carlos blajberg - coppead

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OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE: O COMPORTAMENTO DE
CONSUMO DE JUDEUS BEM-SUCEDIDOS
CARLOS BLAJBERG
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
COPPEAD – Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em Administração
Mestrado em Administração
Orientador: Prof. Dr. Everardo P. Guimarães Rocha
Rio de Janeiro
2001
ii
OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE: O COMPORTAMENTO DE
CONSUMO DE JUDEUS BEM-SUCEDIDOS
Carlos Blajberg
Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em
Administração – COPPEAD/UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Mestre.
APROVADA POR:
__________________________________
Prof. Dr. Everardo P. Guimarães Rocha (Orientador)
__________________________________
Profa. Dra. Letícia M. Casotti
__________________________________
Prof. Dr. Bernardo Jablonski
Rio de Janeiro
2001
iii
Blajberg, Carlos.
Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de
consumo de judeus bem-sucedidos. / Carlos Blajberg. Rio de
Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001.
ix, 96 p.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, COPPEAD, 2001.
1. Marketing. 2.Antropologia. 3.Etnografia. 4.Religião.
5.Dissertação (Mestr. - UFRJ/COPPEAD). I. Título.
iv
Uma pesquisa de Marketing foi realizada entre consumidores de três países: Rússia,
Estados Unidos e Israel. A primeira pergunta era: “Desculpe, o que acha da falta de
carne?”. Mas a pesquisa fracassou. Os russos não sabiam o que é “carne”, os
americanos não sabiam o que é “falta”, e os israelenses não sabiam o que é
“desculpe”.
Anônimo
Nos anos 30, o ministro de propaganda nazista visitou uma escola secundária alemã
antes da expulsão dos judeus. Durante a visita avisou que daria um prêmio ao aluno
que sugerisse o melhor slogan para a Alemanha. Após algumas sugestões, um estudante
se levanta:
- Nosso povo viverá eternamente.
-
Excelente! Você merece o prêmio. Como é seu nome?
-
Abraham Goldenstein.
Anônimo
v
Aos meus avôs Abram e Josef, que transpuseram todos os
obstáculos colocados pelo destino e construíram uma maravilhosa família.
Aos meus queridos pais Marlene e Israel, corajosos pais de quatro
filhos, fundamentais na conquista de mais esta realização.
Aos meus irmãos Silvia, Rosa e Rubens, grandes amigos e
incentivadores dos meus projetos.
À Jane, pelo amor e compreensão infinitos, que sempre me apoiou
em todos os momentos.
vi
AGRADECIMENTOS
A Deus, guia presente em todos os momentos.
A minha mãe e ao meu pai por todo carinho e dedicação, mas principalmente pelo apoio
fundamental nesta importante etapa acadêmica da minha vida, e aos meus irmãos pelos
incentivos. Obrigado pela enorme paciência, principalmente nesta etapa final da
Dissertação.
À Jane, minha namorada e amiga, pelo amor e compreensão infinitos.
Aos meus colegas da turma 98 do COPPEAD, que sempre me incentivaram tanto nas
minhas realizações profissionais quanto pessoais.
Ao meu orientador e amigo Everardo, por seu apoio em todas as etapas do
desenvolvimento desta Dissertação. Aproveito também para agradecer aos amigos da
secretaria acadêmica do COPPEAD – Cida, Eva e Carlos – pelo apoio constante durante
o curso de Mestrado e à Elza da AMEA, por sua ajuda no meu desenvolvimento
profissional.
Agradeço a todos os que pacientemente concederam uma parcela do seu valioso tempo
ao apoiar a minha pesquisa. A receptividade de vocês foi fundamental para o alcance
dos objetivos desta Dissertação.
Ao povo judeu, por ter resistido a séculos de dificuldades, obrigado por tudo. Sinto-me
orgulhoso e feliz por fazer parte desta bela história. Divido com vocês esta grande
realização da minha vida.
vii
BLAJBERG, Carlos. Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de
consumo de judeus bem-sucedidos. Orientador: Everardo P. Guimarães Rocha. Rio de
Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001. Dissertação. (Mestrado em Administração).
O objetivo do presente estudo, de caráter exploratório, é a compreensão, através da
prática da Etnografia, de como os judeus bem-sucedidos vêem o fenômeno do consumo
em suas vidas.
Os mesmos foram selecionados através de algumas fronteiras dentre as quais: homens,
casados, com filhos solteiros e freqüentadores de uma mesma sinagoga da cidade do Rio
de Janeiro.
Os judeus bem-sucedidos são um grupo bastante representativo em termos de mercado,
pois além de consumirem diversas categorias de produtos, influenciam o padrão de
compra de suas famílias, além de serem formadores de opinião dentro da comunidade
judaica como um todo.
A perspectiva adotada é a de pensar questões de mercados, produtos e consumidores,
acentuando a dimensão cultural que atravessa suas práticas e visões de consumo.
Ao captar e analisar os diversos temas que emergiram dos discursos dos judeus sobre o
seu comportamento como consumidores e adotando o prisma repleto de simbolismos
proporcionado pela Antropologia, este estudo apresenta uma significativa contribuição
aos profissionais de Marketing que tenham como público-alvo os consumidores cujos
padrões culturais apresentem similaridades.
viii
BLAJBERG, Carlos. Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de
consumo de judeus bem-sucedidos. Orientador: Everardo P. Guimarães Rocha. Rio de
Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001. Dissertação. (Mestrado em Administração).
The aim of the present paper, of an exploratory character, is the understanding through
Ethnography, of how well-succeeded the Jews see the phenomenon of consumption in
their lives.
The respective sample was selected according to some parameters as for instance being
male, married, with unmarried children, and active members of the same synagogue in
Rio de Janeiro, Brazil.
Well-succeeded Jews constitute a very representative group as a specific market, since
besides consuming various categories of products. They tend to bias the buying
standards of his respective families, as well as acting as opinion formers inside the
brazilian jewish community.
The perspective adopted is one of thinking market, product and consumer questions. It
is also important to stress the cultural dimension related to this group consumer
practices and visions.
By selecting and analyzing the various trends that emerged from the group tales about
their respective behavior as consumers, and following the point of view full of
symbolisms proportioned by the Anthropology Science, it is hoped that this study
presents a significant contribution to Marketing professionals, targeting consumers with
similar cultural standards.
ix
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR.................... 1
2
MARKETING E ANTROPOLOGIA: UM REFERENCIAL TEÓRICO ...... 5
2.1
UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA ................................................................... 5
2.2
DIMENSÕES HISTÓRICO-CULTURAIS DO JUDAÍSMO ............................................... 9
2.3
CONSUMO: RELAÇÕES ENTRE MARKETING E ANTROPOLOGIA............................ 16
2.4
CONSUMO, RELIGIÃO E ETNIA: IMPLICAÇÕES NO MARKETING ........................... 29
3
O MÉTODO ETNOGRÁFICO E O CONSUMO............................................ 35
3.1
A PESQUISA ETNOGRÁFICA ................................................................................. 35
3.2
FRONTEIRAS DO GRUPO ESTUDADO .................................................................... 38
3.3
ENTREVISTAS E OBSERVAÇÕES PARTICIPANTES.................................................. 39
3.4
ANÁLISE DO DISCURSO: INTERPRETANDO OS CONSUMIDORES ............................ 42
4
O CONTEXTO DO GRUPO ESTUDADO ...................................................... 43
4.1
POSICIONAMENTO NO MUNDO E NO BRASIL ....................................................... 44
4.2
DESCRIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DE SEUS INTEGRANTES .................................... 47
4.3
O PROCESSO DE CAPTAÇÃO DO DISCURSO DOS INFORMANTES ............................ 50
5
IDENTIDADE JUDAICA E CONSUMO: ANÁLISE DO DISCURSO........ 54
5.1
O ATO DE CONSUMIR .......................................................................................... 55
5.2
CANAIS E CARACTERÍSTICAS DE CONSUMO......................................................... 57
5.3
UMA NOVA DIMENSÃO DO CONSUMO: A INTERNET ............................................. 61
5.4
HIERARQUIAS DE CONSUMO ............................................................................... 64
5.5
CONSUMO ÉTNICO .............................................................................................. 67
6
CONCLUSÕES: OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE...................... 80
6.1
ASPECTOS DO CONSUMO .................................................................................... 81
6.2
CONTRIBUIÇÕES E INTERROGAÇÕES GERADAS PELA DISSERTAÇÃO ................... 88
7
BIBLIOGRAFIA................................................................................................. 90
8
GLOSSÁRIO ....................................................................................................... 94
1
INTRODUÇÃO: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR
O objetivo deste estudo é compreender os padrões de consumo encontrados junto
a um determinado grupo de judeus bem-sucedidos sob a ótica de suas práticas e
dimensões culturais. Neste primeiro capítulo da Dissertação encontram-se: o
detalhamento de seus objetivos, as delimitações que a envolvem e as contribuições
geradas, na medida em que busca estreitar a parceria entre o Marketing e a Antropologia
a partir de uma análise do fenômeno do consumo.
No limiar de um novo milênio, em meio a uma sociedade complexa, é cada vez
maior a quantidade e a diversidade de bens e serviços oferecidos ao consumidor. Cabe
ao Marketing - através do comportamento do consumidor - estudar e compreender as
razões por trás dos padrões de consumo em determinados segmentos da sociedade.
O estudo do comportamento do consumidor procura compreender as razões da
formação dos padrões de consumo dos mesmos. Portanto utiliza-se dos conhecimentos
desenvolvidos em ciências centradas no estudo de atividades humanas, como a
Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia, entre outras. Este trabalho visa
estreitar a parceria entre o Marketing e a Antropologia, numa perspectiva
interdisciplinar.
Torna-se importante compreender as dimensões culturais presentes no
comportamento de consumo de determinados grupos sociais urbanos. Tal compreensão
também é importante em relação ao universo simbólico, composto por um sistema de
classificações que define suas identidades. Com o auxílio deste sistema, uma espécie de
mapa cultural, é possível coletar subsídios sobre a formação dos hábitos de consumo
dos integrantes de um grupo social urbano. Neste trabalho o grupo escolhido foi
constituído por judeus bem-sucedidos.
Esta Dissertação possui um objetivo principal e outros aspectos ligados ao
mesmo. O objetivo principal consiste em compreender se os padrões de consumo
encontrados no grupo de judeus bem-sucedidos podem ser explicados através de suas
práticas e dimensões culturais. Tais dimensões são encontradas a partir dos valores e
práticas constantes no discurso dos elementos deste grupo. São obtidas por meio de
descrição profunda do comportamento de consumo dos mesmos. A metodologia
2
empregada, através da pesquisa de campo etnográfica, fornece os subsídios para a
elaboração do universo simbólico deste grupo social.
Há outros aspectos importantes relacionados com o objetivo principal, como o
estreitamento das relações entre o Marketing e a Antropologia, no sentido de aprimorar
a compreensão do fenômeno do consumo. Outro aspecto a ser observado é a verificação
da existência de oportunidades de negócio com foco neste grupo social, que embora
pequeno em termos de população relativa, representa um público-alvo com elevado
potencial de consumo. Também será abordada nesta Dissertação a análise, no mercado
do Rio de Janeiro, uma visão empresarial voltada para o consumo de etnias específicas,
denominada de Marketing étnico.
Já que a realidade é extremamente complexa, qualquer projeto de pesquisa possui
limitações de diversas ordens. Aqui estão descritos os fatores que definem o que será
contemplado neste trabalho, e por outro lado, o que não está ao alcance do mesmo. O
meio de investigação a ser empregado é a pesquisa de campo, configurada através de
entrevistas com os informantes, que compõem a etnografia.
Entre as inúmeras variáveis que poderiam revelar os valores e práticas culturais
do grupo em questão (exemplo: o grau de religiosidade) o estudo está circunscrito
àquelas que traduzem basicamente a condição sócio-econômica do informante. Não
obstante, estas variáveis encontram-se intimamente relacionadas com outras, que
revelam o conceito de identidade social, ou seja, o sentimento de pertencer ao grupo de
judeus bem-sucedidos.
Algo que também afeta diretamente a análise é a constatação de que a assimilação
cultural sofrida pelos judeus nas últimas décadas vem enfraquecendo a comunidade
judaica mundial, especialmente no Brasil. Portanto não basta que o informante seja
judeu e sim que o mesmo realmente sinta-se parte integrante do grupo social.
O trabalho é essencialmente qualitativo e interpretativo, sendo importante haver
uma
cumplicidade
com
o
informante.
Entretanto
recomenda-se
um
certo
distanciamento, saudável para uma melhor compreensão das práticas e valores culturais
dos informantes do grupo.
A parceria entre o Marketing e a Antropologia é relativamente recente. Estudos
antropológicos usualmente centram-se nas práticas culturais, mas sem contemplar de
3
modo mais focado os padrões de consumo de certos grupos sociais. Em contrapartida, o
Marketing procura estabelecer uma parceria mais sistemática com a Antropologia.
O trabalho pretende contribuir para uma reflexão dos padrões e hábitos de
consumo de um segmento da população judaica do Rio de Janeiro. Desta forma, esperase que ao analisar os hábitos e costumes culturais deste grupo, seja possível
compreendê-lo. As informações poderão ser utilizadas pelas empresas de forma a
atender aos anseios e às necessidades deste mercado consumidor.
A comunidade judaica carioca constitui-se na terceira maior comunidade da
América Latina, após Buenos Aires e São Paulo. Calcula-se algo em torno de 50 mil
pessoas, participantes de forma ativa da sociedade carioca: houve prefeitos judeus, há
empresários, jornalistas, políticos, comerciantes, artistas, profissionais liberais, entre
outros. (LEWIN, 1997)
Há também o aspecto do desenvolvimento de um Marketing mix que venha a
atender segmentos específicos do mercado, minorias com culturas (e necessidades de
consumo) peculiares: é o que se denomina de Marketing étnico. O estudo surge num
momento em que há um aparente paradoxo, que é o da coexistência entre dois
movimentos, o de globalização e o de tribalização. Esta dicotomia é perfeitamente
possível num mundo cada vez mais interconectado de forma real e virtual, através de
um sentimento de coesão em determinados grupos étnicos como forma de reforçar sua
identidade frente às constantes mudanças no cenário mundial.
O consumo nada mais é do que uma das formas deste grupo étnico se relacionar
com o mundo globalizado, do qual ele faz parte. Este relacionamento será contemplado
especialmente no que tange à diáspora do povo judeu, pois o colocou em contato com as
mais diversas culturas. Uma vez conhecidos alguns aspectos do comportamento do
consumidor neste segmento analisado, o seu universo simbólico poderá fornecer
subsídios para diversas decisões de Marketing pelas empresas.
Conseqüentemente está configurada a importância deste trabalho, pois é essencial
compreender alguns dos mecanismos que estão por trás de decisões de consumo de
determinados grupos étnicos. Os mesmos têm sua importância destacada em meio às
sociedades nas quais faz parte, pois o fenômeno de globalização também atua no sentido
de torná-los relevantes.
4
Há inúmeros fatores que me influenciaram a escrever esta Dissertação. Entre estes
há os de ordem social, pois a mesma trata-se de uma prestação de contas à sociedade
brasileira, na medida em que esta me forneceu condições de estudar numa Escola cujo
renome é de fato internacional, o COPPEAD. Tal estudo foi financiado em parte pela
bolsa de estudos concedida por órgãos governamentais como o CNPQ e a CAPES. A
Dissertação representa a materialização das atividades ocorridas neste período.
Há também os fatores que poderiam ser classificados como sendo de ordem
acadêmica, ou seja, a oportunidade de estudar como se relacionam e interagem
determinados campos do conhecimento, como o Marketing e a Antropologia,
produzindo assim um estudo sobre o comportamento do consumidor.
Entretanto, no âmago destes fatores encontram-se motivações pessoais. Sou
judeu, assim como os demais membros de minha família, tendo sido minha educação
realizada durante nove anos em tradicionais escolas judaicas da cidade do Rio de
Janeiro, como o TTH (Talmud Torah-Hertzlia) e o Instituto de Tecnologia ORT. Três
de meus quatro avós nasceram na Europa, mais precisamente no interior da Polônia, um
país eminentemente cristão. Devido às condições extremamente precárias de vida (e ao
crescente anti-semitismo) os mesmos emigraram para o Brasil durante o período
compreendido entre a 1a e a 2a guerra mundiais (1918-1939).
Desde sempre admirei a ousadia e a coragem de meus antepassados, que tomaram
uma decisão de tamanho impacto, ao emigrarem para um país desconhecido,
praticamente sem recursos financeiros e sem sequer falar quaisquer idiomas que não
fossem o polonês ou o ídiche, sendo este muito popular entre os judeus ashkenazim.
Sem mencionar o fato de que, àquela época, não havia sequer vestígios de uma série de
recursos tecnológicos disponíveis atualmente.
Abram Blajberg, meu avô paterno, ensinou-me a admirar o Brasil, que tão bem o
acolheu na primeira metade do século XX. Ao ser perguntado sobre a razão de ter
escolhido o Brasil, em 1929, para tentar uma nova vida, Abram respondeu: - “Porque
nós sabíamos que aqui não havia anti-semitismo, muito embora o país fosse
relativamente desconhecido para todos nós que viemos da Europa, que vivíamos num
outro mundo”.
5
2
MARKETING E ANTROPOLOGIA: UM REFERENCIAL TEÓRICO
No capítulo inicial destaca-se a introdução, tratando-se das peculiaridades da
Dissertação, como seus objetivos, possíveis delimitações, contribuições ao Marketing e
as motivações que me levaram a escrevê-la. O referencial teórico no qual baseia-se este
trabalho será contemplado neste capítulo. Compreende as teorias da Antropologia que
serão utilizadas: o arcabouço teórico sobre cultura, o conceito de trabalho de campo,
além do contexto histórico da sociedade judaica, produzindo uma espécie de panorama
cultural do povo judeu. Finalizando, uma análise sobre o encontro das culturas judaica e
brasileira.
Também serão abordadas neste capítulo as teorias sobre o comportamento do
consumidor. Diversas delas são apresentadas, fornecendo ângulos possíveis para
vislumbrar este campo do Marketing: representam a maior parte do referencial teórico
deste trabalho. Há ainda os aspectos religiosos do consumo, de forma a analisar as
relações entre a religião e o consumo; e se há de fato uma perspectiva judaica no mundo
dos negócios e do consumo. Aqui também estão os conceitos sobre o denominado
Marketing étnico, difundido nos Estados Unidos embora seja praticamente
desconhecido no Brasil.
2.1
Uma perspectiva antropológica
Campo do conhecimento relativamente recente, a Antropologia contribui de
forma significativa para uma melhor compreensão dos hábitos culturais de diversos
povos. Entre estes hábitos, encontram-se também as práticas de consumo, incorporadas
de forma mais densa após a revolução industrial.
Quando se analisa um determinado grupo à luz da Antropologia, é possível
desvendar parte do universo simbólico e seus valores, práticas, mitos, rituais, enfim, um
conjunto de características que moldam sua identidade cultural. Este princípio também
pode ser aplicado sobre os hábitos de consumo dos integrantes deste grupo, auxiliando a
compreensão do comportamento de consumo dos mesmos.
A Antropologia esteve desde sempre ligada às formas de cultura praticadas pelo
homem. Certos elementos, tais como instituições, ritos, normas e mitos seriam formas
6
de se atender às necessidades básicas e primárias que determinam uma resposta humana
e forçam determinado grupo na direção de uma invenção da cultura. (MALINOWSKI
apud DAMATTA, 1997)
O papel da Antropologia não consiste em buscar leis gerais e abrangentes sobre o
comportamento de uma sociedade, mas sim interpretar os significados que os homens
dão as formas pelas quais escolheram para viver suas vidas. Resgatar e arquivar
alternativas humanas de existência, preservando seu universo simbólico é uma das
funções da Antropologia. (GEERTZ apud ROCHA, 1984)
“A Antropologia possui, portanto, dois tipos de significado. De um lado
coleta, classifica e analisa o conhecimento a cerca dos seres humanos, como
vivem e o que fazem. De outro lado, questiona algumas das idéias mais
fundamentais do mundo contemporâneo (...) e nos torna mais conscientes do
que somos através do confronto com o que não somos”. (BOHANNAN,
1990, p.256)
Diversos autores foram acrescentando contribuições em relação à idéia de cultura,
na medida em que o próprio estudioso foi tornando-se menos etnocêntrico: passou a
compreender e identificar as diferenças entre os diversos grupos sociais sem tomar-se
como ponto de referência para eventuais comparações. A relativização nos estudos
antropológicos tornou-se uma constante, através de uma postura mais flexível. Segundo
Rocha (1984, p.20) a idéia de “relativizar é não transformar a diferença em hierarquia,
em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por
ser diferença”.
Conforme Geertz (1978, p.15), “o conceito de cultura que eu defendo (...) é
essencialmente semiótico. Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
análise”. No transcorrer do século XX os conceitos de cultura começaram a se ampliar,
incorporando elementos de outras ciências. O espectro de grupos sociais estudados
ampliou-se de forma considerável, englobando não somente povos isolados como
também grupos sócio-econômicos, urbanos, étnicos, religiosos, entre outros.
Este processo de diálogo com outros campos do conhecimento continuou até
chegar à Administração. As empresas passaram a se caracterizar como possuidoras de
7
uma cultura de natureza organizacional. No entanto, alguns autores, como Hofstede
(1997, p.34) afirmam que “a cultura organizacional é um fenômeno em si mesmo (...)
pelo fato de os membros da organização terem tido alguma influência na sua decisão de
se juntarem a ela (...) e poderem um dia abandoná-la”.
