser acompanhadas de documentação adequada, seja ela composta de atestados de óbito, relatos cirúrgicos ou resultados de análise histopatológica. Diante desses dados, são feitas as correlações com os critérios clínicos de suspeita de HBOC e indicados/realizados os testes genéticos necessários. A solicitação de quaisquer testes genéticos se faz em consulta(s) de aconselhamento genético pré-teste, nas quais a natureza da testagem genética é explicada à paciente de modo a fazê-la compreender a investigação que se inicia. De igual modo, a entrega dos resultados aos pacientes só se faz em consulta de aconselhamento pós-teste, em que são explicados os possíveis resultados e as implicações destes para seu tratamento e seguimento. De maneira a exemplificar a importância da abordagem aqui proposta, apresentamos uma família com casos de câncer de mama e ovário, em que o diagnóstico de síndrome HBOC pôde ser aventado com bases clínicas, sendo vários de seus membros avaliados e submetidos a aconselhamento genético. Relato de caso Paciente de 67 anos, sexo feminino (indivíduo III-5 ao heredograma e indicado por uma seta), procurou aconselhamento oncogenético em virtude de história familiar extensa de câncer, constituída por 5 parentes com câncer de ovário antes dos 50 anos (III-6, III-8, III-9, IV-5 e IV-6), incluindo sobrinhas gêmeas monozigóticas de 37 anos, além de câncer de mama e próstata. Sua história familiar é complementada pela informação de que ela, sua irmã (III-4) e outras duas sobrinhas (IV-3 e IV-4) já haviam se submetido a salpingo-ooforectomia bilateral profilática. A hipótese diagnóstica principal foi a síndrome HBOC (Figura 1). Na consulta seguinte, a paciente retornou para avaliação e aconselhamento genético pré-teste. Trouxe consigo o laudo histopatológico de seu tumor de mama, mostrando carcinoma ductal in situ (CDIS) de baixo grau e grau intermediário, com necrose central e predomínio do padrão cribiforme. 1 2 3 4 I 1 II 1 III IV V 2 3 2 3 4 * 63 5 4 1 67 2 7 # 49 * 3 2 3 9 4 * # 4 10 8 66 47 49 1 8 7 6 5 * 72 6 9 42 5 43 6 # 37 5 CA suspeito CA esôfago CA próstata CA mama CA ovário A seta indica o probando (caso índice); os números romanos indicam as gerações e os arábicos os indivíduos na ordem de nascimento; as idades atuais dos pacientes estão indicadas inferiormente aos símbolos que os representam; #indica teste genético realizado; *indica salpingo-ooforectomia profilática. Figura 1. Heredograma do caso apresentado Rev Bras Mastologia. 2012;22(1):33-38 35 36 Rosa AAS, Abad MC, Rocha JCC Imunohistoquímica: c-erbB2 negativo, RP e RE positivos. Índice de Van Nuys: 1 (tamanho da lesão) + 2 (margem) + 2 (grau histológico) = 5. A família apresentava excelente percepção de risco, mostrando-se bastante centrada e esclarecida, com expectativas positivas quanto ao resultado da investigação genética. Foram solicitados sequenciamento e MLPA dos genes BRCA1 e BRCA2 para a paciente (III-5). O sequenciamento do gene BRCA1 mostrou a mutação c.1067A>G (Q356R); o sequenciamento do gene BRCA2 mostrou a presença da mutação c.4035T>C (V1269V), e o MLPA dos genes BRCA1 e BRCA2 foram negativos para In/Dels. A consulta ao banco de dados do Breast Information Core (BIC)16 revelou que as mutações BRCA1 Q356R e BRCA2 c.4035T>C eram, respectivamente, uma mutação de significado clínico incerto e uma mutação sem significado clínico. A partir desse resultado questionamos as seguintes possibilidades: (1) a mutação BRCA1 Q356R seria a mutação patogênica familiar e, nesse caso, deveria estar presente em outros membros afetados?; (2) a mutação BRCA1 Q356R não seria a mutação patogênica familiar e, portanto, estaria ausente nos indivíduos sem o fenótipo neoplásico? Para avaliar as hipóteses acima, solicitamos que os testes fossem repetidos em outro familiar com o fenótipo HBOC e, nesse sentido, a sobrinha (IV-5) com diagnóstico de câncer de ovário concordou com a investigação molecular de seu material genético. Ela residia noutro município e, por estar, naquele momento, em tratamento para o câncer de ovário, não pôde comparecer em consulta inicialmente, tendo sido avaliada e submetida a aconselhamento pré-teste em ocasião posterior. Em seu material, foram encontradas seis mutações em BRCA1, c.5083del19, c.2430T>C (L771L), c.2731C>T (P871L), c.3232A>G (E1038G), c.3667A>G (K1183R) e c.4427T>C (S1436S), todas em heterozigose; e no BRCA2, foram achadas quatro mutações em heterozigose, c.5972T>C (M1915T), c.1114C>A (H372N), c.3624A>G (K1132K) e c.7242A>G (S2414S), sendo a mutação M1915T descrita no BIC como tendo relevância clínica indeterminada. A mutação BRCA1 c.5083del19 tem 46 