Complexidade Humana Volto agora ao problema humano. Quando falamos do homem, sentimos que nos referimos a algo genérico e abstrato. O homem é um objeto estranho, algo simultaneamente biológico e não-biológico. Com a maior comodidade, estudamos o homem biológico no departamento de biologia e o homem cultural e psicológico nos departamentos de ciências humanas e de psicologia. O homem tem um cérebro, que é um órgão biológico, e um espírito, que é um órgão psíquico. Acaso alguma vez ambos se encontram? O espírito e o cérebro não se encontram jamais. As pessoas que estudam o cérebro não se dão conta de que estudam o cérebro com seu espírito. Vivemos nesta disjunção que nos impõe sempre uma visão mutilada. Mas, além disso, o homem não é somente biológico-cultural. É também uma espécie-indivíduo; o ser humano é de natureza multidimensional. Por outro lado, esse homem, que nossos manuais chamavam homo sapiens é ao mesmo tempo homo demens. Castoriadis disse: “ O homem é esse animal louco cuja loucura inventou a razão”. O fato é que não se pode estabelecer uma fronteira entre o que é sensato e o que é louco. Que é, por exemplo, uma vida sensata? É uma vida na qual se presta muita atenção em não tomar vinho, não comer molhos, não sair, não viajar em avião, não correr nenhum risco para conservá-la o maior tempo possível? Ou é uma vida de consumo, de gozo, de embriaguez, na qual se arrisca perder a vida? Evidentemente, ninguém pode dar resposta a esta pergunta. Nesse homem que é sapiens e demens, há uma mescla inextrincável, um pensamento duplo: um pensamento que chamaria racional, empírico, técnico, que existe desde a pré-história e é anterior à humanidade (posto que os animais executam atos empíricos, racionais e técnicos), mas que, evidentemente, o homem desenvolveu. Também temos um pensamento simbólico, mitológico, mágico. Vivemos permanentemente em ambos os registros. Não se pode suprimir a parte dos mitos, as aspirações, os sonhos, a fantasia. Todos os que se interessam por psiquismo, pela psicologia humana, sabem que os sonhos, os fantasmas, as loucuras são partes integrantes do ser humano. Não são vãos, superestruturas que se desvanecem, mas sim seu tecido. Como dizia Shakespeare: “Somos feitos da matéria dos sonhos”. Por que esquecer isto? Por que ter sempre opiniões compartimentadas? Por que considerar os seres humanos segundo sua categoria sócio-profissional, seu nível de vida, sua idade, seu sexo, de acordo com questionários de opinião ou documentos de identidade? Cada ser, inclusive o mais vulgar e anônimo, é um verdadeiro cosmos. Não só porque a profusão de interações em seu cérebro seja maior que todas as interações no cosmos, mas também porque leva em si um mundo fabuloso e desconhecido. Durante longo tempo, a superioridade da literatura com respeito às ciências humanas residiu precisamente em dar conta deste aspecto, num momento em que as ciências humanas haviam anulado por completo a existência do indivíduo. Enquanto que hoje a biologia nos mostra a extraordinária diversidade de indivíduos, não só anatômica, mas também psicológica. Neel, num belo texto, Lessons from a Primitive People, estudou uma tribo indígena da Amazônia que durante 500 anos viveu isolada das demais. Aí encontrou indivíduos tão diferentes uns dos outros como os que podem ver no metrô de Paris ou no de Buenos Aires. Os indivíduos existem, estão aí. E a singularidade, o concreto, a carne, o sofrimento, tudo isto é o que faz a força da novela. Quando Balzac tentou compreender as pessoas através da análise do rosto, de seu comportamento, de sua maneira de apresentar-se, dos móveis com que se cercam, de seu ambiente, enfim, faz algo que é evidentemente complexo. Quando Stendhal mostra a importância de pequenos detalhes, em aparência insignificantes, mas que ocupam um papel tão importante na vida, faz uma obra de complexidade. Quando Tolstoi mostra a superposição dos indivíduos e da grande história, como no príncipe André em Guerra e Paz, enlaça a alma individual e o destino histórico global. E Dostoievski, quando descobre as intermitências, as bruscas mudanças que fazemos de uma parte de nós mesmos a outra parte de nós, mostra que é impossível racionalizar numa fórmula um ser humano. Os grandes novelistas ensinaram o caminho da complexidade, mas ainda que não o tenham feito em forma conceitual, no plano do pensamento filosófico e científico, sua contribuição é necessária para todo pensamento filosófico e científico. Quero terminar com duas metáforas. A primeira provém de Jules Michelet, que, num belo livro sobre o mar, imaginava o aparecimento das baleias. Michelet nunca havia visto as baleias se acasalando e supunha que, para que houvesse fecundação, o macho e a fêmea devessem elevar-se verticalmente ao mesmo tempo e acoplar-se num instante. Certamente haveria muitos fiascos e as baleias deveriam recomeçar uma e outra vez, até que ao final conseguissem e se produzisse a fecundação. E assim seria como as baleias têm filhos. Enfim, a realidade é mais prosaica, porque as baleias se acasalam horizontalmente. O que quer dizer esta metáfora é que o mundo da ação política carece de eficácia física que pode ter um martelo golpeando um prego. Quanto mais golpes de martelo, mais se afunda o prego, que é o que desejamos. Mas no mundo político estamos como a baleia, tratando de fecundar. E devemos estar contentes se encontramos nosso caminho. A segunda metáfora provém da crisálida. Para que a lagarta se converta em borboleta, deve encerrar-se numa crisálida. O que ocorre no interior da lagarta é muito interessante; seu sistema imunológico começa a destruir tudo o que corresponde à lagarta, incluindo o sistema digestivo, já que a borboleta não comerá os mesmos alimentos que a lagarta. A única coisa que se mantém é o sistema nervoso. Assim é que a lagarta se destrói como tal para poder construir-se como borboleta. E quando esta consegue romper a crisálida, a vemos aparecer, quase imóvel, com as asas grudadas, incapaz de desgrudá-las. E quando começamos a nos inquietar por ela, a perguntar-nos se poderá abrir as asas, de repente a borboleta alça vôo. Edgar Morin em Novos Paradigmas, Cultura e Subjetividade