Mas as organizações possuem também um universo simbólico com um sistema
composto de ritos, tradições, mitos, enfim, códigos que constituem por si só um grupo
social com uma cultura específica. Hofstede (1997, p.210) então define a cultura
organizacional como “a programação coletiva da mente que distingue os membros de
uma organização dos de outra”. As diferenças entre as teias culturais de Geertz
tornaram-se mais visíveis após o contato entre as diversas sociedades promovido pela
evolução dos transportes. Surgiram relatos de visitantes estrangeiros como o francês
Alexis de Tocqueville, que esteve nos Estados Unidos em meados do século XIX:
“Porque os americanos erguem (...) monumentos tão grandiosos? Eles
traçaram o circuito de uma imensa cidade onde pretenderam construir sua
capital, embora até o momento seja quase deserta; de acordo com eles, terá
um dia um milhão de habitantes. Erigiram um magnífico palácio para o
Congresso no centro da cidade e deram-no o nome pomposo de Capitólio”.1
(TOCQUEVILLE, 1999)
Como afirma Bohannan (1990, p.256), “as observações de Tocqueville sobre a
América jamais poderiam ser feitas por um observador do país”. Progressivamente os
viajantes deixaram de adotar uma postura etnocêntrica ao descrever culturas
completamente novas. Embora segundo Cicourel (1990, p.87) “os pesquisadores em
ciências sociais defrontam-se com um problema metodológico singular: as próprias
condições de suas pesquisas constituem variável complexa e importante para o que se
considera como os resultados de suas investigações”.
No entanto, o trabalho de campo pode trazer consigo alguns resultados implícitos,
na medida em que muitas vezes o pesquisador pode conduzir a pesquisa de modo a
encontrar as informações que vem corroborar suas idéias iniciais. E a apresentação dos
resultados pode realçar os principais pontos de seu trabalho. (CICOUREL, 1990)
1
Tradução livre do autor.
8
A partir das expedições de Malinowski nos arquipélagos da Nova Guiné e
Melanésia (Ilhas Trobriand), o trabalho de campo difundiu-se como um instrumento
básico para o registro do discurso social.
“(...) A Antropologia, especialmente em seus modernos aspectos, tem a seu
crédito o fato de que a maioria dos que a ela se dedicam são obrigados ao
trabalho de campo etnográfico, ou seja, um tipo empírico de pesquisa. (...)
O etnólogo estuda a realidade da cultura sob a maior variedade de condições
ambientes, raciais e psicológicas. Ele deve ser ao mesmo tempo perito na
arte da observação (...) e na teoria da cultura“. (MALINOWSKI, 1975,
p.21)
Culturas que estariam perdidas de forma irreversível devido a diversos fatores
(intensa assimilação, genocídio) como no caso das dezenas de tribos indígenas
brasileiras, foram registradas por antropólogos.
“O conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles
formam sistemas. Estou convencido de que esses sistemas não existem em
número ilimitado, e que as sociedades humanas, assim como os indivíduos
(...) jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher combinações
num repertório ideal que seria possível reconstituir”. (LÉVI-STRAUSS,
1996, p. 167)
A partir destes relatos, tornou-se possível resgatar e preservar a cultura de
determinadas sociedades. O viajante - e etnógrafo - registra o discurso social e
transforma-o a partir de um acontecimento passado existente apenas no seu momento de
ocorrência, num relato para ser consultado a posteriori. (GEERTZ, 1978)
Compete ao estudioso buscar as dimensões simbólicas das ações sociais, como a
arte, religião, ideologia, leis, moral, senso comum, e pensá-las de um modo profundo, a
fim de interpretá-las. O objetivo não é responder às questões do próprio estudioso, mas
sim colocar à disposição as respostas concedidas pela sociedade estudada. Assim, a
Antropologia cria uma espécie de arquivo de culturas. (GEERTZ, 1978)
Como sintetiza DaMatta (1987, p.146), “a base do trabalho de campo como
técnica de pesquisa é fácil de justificar abstratamente. Trata-se, basicamente, de um
9
modo de buscar novos dados sem nenhuma intermediação de outras consciências, sejam
elas as dos cronistas, dos viajantes, dos historiadores ou dos missionários”.
2.2
Dimensões histórico-culturais do judaísmo
A religião judaica remonta a milhares de anos, constituindo-se na primeira
religião monoteísta de que se tem registro. De acordo com Freud (1997, p.91), “de todos
os povos que viveram na bacia do Mediterrâneo na antiguidade, o povo judeu é quase o
único que ainda existe em nome e também em substância. Enfrentou infortúnios e maustratos com uma capacidade sem precedentes de resistência”.
Ainda segundo Freud (1997, p.115) “após a instituição da combinação de clã
fraterno, matriarcado e totemismo, começou um desenvolvimento que deve ser descrito
como um lento ‘retorno do reprimido’, (...) sob a influência de todas as mudanças da
civilização humana”.
Um deus surgiu substituindo o animal totêmico, numa série de transições. De
início, o deus em forma humana ainda portava uma cabeça de animal. Entre o animal
totêmico e o Deus, surgiu o herói, como um elo no sentido da deificação. O passo
seguinte foi o de prestar respeito a apenas um só Deus, e não tolerar outros deuses além
deste. (FREUD, 1997)
Um importante fator para a formação da tradição cultural judaica foi o caráter
impresso por Moisés, na medida em que este reforçou a auto-estima do povo ao receber
as tábuas da lei, no Monte Sinai. Moisés permitiu aos judeus participarem da
grandiosidade de uma nova idéia de Deus; afirmou que esse povo fora escolhido por
este Deus; e impôs um avanço em intelectualidade que lhe abriu o caminho à apreciação
do trabalho intelectual e às renúncias aos instintos. (FREUD, 1997)
Constantemente surgiram, em meio ao povo judeu, homens que reviveram a
tradição e que não descansaram até que aquilo que estava perdido fosse mais uma vez
estabelecido. (FREUD, 1997)
Após seu surgimento e estabelecimento, num contexto de anti-semitismo, o povo
judeu foi alvo de diversas perseguições, sendo obrigado a migrar com freqüência. Por
10
esta razão, desde sempre a convivência com distintas sociedades foi algo corriqueiro,
como forma de sobrevivência.
Conforme Sartre (1987, p.87) “a partir do momento em que o judeu está
vinculado a opiniões sobre sua profissão, seus direitos e sua vida, sua situação é
completamente instável. Ele deve observar a evolução do anti-semitismo para prever
possíveis tempestades e saber que se encontra vulnerável”.2 Ainda sob o impacto da II
guerra mundial, o filósofo francês tece uma comparação entre o povo judeu, por
diversas vezes oprimido, e o protagonista de ‘O processo’, de Franz Kafka:
“Ambos estão empenhados num longo julgamento. Não se sabe quem são
os juízes, muito menos seus advogados; nem o motivo pelo qual estão sendo
acusados, embora saibam que estão sendo considerados culpados. Ainda
que sua situação externa seja de aparente normalidade, o julgamento
interminável acaba por miná-los por dentro”. 3 (SARTRE, 1987, p.88)
O primeiro registro dos movimentos migratórios do povo judeu encontra-se no
Velho Testamento, no livro do Êxodo (12:39 – 15:21):
“Embora o faraó permitisse que os israelitas saíssem do Egito, enviou suas
tropas para persegui-los assim que eles partiram. Mas uma vez que eles
cruzaram as águas do Mar Vermelho, ficaram livres para glorificar o
Senhor. Hoje em dia o povo judeu comemora esta libertação através da
páscoa judaica (Pessach)”.4 (KELLER, 1992, p.32)
Durante a Idade Média os judeus se estabeleceram na Península Ibérica, onde
permaneceram por alguns séculos, constituindo um centro intelectual e cultural baseado
em Toledo, Espanha. Mas em 1492, os reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de
Castela assinaram o édito de expulsão dos judeus, a fim de que os mesmos não
subvertessem os cristãos, segundo palavras dos próprios reis.
Surgiram novas correntes migratórias, mas agora o panorama global também
compreendia o Novo Mundo. Os judeus (assumidos ou conversos) participaram das
grandes navegações - ainda que de forma clandestina - como forma de escapar de um
2
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
4
Tradução livre do autor.
3
11
ambiente de intolerância religiosa. E no século XVI fundaram colônias judaicas no
Brasil, principalmente em Salvador e Recife. Durante a ocupação holandesa em
Pernambuco, os judeus foram contemplados com a igualdade de direitos e liberdade de
culto graças a Maurício de Nassau. Mas este cenário durou apenas vinte anos, devido à
reconquista do Recife pelos portugueses.
Parte dos judeus voltou à Europa, juntamente com os holandeses. Em 1655 os
judeus enviam uma petição à Companhia das Índias Ocidentais com o objetivo de
negociar e viver nos Estados Unidos. Autorizado o pedido, os judeus participam da
fundação de Nova Amsterdam (atualmente Nova Iorque), surgindo a comunidade
judaica norte-americana, hoje a maior do mundo. Durante o século XVII os judeus
participaram da Companhia das Índias como os principais acionistas. Tal fato se devia à
influência que os mesmos exerciam sobre o comércio europeu, especialmente na
Holanda, devido à liberdade religiosa.
Weber (1989, p.118) expõe as diferenças entre as culturas protestante e judaica
através de uma perspectiva de participação no então emergente sistema capitalista: “Os
judeus participavam do capitalismo ‘aventureiro’, político ou especulativo - seu ethos
era o do capitalismo sem pátria -, enquanto o puritanismo inglês oriundo do calvinismo,
baseava-se no ethos da organização racional do capital e do trabalho, apenas adotando
da ética judaica o que se adaptasse a tal propósito”.
Este aspecto citado por Weber classifica os judeus como especuladores, cujo
capital possui uma característica internacional, sem uma pátria definida. Tal conceito foi
progressivamente sendo incorporado ao imaginário coletivo dos europeus, nas últimas
décadas do século XIX.
“Para os puritanos ingleses, os judeus de seu tempo eram representantes do
capitalismo comprometido com contratos governamentais, monopólios
estatais, promoções especulativas e projetos financeiros dos príncipes. (...)
O capitalismo judaico era sem pátria e especulativo, enquanto que o
puritano integrava-se na organização burguesa do trabalho”. (WEBER,
1989, p.212)
No início do século XX, este conceito foi perigosamente distorcido e utilizado por
líderes de partidos nacionalistas, de extrema direita. Até culminar no grande genocídio
12
cometido pelos nazistas na II guerra mundial, na qual cerca de seis milhões de judeus
foram assassinados. Com o objetivo de reunificar os judeus em um só local - a ‘Terra
Prometida’, onde de acordo com o Velho Testamento seria onde hoje se encontra Israel
- surgiu no final do século XIX na Europa, o movimento sionista.
Publicado em 1896 pelo judeu húngaro Theodor Herzl, o livro ‘O estado judeu’
lançou as bases deste movimento. Dois anos antes, na França, houvera um caso de antisemitismo contra o oficial judeu Dreyfus, cuja repercussão mobilizou os judeus da
Europa a favor do sionismo, no limiar do século XX.
Herzl (1988, p.69) é bastante pragmático em relação a sua opção: “A idéia a qual
vou desenvolver neste panfleto é muito antiga: a restauração de um estado judeu”.5
Após o surgimento do sionismo e de intensas negociações políticas, com o voto de
Minerva da delegação brasileira na ONU, em 1948 foi criado o Estado de Israel.
Desde então dois milhões de judeus migraram para Israel. Hoje em dia, a
população judaica mundial é de aproximadamente 13 milhões. Os Estados Unidos com
seis, Israel com quatro, França com quase um milhão e os demais vivendo
principalmente na Ucrânia, Rússia, Argentina, Inglaterra e Brasil. Atualmente há os que
residem (nascidos ou imigrantes) em Israel e os da diáspora, ou seja, aqueles que
residem em outros países embora sejam judeus. Estes vivenciam em seu cotidiano a
dualidade entre sua cultura religiosa, tradicional e universal, e a cultura nacional, de seu
país de adoção.
Os primeiros judeus chegaram ao Brasil na época do descobrimento, durante as
primeiras expedições portuguesas do século XVI. Mas eram em sua maioria conversos,
fugindo da inquisição que estava no auge na Península Ibérica. Naquela época, o
judaísmo não obteve um desenvolvimento estruturado, pois os conversos, conhecidos
como cristãos novos, não se sentiam judeus de fato.
Devido ao fugaz domínio holandês no Recife, os judeus fundaram a primeira
sinagoga das Américas, aproximadamente em 1650. Alguns hábitos culturais recifenses
cultivados até hoje são heranças deixadas pelos judeus: pintar as casas no final do ano,
arrumá-las às sextas-feiras, comprar mercadorias à porta de casa e em prestações, entre
outros.
13
Mas a grande corrente imigratória originária principalmente da Europa Oriental
começou na década de 80 do século XIX. Centenas de milhares de judeus deslocaram-se
para as Américas, especialmente Estados Unidos e Argentina. O Brasil também recebeu
milhares de imigrantes que se estabeleceram basicamente no Rio de Janeiro, São Paulo,
Belém e Porto Alegre.
Mas o principal fluxo imigratório de judeus ao Brasil começou em 1903 e durou
cerca de meio século. Sua origem era basicamente de países do leste europeu (Polônia,
Rússia, Bessarábia, Romênia) e do Oriente Médio (Síria, Líbano, Turquia). Um
importante registro do encontro entre as duas culturas aparentemente tão distintas foi
colhido por um popular cronista carioca do princípio do século, que em 1906 escreveu o
livro ‘As religiões no Rio’. Ele descreve a festa religiosa de Pessach, embora o número
de participantes tenha sido exagerado:
“Cerca de quatro mil famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com
discrição, é certo, beberam sem violência, riram com calma, exatamente
porque a gente do país de Judá tem a tristeza n’alma e a tenacidade na vida.
Quem assistiu à orgia contínua dos batuques carnavalescos, talvez não possa
compreender como cerca de dez mil judeus comemoraram com tanta
modéstia e tanta correção”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN, 1998, p.31)
O cronista faz às vezes de Malinowski ao agir como o antropólogo, observador
solitário das Ilhas Trobriand, estando na sociedade do “outro”. João do Rio estava
envolvido à época numa espécie de trabalho de campo na então nascente sociedade
judaica brasileira. A diferença é que os judeus não estavam isolados como os indígenas
do referido arquipélago. A sociedade na qual os judeus estavam (e estão) imersos é, na
visão dos mesmos, do “outro” e do “eu”: a brasileira.
“Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a
alegria n’alma. É que os filhos de Israel são receosos, sempre curvados ao
sopro das perseguições, sempre sábios. Festejam sem que ninguém desse
por tal. (...) Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de
sinagoga, no fim da rua da Alfândega”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN,
1998, p.32)
5
Tradução livre do autor.
14
Cita o Carnaval, àquela época um traço cultural que ia tomando um vulto cada vez
maior no Rio de Janeiro. Mas o faz apenas com o intuito de estabelecer diferenças pelas
quais judeus e não-judeus comemoram suas festas. Não se torna etnocêntrico, devido ao
seu posicionamento, de compreensão e entendimento das razões pelas quais os judeus
são um tanto quanto discretos.
Há também uma coincidência: os judeus que chegavam ao Rio de Janeiro
procuravam residência numa área que tivesse terrenos com preços acessíveis e fosse ao
mesmo tempo próxima das estações de trens, pois muito trabalhavam como mascates e
tinham clientes no subúrbio. Optaram pela Praça Onze, no centro da cidade. Foi
exatamente ali, no início do século, que o samba urbano nasceu, e de onde os blocos
carnavalescos se concentravam para os desfiles.
“O bairro da Praça Onze, tendo a praça como ponto de convergência e de
encontro, teve uma vida judaica dinâmica e ativa do começo dos anos vinte
até o fim dos anos trinta, e dava a impressão de um enorme gueto, sem
muralhas ou restrições”. (MALAMUD, 1988, p.20)
Diversos rituais da comunidade, como a festa de Pessach, são semelhantes aos
praticados pelos judeus de todo o mundo. Mas por menor e mais homogênea que
pudesse parecer, a comunidade da época praticava seu judaísmo de diversas maneiras,
de acordo com as observações de João do Rio:
“Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam de chasán e fazem
apenas as duas grandes cerimônias: a do Iom Kipur ou dia do perdão, e o
ano novo, em Rosh Hashaná. (...) Algumas sinagogas já têm sido
estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber todos esses
senhores”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN, 1998, p.34)
Um fato curioso é que até hoje, decorridos praticamente cem anos, na mesma
cidade, grande parte dos descendentes desta comunidade também festejam apenas as
mesmas duas festas. Como se vê, algumas características permanecem atuais. Mas a
situação econômica dos judeus recém-chegados era precária. Alguns foram trabalhar
como motorneiros de bonde ou empregadas domésticas. Mas a grande maioria tornou-se
mascate ou vendedor ambulante:
15
“O vendedor ambulante judeu foi o precursor dos grandes estabelecimentos
de venda a crédito. (...) A venda a prestação contribuiu também para que o
vendedor ambulante fosse penetrando pouco a pouco na sociedade brasileira
e facilitou o estabelecimento de relações de amizade entre a população e o
imigrante, que assim foi se integrando ao meio ambiente”. (MALAMUD,
1988, p.29)
A imagem do judeu prestamista foi incorporando-se no inconsciente coletivo dos
brasileiros. Configurava-se como um tipo astuto, hábil, sempre envolvido em transações
comerciais e negociações das mais diversas. O compositor Noel Rosa fez um samba nos
anos trinta que cita esta figura, de uma forma sarcástica:
“Quem dá mais? / Por um violão que toca em falsete, / Que só não tem
braço, fundo e cavalete, / Pertenceu a Dom Pedro, morou no palácio, / Foi
posto no prego por José Bonifácio? / (...) Quem arremata o lote é um judeu,
/ Quem garante sou eu, / Pra vendê-lo pelo dobro no museu”.6 (ROSA apud
MÁXIMO e DIDIER, 1990, p.167)
De certo modo, a dicotomia sócio-cultural vivida pelos membros do grupo tornouse visível, uma vez que o ‘ser judeu’ pode-se constituir uma característica concomitante
com o ‘ser brasileiro’. Dependendo do grau de identificação em relação ao grupo social
judaico, esta dicotomia pode estabelecer-se de um modo mais latente em situações
muitas vezes cotidianas.
Uma experiência pessoal torna-se ilustrativa: estava caminhando pelas ruas do
Rio de Janeiro7, com uma kipá. Trata-se de um sinal de respeito, mas também de um
símbolo, uma identidade do ‘ser judeu’, de orgulho de pertencer ao grupo. Na zona sul,
fui abordado por uma pessoa que indagou: “você é brasileiro?”. No imaginário popular
dos brasileiros, às vezes, há uma impossibilidade de alguém ser judeu e brasileiro. É
interessante verificar o approach judaico em relação aos rituais típicos da cultura
brasileira através de um fato verídico. Quando meu avô desembarcou no porto do Rio
de Janeiro, em 1929, proveniente da Polônia, um brasileiro ofereceu uma xícara de café
6
7
Devido a este tipo de ironia, o compositor foi rotulado de anti-semita, o que não era o caso.
Durante o Iom Kipur (outubro de 1998).
16
quente. O imigrante acreditou ser uma brincadeira pois de acordo com o mesmo seria
impossível tomar algo tão quente num calor intenso de um país tropical.
A língua utilizada pelos recém-chegados era um dialeto bastante popular
originário do leste europeu: o ídiche. Havia ainda nos anos trinta uma imprensa judaica
que publicava livros e periódicos neste dialeto. Muitos judeus, donos de
estabelecimentos comerciais, não aprenderam o português: seus funcionários não-judeus
é que necessitaram aprender o ídiche.
Mas após cerca de 50 anos (duas gerações), o dialeto praticamente morreu no
Brasil. O que apenas simboliza o processo de assimilação pela qual os judeus brasileiros
passaram. Embora atualmente no Rio de Janeiro existem oito escolas judaicas, que
ensinam o idioma hebraico e os costumes e tradições judaicas. No que tange ao aspecto
geográfico, antes restrita à Praça Onze, a comunidade judaica carioca disseminou-se por
toda a cidade. Nos anos 50 e 60, estabeleceu dois grandes pólos: na Tijuca e em
Copacabana. A partir dos anos 90 iniciou-se um fluxo migratório das zonas norte e sul
da cidade em direção à Barra da Tijuca.
Em termos de tamanho, pode-se dizer que a população atual da comunidade é de
cerca de 50 mil pessoas, número equivalente ao de 1950. Tal fato se dá devido à forte
assimilação que vem se sucedendo nas últimas décadas, fazendo com que a população
mantenha-se num mesmo patamar. Portanto, a dualidade do ‘ser judeu’ e ‘ser brasileiro’
é algo extremamente atual. A convivência entre estas duas culturas constitui-se num
fator decisivo para a definição da futura posição da comunidade judaica no Brasil e no
Rio de Janeiro.