descrições no BIC e é considerada patogênica, uma vez que a deleção de 19 nucleotídeos da sequência de DNA resulta na alteração da fase de leitura (mutação do tipo frameshift), levando à introdução de um códon de parada prematuro na proteína BRCA1 na posição 1670. Os resultados estão resumidos na Tabela 1. Tais resultados foram apresentados e discutidos com os familiares no aconselhamento pós-teste. Foi oferecida a possibilidade de a investigação prosseguir em outros familiares que manifestassem interesse em ser avaliados. Desse modo, outra de suas sobrinhas (IV-4) decidiu ser investigada, tendo sido testada apenas para a presença da mutação patogênica BRCA c.5083del19 cujo resultado foi negativo para a mutação familiar. Discussão Estamos diante de uma família acometida por neoplasias em diversos órgãos, mas principalmente por câncer de mama e ovário, em que o diagnóstico da síndrome HBOC foi postulado em bases clínicas, mediante uma anamnese bem dirigida, e confirmado por análise molecular dos genes envolvidos, identificando, dentre várias mutações de significado incerto, uma sabidamente deletéria, constituindo-se assim na mutação familiar constitutiva. A mutação genética constitutiva (ou germinativa) é responsável pela segregação dos casos de câncer e é sempre a mesma considerando-se uma mesma família. Por isso, é importante iniciar a investigação genética da mutação (genótipo) com um indivíduo da família portador de câncer (fenótipo), e só depois investigar outros familiares de risco. No caso apresentado, após a definição da síndrome HBOC e durante o processo de aconselhamento genético, foi proposta a investigação a partir da probanda afetada com CDIS, sendo a abordagem de uma paciente com CDIS e não com carcinoma invasivo respaldada pela recente diretriz do NCCN para HBOC, versão 1.201117 (Quadro 1). No entanto, o resultado apresentado pela probanda, mutação BRCA1 Q356R, era de relevância clinica indeterminada, e a pesquisa em outro familiar afetado foi esclarecedora com a identificação da mutação BRCA1 c.5083del19, sabidamente patogênica, e ausência da mutação Q356R detectada na tia. A partir da identificação dessa mutação sabidamente patogênica na paciente com câncer de ovário, pudemos afirmar que ela seria a mutação familiar causadora dos casos de câncer hereditários nessa família. Dessa forma, podemos concluir que a probanda, por não apresentar a mutação patogênica familiar detectada na sobrinha com câncer de ovário, representa uma “fenocópia”. Fenocópias podem ser definidas como os indivíduos que, embora apresentem o fenótipo em estudo, não possuem o Tabela 1. Resultados dos exames das pacientes III-5 e IV-5 Indivíduo III-5 IV-5 67 anos 37 anos CDIS de baixo grau e grau intermediário de mama Adenocarcinoma seroso e papilífero de ovário BRCA1 Q356R – significado clínico incerto 6 mutações – 5083del19 com relevância clínica BRCA2 c.4035T>C – sem relevância clínica 4 mutações – M1915T significado clínico incerto Idade ao Diagnóstico Histopatológico CDIS: carcinoma ductal in situ Rev Bras Mastologia. 2012;22(1):33-38 Fenocópia: nem tudo é o que parece genótipo, ou seja, representam casos esporádicos eventuais inseridos em famílias com casos hereditários. A paciente III-5 constitui-se, assim, em um caso bastante representativo de tal fenômeno. Apesar de ter tido câncer de mama CDIS e pertencer a uma família HBOC, não compartilha a mutação familiar c.5083del19, tratando-se de um caso de CDIS esporádico inserido em uma família com tumores hereditários. As fenocópias são há longo tempo reconhecidas em Genética por interferirem na interpretação de heredogramas em estudos de ligação, funcionando como variáveis de confundimento. Elas podem mimetizar sintomas que se assemelham a distúrbios mendelianos ou imitar padrões de herança ao ocorrerem em alguns indivíduos ligados por laços de parentesco consanguíneo18. Os geneticistas, ao analisarem a distribuição de indivíduos acometidos dentro de uma mesma família, devem estar familiarizados com a possibilidade de alguns dos casos identificados tratarem-se, de fato, de fenocópias, orientando o prosseguimento da investigação genética em outro familiar com o fenótipo em estudo. O Teste Preditivo é o teste oferecido aos familiares para definir se um indivíduo é ou não portador de mutação e só deve ser feito após a identificação da mutação familiar. O rastreamento da mutação germinativa em familiares assintomáticos é importante para identificar aqueles indivíduos com alto risco de desenvolvimento de câncer, direcionando procedimentos preventivos e de detecção precoce, otimizando o custo e a eficiência destas medidas. A