2.3
Consumo: relações entre Marketing e Antropologia
Determinar quando, como e quem adquire algum bem ou serviço é algo
relativamente simples de ser obtido. No entanto, determinar as razões pelas quais as
pessoas compram, é uma tarefa razoavelmente complexa. Para tanto, é necessário o
estudo de modelos de comportamento humano. (KOTLER, 1968)
Segundo o próprio Kotler (1968, p.545), “o estrategista de Marketing deve
associar o comportamento do consumidor às potenciais contribuições interpretativas de
17
diversos modelos explicativos”.8 Aqui encontram-se as mais importantes teorias de
comportamento do consumidor relacionadas de um modo efetivo com os objetivos deste
trabalho. Os conceitos provenientes destas teorias estão interligados com a metodologia
a ser utilizada, através da pesquisa de campo etnográfica. O referencial teórico relativo à
metodologia empregada (etnografia) encontra-se no capítulo três.
O consumo nas sociedades pré-industriais, assim como os demais aspectos da
vida cotidiana eram fortemente influenciados pelos hábitos e tradições. A ambição
individual de melhorar a qualidade de vida criando novas necessidades era considerada
ameaçadora à sociedade, além de possuir um caráter imoral. A sociedade inglesa do
século XVIII demonstrou uma propensão inédita em termos de consumo. A variedade
de produtos ofertados aumentou de forma nunca vista anteriormente, devido à escala de
produção decorrente da revolução industrial. A demanda por consumo acompanhou a
oferta, iniciando a chamada revolução do consumo. (CAMPBELL, 1987)
Durante o século XVIII surgiu também o ‘padrão de moda do ocidente europeu’,
que foi se constituindo num fenômeno de dimensão global. A velocidade com a qual os
produtos passaram a serem modificados em função da moda foi aumentando, alterando
o padrão de produção. A moda dependia de alguns fatores tais como localização
(Londres era o centro da sociedade) e o extrato social, pois a preocupação com a moda
começou nas classes mais elevadas. (MCKENDRICK apud CAMPBELL, 1987).
A emergência de uma moderna sociedade de consumo na Inglaterra, segundo
Campbell (1987, p.31) “foi conduzida pelos setores da sociedade com as tradições
puritanas mais arraigadas, quais sejam: a classe média, os negociantes e os artesãos”.9
Com o objetivo de explicar as causas que motivaram esta sociedade a consumir,
surgiram duas teorias, a da tradição instintiva e da manipulativa.
A perspectiva da tradição instintiva é baseada no conceito de demanda latente,
isto é, o comportamento humano possui um potencial, em termos biológicos, por
determinadas necessidades (de subsistência ou de consumo). Este potencial latente será
realizado uma vez que haja a adequada oferta de produtos. Mas o conceito de
comportamento instintivo é insustentável, uma vez que se existissem de fato inclinações
8
9
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
18
e vontades pré-determinadas, seria improvável explicar o tamanho grau de variabilidade
que caracteriza os desejos humanos. (CAMPBELL, 1987)
A tradição manipulativa vislumbra os consumidores como alvo de agentes que os
impelem no sentido de desejar determinados bens. Esta teoria posiciona os
consumidores de uma forma passiva, uma vez que apenas atuam como receptores de
agentes como a propaganda ou os pesquisadores de mercado. (CAMPBELL, 1987)
Uma crítica a esta teoria refere-se ao fato de que os anúncios constituem apenas
parte das influências recebidas pelos consumidores. Há outras entidades que têm uma
forte influência cultural, como instituições religiosas, escolas, entre outros. Além do
mercado de consumidores não ser homogêneo, trazendo diversas interpretações para a
percepção do conteúdo da mensagem. (CAMPBELL, 1987)
Com o surgimento do capitalismo moderno, após a revolução industrial, alguns
economistas começaram a desenvolver teorias sobre as novas formas de relacionamento
comerciais. Algumas destas teorias contemplavam as práticas de consumo, fenômeno
que estava adquirindo uma complexidade inédita. Àquela época, a instituição da
propriedade privada, por mais embrionária que fosse, representava um processo
econômico com o caráter de luta pela posse de bens. O motivo que está na base da
propriedade é a emulação, a rivalidade. E já que a mesma não possui relação direta com
a subsistência humana, estimula uma comparação odiosa entre o proprietário e os
demais membros do grupo. (VEBLEN, 1965)
A propriedade adquire um sentido de troféu. Num ambiente industrial, a posse da
riqueza torna-se mais importante como base de estima e reputação, e funciona como
algo que confere honra ao seu possuidor. Este processo de acumulação de riquezas
transforma-se num processo contínuo no qual o fundamento de tal necessidade é o
desejo de cada um sobrepujar os demais. O conceito da emulação pecuniária é o
principal motivo pelo qual os homens buscam a acumulação de riquezas. Surge o
conceito do consumo conspícuo, ou seja, um consumo improdutivo de bens, de natureza
honorífica, como forma de alimentar uma emulação social. Assim, pessoas pertencentes
às mais altas classes sociais cultivam o chamado ‘bom gosto’, criam um sistema
classificatório e tornam-se connoiseurs em determinadas categorias de produtos.
(VEBLEN, 1965)
19
É interessante verificar que, quando o consumo conspícuo é adotado por classes
mais elevadas, o mesmo pode tornar seus membros mais preconceituosos na medida em
que aqueles que não possuam tais bens são discriminados. O próprio conceito de ‘bom
gosto’ é algo extremamente duvidoso, além de etnocêntrico por natureza. Na visão de
Veblen, o homem é um ‘animal social’: seus desejos e comportamentos são moldados
de forma primordial pelos seus códigos de identidade de grupo, o que pertence e o que
aspira pertencer. Ao utilizar seu conceito de classe ociosa, Veblen admite que o
consumo é motivado não somente pelas necessidades intrínsecas, mas também pela
busca de prestígio. (KOTLER, 1968)
Os economistas denominaram de ‘efeito Veblen’ certos preceitos aplicáveis sobre
a definição de preços de commodities, pois são determinados não somente por sua
utilidade ou valor econômico, mas também pelo seu símbolo cultural. Portanto, a
demanda por bens pode aumentar proporcionalmente ao preço dos mesmos, caso a
função de consumo seja de natureza de emulação pecuniária. Alguns críticos afirmam
que a teoria de Veblen não distingue o consumo tradicional do moderno, pois esta não
contempla alguns fenômenos contemporâneos do consumo, tais como a insaciabilidade
e o desejo do ‘novo’. O approach da teoria da classe ociosa também é visto como,
embora seja influenciado pela Antropologia, aplicado de um modo generalizado a
sociedades que são, muitas vezes, distintas entre si. (CAMPBELL, 1987)
Uma análise mais detalhada do ponto de vista psicológico possibilita uma crítica
ao conceito de consumo conspícuo de Veblen:
“Em sociedades modernas nas quais os padrões de consumo são mutantes,
os indivíduos necessitariam modificar constantemente seus hábitos de
consumo para continuar a emitir seus sinais concernentes ao status social
almejado. (...) Ou seja, as pessoas poderiam efetuar uma avaliação errônea
de alguém que estivesse utilizando um carro ultrapassado ou roupas fora de
moda. A razão principal não seria decorrente de imitação, emulação ou até
mesmo de competição, mas sim do fenômeno da moda”.10 (CAMPBELL,
1987, p.56)
10
Tradução livre do autor.
20
O autor continua a montar o que chama de ‘quebra-cabeças’ do consumo
moderno, na medida em que combina o comportamento social emulativo sugerido por
Veblen com o fenômeno da moda:
“Há uma combinação entre a emulação social e a moda: quem está no topo
da escala social tem uma necessidade de inventar novos modismos com a
intenção de manter sua superioridade sobre os que se encontram
imediatamente abaixo, que, devido aos anseios emulativos, copiam os novos
padrões de consumo. Este processo se repete até contemplar todos os
demais extratos do sistema social em questão”.11 (CAMPBELL, 1987, p.56)
É importante observar que Veblen foi um dos pioneiros no estudo das relações de
consumo. Daí as críticas que surgiram posteriormente. Como McCracken (1988, p.89),
que afirma: “só recentemente as limitações impostas por Veblen foram ultrapassadas.
Hoje é visível o reconhecimento de que há um significado cultural associado aos bens
de consumo, sendo mais vasto e complexo do que a atenção Vebleniana direcionada ao
status foi capaz de conceber”.12
De acordo com Rocha (1995, p.125) “nossa sociedade industrial é uma formidável
máquina de produção. (...) O eixo do produtivismo é parte integrante da configuração de
nossa cultura. (...) Distingue e opõe a sociedade industrial àquelas que ainda resistem no
planeta”.
A grande transformação pela qual passou o mundo ocidental não foi somente a
revolução industrial, mas também a ‘revolução do consumo’. Esta revolução significa
não só uma modificação nas atitudes e padrões de compra, mas também uma mudança
fundamental na cultura do mundo ocidental moderno. (MCCRACKEN, 1988)
Segundo McCracken (1988, p.30), “a revolução do consumo constituiu-se num
agente de mudança social, transformando de modo contínuo e sistemático praticamente
todos os aspectos da vida social”.13 Há uma dinâmica de significados nas relações de
consumo: entre o mundo culturalmente constituído e os bens de consumo; e entre estes e
o consumidor. Cada um destes três elementos (mundo, bens e consumidor) representa
11
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
13
Tradução livre do autor.
12
21
uma dada situação de um significado cultural. Cabe aqui uma descrição de cada um
destes três elementos e suas respectivas relações de transferência:
Elemento “mundo cultural”: as sociedades são constituídas por uma cultura, que
nada mais é do que uma lente que determina como o mundo é visto, suprindo-o com
significados. Os membros de uma certa cultura estão empenhados na construção do
mundo no qual vivem. Os bens são não só uma oportunidade para a expressão das
categorias (idade, sexo, ocupação) estabelecidas pela cultura, como também pelos
princípios, tais como ideais e valores. A transferência mundo / bens é realizada através
de duas formas: a publicidade, que funciona como um método de transferência de
significados ao trazer de modo integrado um bem de consumo e sua representação num
mundo culturalmente constituído; e de um sistema de moda, que associa a novos
produtos certas categorias e princípios culturais estabelecidos; (MCCRACKEN, 1988)
Elemento “bens de consumo”: segundo McCracken (1988, p.83) “os bens
exercem um papel de canal pelo qual os indivíduos comunicam significados culturais,
de acordo com a expressão constituída de nosso mundo. Alguns significados culturais
dos produtos são aparentes; outros estão ocultos”.14 A transferência bens / consumidor
faz-se através dos rituais, que são ações de caráter social voltadas à manipulação de
significados culturais com o propósito de categorização ou comunicação individual ou
coletiva. Quatro formas de rituais são enumeradas: (MCCRACKEN, 1988)
A primeira é a troca: ocorre no Natal ou em aniversários, quando o comprador
seleciona um produto devido às propriedades de significado que o mesmo possui, e
deseja transferi-las para o recebedor. A possessão é a segunda forma de ritual:
manifestado pelo tempo dispendido pelos consumidores na manutenção de suas posses.
Em verdade, há outras ações envolvidas: discussões, reflexões, exibições, comparações,
entre outras. O conjunto de tais ações permite ao consumidor reivindicar estes bens
assim como sua posse;
Devido à natureza perecível, alguns significados de bens de consumo necessitam
de constante manutenção por parte do consumidor: é o embelezamento, o terceiro ritual.
Embora alguns destes rituais de embelezamento envolvam serviços aplicados
diretamente ao consumidor (cortes de cabelo, personal trainers), outros rituais referem14
Tradução livre do autor.
22
se a bens tangíveis, como automóveis. O quarto e último ritual é a libertação: ocorre
devido à confusão que o consumidor faz entre as suas propriedades e as do bem de
consumo. Quando uma casa ou carro é adquirido, o ritual de libertação consiste em
apagar quaisquer significados do antigo proprietário. O fenômeno também ocorre no
sentido inverso, ou seja, quando o proprietário se desfaz do bem.
E por fim o elemento “consumidor”: é alguém que se encontra engajado num
‘projeto cultural’ com o objetivo de realizar suas idéias para tornar-se um cidadão, um
profissional, um familiar, entre outros papéis sociais. Os bens de consumo estabelecem
uma oportunidade para uma comunidade expressar um significado cultural num meio
que não a linguagem, de modo que este significado é corrigido ou então preservado.
(MCCRACKEN, 1988)
No contexto do extrato cultural e social de uma sociedade, os indivíduos
identificam-se a partir de características como: idade, profissão, nível educacional,
religião, sexo, classe, nível de renda, bairro ou etnia a qual faz parte. Estes aspectos por
sua vez influenciam o comportamento do consumidor. Surge o conceito de status
vinculado à posição social simples, ou seja, sem implicações de ordem hierárquica.
Cada indivíduo possui um conjunto de status: pai, irmão, filho, marido, pescador,
vendedor. Esta associação verifica-se igualmente em termos de consumo: comprador de
música reggae, livros esotéricos, jogos de futebol, artigos esportivos, teatro, gourmet,
entre outros. (COSTA, 1995)
Como status de consumo há obrigações, direitos e comportamentos esperados,
construindo-se assim um papel social do consumidor. A partir da composição de sua
personalidade o indivíduo encontra-se mais propício a consumir os bens que
socialmente representem uma coesão de sua identidade. (COSTA, 1995)
Mas não são somente os bens de consumo que configuram a identidade de um
dado universo de consumidores: Wallendorf e Arnould (1988, p.542) afirmam que
“objetos de predileção expressam aspectos pessoais como gênero, idade ou experiência
cultural característica”.15
Estes objetos de predileção podem possuir vínculos: entre si e com o papel social
representado pelo proprietário. Então um consumidor de jantares sofisticados - um
23
gourmet – pode apreciar vinhos franceses, roupas de alta costura, carros de luxo de
estilo europeu, cristais Lalique, tapetes persas, entre outros. Ao se analisar o consumo
de modo fragmentado ao final surgirá uma identidade coesa. (COSTA, 1995)
Os objetos de predileção somados ao conjunto de bens de consumo formam as
chamadas possessões. Ou de acordo com Belk (1988, p.139): “Nós definimos as
possessões como o conjunto de coisas que chamamos de nossas (...) e que constituem
um fator decisivo para a formação e reflexão de nossas identidades”.16
“Parece um fato inquestionável da vida moderna que nós aprendemos,
definimos e nos recordamos o que somos de acordo com nossas possessões.
As evidências sugerem que a identificação com nossas possessões começa
cedo na vida. Desde a infância aprendemos a nos diferenciar do meio e
conseqüentemente dos demais que poderiam cobiçar nossos pertences. A
ênfase em possessões materiais tende a decrescer com a idade, mas
mantém-se elevada na medida em que procuramos nos expressar através das
mesmas e utilizá-las para a busca da felicidade, da lembrança de certas
experiências e até mesmo criar um senso de imortalidade. A acumulação de
possessões provê um senso de passado e nos diz quem somos, de onde
viemos e talvez para onde vamos”.17 (BELK, 1988, p.160)
Em países nos quais o consumo alcançou um elevado grau de desenvolvimento e
sofisticação, como nos Estados Unidos, espera-se que os indivíduos comuniquem suas
identidades através de determinadas classes de bens de consumo como automóveis,
roupas e restaurantes. Além disso, os comportamentos e as identidades de consumo
estão diretamente associados com grupos com os quais há interação. Torna-se
imprescindível analisar a organização social na qual está inserido o consumidor. Em
função do dinamismo das relações sociais e do processo de identidade social e
individual, é possível desvendar os hábitos de consumo e todo o contexto do
comportamento de um determinado grupo étnico. (COSTA, 1995)
Nas últimas décadas, o comportamento do consumidor desenvolveu-se a partir de
uma ênfase em aspectos meramente racionais, como a microeconomia, até envolver
15
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
17
Tradução livre do autor.
16
24
aparentes necessidades de consumo de ordem irracional. Um approach recente,
denominado modelo de processamento de informações, vislumbra o consumidor como
um pensador lógico que resolve problemas ao tomar decisões de compra. Mas alguns
fenômenos tais como prazeres sensoriais, respostas emocionais, devaneios e prazeres
estéticos também passaram a serem relevantes. Todo este conjunto de características é
conhecido como uma visão experimental das práticas de consumo. (HOLBROOK e
HIRSCHMAN, 1990)
O composto formado por lembranças, fantasias, sentimentos e emoções, vivido
pelo consumidor em suas relações com produtos ou serviços, é denominado de consumo
hedônico. Critérios estéticos e significados simbólicos também compõem este conjunto.
Portanto a visão experimental contrastada com o processamento de informações
provenientes do consumidor oferece um panorama qualitativo do consumo.
(HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990)
Mas há variações: o chamado hedonismo tradicional é concernente ao conceito de
‘prazeres’, ou seja, à valorização de atividades que produzam prazer ao indivíduo. O
objetivo primordial é o de aumentar o número de vezes nas participações em atividades
prazerosas. (CAMPBELL, 1987)
Enquanto que ainda há outra forma de hedonismo, com uma distinção essencial
em relação ao tradicional:
“O hedonismo moderno também consiste numa forma de conduta balizada
pelo desejo de antecipar a qualidade do prazer que uma dada experiência
possa produzir. Mas aqui o prazer é obtido via estímulo emocional e não
meramente sensorial; as imagens que provocam tal estímulo são criadas ou
modificadas pelo consumidor e não devido a uma presença de estímulo
‘real’. Tende a ser auto-ilusório, pois o indivíduo constrói imagens mentais,
configurando um fenômeno de sonhar (day-dreaming) ou fantasiar”.18
(CAMPBELL, 1987, p.77)
Segundo o modelo de contraste entre a visão experimental e o processamento de
informações, há alguns fatores que agem como inputs para o consumidor. Após um
processamento por um sistema reativo é gerada uma série de outputs, que funcionam
25
como uma espécie de alimentador para um aprendizado constante por parte do
consumidor. (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990)
A seguir, encontram-se as subdivisões do sistema proposto. Em cada uma delas há
um contraste entre variáveis mensuráveis e outras experimentais, ou seja, de percepção:
Os inputs do ambiente: tais como as características dos produtos, mas não
somente as técnicas, como também as de significado simbólico: elegância,
sociabilidade, satisfação. Propriedades de estímulo, verbais ou não-verbais: tato, olfato
ou paladar. Os inputs do consumidor: recursos de capital ou tempo. A definição
propriamente dita da tarefa de consumo: pragmática, para resolver um problema, ou
então com característica hedônica. O tipo de envolvimento, de natureza cognitiva ou
aspecto orientação / reação / estímulo. Características da atividade de procura: se
meramente de aquisição de informações ou então com comportamento de natureza
exploratória. Diferenças individuais como religião ou nacionalidade; (HOLBROOK e
HIRSCHMAN, 1990)
O sistema reativo: a cognição individual atua através da memória, estrutura de
conhecimento, crenças e protocolos; mas também graças ao subconsciente, ao
imaginário, utopias, fantasias e livres associações. O processo cognitivo gera a afeição
do consumidor, representada seja através de suas preferências e atitudes seja por suas
emoções e sentimentos. Finalmente a afeição resulta no comportamento do consumidor,
simbolizado por sua decisão de compra ou sua experiência de consumo; (HOLBROOK
e HIRSCHMAN, 1990)
Os outputs: Numa perspectiva de processamento de informações, os propósitos,
resultados e funções do bem adquirido representam o resultado do consumo; mas numa
visão experimental, a satisfação, a alegria e o prazer dão o tom da prática de consumo,
numa visão hedonista; (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990)
Por fim, como que funcionando como um feedback ao sistema reativo, surge o
aprendizado adquirido pela experiência de consumo como uma das principais
conseqüências do processo de compra. Holbrook e Hirschman (1990, p.189)
complementam citando “o comportamento do consumidor como um fascinante
complexo resultante de uma interação multifacetada entre os organismos e o ambiente.
18
Tradução livre do autor.
26
Neste processo dinâmico, nem variáveis quantificáveis nem componentes experimentais
como fantasias, sentimentos e alegria podem ser ignorados”.19
Tomando-se o consumo como a utilização de possessões materiais, acima do
conceito do comércio e das leis, as decisões que são decorrentes do mesmo
caracterizam-se como uma fonte vital dos sinais emitidos pela cultura do grupo social
em questão. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979)
Em toda cultura há certas leis que estão implícitas no código simbólico coletivo:
regras do que é ou não aceito pelos membros do grupo. Por exemplo, não se pode
vender a própria honra ou uma pessoa, por exemplo. Ou a diferença entre dar um
presente e dar dinheiro, que possui uma fronteira bem delimitada: é aceitável dar flores
a uma tia hospitalizada. No entanto não é recomendável enviar a quantia respectiva com
uma mensagem ‘compre flores’, pois a mesma não seria bem recebida. Há um limite
bastante claro entre determinadas atividades na sociedade ocidental: em termos
pessoais, é aceitável presentear os serviços realizados por alguém através de presentes
ou recompensas, embora no âmbito profissional ou comercial seja permitido utilizar
dinheiro. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979)
Douglas e Isherwood (1979, p.59) visualizam o consumo sob um novo enfoque na
medida em que “ao invés de supor que os bens são almejados essencialmente devido à
subsistência e à necessidade de exibição, vamos assumir que são almejados para tornar
visíveis as categorias de cultura envolvidas”.20
Os bens de consumo representam um universo, desempenhando algumas funções.
Este complexo construído por commodities traz consigo um significado social assim
como um aspecto cultural devido ao uso dos mesmos como elementos ativos de
comunicação. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979)
Este universo de significados também é muito bem captado pelo mundo da
propaganda, como afirma Rocha (1995, p.154): “Um complexo sistema de
classificações (...) é elaborado tanto pela publicidade quanto por outras produções da
comunicação de massa. A publicidade articula e correlaciona um sistema de diferenças
e (...) a complementaridade entre o mundo da produção e o do consumo”.
19
20
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
27
Tais significados culturais fazem e mantêm relações sociais. Este approach
produz uma idéia de significados sociais mais rica do que meramente um sentido de
competição. Os bens de consumo desempenham um papel de meio de comunicação
não-verbal para a criatividade humana. Sem meios de selecionar e fixar significados o
menor consenso de uma sociedade encontra-se comprometido. Assim como funciona
para as sociedades tribais, nossa sociedade ocidental utiliza os rituais para conduzir o
fluxo dinâmico de significados. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979)
Entre alguns rituais temos a entrada na escola, o vestibular, o ‘trote’ de iniciação
na faculdade, a formatura na faculdade, o casamento, e até mesmo a defesa desta
Dissertação. O judaísmo, por exemplo, possui rituais bastante característicos como o
bar-mitzva, o shabat, o brit-milá, sendo alguns com milhares de anos de tradição.
“Alguns rituais são verbais, não sendo gravados, portanto desvanecendo-se
no ar. Assim sendo, os mesmos dificilmente auxiliam na elaboração do
limite de um escopo interpretativo. Mas os rituais mais efetivos utilizam-se
de objetos tangíveis, facilitando a identificação de significados. Nesta
perspectiva os bens são rituais suplementares e o consumo é um processo no
qual a função principal é atribuir sentido ao fluxo de eventos”.21
(DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979, p.65)
De acordo com esta teoria, um dos principais objetivos do comportamento do
consumidor é o de montar um universo compreensível ao seu redor com os bens de sua
própria escolha. Este universo é compartilhado com o grupo social que está a sua volta
(composto por familiares, amigos e conhecidos). O julgamento deste grupo em relação
aos seus padrões de consumo é extremamente importante, na medida em que vai
caracterizar se os mesmos são compreensíveis ao grupo. Através deste ritual que é o
consumo, o indivíduo diz algo sobre si mesmo, sua família, localização, hábitos, entre
outros. Desde as atividades mais rotineiras, como arrumar a mesa, até outras mais
complexas, como a decoração da casa. O consumo é um processo ativo no qual as
categorias sociais estão sendo continuamente renovadas. (DOUGLAS e ISHERWOOD,
1979)
21
Tradução livre do autor.
28
Há ocasiões em que o ambiente de uma loja funciona como uma moldura na qual
o comportamento do consumidor é conformado a fim de que seja pertinente. De certo
modo uma persona ou um estilo de comportamento é assumido pelo consumidor. As
pessoas adotam uma forma característica de andar e falar. (MILLER, 1997)
A postura denota leves sinais de movimentação do corpo, de apreciação da música
que vem dos arredores. Dependendo do grupo social em questão, o hábito de fazer
shopping proporciona uma boa desculpa para encontrar outras pessoas. E mais: os
compradores ‘passam o tempo’ nos shoppings e malls e aproveitam para fazer
comentários sobre a aparência das pessoas, entre outros aspectos. (MILLER, 1997)
Na cidade do Rio de Janeiro, este comportamento é perfeitamente visível em
shoppings centers como o São Conrado Fashion Mall e o Shopping da Gávea, utilizados
por determinados grupos sociais como pontos de encontro, gerando uma forma
altamente característica de sociabilidade.
O ambiente destas catedrais do consumo favorece o aspecto ritualizado, dentro de
um contexto urbano. Um processo semelhante ocorre em lugares públicos como
cinemas, templos religiosos, museus ou galerias de arte. Todos estão conectados
fisicamente à rua, o espaço público por excelência. (MILLER, 1997)
Mas, uma vez dentro de um shopping center, a configuração espacial torna-se
diferente em relação à rua: a fronteira entre o interior (lojas) e o exterior (corredores e
galerias) tende a ser dissolvida. Todos os espaços são devassáveis - devido às vitrines e não há uma distinção clara entre o público e o privado. (FALK, 1997)
Conseqüentemente os shoppings e malls vêm se constituindo em locais cada vez
mais apropriados para novas formas de interação social. Até mesmo os produtos que
estão expostos nas vitrines comunicam uma informação social específica para os
consumidores. (MILLER, 1997)
O conceito de consumo em shoppings assume, segundo Falk (1997, p.183), “um
papel marginal, no qual a realização da compra – em alguns sentidos – pode adquirir um
caráter de mero potencial a ser realizado (...) embora haja fatores tão díspares presentes,
como o prazer e a ansiedade”.22
22
Tradução livre do autor.
29
O prazer encontra-se presente tanto na ação de circular pelo shopping como em
consumir. A atividade social, a mudança de ambiente que não o do confinamento do lar,
o sentido de investimento (e não dispêndio) em pequenos bens que serão configurados
no patrimônio do consumidor, todos estes fatores compõem o prazer de circular e
comprar nos shoppings. Em oposição ao prazer, surge o conceito de ansiedade,
decorrente da associação com as compras comuns do dia-a-dia, representadas por
alimentos e objetos do lar. Embora pareça por demais mecânico ou monótono, este tipo
de consumo possui seus próprios rituais, complexidades e experiências correlatas.
(MILLER, 1987)
Ao tomar-se a compra de um desinfetante, há fatores técnicos e econômicos
envolvidos, como o cheiro, a cor, a embalagem, a eficiência e o preço. Mas observandose os envolvidos na compra, a atmosfera reflete as implicações decorrentes das relações
sociais: uma neta que demonstra conhecimento sobre o mercado e afirma que o produto
que sua avó escolheu é ultrapassado; duas donas-de-casa que têm liberdade de compra,
abstraindo-se do domínio de seus maridos; filhos que não gostariam de ter seus desejos
de consumo frustrados por seus pais, e assim por diante. (MILLER, 1997)
2.4
Consumo, religião e etnia: implicações no Marketing
Nesta seção está o referencial teórico relativo aos aspectos religiosos que estão
ligados ao fenômeno do consumo. A fim de trazer subsídios para esta perspectiva
heterodoxa do consumo, foram utilizados artigos contemporâneos de alguns journals de
Marketing americanos.
A religião, como um aspecto cultural, tem uma considerável influência nos
valores, hábitos e atitudes das pessoas, assim como em seus estilos de vida. Estes
fatores, por sua vez, afetam o comportamento do consumidor. (DELENER, 1994)
Finalizando a seção encontra-se uma abordagem do Marketing étnico, direcionado
para grupos sociais com uma cultura peculiar, sendo geralmente constituídos por uma
minoria. Uma introdução sobre as condições presentes para o surgimento de um
mercado segmentado também é apresentada. O segmento do Marketing étnico é mais
representativo nos Estados Unidos. Entre os artigos que forneceram os subsídios, há
também anúncios que fazem referência ao assunto.
30
A orientação religiosa possui uma forte influência no desenvolvimento familiar,
contribuindo para a definição de um código de valores. Assim sendo, há uma relação,
com maior ou menor intensidade, envolvendo os valores familiares e o comportamento
de consumo. Uma das funções da religião é a de fornecer significados às pessoas,
muitas vezes trazendo um propósito para suas vidas. A religião define caminhos para a
execução de certas tarefas, promovendo a base para o comportamento social, além de
sustentá-las moralmente. No entanto, estudos no sentido de investigar a relação com o
consumo têm sido raros. (DELENER, 1994)
A perspectiva de uma experiência religiosa aplica-se no consumo a partir de
conceitos como o ‘sagrado’ e o ‘profano’. Entre as propriedades do sagrado temos: o
sacrifício, como elemento de abnegação e submissão; o comprometimento, devido às
intensas ligações dos participantes com o sagrado; os rituais, regras de conduta na
presença de objetos sagrados; e os mitos, que mantêm o status de sagrado através da
repetição. (BELK, WALLENDORF e SHERRY JR, 1989)
Com o surgimento ou a flexibilização de determinadas religiões, através de
serviços
não-tradicionais
ganhando
cada
vez
mais
adeptos,
a
banalização
(secularização) da religião ganha cada vez mais força. Este fenômeno, juntamente com a
sacralização do mundano (como as estrelas de Hollywood ou os mitos do esporte)
permite a aplicação da dualidade entre o sagrado e o profano no contexto do secular
consumo moderno. Entre os domínios do consumo moderno com elementos da
dualidade em questão, temos: lugares, tempo, coisas tangíveis, intangíveis,
personalidades e experiências. Assim, os bens de consumo potencializam e catalisam as
experiências do sagrado. Este processo de sacralização ocorre devido a ritualização,
peregrinação, arrecadação, herança, entre outros. (BELK, WALLENDORF e SHERRY
JR, 1989)
Os consumidores, na visão de Belk, Wallendorf e Sherry Jr (1989, p.30), “ao
expressar seus valores através de seu consumo, participam numa celebração de sua
conexão com a sociedade como um todo e com eles próprios. Independente dos esforços
de Marketing ou considerações de marca, os próprios consumidores sacralizam seus
bens de consumo criando significados transcendentes em suas vidas”.23
23
Tradução livre do autor.
31
Há pesquisas realizadas nesta área. Através de informações coletadas com
minorias religiosas (católicos e judeus) da região noroeste dos Estados Unidos e
testando certas hipóteses, foi possível mensurar como a religião e o grau de
religiosidade de casais afetavam o comportamento de compra de um carro. Diversas
perguntas foram apresentadas: quanto gastar, além de quando, onde, qual modelo e qual
cor comprar. (DELENER, 1994)
O questionário focalizava três aspectos da relação familiar: performance da
função (divisão interna de tarefas), poder (divisão na tomada de decisão) e conflitos
(grau de discordância entre os cônjuges). A conclusão da pesquisa foi que entre as
famílias católicas havia uma estrutura autoritária, além da centralização das decisões
com o homem. Entre as famílias judaicas percebeu-se uma estrutura mais democrática
além de um maior compartilhamento de decisões. (DELENER, 1994)
Delener (1994, p.48) conclui que “existem nichos de Marketing em determinados
mercados, devendo ser considerados fatores que moldam a cultura dos consumidores,
como a religião. Os valores religiosos representam o mais básico elemento do universo
cognitivo dos consumidores. Se o papel do homem ou da mulher for ignorado ou
menosprezado, a venda do produto ou do serviço pode estar perdida”.24
Outra pesquisa semelhante apresentou as diferenças em meio a minorias religiosas
nos Estados Unidos em relação ao risco percebido na decisão de compra de bens de
consumo duráveis. Entre os judeus verificou-se uma menor lealdade à marca e às lojas
do que em relação aos não-judeus. Não só a decisão de compra é afetada pela religião,
como também a satisfação do consumidor, através do cumprimento de suas
expectativas. O posicionamento e respectivas estratégias promocionais também, pois
quando a mensagem for direcionada a mídias específicas pode envolver valores
religiosos pertinentes a seu mercado consumidor potencial. (DELENER, 1990)
Costuma-se utilizar o termo ‘pós-moderno’ para designar o estágio atual da
sociedade. Mas quais são as características associadas a esta denominação? Algumas
estão descritas a seguir: (PATTERSON, 1998)
A tolerância, como uma aceitação da diferença (diferentes estilos ou modos de
vida) sem prejuízos ou julgamentos de superioridade. Favorece o aparecimento de
32
‘tribos’ urbanas. A fragmentação, ou seja, consumidores exigindo um tratamento mais
individualizado com maior nível de exigência para os produtos demandados ao mesmo
tempo em que os produtores segmentam seu público para obter crescimento em
mercados maduros. Crescente aceitação do dinamismo que leva à fragmentação dos
mercados.
Outras características são as justaposições paradoxais: propensão cultural a
justapor quaisquer fenômenos, por mais que ambos os elementos pareçam opostos,
contraditórios ou sem relação aparente. Há também a inversão da importância entre
produção e consumo: reconhecimento cultural que o valor é criado no consumo e não na
produção. Uma conseqüência fundamental é o sensível aumento da importância
dedicada ao estudo do consumo.
É este cenário pós-moderno que favorece o surgimento de grupos urbanos,
principalmente no que diz respeito ao processo de fragmentação do mercado. A
aparente dualidade entre tribalização e globalização se faz presente mais do que nunca.
Como afirma Patterson (1998, p.71) “é o atual sistema de consumo ao lado do poder das
marcas como um ‘mosaico de significados’ que as novas tribos utilizam-se para gerar
um senso de comunidade num mundo globalizado”.25
Em países como os Estados Unidos, quando são somadas as principais minorias
como asian americans, afro americans, hispânicos e judeus, é possível verificar que o
resultado é superior a 50% da população norte-americana. Tal fato é facilmente
perceptível em áreas de grande concentração urbana como Nova Iorque, Washington,
Los Angeles ou São Francisco. (GORE, 1998)
Um dos mercados que vêm sendo explorados de forma eficiente é o de serviços
financeiros para a população de asian americans. Na realidade, este segmento não é
homogêneo, sendo subdividido por algumas empresas em seis diferentes culturas:
vietnamitas, coreanos, chineses, filipinos, asian indians e japoneses. Diversos produtos
ou serviços de instituições financeiras como First Union, Chase Manhattan e Charles
Schwab são direcionados para determinados subgrupos sociais. Estas instituições
criaram um serviço de atendimento ao consumidor (call center) em idiomas
24
25
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
33
apropriados. Mas o Marketing deve ser direcionado não a todo um grupo étnico mas sim
a determinados segmentos inseridos no mesmo. (GORE, 1998)
Muitas vezes, segundo Gore (1998, p.14) “os grupos étnicos sentem-se
negligenciados pelo Marketing que não contempla seus interesses específicos. Uma vez
que o comportamento cultural e de consumo do grupo tenha sido compreendido, a
propaganda deve refletir esta dimensão”.26
Nos últimos anos alguns nichos de produtos passaram a serem explorados,
embora se trate do sofisticado mercado norte-americano, como os season greeting cards
(cartões comemorativos). A empresa Hallmark comercializa produtos direcionados a
grupos étnicos como os hispânicos e afro americans, além da comunidade judaica.
Neste caso, alguns artistas e editores foram enviados para Israel com o objetivo de
captar as nuances da cultura judaica para elaborar a arte dos cartões. (LIEBECK, 1996)
A americana Hallmark criou um centro de desenvolvimento para segmentos
étnicos. Uma marca especial foi criada para atender especificamente a comunidade
judaica, denominada Tree of Life. Cerca de 300 cartões foram lançados no mercado
voltados principalmente para as chamadas ‘grandes festas’: Pessach e Rosh Hashaná.
Além disso, a empresa criou um serviço de toll-free para auxiliar os consumidores a
encontrar esta linha de produtos nos varejistas mais próximos. (LIEBECK, 1996)
Agências de propaganda também se especializaram em grupos étnicos. Como a
agência Joseph Jacobs, de Nova Iorque, que desenvolve programas de Marketing para
grandes empresas que visam o segmento judaico. Entre os principais clientes da agência
encontram-se desde gigantes da indústria de bens de consumo não-duráveis (Quaker
Oats, Colgate-Palmolive e Kraft General Foods) até companhias que produzem comida
kosher, como a Manischewitz. (LEVIN, 1990)
A companhia de aviação Delta Airlines também é cliente da agência Joseph
Jacobs. Foi criada uma campanha de Marketing para a empresa visando à comunidade
judaica, sendo selecionados destinos de viagem que são tradicionalmente populares
entre os judeus norte-americanos, como o estado da Flórida. (LEVIN, 1990)
26
Tradução livre do autor.
34
Mas há o caso em que a instituição interessada em desenvolver um programa de
Marketing étnico faz parte da própria religião. É o caso da National Jewish Outreach
Program (NJOP), uma corrente do judaísmo que decidiu criar um departamento de
Marketing com o objetivo de atrair parte dos milhões de judeus norte-americanos que
não possuem o hábito de freqüentar uma sinagoga. (MILLER, 1997)
Após pesquisa de Marketing, detectou-se a razão pela qual há judeus que não
participam dos cultos: o fato de não se sentirem confortáveis nas sinagogas. A NJOP
desenvolveu um ‘produto’ mais amigável: cursos de hebraico (o idioma das rezas),
serviço de toll-free para informações, material didático sobre o shabat e propagandas
em rádios e jornais. Um anúncio, em parceria com a American Cancer Society, dizia:
‘Dê a seus pulmões uma experiência religiosa: neste shabat acenda velas e não
cigarros’. É óbvio que se trata de uma postura polêmica. (MILLER, 1997)
35
3
O MÉTODO ETNOGRÁFICO E O CONSUMO
Neste capítulo será abordada a metodologia adotada, que consistirá na pesquisa de
campo etnográfica. Alguns conceitos já foram contemplados sob a perspectiva
antropológica no capítulo dois (referencial teórico).
A primeira seção apresenta o conceito de etnografia. Também traça um panorama
da etnografia a partir de seus primeiros estudos até chegar aos dias atuais, nos quais a
presença deste tipo de pesquisa é cada vez mais disseminada no estudo do
comportamento do consumidor. As limitações associadas a esta metodologia se
encontram após a apresentação de suas características.
Na segunda seção as fronteiras do grupo estudado serão detalhados assim como
apresentados os critérios de seleção dos mesmos. A coleta dos dados realizada através
das entrevistas e de observação participante está na terceira seção. Finalmente, a
abordagem interpretativista está descrita na quarta seção. Trata-se da forma pela qual
serão realizados o tratamento e a análise das informações obtidas pelos processos
descritos durante as entrevistas e as observações participantes.
3.1
A pesquisa etnográfica
Segundo Vidich e Lyman (1994, p.25), “Ethnos é um termo grego que denota
uma raça, povo ou grupo cultural. Funcionando como um prefixo, combina-se formando
a palavra etnografia, ou seja, a descrição sócio-cultural de um povo”.27
A etnografia encontra-se vinculada a algumas das características básicas. Entre as
mesmas há a forte ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social particular,
ao invés de testá-lo através do emprego de hipóteses. Também encontram-se tendências
de se trabalhar com informações ‘desestruturadas’, ou seja, sem terem sido coletadas de
forma codificada numa série de categorias analíticas. Por fim há as investigações de um
número restrito de casos, mas em detalhes, além das análises de informações que
envolvem interpretações explícitas de significados e funções de atos humanos, que
assumem de um modo geral a forma de descrições verbais e explicações: (ATKINSON
e HAMMERSLEY, 1994)
27
Tradução livre do autor.
36
Quanto aos fins, a etnografia desta Dissertação pode ser classificada como sendo
de natureza descritiva na medida em que expõe as características do fenômeno de
consumo que ocorre em meio a um determinado segmento da comunidade judaica do
Rio de Janeiro. (VERGARA, 1997)
Mas também é uma investigação explicativa na medida em que busca justificar a
razão pela qual o grupo social estudado consome determinados produtos e serviços,
esclarecendo quais os fatores que contribuem para o comportamento destes
consumidores. Quanto aos meios de investigação, a etnografia consiste numa pesquisa
de campo, pois consiste numa forma empírica de verificar junto aos consumidores quais
são os elementos que explicam os seus comportamentos específicos. O método de
entrevistas e a observação participante são utilizados para investigar estes elementos.
(VERGARA, 1997)
A história da etnografia pode ser dividida em duas correntes. A primeira voltavase para as sociedades ditas ‘primitivas’, geralmente indígenas: representada pelos
fundadores da moderna antropologia do início do século XX, como Radcliffe-Brown,
Malinowski e Boas. Estavam comprometidos com a idéia de Antropologia como ciência
e a etnografia possuía papel primordial, pois envolvia a coleta de informações em
primeira mão e a descrição das características sócio-culturais daquele grupo. (VIDICH e
LYMAN, 1994)
A segunda corrente tornou-se conhecida como a escola de Chicago. Formada
entre outros por Park, Redfield, Mead e Foote Whyte, buscou investigar grupos urbanos,
que muitas vezes viviam em guetos. A cultura e os valores destas comunidades eram
estudados num contexto de vida urbana e civilização industrial, em metrópoles cada vez
maiores. Um exemplo destes estudos foram os italian americans de Boston estudados
por Foote Whyte nos anos 50, que inclusive lançou o conceito de observação
participante, ao vivenciar o cotidiano do grupo social em questão. Sob determinados
pontos-de-vista, Whyte passou a agir como um dos próprios italian americans.
(VIDICH e LYMAN, 1994; ATKINSON e HAMMERSLEY, 1994)
Uma vez estudando os comportamentos sócio-culturais em grupos urbanos, não
tardou muito para que a etnografia passasse a analisar o fenômeno do consumo, mais
37
visível em grandes cidades. Gradativamente, o Marketing passou a interagir com um
número cada vez maior de disciplinas:
“O campo de pesquisa de consumidores encontra-se numa crise de
identidade. (...) Tem englobado uma variedade de tópicos cuja interação não
seria sequer concebível anteriormente. Recentes exemplos desta tendência
são os tópicos de rituais, linguagens, aspectos primitivos de consumo,
ambientes, conflitos familiares, experiências de consumo, significados de
produtos e os simbolismos envolvidos com o consumo”.28 (HOLBROOK,
1987, p.128)
As etnografias com o intuito de analisar o comportamento de consumo
experimentaram um grande crescimento durante as décadas de 80 e 90. Entre elas há a
dos fazendeiros do meio oeste norte-americano (MCGRATH, SHERRY JR e
HEISLEY, 1993), a dos ritos do dia de ação de graças ou Thanksgiving Day
(WALLENDORF e ARNOULD, 1991), a de proprietários de motos Harley-Davidson
(SCHOUTEN e MCALEXANDER, 1995) e a dos mergulhadores submarinos na
Califórnia (CELSI, ROSE e LEIGH, 1993), entre outros.