identificação de indivíduos de risco portadores assintomáticos também fornece informações importantes para o planejamento familiar. No caso em questão, foi a investigação da sobrinha (IV-5) com câncer de ovário o fato que levou à descoberta da mutação familiar, a qual, a partir daí, deverá ser especificamente procurada em outros parentes que se dispuserem a ser investigados no futuro, como foi o caso de IV-4. Desse modo a ANS caminha na direção do progresso da Medicina, na mesma medida em que novas técnicas e metodologias de análise diagnóstica vêm sendo descritas e utilizadas na abordagem de doenças específicas, mesmo que a incorporação das novas tecnologias não se dê no mesmo compasso. Cabe aos profissionais de saúde envolvidos na abordagem de tais condições a tarefa de estarem atualizados com as ferramentas diagnósticas à disposição, no sentido de propiciar o cuidado mais adequado, não apenas aos pacientes acometidos, mas também a seus familiares. Assim, a síndrome HBOC pode se constituir em um importante exemplo da aplicação de tais tecnologias na prática médica rotineira, uma vez que câncer de mama faz parte do dia a dia da Mastologia. Conclusão Introduzimos neste artigo o conceito em genética de “fenocópia” aplicado a um caso clínico de câncer de mama. Considerando o câncer de mama como doença de alta prevalência na população feminina, a frequência de fenocópias pode ser facilmente subestimada, levando a investigações genéticas desnecessárias, além de erros diagnósticos. Os mastologistas responsáveis pelo cuidado de pacientes com câncer de mama hereditário só terão a se beneficiar, caso tenham à sua disposição a possibilidade de Quadro 1. Diretriz NCCN versão 1.2011 com os critérios para testagem BRCA1 e BRCA2 na síndrome de câncer de mama e ovário hereditário Indivíduo membro de família com mutação deletéria BRCA1/BRCA2 identificada História pessoal de câncer de mamaa + um dos seguintes: Idade ao diagnóstico ≤45 anos Idade ao diagnóstico ≤50 anos com um parente próximob com câncer de mama ≤50 anos e/ou um parente próximo com câncer epitelial de ovário em qualquer idade Dois cânceres primários de mama quando o primeiro acontece ≤50 anos Idade ao diagnóstico ≤60 anos se triplo negativo Idade ao diagnóstico ≤50 anos se história familiar limitada Diagnóstico em qualquer idade se ≥2 parentes próximos com câncer de mama e/ou epitelial de ovário em qualquer idade Diagnóstico em qualquer idade se ≥2 parentes próximos com câncer de pâncreas em qualquer idade Parente próximo do sexo masculino com câncer de mama Para indivíduos com etnia associada a alto risco (ex.: judeus Asquenaze), não há necessidade de história familiar adicional História pessoal de câncer epitelial de ovário História pessoal de câncer de mama masculino História pessoal de câncer de pâncreas em qualquer idade com ≥2 parentes próximos com câncer de mama e/ou ovário e/ou pâncreas em qualquer idade História familiar exclusiva, se: Parentes de primeiro ou segundo grau apresentam os critérios acima Parente de terceiro grau com câncer de mama e/ou ovário com ≥2 parentes próximos com câncer de mama (ao menos um com menos de 50 anos) e/ou câncer de ovário a câncer de mama invasivo ou carcinoma ductal in situ; bparentes de primeiro, segundo e terceiro graus Rev Bras Mastologia. 2012;22(1):33-38 37 38 Rosa AAS, Abad MC, Rocha JCC realização de testes moleculares e o apoio de geneticistas clínicos para a identificação de pacientes portadores de mutações nos genes de predisposição ao câncer e na distinção entre casos hereditários e fenocópias, como a paciente aqui apresentada. Fenocópias representam a certeza de que na Genética, bem como em toda a Medicina, nem tudo é o que parece, e é preciso estar atendo para perceber as diferenças. Referências 1. WHO, World Health Organization. International Agency for Research on Cancer. Globocan; 2008. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Controle do Câncer de Mama (INCA, 2010), Divisão de Apoio à Rede de Atenção Oncológica. [cited 2010 Apr 30]. Available from: http:// www.inca.gov.br/wps/wcm/connect/acoes_programas/site/home/ nobrasil/programa_controle_cancer_mama/conceito_magnitude 3. Brasil. Ministério da Saúde. Tipos de Cancer. (INCA, 2012). [cited 2012 Dec 1st]. Available from: http://www.inca.gov.br/wps/wcm/ connect/tiposdecancer/site/home/mam 4. Demoor-Goldschmidt C, Supiot S, Mahé MA. [Breast cancer after radiotherapy: Risk factors and suggestion for breast delineation as an organ at risk in the prepuberal girl]. Cancer Radiother. 2012;16(2):140-51. [article in French]. 5. Marshall E. 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