Havia limitações referentes à pesquisa de campo etnográfica desta Dissertação.
Barreiras à coleta de informações: por exemplo, um certo temor em revelar
determinados hábitos de consumo que fossem “excêntricos” ou que pudessem vir a
comprometer uma possível imagem do informante perante o entrevistador. Dado a
comunidade judaica carioca ser relativamente pequena, alguns informantes conheciam o
entrevistador. Assim, algum constrangimento poderia ter sido causado no momento de
relatar seus hábitos e experiências de consumo.
Além disso, o Rio de Janeiro possui elevados índices de violência, o que também
poderia ter contribuído para um eventual resguardo do informante, selecionando
somente o que lhe for conveniente relatar. O temor de externar algumas informações
sócio-econômicas relativas ao seu consumo poderia funcionar como um obstáculo,
mesmo que o informante fosse notificado que sua identidade não seria revelada sob
hipótese alguma.
28
Tradução livre do autor.
38
Mas o fato de que os informantes conheciam o entrevistado minimizou este
problema. Foi um atenuante o entrevistador freqüentar (ainda que eventualmente) a
mesma sinagoga dos informantes, diminuindo o risco da informação ser incompleta. E
caso alguém não conhecesse o entrevistador, um dos líderes religiosos daquela
instituição poderia apresentá-lo a eles, funcionando como uma espécie de elemento de
ligação: afinal, embora seja um meio judaico, a sociedade em questão é a brasileira:
essencialmente relacional.
3.2
Fronteiras do grupo estudado
Conforme mencionado, a população judaica da cidade do Rio de Janeiro é de
cerca de 50 mil pessoas. Mas este é um número extremamente difícil de ser mensurado,
uma vez que muitos nascem judeus e em questão de anos já não se consideram como
tais ou então se assimilam em meio a outras religiões.
Possivelmente muitos brasileiros que têm sobrenomes provenientes de árvores
(Pinheiro, Oliveira, Carvalho) são descendentes dos chamados cristãos-novos, nada
mais do que judeus que tiveram que alterar seu nome devido às perseguições da
inquisição na península ibérica. Este foi um costume entre os judeus da época, que
mantinha de forma secreta sua identidade, mas que em gerações se perdeu. Após
modificarem o nome, perderam totalmente sua identidade cultural judaica.
Para limitar o perfil sócio-econômico e cultural do grupo a ser estudado na
etnografia, é necessário segmentá-lo de acordo com algumas restrições. Foram
selecionadas sete delas: ser do sexo masculino, casado com filho(s) solteiro(s), possuir
nível universitário, ser bem sucedido profissionalmente, possuir um alto padrão
individual de renda, ser um morador da cidade do Rio de Janeiro e freqüentar a sinagoga
selecionada.
As entrevistas foram invariavelmente balizadas pelas condições acima, pois
somente os que preencherem estas restrições participaram da amostra. Há questões,
como as relativas ao sexo, estado civil, nível educacional e moradia, que são simples de
serem verificadas, pois são objetivas e confirmadas pelos próprios informantes ao
iniciar a entrevista.
39
Mas há aspectos subjetivos em relação a duas das demais restrições: o sucesso
profissional e o padrão de renda individual. Coube ao próprio entrevistado responder a
pergunta: “sua renda individual é alta, média ou baixa?”. Se a resposta for “alta”, a
condição está contemplada. Portanto assumi uma característica nativa do grupo, ou seja,
como eles próprios se viam economicamente.
Por mais subjetivo que possa parecer este critério, a característica nativa
condiciona o entrevistado de fato devido ao mesmo se visualizar como possuindo um
padrão de renda individual elevado frente a seus pares. Por sua vez, estes são nada mais
do que membros do próprio grupo social freqüentado pelos demais entrevistados
(sinagoga na cidade do Rio de Janeiro).
Quanto à questão do entrevistado ser bem-sucedido profissionalmente, mediante
sua resposta sobre sua função na empresa ou então sobre o empreendimento no qual é
sócio ou proprietário, assumirei o sucesso profissional do mesmo. A identidade da
sinagoga selecionada para limitar o grupo será mantida em sigilo, mas situa-se na cidade
do Rio de Janeiro e devido às suas características peculiares (determinada linha de
posicionamento religioso) constitui um fator de seleção do grupo de judeus bemsucedidos.
O fato do informante participar com alguma assiduidade das atividades principais
da sinagoga caracteriza que o mesmo atuava como um integrante ativo da comunidade
judaica. Minha estimativa do universo de pessoas que atendam a estas sete restrições
oscila em torno de 150 pessoas. A amostra foi não-probabilística e correspondeu a 10
pessoas. Os critérios de seleção básicos para a mesma foram os de acessibilidade e
tipicidade. O primeiro devido a facilidade de acesso aos informantes uma vez que eu
conheço os líderes religiosos e diversos integrantes daquela instituição. A tipicidade
ocorreu devido à forma pela qual a seleção foi realizada, uma vez que para constar na
amostra o informante deveria atender a todas as restrições mencionadas. Graças a estes
elementos a amostra foi representativa.
3.3
Entrevistas e observações participantes
A obtenção dos dados se deu através de duas formas: das entrevistas e da
observação participante. As entrevistas foram realizadas na residência do informante.
40
Foi essencial a presença física para uma melhor compreensão e percepção de todo o
conjunto de informações (que foram gravadas).
“O lado menos rotineiro e o mais difícil de ser apanhado da situação
antropológica (...) se constitui no aspecto mais humano (...) que realmente
permite escrever uma boa etnografia. Porque sem ele, como coloca Geertz
(...) não se distingue um piscar de olhos de uma piscadela marota. E é isso o
que distingue a ‘descrição densa’ - tipicamente antropológica – da descrição
inversa, fotográfica ou mecânica, do viajante ou do missionário. Mas para
distinguir o piscar mecânico e fisiológico de uma piscadela sutil e
comunicativa, é preciso sentir a marginalidade, a solidão e a saudade. É
preciso cruzar os caminhos da empatia e da humanidade”. (DAMATTA,
1987, p.173)
As entrevistas foram do tipo não-estruturadas, uma vez que forneceram uma
amplitude maior de respostas do que a entrevista estruturada, devido à natureza
qualitativa daquela alternativa. Embora esteja claro que diversos tópicos necessitam de
abordagem mais detalhada durante a entrevista, não foi preciso utilizar questões
fechadas ou um approach mais formal. (FONTANA, 1994)
A entrevista estruturada busca capturar informações precisas de natureza
codificável com a intenção de explicar um comportamento dentro de categorias préestabelecidas. Este não foi o objetivo aqui. E sim a compreensão do complexo
comportamento do grupo social, sem imposições de ordem classificatória ou prioritária
que possam limitar o campo investigativo. Foi preciso ‘submergir’ na cultura em
questão, interagindo de forma efetiva com os informantes. (FONTANA, 1994)
Existem algumas etapas básicas na fase de entrevistas, como a apresentação, que
consiste na decisão de como se apresentar para os informantes: é crucial, uma vez que a
impressão inicial é determinante e difícil de desfazer caso ocorram mal-entendidos.
Como muitos freqüentadores da sinagoga selecionada me conheciam, não vislumbrei
maiores problemas. A seleção dos informantes também foi importante: a presença de
um insider é fundamental. Um dos líderes religiosos da sinagoga estudou no mesmo
colégio que eu. Ao trilhar o caminho religioso, foi estudar numa yeshivá em Nova
41
Iorque, adquirindo uma visão global. O mesmo estava ciente da Dissertação.
(FONTANA, 1994)
O ganho de confiança constitui uma outra etapa: este processo é importante, pois
faz com que os informantes possam estar mais despreocupados, mas é lento e gradual. É
mais fácil destruir a confiança do que construí-la. E por fim o estabelecimento de
rapport: devido ao âmago da entrevista não-estruturada consistir na compreensão de
certos hábitos do informante, é essencial estabelecer um rapport como meio de manter
as ‘portas abertas’. (FONTANA, 1994)
A observação participante no decorrer desta Dissertação ocorreu de forma
intermediária, pois estive engajado na vida do grupo, mas não na situação de consumo.
Como faço parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro, a interação sócio-cultural
com os demais integrantes desta comunidade é mais efetiva, havendo uma identificação
natural. Embora eu não constitua exatamente um dos perfis do universo em questão,
pois não atendo a todas as restrições do grupo estudado.
Mas o fato é que se tornou praticamente impossível minha presença durante suas
experiências de consumo. Já que foram ao todo dez pessoas entrevistadas, presenciar as
suas mais diversas experiências de consumo seria impraticável. De qualquer modo os
insights obtidos através da observação participante quando estive junto dos informantes,
após as cerimônias religiosas na sinagoga, foram extremamente úteis para a consecução
dos objetivos da Dissertação.
Foi preciso, durante a fase de coleta de dados, captar o discurso livre do
informante convivendo com os mesmos. Ouvi-los atentamente, perguntar de forma a
instigá-los, provocá-los, questioná-los, ou seja, relativizando. Descrever fatos, coisas,
idéias, opiniões, argumentações, preferências, modos, gestuais, conceitos, preconceitos,
enfim, toda a essência cultural do grupo.
Foi primordial entender o que é o consumo para o grupo, como se dão os gastos,
qual a hierarquia de consumo, quais as marcas consumidas, se as marcas são
valorizadas, quais são os shoppings freqüentados, e assim por diante.
42
3.4
Análise do discurso: interpretando os consumidores
A forma pela qual os informantes foram interpretados é absolutamente
fundamental. Foi preciso efetuar a passagem eficiente entre a coleta de dados e a
construção de uma interpretação. O resultado realça os significados culturais e as
estruturas conceituais que são extraídas a partir de experiências individuais, produto das
informações etnográficas. (ARNOULD e WALLENDORF, 1994)
Aqui cabem duas abordagens relativas ao tratamento dos dados: a positivista e a
interpretativista. O approach positivista guia-se pela filosofia do experimento
controlado, na medida em que o pesquisador designa e seleciona assuntos pertinentes,
manipulando algumas variáveis e observando as demais. A utilização de hipóteses é
algo bastante usual sob esta perspectiva. (HUDSON e OZANNE, 1988)
A natureza da realidade analisada sob o prisma do positivismo é objetiva, tangível
e divisível, sendo os seres humanos determinísticos e reativos. A utilização de
determinados registros é baseada nas afirmações e valores do pesquisador sobre a
realidade e os demais seres humanos. Há, portanto, a possibilidade de relações causais
entre os fatos estudados, além de um desejo de revelar a ‘verdadeira’ realidade e
predizer possíveis eventos que estão por vir. (HUDSON e OZANNE, 1988)
Já o approach utilizado pelos interpretativistas é, segundo Hudson e Ozanne
(1988, p.513), “uma busca contínua pela descrição de muitas realidades percebidas que
não podem ser conhecidas a priori devido a serem específicas em relação ao seu tempo
e contexto”.29
A corrente interpretativista foi utilizada nesta Dissertação, sob uma perspectiva
vislumbrada por Geertz. O que o etnógrafo realiza, para Geertz apud Schwandt (1994,
p.123) “é o traçar de uma curva de um discurso social, moldando-o de uma forma
adequada”.30
A corrente interpretativista condiz com a atividade básica da pesquisa etnográfica
na medida em que a última não é a observação e a descrição, mas sim a inscrição de
uma descrição densa destes significados da ação humana. (GEERTZ apud
SCHWANDT, 1994)
29
30
Tradução livre do autor.
Tradução livre do autor.
43
4
O CONTEXTO DO GRUPO ESTUDADO
No capítulo anterior foi descrito o referencial teórico que se encontra por trás da
metodologia empregada nesta Dissertação. O terceiro capítulo compreendeu
basicamente a pesquisa de campo etnográfica, o universo e a amostra selecionada, além
da coleta e tratamento dos dados envolvidos. Antes de se efetuar a análise do discurso e
as posteriores conclusões, torna-se essencial determinar o contexto no qual está inserido
o grupo envolvido na etnografia. Segundo Buarque de Holanda (1986, p.464), contexto
significa um “encadeamento das idéias (...) conjunto, todo, totalidade”. É esta a idéia
central que norteia este capítulo.
Portanto, será descrito como o grupo se encontra inserido em relação às
comunidades judaica mundial e brasileira. Alguns pontos a serem abordados são os
mitos e imagens relacionados com as mesmas, os papéis desempenhados pelos
integrantes destas comunidades em suas respectivas sociedades, as formas de
organização das comunidades, as correntes sócio-econômicas, culturais e religiosas que
segmentam estas comunidades e a percepção das mesmas pelas sociedades nas quais
estão inseridas. O objetivo é partir de uma visão macroscópica que se inicia a partir da
comunidade judaica mundial, passando pela comunidade judaica brasileira, até chegar
finalmente ao grupo estudado. A descrição deste grupo constitui-se no foco da primeira
seção deste capítulo.
A seção seguinte descreve de forma mais minuciosa o perfil dos integrantes do
grupo. Detalhes pessoais dos entrevistados como: formação, profissão, papel econômico
desempenhado em relação ao cônjuge, hábitos religiosos, entre outros, que são
contemplados aqui. Constituem um retrato que, nesse momento, não necessariamente
envolve ainda padrões e hábito de consumo, que são obtidos durante as entrevistas e
serão analisados no capítulo 5 (análise do discurso).
A terceira (e última) seção aborda a descrição dos processos de captação de
dados, basicamente por meio de entrevistas e observações participantes. Esta descrição
compreende alguns aspectos como: o espaço de tempo envolvido durante e entre as
entrevistas, as vantagens e desvantagens de ser um membro da comunidade judaica e ao
mesmo tempo entrevistar seus integrantes, e por fim os insights que surgiram a partir do
contato direto com os informantes.
44
4.1
Posicionamento no mundo e no Brasil
Os judeus sempre foram uma minoria (em termos religiosos, sociais e culturais) e
viveram diversas vezes no transcorrer de sua história como um povo excluído das
sociedades nas quais fizeram parte. Tal fato se verificou desde a antiguidade (exílio do
Egito; perseguições na Babilônia, atual Iraque; segunda destruição do templo pelas
legiões romanas de Tito em 70 d.C.) até os tempos modernos (caso Dreyfus na França;
anti-semitismo na Polônia; holocausto na segunda guerra mundial).
Somente lhes era permitido viverem enclausurados nos platea judeorum de Roma,
borghetos da Itália, ghetos da Alemanha, juiverie da França, jewery da Inglaterra,
juderías da Espanha, judiarias de Portugal, melahs de Marrocos e os shtetls da Rússia e
Polônia. (BENCHIMOL, 1998)
No entanto, a situação vem modificando-se de forma dramática nas últimas
décadas. Hoje há diversos níveis quanto ao espectro de atuação e relevância
desempenhadas pelas comunidades judaicas nos países nos quais elas se encontram
presentes. Estes níveis são determinados por inúmeras variáveis. Talvez a mais
determinante seja o grau histórico de receptividade social e cultural proporcionado pelo
país “anfitrião”.
Um bom exemplo são os Estados Unidos. Há mais de dois séculos foram
publicados importantes documentos no que tange à garantia dos direitos dos cidadãos: a
Constituição de 1776 e a Declaração do estabelecimento da liberdade religiosa, em
1777, por Thomas Jefferson.
“É de conhecimento público que as opiniões e crenças dos homens (...)
seguem as evidências propostas em suas mentes, e que as mesmas foram
concebidas de modo livre (...) e que livres devem permanecer, totalmente
isentas de restrições. (...) As opiniões dos homens não devem ser objeto do
governo civil, tampouco de sua jurisdição”.31 (JEFFERSON apud
PETERSON, 1977, p.251)
31
Tradução livre do autor.
45
Graças a estas garantias dos direitos humanos, desde há muito incorporadas na
cultura norte-americana, os judeus encontraram um ambiente propício para a prática de
suas tradições e ritos. Além de espaço para desenvolverem-se socialmente de modo
integrado à comunidade não-judaica, sem implicar em perdas de suas tradições
culturais.
A importância atual da comunidade judaica é tamanha, que questões como a
relação entre o governo israelense e os territórios palestinos ocupados é decisiva em
campanhas políticas naquele país. Isto ocorre especialmente em estados cuja população
judaica é maior, como em Nova Iorque. Outro exemplo da relevância da comunidade
judaica é o fato do partido democrata ter decidido compor a chapa de seu candidato à
presidência Al Gore, com um judeu (Joseph Lieberman), nas eleições de 2000.
Entretanto, em países como Polônia e República Checa a trajetória foi diferente.
Após décadas de anti-semitismo, cujo ápice foi o holocausto praticado na II guerra
mundial, houve um forte movimento de emigração da população judaica, especialmente
para Israel e os EUA. Hoje, em suas capitais Varsóvia e Praga, há diversos registros da
passagem da comunidade, embora praticamente não haja mais judeus nestes países.
Em meio à população judaica mundial há uma espécie de moto no qual se afirma
que o volume de manifestações anti-semitas é diretamente proporcional à força e à
coesão da comunidade. Na Argentina, onde somente em Buenos Aires há mais de 200
mil judeus, nos últimos anos vêm ocorrendo diversos atentados contra instituições
judaicas, inclusive com mortos. No entanto, uma vez estabelecidos, os judeus
organizam uma série de associações e entidades, com vistas a assegurar sua organização
comunitária. Passando por escolas, sinagogas, clubes e cemitérios até os
estabelecimentos kosher, centros de caridade (lar dos idosos, assistência aos carentes) e
veículos de comunicação (jornais, programas de televisão, sites na internet).
“Os judeus sempre costumaram ter seus cemitérios comunitários, a fim de
poder fazer suas orações coletivas em memória de todos os seus
antepassados (...) após a diáspora, os judeus foram excluídos e segregados
nos guetos e juderías (...) porque o enterro de um correligionário judeu em
um cemitério cristão constituía uma profanação e o tornava impuro (...)
estes são os motivos pelos quais toda a comunidade judaica constrói uma
46
sinagoga, um cemitério, uma escola e um clube, os quatro pilares da sua
identidade e continuidade”. (BENCHIMOL, 1998, p.213)
Justamente pelo fato destes pilares representarem sua identidade e continuidade,
eles estão presentes hoje no Brasil em todos os grandes centros de concentração da
população judaica: São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Belo
Horizonte, Manaus e Salvador. Quanto às características sócio-econômicas, os judeus
encontram-se nos mais diversos extratos sociais no país. Há desde empresários com
grandes fortunas até favelados que recebem serviços assistenciais de educação, saúde e
alimentação dos demais membros da comunidade.
Entretanto, a imagem que transparece para a sociedade brasileira é a de que os
judeus são geralmente bem-sucedidos. Talvez devido a diversos exemplos positivos
exponencializados pela mídia: no jornalismo (Alberto Dines, Gilberto Dimenstein), na
televisão (Sílvio Santos, Boris Casoy), na política (Jayme Lerner, Israel Klabin), no
empresariado (Moise Safra, Roberto Medina), na literatura (Márcio Souza, Arnaldo
Niskier), no esporte (Arthur Nuzman, Bernard Razjman), na moda (Tufi Duek,
Alexandre Herchcovitch), nas artes cênicas (Deborah Colker, Tereza Rachel), na
propaganda (Roberto Justus, Armando Strozenberg), entre outros.
Em termos religiosos, há correntes das mais até as menos religiosas (estes
chamados de reformistas, e aqueles, de ortodoxos). Os ortodoxos respeitam uma série
de preceitos religiosos na medida em que seguem estritamente o Velho Testamento,
além de serem mais fechados a outros segmentos da sociedade não-judaica. Pode-se
incluir neste segmento os movimentos religiosos Beit Lubavitch e Beit Chabad,
originários de Nova Iorque. Ao passo que os reformistas (denominados popularmente de
liberais) são mais flexíveis, aparecem na mídia e admitem uma série de modificações e
“atualizações” na religião. Seus maiores expoentes no Brasil são os rabinos Henry Sobel
e Nilton Bonder.
Sejam sinagogas, clubes, cemitérios ou escolas, as instituições judaicas são
freqüentadas por subgrupos culturais delimitados por diversos parâmetros. Entre estes
há a origem de seus integrantes (ashkenazim ou sefaradim) e o grau de religiosidade
(ortodoxos, conservadores e reformistas) dos mesmos. Todas estas instituições sociais
47
são influenciadas em maior ou menor escala pelas correntes religiosas da comunidade
judaica local.
Um outro grupo social fundamental no desenvolvimento das comunidades
judaicas no Brasil é o dos movimentos juvenis. Consistem em grupos de alcance
mundial que incentivam o convívio social entre jovens judeus, desde crianças até
completarem a maioridade. Uma série de informações são passadas, como os valores
judaicos, o conceito de hierarquia, convivência em grupo, entre outros. Entre os
principais movimentos no Brasil encontram-se o Habonim Dror, Hashomer Hatzair,
Bnei Akiva e Chazit Hanoar.
No entanto, nos últimos vinte anos, estes movimentos têm perdido sua força de
maneira bastante acelerada. Um fator que possivelmente concorre para tal fato é o
crescente grau de assimilação da comunidade em relação à sociedade. Este é um outro
importante elemento para a constituição de subgrupos culturais dentro da comunidade
judaica, ou seja, o quão elevado é o índice de assimilação entre seus membros.
Para concluir, a percepção da sociedade brasileira em relação aos judeus é de
tolerância e respeito, ainda mais quando comparada à situação de outras comunidades,
como a da Argentina. Há episódios esparsos que representam exceções à regra:
violações de túmulos em cemitérios judaicos, pichações em paredes de escolas judaicas,
entre outros. No entanto é fato que a sociedade brasileira ainda possui a imagem e o
mito de que os judeus são bastante relevantes em termos políticos e fazem valer seu
poder de forma orquestrada e discreta.
4.2
Descrição e características de seus integrantes
É preciso limitar o perfil sócio-econômico e cultural do grupo estudado. Portanto,
é necessário segmentá-lo de acordo com determinadas restrições. As fronteiras do grupo
são: ser do sexo masculino, ser casado com filho(s) solteiro(s), possuir nível
universitário, ser bem sucedido profissionalmente, possuir um alto padrão individual de
renda, ser morador da cidade do Rio de Janeiro e freqüentar a sinagoga selecionada.
Estes parâmetros construíram uma base homogênea de entrevistados, cujo grau de
valores culturais verificado é bastante similar. Até mesmo a profissão dos antepassados
48
da grande maioria dos informantes eram constituídas de vendedores ambulantes. Esta
profissão era comumente denominada na comunidade judaica de clienteltic.
Cabe identificar a figura do clienteltic, que carrega sempre a mercadoria consigo,
preenche a função de difusor de bens econômicos e de divulgar padrões e hábitos
urbanos. A modalidade de pagamento era quase sempre feita à prestação, daí derivando
o tipo de mercadoria que ele carregava. (LEWIN, 1997)
Um aspecto importante a ser observado é que os clienteltics em sua maioria não
possuíam nível superior. No entanto, os mesmos conseguiram oferecer aos seus filhos a
oportunidade de estudar em boas universidades - estes representam grande parte dos
informantes desta Dissertação. Por sua vez, os netos dos clienteltics conseguiram atingir
não somente o nível de graduação, como também Mestrados (como o autor deste
trabalho) e Doutorados.
A vida dos clienteltics era muito árdua, pois segundo Lewin (1997, p. 88) “a rua –
subúrbio do prestamista – é sinônimo de escassez, é trabalho pesado e desprovido de
status social”. Talvez por seus pais vivenciarem esta rotina, seus filhos tenham optado
por profissões liberais, devido às maiores possibilidades de desenvolvimento gerencial e
empresarial.
Os informantes ascenderam socialmente em relação aos seus pais, em grande
parte devido aos seus cursos de nível superior. São em maioria engenheiros, médicos e
advogados, ocupando funções de middle e top management em grandes e médias
instituições ou gerindo suas próprias empresas.
Além disto representam papel de destaque em relação à geração de receita
familiar. Isto ocorre devido ao fato de suas esposas serem responsáveis pela gerência da
casa e da educação dos filhos, não sendo remuneradas por estas tarefas. Há exceções,
nas quais as mulheres desenvolvem uma carreira estruturada. No entanto, ainda neste
caso elas contribuem com uma parcela inferior da receita total da família. Tal
comportamento caracteriza de certa forma um desenvolvimento de estruturas
paternalistas em meio às famílias dos informantes. Neste cenário o pai é responsável
pelo sustento da família e a mãe pela educação dos filhos e gerência do lar.
Em relação aos filhos, a quantidade variou entre dois e quatro para cada
informante. Na maioria absoluta dos casos, os filhos dos informantes em idade não-
49
universitária (não há universidades judaicas no país) estudam em escolas judaicas. As
exceções estudam em colégios como Santo Inácio ou Princesa Isabel, de tradição
religiosa cristã, mas com expressivo número de alunos judeus.
O fato dos informantes freqüentarem uma sinagoga com regularidade nos permite
inferir sobre a observância dos mesmos em relação à religião judaica. Assim sendo, a
continuidade das tradições por meio de seus descendentes passa a desempenhar um
papel fundamental. E uma das principais formas de preservação destes costumes e
tradições é justamente educar seus filhos em escolas judaicas.
Por outro lado, as tradições também são mantidas pelos próprios informantes na
medida em que há diversos momentos de interação com a sinagoga em questão. O
principal constitui-se no shabat, nas noites de sexta e manhãs de sábado. Todos os
informantes estão quase sempre presentes na cerimônia de saudação do shabat (sexta à
noite), ocasião na qual a sinagoga atinge sua lotação máxima. Mas também há outras
oportunidades durante a semana: aulas de hebraico, seminários abordando questões
familiares e educacionais, leituras da Torah com os rabinos e atividades recreativas para
as crianças. São laços fomentados pela sinagoga que acabam se constituindo em hábitos
religiosos dos informantes.
Justamente por freqüentarem a sinagoga em diversos momentos durante a semana,
os informantes necessitam estar próximos da mesma, residindo em bairros próximos
(cujas rendas médias são elevadas para os padrões da cidade). Conseqüentemente por
estarem numa região privilegiada da cidade, têm maiores opções de entretenimento.
Na mesma linha de opções de lazer e eventos sociais, há encontros e cerimônias
promovidas pelas famílias dos informantes. Geralmente estes eventos ocorrem nas mais
importantes datas judaicas do ano: Rosh Hashaná, Pessach, Sucot, Iom Kippur, onde os
amigos e familiares mais próximos estão presentes. Na festa de Pessach inclusive há
duas noites especiais, cada qual com cerimônias religiosas e jantares que são
promovidos em diferentes residências de membros da família.
Em relação ao entretenimento promovido por clubes, aqui há uma divisão entre os
entrevistados: alguns são sócios de clubes judaicos situados em bairros da zona sul
(Copacabana, Laranjeiras) e oeste (Barra da Tijuca); outros se encontram vinculados a
clubes góis. Estes informantes alegaram que os clubes judaicos não dispõem de infra-
50
estrutura adequadas para seu lazer e de seus filhos. O fato paradoxal é que ainda assim
eles se ressentem pelos filhos freqüentarem clubes não-judaicos.
Portanto foi traçado nesta seção o perfil assim como as características dos
integrantes do grupo selecionado. Seus membros, os chefes de família, pertencem às
classes sociais mais elevadas e possuem uma preocupação da continuidade das tradições
judaicas através de seus filhos.
Na realidade, os filhos espelham-se em seus pais (os informantes) na medida em
que estes são bem-sucedidos, tanto pessoal quanto profissionalmente. Além disso,
possuem uma forte ligação em relação à religião, na medida em que se preocupam em
freqüentar ambientes judaicos (clubes, escolas, sinagogas). Uma vez descritas as
características dos informantes, neste momento será abordado o processo de captação
das informações que vai permitir a análise do discurso dos mesmos.
4.3
O processo de captação do discurso dos informantes
A pesquisa de campo desta Dissertação foi pautada basicamente na etnografia,
que busca descrever e analisar, sob um prisma sócio-cultural, um grupo cujo limite é
delimitado através de determinadas variáveis.
O método etnográfico (proveniente da Antropologia) exige um contato direto e
prolongado com seu objeto de estudo. Seus resultados são focados na obtenção de dados
sobre pessoas, espaços, interações, símbolos e tudo o mais que possa vir a contribuir
para sua investigação. (VERGARA, 1997)
Portanto a etnografia consiste numa forma empírica de verificar junto aos
consumidores quais são alguns dos elementos que explicam seus comportamentos. O
método de entrevistas e a observação participante são as ferramentas mais utilizadas
para investigar estes elementos.
Já que faço parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro, em relação ao grupo
estudado não sou um membro da “sociedade do outro”, na medida em que faço parte da
mesma e sempre convivi num ambiente judaico. Conseqüentemente sou um elemento da
“sociedade do eu” (embora não seja exatamente um membro do grupo e sim da
comunidade judaica carioca). O que à primeira vista pode parecer um tanto quanto
51
comprometedor em termos de prospecção e obtenção de informações, posteriormente
configurou-se num típico trade-off. Há vantagens e desvantagens decorrentes do fato de
eu ser um dos membros da comunidade na qual está inserido o grupo com o qual foi
feita a pesquisa de campo etnográfica.
Entre as desvantagens, há a possibilidade de não se visualizar determinados
hábitos e comportamentos sócio-culturais com “outros olhos”, externos aos do grupo. O
fato é que desde o início estive consciente deste risco, resguardando-me assim em
relação à possibilidade de não levantar determinadas questões durante as entrevistas e as
observações participantes. Para tal, foi preciso adotar e manter constantemente uma
postura questionadora e inconformista. Assim foi possível minimizar o risco de aceitar
passivamente determinados padrões que pudessem parecer facilmente compreensíveis
sob o meu ponto de vista.
Por outro lado, creio que as vantagens certamente superaram possíveis pontos
desfavoráveis. O fato de eu freqüentar a mesma instituição religiosa judaica dos demais
membros do grupo minimizou possíveis resistências. Inclusive possibilitou de forma
decisiva o contato com diversos de seus membros, facilitando a realização das
entrevistas. Uma vez o processo tendo se iniciado, os próprios membros do grupo iam
sugerindo outros nomes que seriam mais receptivos, formando um processo de
networking de entrevistados.
Outro ponto que foi beneficiado pelo fato de eu conhecer diversos membros do
grupo foi a possibilidade de conviver em diversas oportunidades com os mesmos,
especialmente em momentos que não fossem exclusivamente os de gravação de
entrevistas. Chamadas de observações participantes, estas interações possibilitaram uma
compreensão mais aprofundada do universo simbólico e cultural dos entrevistados.
Uma vantagem adicional importante foi o fato de não ter praticamente havido
espaço para eventuais visões etnocêntricas de minha parte. O conjunto peculiar de
comportamentos sócio-culturais do grupo em questão muitas vezes era alinhado com
interpretações que envolviam fatos ou fenômenos de ordem histórico-religiosa que
desde muito cedo estiveram presentes em meu ambiente cultural. Isto me permitiu
captar nuances que poderiam muito bem ter permanecido ocultas caso eu não fosse um
membro da comunidade.
52
Durante o processo em si, as entrevistas foram gravadas sob garantia de total
confidencialidade em relação às informações prestadas. As mesmas foram transcritas
posteriormente, com o único intuito de permitir uma compreensão mais detalhada e
minuciosa do discurso dos informantes. É importante registrar que, em mais de uma
oportunidade, alguns entrevistados mostraram-se reservados no início das entrevistas, e
foram tornando-se mais à vontade com o passar do tempo. Por mais que alguns dos
entrevistados fossem conhecidos, evidentemente trata-se de um assunto pessoal.
As entrevistas foram realizadas individualmente, sempre na residência de cada um
dos membros do grupo. Um dado importante a ser mencionado é que priorizei a
execução das entrevistas de modo que não houvesse um período de tempo longo entre a
primeira e a última entrevistas. Este prazo foi de aproximadamente dois meses, cuja
extensão considerei compatível com minha meta inicial.
Caso este período fosse muito maior, creio que a análise do conteúdo das
entrevistas estaria afetada, na medida em que seria possivelmente mais difícil efetuar a
conexão e a interação em meio ao material extraído de cada entrevista. Da forma pela
qual foi feita, foi possível fazer emergir de forma mais natural uma lógica do discurso
dos informantes, colaborando decisivamente para a análise final.
Cada entrevista durou em média cerca de uma hora e meia. Algumas perguntas
foram utilizadas como forma de balizar e direcionar o curso da entrevista. No entanto, o
objetivo principal da pesquisa de campo etnográfica não é limitar nem tampouco falar
mais do que o entrevistado. O respeito e a atenção ao discurso do informante devem
sempre ser ressaltados e ficarem bastante claros durante a entrevista. Embora também
tivessem sido essenciais observações e intervenções feitas para que o entrevistado
ficasse à vontade para dar continuidade a certas linhas de pensamento.
Um fato interessante que surgiu em algumas entrevistas foi o questionamento que
partiu das esposas de alguns dos entrevistados. Elas interrogaram-me sobre a
possibilidade de participar nas entrevistas uma vez que também tinham papel de
destaque nas tomadas de decisão familiares sobre processos de compra. Respondi que
havia variáveis que limitavam a participação de membros ao grupo.
Outra fonte importante de material para o estudo dos padrões e hábitos sócioculturais foi a observação participante, que desempenhou papel fundamental. Alguns
53
dos membros do grupo sentiam-se mais à vontade junto a seus amigos mais próximos,
sem a formalidade característica proporcionada pelo ato de acionar a tecla ‘recording’
do aparelho portátil de gravação.
A observação participante possibilita o surgimento de insights, que muitas vezes
poderiam ser praticamente imperceptíveis de serem captados através de um diálogo
gravado. A própria interação do entrevistado com os demais membros do grupo é uma
fonte extremamente rica para se fazer a prospecção dos hábitos e padrões culturais,
entre estes os de consumo. Aqui cabe mencionar uma vantagem de pertencer à
comunidade na qual está inserido o grupo em questão. Durante as observações
participantes (após cerimônias religiosas e durante festas, aniversários ou casamentos)
eu não tive problemas de espécie alguma em relação a atuar como um dos participantes
do grupo, por ser judeu além de ser também já conhecido dos demais.
Após a coleta de todo o material foram realizadas sucessivas audições das fitas
que continham os depoimentos coletados nas entrevistas, além de anotados os insights
captados durante diversos momentos de interação com os membros do grupo, como as
observações participantes. Este material constituiu a fonte básica para que se erigisse a
partir daí uma lógica dos discursos dos informantes.
54
5
IDENTIDADE JUDAICA E CONSUMO: ANÁLISE DO DISCURSO
No capítulo anterior foi tratado o posicionamento do grupo frente à comunidade
judaica como um todo, além do processo de apuração do material, através das
entrevistas e observações participantes. A análise do discurso de seus integrantes será
desenvolvida neste capítulo, através do estudo de alguns dos principais aspectos de seus
hábitos de consumo.
A primeira seção aborda o significado do ato de consumir, questão
propositadamente ampla que procura descrever e classificar os mais básicos objetivos
pelos quais os membros do grupo consomem. Desta forma, buscam-se as razões
primordiais para analisar determinados padrões de consumo dos membros do grupo,
além das proposições envolvidas.
A análise dos hábitos e características de consumo está na segunda seção. Os
canais através dos quais os informantes consomem, a participação dos momentos de
consumo em suas rotinas diárias e a importância atribuída às marcas em serviços e
produtos são alguns dos pontos básicos que caracterizam seus comportamentos de
consumo.
Uma nova dimensão de consumo é o escopo da terceira seção. É a internet, um
novo canal que está modificando diversos comportamentos de natureza social de uma
forma extremamente veloz. O consumo é um deles, através da variante do comércio
eletrônico (e-commerce), um dos mais promissores canais surgidos nos últimos tempos,
em termos de comodidade e volume de informação e produtos oferecidos.
Devido ao elevado padrão social dos entrevistados, a grande maioria dos
membros do grupo já possuía conexão com a internet desde seus primórdios no país
(aproximadamente cinco anos). Inicialmente não estava nos planos o desenvolvimento
mais detalhado do consumo via internet, intenção revista devido ao significativo número
de entrevistados que utilizam este meio como mais um canal de consumo. Através do
discurso captado, é possível determinar se a internet vem de fato alterando determinados
comportamentos de consumo dos membros do grupo. O impacto deste novo canal varia
em intensidade, dependendo (entre outros fatores) das classes dos produtos ou serviços
em questão.
55
As hierarquias de consumo dos membros do grupo são descritas na quarta seção
do capítulo. São baseadas fundamentalmente na organização em função das prioridades
atribuídas às categorias de produtos e serviços. Através da análise das razões pelas quais
determinadas categorias são priorizadas em detrimento de outras, estabelecem-se
princípios que norteiam certos padrões de consumo do grupo.
A quinta (e última seção) trata do consumo étnico, ou seja, todo o tipo de produto
ou serviço de natureza vinculada às raízes do povo judeu e que seja efetivamente
consumido pelos membros do grupo. Assim verifica-se a relação entre o consumo dos
informantes e o universo simbólico do grupo. Também se constata desta forma sob que
aspectos e com qual intensidade este consumo auxilia a construção da identidade
cultural dos informantes. Por sua vez, o conjunto destas identidades compõe a estrutura
cultural dos judeus bem-sucedidos que representam o grupo em questão.
5.1
O ato de consumir
Após as apresentações iniciais, quando o gravador começava a registrar a
entrevista, uma pergunta era disparada com o intuito de instigar o informante: “O que é
consumo para você?”. Alguns respondiam com outra pergunta: “mas em que sentido?”,
denotando que a questão era claramente ampla e aberta. Desta forma o informante
possuía total liberdade de resposta. Num segundo momento, após o esclarecimento de
que não havia respostas certas, as razões iam sendo citadas e justificadas.
O fato é que para a grande maioria dos entrevistados o consumo não foi visto
como uma atividade que envolvesse exclusivamente os próprios, mas sim toda a família.
Um depoimento em especial foi bastante ilustrativo, pois o informante afirmou que “não
consumo muito, na realidade tudo o que eu compro visa basicamente minha família (...)
porque me contento com pouco”.
Esta visão geralmente permeou todas as entrevistas, por diversos aspectos, já que
todos os entrevistados têm filhos solteiros que residem com os mesmos. E em grande
parte dos casos, o homem era o responsável pela totalidade das receitas da família. E
quando a esposa também trabalhava, geralmente respondia por menos de 50% da fonte
de renda conjunta. Este é um ponto de suma importância que será reforçado nas
conclusões da Dissertação.
56
Em termos dos prazos através dos quais era objetivado o consumo, existiram duas
correntes básicas de resposta: ou como um investimento, visando o longo prazo, ou
como uma despesa, em geral atendendo às necessidades geradas num horizonte de
tempo imediato ou de curto prazo. Portanto, o conceito de consumo temporal surgiu já
na primeira interação com os informantes. Uma definição teórica que foi obtida é a de
que “o consumo é tudo o que se adquire com o objetivo presente ou futuro de ser
utilizado”. Este depoimento define claramente as duas formas de consumo classificadas
em função do tempo.
Diversas motivações estão envolvidas com cada uma das duas formas de
consumo. No curto prazo, o consumo foi classificado como um “gasto de dinheiro e de
recursos” para “suprir necessidades imediatas”. Ou seja, um ato absolutamente vital
para a manutenção da rotina familiar, além de condição básica de subsistência para os
demais membros da família.
Por outro lado, sensações agradáveis também foram associadas com o consumo
de alcance imediato, como algo que traz ”prazer, satisfação, bem-estar, conforto”. Ou
seja, entre os insights obtidos através de uma pergunta amplamente abstrata, também
foram mencionadas características intangíveis e positivas. É o denominado consumo
hedônico, isto é, vinculado a critérios estéticos e significados simbólicos presentes no
comportamento do consumidor. O tipo de envolvimento pode ser de natureza cognitiva,
caracterizada por estímulos originados por orientação, reação ou estímulo.
Ainda na linha de sensações positivas relacionadas ao fenômeno do consumo,
outro ponto correlato foi levantado, a questão do lazer. Em muito casos, produtos ou
serviços destinados a um consumo de curto prazo estão associados a determinados
rituais. Neste momento surge o programa de lazer, de ir às compras, que representam
uma “distração” tanto para os entrevistados quanto para seus familiares.
Uma declaração observada durante os depoimentos foi que, na medida em que o
consumo gera conseqüências como prazer e satisfação, também funciona como uma
espécie de terapia, pois auxilia a elevar a auto-estima do indivíduo e a manter reduzido
o seu grau de ansiedade. Contribui assim para manter a estabilidade emocional, num
mecanismo de compensação relativo a eventuais estados psicológicos gerados devido a
prováveis problemas de ordem pessoal ou profissional.
57
O consumo como uma terapia, segundo definição de um dos entrevistados, faz
com que muitas vezes “eu e minha família levemos horas passeando em centros
comerciais ou shopping centers, uma vez que estamos num meio em que há gente
bonita, descontraída e bem vestida, todos num astral elevado. Assim, acabamos por
consumir produtos que nem sequer cogitávamos em comprar”.
Portanto, há um conjunto de sensações associadas não especificamente com o
produto ou serviço em si, e sim com a experiência do consumo. Conforme citado por
um dos informantes, “muitas vezes a curiosidade e a vontade de conhecer coisas novas
através da possibilidade de experimentá-los ou vê-los em funcionamento são os fatores
que nos levam a consumir determinados produtos”.
Em contrapartida ao consumo de curto prazo, uma tônica entre todos os
entrevistados foi a necessidade de investir seus rendimentos em ativos de menor risco
envolvido, visando suprir eventuais necessidades futuras. Este consumo pode ser
classificado como temporal. Durante o processo etnográfico junto aos informantes
pôde-se verificar claramente o quão este tipo de consumo é intimamente ligado a
questões de âmbito familiar, sendo que o processo decisório de consumo é geralmente
compartilhado com o cônjuge.
Esta visão de longo prazo representa a importância atribuída pelo grupo em
relação aos hábitos de consumo que visem principalmente resguardá-los (assim como
suas famílias) em caso de eventuais cenários futuros imprevistos. Transparece assim na
definição do que é consumo, o comportamento prudente que norteia o modus vivendi
dos informantes.
5.2
Canais e características de consumo
Após a definição do significado do consumo, aqui serão analisados os canais
utilizados e outros aspectos do consumo praticado pelos informantes. A seguir, algumas
das características abordadas: canais de consumo comumente utilizados; quando e como
os momentos de consumo participam em suas rotinas; a quem se destinam os produtos e
serviços adquiridos; papel desempenhado pela marca; e o perfil psicológico dos
informantes.
58
Os informantes confirmaram um fenômeno que vem ocorrendo com as classes
sociais mais elevadas do Rio de Janeiro: as opções de lazer externas vêm diminuindo na
mesma proporção da escalada da violência verificada nas ruas. Num movimento
paralelo, também há cada vez mais opções de lazer intra-residências, como o DVD, a
internet, a TV a cabo, entre outros.
Em termos de canais de consumo utilizados, um sobressaiu-se de forma destacada
durante a pesquisa de campo etnográfica: os shoppings centers. Diversos fatores podem
ser enumerados para justificar o fato do mesmo ser citado quase que como um sinônimo
de “consumo” entre os informantes.
O próprio conceito é relativamente recente no Brasil, se comparados a outros
países. Os primeiros shoppings centers de fato (com estacionamentos, áreas de
entretenimento, praças de alimentação, lojas âncoras e serviços integrados) surgiram
somente na segunda metade da década de 70, primeiro na cidade de São Paulo
(Ibirapuera em 1977), e posteriormente no Rio de Janeiro (Rio Sul em 1980 e
BarraShopping em 1981). Durante os anos 80 (e especialmente nos 90) a violência
urbana nas grandes cidades forneceu condições favoráveis à disseminação dos
shoppings por todo o país, além de torná-los mais segmentados, popularizando-os em
definitivo como centros de compras.
Analisando estas datas, pode-se notar uma coincidência cronológica entre a
explosão do fenômeno dos shoppings centers no Brasil e o crescimento dos filhos dos
informantes. Estes são atualmente solteiros, de acordo com os limites do grupo, e têm
idades que variam aproximadamente de 15 até 30 anos. No entanto, quando os
shoppings surgiram, os filhos dos membros do grupo eram desde recém-nascidos até
adolescentes. Fizeram parte da primeira geração de crianças que cresceram em
ambientes como os shoppings centers.
A conseqüência é que o ato de fazer compras em shopping centers, para este
grupo, tornou-se um hábito plenamente difundido durante todas as fases do crescimento
de seus filhos, transformando-se num programa de lazer familiar. Hoje em dia são seus
próprios filhos que reproduzem o hábito, parte integrante do cotidiano dos mesmos.
Obviamente também há uma série de fatores citados que são características típicas
de shopping centers. Pode-se citar como exemplo: praticidade, conveniência, segurança,
59
conforto, limpeza, ambiente “alto astral”, entre outros. Mas o fato é que em sua maioria
os entrevistados têm o hábito de freqüentar os shoppings somente durante os finais de
semana, por falta de tempo, mas também por considerarem as idas aos shoppings
centers como um programa familiar.
A questão de utilizar um canal de compras “real” versus um “virtual” também foi
abordada. A voz predominante foi a de que, dependendo da classe de produtos, há uma
necessidade de se ter um contato sensorial com o objeto de consumo, o que é
impraticável pela internet ou até mesmo com a utilização de catálogos.
Segundo um informante, “comprar produtos por catálogo é um hábito mais
difundido em cidades do interior, uma vez que nas mesmas não há lojas com grande
variedade de linha de produtos”. Somente determinados nichos de mercado foram
supridos através de consumo por meio de catálogos entre os membros do grupo: roupas
importadas de qualidade e aparelhos eletrônicos, ambos de marcas conhecidas. Entre as
vantagens enumeradas pelos que consomem através de catálogo, encontram-se a
comodidade, privacidade, opção de produtos, além da facilidade para encontrá-los.
Entretanto, com a internet o processo é diferente, como seria de se esperar. A rede
tem atingido uma penetração de destaque entre classes sociais mais elevadas, devido às
inúmeras vantagens proporcionadas por este canal, conforme descrição dos informantes.
Este meio de consumo merecerá um destaque maior, sendo mais detalhadamente ainda
neste capítulo. Como foi visto, durante os finais de semana há um comportamento de
consumo centrado basicamente nos shopping centers. Por sua vez, durante a semana o
hábito predominante é o de consumo em lojas de rua, próximas das residências e locais
de trabalho dos informantes.
Em relação a quem se destina o consumo praticado pelos informantes, em geral é
voltado para os próprios. Aqui cabe uma observação. Na cultura judaica a imagem da
mãe judia (“ídiche mame”) é muito difundida, ou seja, aquela que trata seus filhos de
uma forma excessivamente zelosa, além de funcionar como uma espécie de provedora
das necessidades do lar. Esta figura geralmente está usualmente consumindo não
somente por ela, mas também por toda sua família.
No entanto, o mesmo não ocorre com a figura do pai. A família judaica (ainda) é
paternalista na sua essência, principalmente em termos da figura do provedor
60
econômico. Ao passo que os informantes foram unânimes em afirmar que consomem
visando apenas os próprios. Um deles informou categoricamente que “cada qual
consome com os rendimentos que eu provejo”. A única exceção foi um entrevistado que
afirmou que ao se deparar com um produto que seria adequado a um de seus filhos,
traria o mesmo para verificar se compraria de fato aquele produto.
Outra característica importante no comportamento do consumo dos membros do
grupo é a questão das marcas. A mesma é preponderante na tomada de decisão dos
informantes, na medida em que diminui o risco embutido em quaisquer processos de
compra. Funciona como um elemento que confere credibilidade ao produto ou serviço
adquirido, independente do valor agregado do mesmo.
A questão da marca não se aplica somente ao produto, mas também ao canal
selecionado para o consumo. Os informantes atribuem um grande valor à marca da loja
na qual eles fazem compras. A tradição da marca e experiências de consumo anteriores
são fatores decisivos para estabelecer relações de longo prazo.
Um depoimento confirmou este ponto de vista: “valorizo as marcas por uma
questão pura e simples de privilegiar produtos que possuem reconhecidamente uma
qualidade superior”. E outro ainda completou o raciocínio: “(...) em muitos casos
realmente não importa o preço, desde que o produto seja sinônimo de qualidade,
poupando-me de aborrecimentos futuros”.
Para compor o perfil psicológico de consumo dos membros do grupo seria
fundamental determinar o comportamento de risco dos mesmos. Para tanto, foi utilizada
uma questão cujo processo de tomada de decisão estivesse presente em seus cotidianos.
Foram utilizados produtos de natureza financeira claramente definidos, como forma de
facilitar a gradação do risco envolvido em cada um deles. Uma classificação razoável de
produtos financeiros segundo seu risco (do menor para o maior) foi atribuída da
seguinte forma: caderneta de poupança, fundos de renda fixa, fundos de renda variável
(ações) e derivativos.
Em determinado ponto da entrevista, quando o assunto de finanças pessoais
entrava em discussão, invariavelmente aquela escala de gradação era apresentada em
paralelo com a pergunta “como você aplica suas finanças pessoais em termos de
produtos financeiros?”. O perfil obtido foi bastante homogêneo, uma vez que
61
pouquíssimos afirmaram aplicar em fundos de renda variável (ações, por exemplo)
enquanto que nenhum informante aplica em investimentos mais sofisticados como
derivativos. Alguns sequer aplicam em renda fixa. Entretanto a maioria absoluta
concentra-se neste último. É mais importante ressaltar que, mais do que o produto em si,
o processo cognitivo que leva à tomada de decisão no momento da aplicação é mais
relevante.
O discurso dos informantes remete a palavras básicas como segurança e
estabilidade. Segundo o depoimento de um deles, “a minha época de correr riscos
terminou há muito tempo atrás”. Alguns ainda carregam o trauma dos fracassados
planos econômicos dos anos 80 e 90, evitando até mesmo aplicar seus rendimentos em
fundos de renda fixa e poupança, embora os mesmos sejam mais estáveis. Estes
informantes aplicam em ativos imobilizados cujo risco é menor, como imóveis.
Embora possam oferecer um retorno elevado, as bolsas têm tido fortes oscilações,
sendo vistas pelos entrevistados como um obstáculo difícil de transpor. O risco
associado é considerado desnecessário: “não preciso correr riscos, ainda mais hoje que
as bolsas de valores tornaram-se um investimento cujo retorno é alto somente para os
que a acompanham diariamente e conseguem informações exclusivas”.
Um ponto interessante a ser observado é que a maioria dos informantes aplicou
em bolsas de valores durante algum momento de suas vidas, mas hoje em dia já não o
fazem mais. Este fato ilustra de forma clara a aversão ao risco pela grande maioria dos
informantes. A característica mais importante para os mesmos é a estabilidade
proporcionada pelas suas aplicações e não o retorno em si.
Um outro fator claramente percebido é a influência exercida pelos membros do
grupo entre os demais, uma vez que a rede entre os mesmos possui uma forte interação.
Assim, informações sobre fundos que são rentáveis, mas sem deixar de serem estáveis,
fluem velozmente entre eles, influenciando-os na tomada de decisão.
5.3
Uma nova dimensão do consumo: a internet
Durante o estudo dos canais e características de consumo, percebi através dos
depoimentos que a internet já fazia parte do universo da grande maioria dos integrantes
62
do grupo. Além de funcionar como um canal alternativo poderoso, também possui
grande impacto sobre a relação entre o fenômeno do consumo e os informantes, em
especial para determinadas classes de produtos e serviços.
Um informante resumiu de forma bastante ilustrativa o potencial do comércio
eletrônico proporcionado pela internet: “Sempre existiram canais de consumo
explorando a conveniência, como o telefone e as vendas por catálogo, por exemplo. Mas
nenhum deles consegue aliar a tecnologia de informação a serviço do consumo de forma
tão poderosa como a internet vem realizando”. Mas como o grupo em questão vem
utilizando a rede?
Na realidade, do universo de entrevistados, metade já efetivamente consumiu
algum produto através da internet. O restante que possui acesso à rede a utiliza como
ferramenta para pesquisa sobre produtos e preços. Entre as razões citadas como
impedimentos pelos que ainda não consumiram pela rede, encontra-se em primeiro
lugar o receio de enviar os dados do cartão de crédito, devido a possíveis vazamentos
durante o fluxo de informações. A figura do hacker (invasor de sistemas de
informação), descrita como um ente misterioso, foi mencionada diversas vezes pelos
informantes.
No entanto, segundo um informante que utiliza a rede para consumo, “o quadro
atual brasileiro é semelhante ao cenário da internet norte-americana de alguns anos
atrás. (...) O temor em relação ao cartão de crédito também era um obstáculo citado
pelos internautas americanos. No entanto, com a evolução da segurança na rede, graças
a sistemas de tecnologia como a criptografia, por exemplo, as transações vêm tornandose cada vez mais confiáveis”.
Outros fatores além da insegurança foram citados como barreiras que impedem o
crescimento mais veloz do consumo via internet: altos preços gerados pelo frete,
incerteza quanto aos prazos de entrega, impossibilidade de tangibilizar o produto,
desconfiança quanto às marcas virtuais, entre outros.
Dificuldades para tangibilizar, visualizar e sentir o produto foram vistas como
grandes empecilhos por um informante. Este utilizou o exemplo de uma livraria onde o
sócio conhece seus clientes, além de possuir ambiente agradável, atendimento
excelente, e demais regalias, como cafezinho servido aos consumidores e revistas para
63
serem folheadas. Enfim, um atendimento exclusivo e customizado, o oposto da internet,
segundo seu depoimento: “onde você é apenas mais um que entra no site e não tem
contato direto com seres humanos”.
Um informante frisou que “o universo brasileiro seria mais desfavorável ao
comércio eletrônico, pois é um tanto quanto distinto do individualismo e da cultura de
resultados dos norte-americanos, (...) focada na eficiência e no respeito ao consumidor,
fundamentada no ‘time is money’ como lema principal”. Sem dúvida alguma são
culturas distintas, uma com predominância individualista; a outra, relacional e com uma
necessidade maior de contato físico. São culturas que impactam a utilização da internet
de um modo distinto.
Mas entre os entusiastas da rede, constatou-se que os produtos mais consumidos
são, pela ordem, livros e CDs. Um membro do grupo, freqüentador contumaz do site
norte-americano Amazon, afirma: ”(...) a variedade de títulos, a conveniência da
compra, a facilidade para se encontrar títulos através de mecanismos de busca são
alguns dos atrativos do comércio eletrônico”.
Sem mencionar que há uma série de vantagens competitivas oferecidas pelos
recursos tecnológicos: “(...) há serviços prestados por certos sites que agregam valor à
experiência do consumo (...) via internet: resenhas de livros, sugestão de títulos
correlatos, fóruns de discussão com autores e leitores, entre outros”.
Sites do tipo home broker (corretoras de investimentos virtuais) como Investshop
e Patagon foram mencionados como endereços utilizados pelos informantes.
Primeiramente
como
fontes
de
informação
sobre
fundos
de
investimento;
posteriormente para aplicações efetivas. Mas a internet também é utilizada
exclusivamente como uma ferramenta poderosa de auxílio na tomada de decisão de
compra. Em diversas oportunidades os informantes afirmaram que apenas consultam-na
para fins de pesquisas de preços, informações sobre canais de vendas e dados técnicos
sobre os produtos.
Portanto a internet vem modificando diversos hábitos de consumo, embora muitos
ainda não crêem na segurança da rede. Seja como uma ferramenta de obtenção de
informações, seja como um canal efetivo de compras, a maioria absoluta dos membros
do grupo já incorporou a rede em suas rotinas de consumo.
64
5.4
Hierarquias de consumo
Esta seção aborda o processo de organização das diversas classes de produtos e
serviços em níveis de importância, denotando assim a hierarquia atribuída ao consumo
pelos informantes. Conforme já citado, os membros do grupo são responsáveis por 50%
ou mais da renda familiar conjunta. Como era de se esperar, a provisão das necessidades
familiares mais básicas e urgentes foram citadas em primeiro lugar. Fato observado pelo
seguinte depoimento: “primeiro penso no bem-estar da minha família, seja através do
pagamento das despesas mensais, seja através do investimento do excedente em bens ou
produtos financeiros; somente depois é que penso em meu consumo e nas outras
necessidades pessoais”.
Nesta categoria de consumo foram mencionados: alimentação (supermercados),
saúde (remédios e seguros), educação (colégios, universidades particulares e cursos de
inglês), moradia (pagamento do condomínio e demais despesas), automóveis (impostos,
combustíveis, seguro e manutenção), entre outros.
Um fato interessante é que para a maioria do grupo houve mais duas classes
citadas com freqüência na categoria de despesas mensais básicas: lazer e informação.
Segundo um depoimento, “a informação atualmente é uma commodity das mais
relevantes em nossa sociedade, pois estamos vivendo atualmente uma revolução da
informação com o surgimento da internet e da conexão cada vez maior, impulsionada
pela globalização e pelos avanços da tecnologia de informação”.
O que foi categorizado como informação através dos depoimentos é na realidade
todo o conjunto de produtos e serviços voltados à formação e desenvolvimento pessoais
dos membros da família, proporcionados pelo consumo da informação. Engloba desde
assinaturas de jornais e revistas, passando pela compra de livros e compact discs,
chegando às despesas com internet (hardwares, softwares, provedores de acesso, conta
telefônica, comércio eletrônico).
O fato é que a linha que separa as categorias de consumo “informação” e “lazer” é
na realidade muito tênue. A internet, que será abordada com maior profundidade na
próxima seção, foi considerada pelos membros do grupo como uma sofisticação
65
tecnológica que possui inúmeras funções, prestando diversos serviços. Destaca-se entre
estes serviços exatamente as duas categorias acima mencionadas.
Mas também há o lazer tradicional. Este pode ser simbolizado por atividades
como cinemas, teatros, parques, museus, shows, esportes, restaurantes, entre outros. O
fato dos informantes a incluírem entre as despesas mensais básicas reforça a
importância atribuída pelos mesmos a esta categoria. Após a provisão das necessidades
básicas da família, a próxima categoria de consumo é a de bens adquiridos com o intuito
de imobilizar o patrimônio, ou seja, numa visão fundamentalmente de longo prazo. Em
ordem, encontram-se: imóveis (casas, apartamentos e lotes), produtos financeiros
(poupança, fundos de renda fixa e variável), e até mesmo automóveis.
Os informantes adquirem estes bens visando reparti-los entre seus filhos, após o
casamento dos mesmos. Este objetivo foi uma constante, verificado em grande parte dos
depoimentos. O interessante é que estes informantes afirmaram que, conforme iam
construindo seus patrimônios, em paralelo iam desenvolvendo uma partilha virtual entre
seus filhos, numa demonstração clara de seus comportamentos prudentes.
Na realidade, o consumo e a conseqüente formação do patrimônio adquire um
símbolo de continuidade, paralelo à evolução de sua família. Esta constante
preocupação com o futuro de seus descendentes está implícita nos rituais de consumo da
maioria absoluta dos informantes. A capacidade de desenvolver uma capitalização
através de poupança mensal é vista pela maioria como prioridade absoluta. Este
sentimento misto de prudência e resguardo perante o futuro foi observado em diversos
momentos de interação com os informantes.
É interessante também observar que todos, sem exceção, jamais recorreram a
empréstimos bancários de vulto, dívidas com instituições financeiras, ou demais
instrumentos de crédito cujos juros elevados fossem causar um risco econômico para as
finanças familiares. Um exemplo é o chamado “cheque especial”, que consiste num
empréstimo realizado de forma automática por instituições financeiras: todos os
informantes afirmaram que jamais utilizaram este recurso.
Um depoimento em especial foi ilustrativo na medida em que faz uma analogia
entre a estratégia do informante de administrar suas finanças pessoais e a da família de
judeus sefaradim Safra, proprietários do Banco Safra e renomadas instituições
66
financeiras nos Estados Unidos, Israel e Europa: “(...) também não gosto de me
endividar (...) creio que isto é um traço comum na comunidade judaica, que possui
tradição em enfrentar situações adversas, como as perseguições. Veja o Banco Safra,
cujo lema ‘tradição secular de segurança’, define-o como uma instituição que evita
trabalhar alavancado, isto é, com volume de empréstimos superior ao patrimônio da
instituição”.
Em relação à imobilização do patrimônio, há uma importante observação colhida
nos depoimentos. Na hierarquia de consumo do grupo, todos os membros entrevistados,
sem exceção, possuem casas ou apartamentos na cidade serrana de Teresópolis (RJ).
Seria uma coincidência ou há uma justificativa plausível por trás deste fato? Sim, há
uma razão. O fato de serem judeus, além de membros do mesmo grupo cultural e de
classes sociais mais elevadas dentro da comunidade, fornece alguns subsídios para a
justificativa.
Desde sempre, cresci consciente que os judeus tinham residências de verão em
Teresópolis. Há inclusive um trocadilho que circula entre os judeus cariocas que a
cidade de fato deveria chamar-se ‘Eretzópolis’ (eretz significa terra em hebraico) devido
à elevada concentração da comunidade judaica. O mesmo ocorre no balneário do
Guarujá (SP), chamado de ‘Guarushalaim’ (Yerushalaim significa Jerusalém em
hebraico) devido ao mesmo fato. Talvez razões climáticas (clima temperado, mais
próximo do europeu), geográficas (situação estratégica, no topo da serra) e sociais (local
ermo e pouco habitado) tenham contribuído para a disseminação de sua fama na
comunidade. Assim, Teresópolis tornou-se popular entre os judeus que se estabeleceram
no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX.
O fenômeno denominado de emulação social por Veblen explica em parte este
comportamento. Inicialmente com o objetivo de socialização entre seus pares, os
membros da comunidade mantinham assim sua estima e reputação. Em fins-de-semana,
feriados e principalmente no carnaval, a cidade fica repleta de integrantes da
comunidade. Amigos que dificilmente se encontrariam na capital fluminense têm
diversos pontos de encontro nas esquinas de Teresópolis.
Há outra justificativa importante para este fato: a maioria absoluta das famílias
prefere que seus filhos se casem com cônjuges da mesma religião. A presença maciça
67
da comunidade em Teresópolis funciona como um elemento que contribui para evitar
dispersões, que são maiores numa cidade grande e cosmopolita como o Rio de Janeiro.
Uma pergunta adicional foi realizada com o intuito de gerar subsídios para uma
definição mais apurada sobre a hierarquia de consumo dos integrantes do grupo. A
questão era: “Se você recebesse uma herança milionária, o que faria com a mesma?”. A
resposta confirmou alguns dos aspectos abordados nesta seção, uma vez que emergiram
com maior freqüência entre as respostas: imóveis (apartamentos e casas de campo) para
si próprio e para os filhos, aplicações em fundos de investimentos estáveis, fundos de
ações, entre outros.
Portanto alguns optariam também por investimentos de risco (como fundos de
ações). Mas um ponto ficou claro nos depoimentos: a parcela da herança aplicada em
investimentos agressivos nunca seria superior a 20%. Ou seja, investimentos com menor
risco e / ou tangíveis representariam a maior parte do portfolio. Este tipo de consumo é
claramente temporal, uma vez que visa à imobilização do patrimônio (imóveis) ou ao
investimento puro e simples (aplicações financeiras). Em ambos os casos visando a
proteção contra possíveis intempéries futuras, além de um compartilhamento entre os
filhos.
A vantagem da pergunta é sua natureza abstrata e aberta, a qual não limita a
resposta, dando margens para transparecer o prudente comportamento de consumo dos
informantes. Não foram citados num primeiro momento nem viagens nem tampouco
bens de consumo como automóveis, micro-computadores ou demais produtos de maior
valor agregado. Apenas dois dos entrevistados citaram viagens exóticas e renovação de
automóveis, mas assim mesmo após os investimentos iniciais.
5.5
Consumo étnico
Todos os informantes entrevistados, sem exceção, consomem determinados
produtos e serviços de natureza judaica que, com maior ou menor intensidade, estão
presentes na formação do universo simbólico do grupo. Portanto, o consumo dos
mesmos atua como um dos mais importantes elementos que vão concorrer para compor
suas identidades culturais. E é exatamente esta gama de produtos e serviços que será
abordada.
68
Evidentemente que há inúmeros membros da comunidade judaica do Rio de
Janeiro que não consomem nenhum tipo de produto ou serviço de natureza judaica. Mas
nestes casos provavelmente o comportamento de consumo apenas reflete uma ausência
de identificação com a comunidade judaica. Ou seja, trata-se de um processo muito
comum quando o grau de assimilação é bastante elevado, como nas comunidades
judaicas brasileiras. São pessoas que, por diversas razões, não se sentem pertencentes de
fato à comunidade, não obstante o fato de terem nascido judias.
Os serviços foram citados com mais freqüência do que os produtos, uma vez que
se encontram mais diretamente relacionados aos ritos de passagem e demais
acontecimentos sociais judaicos. Estes eventos são tidos como básicos e fundamentais
na cultura judaica, caracterizando de fato a inserção e manutenção dos indivíduos na
comunidade. Pode-se citar o Brit-Milá, o Bar-Mitzva (ou Bat-Mitzva) e o casamento
judaico, ritos estabelecidos e consagrados há milênios.
Há diversas instituições sociais judaicas que contribuem de forma decisiva para a
manutenção e conseqüente sobrevivência da sociedade. Tal contribuição se dá mais
comumente através de serviços básicos, como escolas e clubes. Mas não podem ser
esquecidas atividades de entretenimento tais como festas, shows, viagens e programas
de rádio e TV. Diversos depoimentos coletados durante a pesquisa etnográfica ratificam
a importância dos serviços de natureza étnica. Algumas das mais tradicionais escolas
judaicas do Rio de Janeiro fazem parte dos serviços consumidos pela maioria dos
entrevistados para esta Dissertação:
“Meus filhos sempre estudaram no Liessin32. Quando eles eram menores eu
não tinha tempo de transmitir grande parte dos ensinamentos do judaísmo.
(...) Estava engrenando na minha carreira profissional, e minha esposa
também trabalhava fora. Mas nós desejávamos fortemente que eles
seguissem a cultura judaica”.
“Desde cedo eu percebi que em escolas judaicas haveria uma carga horária
considerável de matérias como hebraico e história judaica. Eventualmente
matérias que logo mais seriam fundamentais para o vestibular, como
32
O Colégio Israelita Brasileiro A. Liessin é um dos mais tradicionais da comunidade judaica do Rio de
Janeiro. Situa-se em Botafogo e foi fundado na década de 40.
69
matemática, português e química, seriam certamente prejudicadas. Mas não
tem importância: nada substitui um autêntico ambiente judaico”.
“Na verdade, o principal fator pelo qual eu coloquei meu filho no Bar-Ilan33
foi o fato dele crescer num ambiente judaico e poder fazer amigos judeus,
com uma cultura similar, onde ele não seria diferente e possivelmente
discriminado”.
“Sei que não existem Faculdades nem Universidades judaicas no Brasil. Por
isso mesmo sempre incentivei meus filhos a estudarem em colégios judaicos
no primeiro e segundo graus, já que depois eles iriam inevitavelmente para a
Universidade. (...) Veja bem, a não ser que eles fossem estudar em Israel,
mas pessoalmente não gostaria que eles fossem (...) a situação lá é sempre
complicada devido às guerras”.
“Bem, minha filha acabou conhecendo um rapaz judeu no ORT34. Como ela
iria conhecê-lo se estudasse numa escola gói? Seria muito difícil, com
certeza absoluta...”.
Os clubes também exercem um papel social bastante similar ao das escolas
judaicas. Um dos fatores citados foi o da criação de um ambiente judaico onde os jovens
possam conhecer pessoas com cultura e background bastante similar aos seus.
“Desde pequenos os meus filhos freqüentavam o CIB35, onde jogavam
futebol e praticavam natação. Infelizmente hoje em dia estão indo mais à
praia do que ao clube, talvez por terem ficado cansados das limitações de
espaço do clube. (...) O ruim é que agora estão se afastando dos amigos de
antigamente...”.
“Desde a minha adolescência que eu freqüentava o CIB. Naturalmente meus
filhos foram pelo mesmo caminho, jogando basquete e vôlei pelo clube,
participando até mesmo de campeonatos internacionais. Mas agora eles
33
O Colégio Israelita Bar-Ilan situa-se em Copacabana, tendo sido baseado na Universidade israelense de
Bar-Ilan, na cidade de Ramat Gan. Possui uma importante sinagoga e também representa as atividades do
movimento juvenil Bnei Akiva no Rio de Janeiro.
34
O Instituto de Tecnologia ORT é uma escola profissionalizante de segundo grau, fundada na Rússia,
em 1880. Existe em mais de 50 países e possui cerca de 250 mil alunos em todo o mundo.
35
Clube Israelita Brasileiro, um dos mais tradicionais do Rio. Situado no bairro de Copacabana.
70
alegam que os judeus estão se assimilando e por isso tem cada vez menos
gente no clube. Isto é muito ruim para a nossa comunidade...”.
“Eu sei que a maioria dos clubes góis têm infra-estrutura superior e muitas
vezes até mais atividades do que os judaicos. A falta de espaço é um
problema para nossos clubes. Mas foi pelo CIB que meu filho conquistou
uma medalha jogando futebol na seleção juvenil nas Macabíadas36! (...)
Sabe, é este tipo de coisa que nos dá satisfação!”
Outro aspecto dos mais importantes na cultura judaica são os hábitos alimentares.
Entretanto, na cidade do Rio de Janeiro há pouquíssimos restaurantes especializados em
culinária judaica (kosher). Os estabelecimentos ativos (um ou dois) possuem um ciclo
de vida bastante curto devido a questões de gerenciamento, localização e até mesmo de
comunicação junto ao seu público-alvo.
“Uma coisa que não entendo é a questão dos restaurantes kosher. Quando eu
era mais novo, no tempo da Praça Onze, havia dezenas de pequenos
estabelecimentos kosher. Acho que a própria comunidade perdeu o hábito
de freqüentá-los. (...) Em São Paulo, no Bom Retiro37, ainda há restaurantes
que atraem pessoas da comunidade que moram em bairros bons, tipo Jardins
ou Morumbi. Eles pegam seus carros importados e se deslocam até lá. O
restaurante Cecília, por exemplo, é um clássico. Se você vai lá num
domingo vai encontrar muita gente que hoje em dia dificilmente anda
naquela região”.
“Você vê, na minha casa só entra comida kosher, mesmo que seus preços
sejam praticamente o dobro da comida normal. (...) Não me incomodo com
o preço, o que eu quero é manter a tradição. O que está ficando cada vez
mais complicado porque adquirir carne kosher ou até mesmo ir a um
restaurante deste tipo aqui no Rio tem se tornado muito difícil...”.
36
As Macabíadas são eventos esportivos envolvendo atletas judeus de todo o mundo. São realizadas
anualmente e têm edições nacionais, continentais e mundiais.
37
O bairro do Bom Retiro, situado na zona norte de São Paulo, é aonde os judeus provenientes da Europa
e do Oriente Médio iam residir, devido ao baixo custo da moradia e à proximidade da Estação Ferroviária
da Luz. Possui uma importância histórico-cultural similar ao bairro carioca da Praça Onze.
71
“Recentemente descobri o restaurante ‘Delícias da Babe’, que fica em
Copacabana. Lá eu posso comer aqueles beigales38 que só a minha tia-avó
sabia fazer. Assim minha esposa e meus filhos continuam conhecendo as
tradições da culinária ashkenazim de nossos antepassados”.
Também há os serviços que são intimamente ligados às festas judaicas. Entre eles
temos: animação para festas, cantores e bandas especializados em músicas judaicas e
cursos especializados na preparação para estes eventos.
“Quando meu filho fez Bar-Mitzva, eu contratei um professor particular
para ele não dar vexame na hora de ler a Torah. Sabe como é, toda a família
reunida num momento tão importante para todos. Não pode sair nada
errado”.
“No noivado da minha filha eu contratei os serviços da banda Celebrare39,
porque eles só fazem casamentos importantes. E a qualidade da banda é
muito boa, embora eles cobrem bastante caro por duas horas de música ao
vivo. Mas eu quis fazer uma festa bonita, pois era minha filha mais velha.
Mas é importante frisar que a festa foi discreta porque nós não gostamos de
ostentação”.
“(...) e meu filho queria casar num clube gói. Eu falei que por mim tudo
bem, desde que houvesse antes uma cerimônia na Sinagoga. Sabe, é
importante manter acesa a chama da tradição. Decidimos de comum acordo
fazer na Sinagoga da Rua Tenente Possolo40, exatamente no mesmo lugar
onde me casei com minha mulher. Foi realmente o momento mais
emocionante da minha vida!”.
“Quando fizemos 30 anos de casados decidimos dar uma festa para cerca de
300 pessoas. Contratamos a cantora israelense Varda para animar a festa.
Ela é excelente e canta músicas em hebraico e ídiche, o que nos fez lembrar
de nossos falecidos pais e avós...”.
38
Pequeno bolo de batata, tradição da culinária judaica da Rússia e Leste europeu.
Banda que surgiu no início dos anos 90 e rapidamente tornou-se conhecida em meio à comunidade.
Gravaram diversos CDs e tornaram-se conhecidos fora da comunidade judaica.
40
Uma das mais antigas Sinagogas da cidade, fundada nos anos 30. Situada no Centro do Rio.
39
72
Um tipo de serviço que vem crescendo nos últimos anos e que foi mencionado por
diversos informantes foi o de cursos de curta ou média duração voltados para a cultura e
história judaicas. Estes cursos encarregam-se de suprir virtuais deficiências em relação à
difusão deste conteúdo, uma vez que não há faculdades judaicas no país.
“Um curso que eu tenho freqüentado desde o ano passado é o que a ARI41
está oferecendo três vezes por semana à noite. O horário é ótimo porque
assim posso conciliar com o escritório de advocacia no qual sou sócio. Saio
do trabalho e mergulho na milenar cultura judaica. E o interessante do curso
é que consegui rever alguns amigos da época da juventude que não via há
muitos anos”.
“Descobri recentemente um curso espetacular sobre filósofos judeus.
Abrange desde a filosofia dos profetas dos tempos bíblicos, passando por
Maimônides42, até chegar aos modernos, como Ludwig Wittgenstein43 e
Karl Popper44. (...) É um curso com qualidade e profundidade raras de se
encontrar...”.
Outra linha de serviços intimamente conectada à cultura judaica são os pacotes
turísticos oferecidos por agências de viagens. Estes pacotes são direcionados para
membros da comunidade que desejam visitar Israel e até mesmo cidades européias que
têm ou tiveram uma comunidade judaica ativa:
“Ultimamente surgiram uns pacotes de viagens muito interessantes porque
além de visitarmos Israel podemos conhecer cidades espetaculares como
Praga, que tiveram uma influência judaica muito forte. E os guias que nos
acompanham são muito preparados, tornando a viagem uma experiência
única (...) um tem até Mestrado em História da Arte, veja só...”.
41
ARI – Associação Religiosa Israelita, situada em Botafogo. Possui uma importante sinagoga e um
moderno prédio para estudos.
42
Moshe Bem Maimon, o Maimônides (1183 – 1204) foi considerado um dos maiores filósofos judaicos
de todos os tempos. Principal líder espiritual da comunidade sefaradim de sua época, publicou dezenas de
trabalhos de teor religioso. Sua tumba encontra-se na cidade de Tiberíades, em Israel.
43
Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951) foi um dos mais influentes pensadores do século XX. Sua principal
contribuição se deu através do movimento denominado filosofia lingüística e analítica.
44
Karl Popper (1902 – 1994), filósofo e pensador político austríaco, escreveu “A lógica da descoberta
científica”.
73
“Um amigo meu me contou sobre uns pacotes turísticos voltados para um
lado mais cultural e histórico, para pessoas de mais idade. São sensacionais!
(...) Conheci as cidades de Praga e Budapeste e me encantei. Dificilmente
poderia ser oferecido por agências que não conhecessem mais
profundamente a história do povo judeu”.
Em termos de mídia, o surgimento de conteúdo voltado especificamente para a
comunidade judaica acompanha o fenômeno de segmentação do mercado consumidor.
Desta forma, o volume de conteúdo de natureza judaica em diversos canais de
comunicação tais como rádio, cinema e TV vêm crescendo e se firmando como
importantes canais difusores e integradores na comunidade.
“Um programa que ouço sempre é o da Rádio Imprensa FM. Sabe, nem sei
o nome dele, mas sei o horário e nunca perco uma edição. Tem um pouco de
tudo: notícias importantes, as coisas que acontecem na comunidade,
eventos, e é sempre bom estar a par de tudo. (...) Este negócio de escutar
programas judaicos no rádio me faz lembrar do meu avô, que escutava um
programa de rádio quando eu era pequeno, a TV ainda não estava
popularizada (...) embora o programa que ele ouvia, aqui mesmo no Rio,
fosse em ídiche”.
“(...) tem uma coisa que eu venho percebendo: hoje a cidade tem centros de
cinema focados em filme de arte, com qualidade superior. Antigamente
tinha o Paissandu. Hoje em dia estes centros são geridos por empresas, de
forma profissional. Quase todos os anos passam ciclos de filmes com
temática judaica. O Cineclube Estação Unibanco, a Cinemateca do MAM e
a Cinemateca do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) sempre passam
estes filmes”.
Muitas vezes, a audiência destes programas e filmes funciona como uma espécie
de elo com o passado e a tradição do judaísmo. Quando um dos informantes disse que
seu avô escutava programas judaicos no rádio e ele agora se vê na mesma posição, isto
reforça a tradição impregnada na religião e cultura judaicas até mesmo em aspectos
corriqueiros do consumo diário. O mesmo se dá através do cinema:
74
“As grandes produções de Hollywood estão cada vez mais fazendo filmes
dramáticos, históricos, baseados em fatos reais. São feitos para ganhar
Oscars (...) ‘A Lista de Schindler’ do Spielberg, foi emocionante demais.
Não conheço ninguém que não foi assistir. Realmente não nos permite
esquecer que o holocausto não pode ocorrer novamente. E mais: que nós
pertencemos a este povo com uma história tão bonita quanto sofrida...”.
A televisão especificamente colabora para a integração da comunidade. Os
programas dificilmente não são vistos pelos informantes entrevistados. Um deles
encontra-se há mais de uma década no ar, o semanal carioca ‘A Comunidade na TV’.
Outros por sua vez são gerados para todo o Brasil.
“Se tem um programa que me deixa a par de tudo o que circula pela
comunidade, até mesmo as fofocas, sem deixar de lado os aspectos mais
sérios e profundos é ‘A Comunidade na TV’. (...) Agora mesmo teve uma
exposição no Museu Nacional da Quinta da Boavista sobre a Torah mais
antiga do mundo, comprada pelo D. Pedro II. Eu só soube pelo programa”.
Até mesmo aspectos pitorescos envolvendo a audiência de programas deste tipo
foram revelados pelos entrevistadores:
“O programa ‘Shalom Brasil’ é bem representativo do nível de qualidade e
integração dos programas judaicos. (...) cobre aspectos judaicos de diversas
cidades brasileiras. Imagine se minha falecida avó visse um programa como
este, com cobertura nacional: em 1969 quando os astronautas aterrissaram
na Lua ela disse que tudo não passava de um truque cenográfico...”.
Assim como a avó deste informante provavelmente também teria ficado
impressionada caso tivesse a oportunidade de conhecer e utilizar a internet. Desde a
metade dos anos 90 a quantidade e a qualidade dos sites judaicos brasileiros tem
aumentado de forma sensível. No início eram listas de discussão, quando a internet
ainda não tinha uma interface gráfica tão poderosa que permitisse sites mais
sofisticados:
“Como sou professor universitário, tive acesso à internet desde 1994. Era
ainda nas instalações do LNCC (Laboratório Nacional de Computação
Científica) na Urca. A rede era para poucos, geralmente professores
75
universitários como eu. Me lembro que a web havia se difundido a partir da
Califórnia e especificamente da Universidade de Stanford. Já nasciam ali as
primeiras listas de discussão e me lembro de ter participado de diversas
listas compostas exclusivamente por judeus. (...) conversávamos em inglês
com pessoas do mundo todo. Ali vislumbrei o quão poderosa ainda seria a
internet”.
Conforme mencionado quando discutimos a questão da internet como uma nova
dimensão do consumo, atualmente a rede faz parte do cotidiano da grande maioria do
universo dos informantes. Alguns dos sites já são utilizados com freqüência pelos
informantes, conforme depoimentos abaixo:
“É interessante analisar o quanto mudou a forma pela qual eu passei a
utilizar a rede nos últimos dois anos. Antes era mais uma curiosidade
mesmo, eu entrava nos sites judaicos embora eles não fossem atualizados
constantemente. Eram muito amadores... Hoje não, são úteis, relevantes,
com serviços, mas ainda podem melhorar muito, especialmente quanto ao ecommerce. Utilizo muito o site da Netjudaica e também o Aleinu”.
“Um dos sites que mais gosto é o Pletz.com, onde eu posso participar de
listas de discussão. Ainda tem classificados, conteúdo de humor, cinema,
música, receitas, agendas de eventos (...) e o interessante é que há uma série
de serviços, como por exemplo para jovens se conhecerem através do site.
Sabe que meu filho até já conheceu moças judias desta forma?”.
“Veja o ponto de sofisticação a que chegamos... descobri recentemente um
mecanismo de busca voltado especificamente para o judaísmo no Brasil e
no mundo! O Eifo45 acha qualquer site relacionado com a comunidade. È
um serviço muito útil. Já falei inclusive para meus filhos utilizarem”.
É importante frisar que muitos dos sites citados nos depoimentos acima não visam
o lucro, sendo mantidos por instituições da comunidade. No entanto, há os da iniciativa
privada, sendo que destes, nenhum cobra pelos serviços oferecidos. Na verdade seguem
o modelo que vem sendo praticado na internet brasileira até o momento: aumentar a
base de usuários para posterior geração de receita a partir desta base. Não foram
76
somente os serviços relacionados à cultura judaica que foram mencionados pelos
informantes. Algumas linhas de produtos também são consumidas devido ao fato de
serem voltadas especificamente para este mercado potencial. Durante as entrevistas e
observações participantes, foi possível constatar o grau de importância atribuído pelos
membros do grupo a determinados segmentos de produtos.
Os alimentícios constituem um bom exemplo. Alguns dos informantes consomem
apenas os estritamente kosher. Ou seja, freqüentam estabelecimentos como
delicatessens e importadoras que revendem estes alimentos, trazidos de Israel e dos
Estados Unidos46. Grande parte destes produtos é industrializada, como determinados
produtos da Coca-Cola cujas latas apresentam um pequeno selo que significa uma
aprovação do Rabinato norte-americano.
“Sabe, na minha casa só entra comida kosher (...) é uma questão de hábito,
de educação para meus filhos. (...) Considero uma mitzvá o fato de eu
conseguir vencer todos os obstáculos para trazer estes produtos para minha
casa”.
“Tenho percebido que supermercados mais sofisticados e situados próximos
de grandes concentrações de população judaica têm tido maior variedade de
produtos kosher. Aqui mesmo perto de casa o Supermercado Zona Sul é um
deles”.
Entretanto o fato deste tipo de produto ser bem mais caro que os produtos nãokosher também intimida diversos informantes na sua decisão de compra. Tal fato pode
ser verificado no depoimento descrito abaixo:
“Tentei durante anos seguir a mitzvá de somente consumir alimentos kosher.
Mas chegou um momento em que não deu mais. (...) Realmente é muito
oneroso ter que ficar pagando o dobro do que pagaria por um alimento
comum. E para falar a verdade meus filhos preferem a carne normal mesmo,
sabe? É porque eles dizem que a carne kosher ’não tem sabor’. Ter que lidar
45
A palavra Eifo significa ‘aonde’ no idioma hebraico.
A comunidade judaica ortodoxa norte-americana é maior do que a de Israel. Tal fato ocorre devido ao
grande número de movimentos ultra-ortodoxos sediados na costa leste dos Estados Unidos, especialmente
em New York, New Jersey e Philadelphia.
46
77
com este tipo de oposição dentro de casa é complicado. Se eles quiserem
comer alimentos não-kosher na rua o que eu posso fazer?”.
Outros tipos de produto bastante citados, ainda que de forma eventual, são os
artigos relacionados com a arte e a cultura. Exemplos são basicamente os livros e CDs
voltados especificamente para a cultura judaica.
“No último aniversário da minha esposa fui na loja Modern Sound, em
Copacabana, e comprei uns dois ou três CDs de música judaica,
especificamente de música clássica. Eram daquele violonista judeu, o Itzhak
Perlman, junto com a Filarmônica de Israel. Muito emocionante, parece que
eles conseguiram captar em alguns minutos os cinco milênios de história e
cultura judaicas...”.
“Acho que meu maior prazer em termos de consumo são os livros. Bem,
não é à toa que somos conhecidos como o povo do livro, não é? Mas nas
livrarias do Rio não encontramos com muita facilidade livros sobre
judaísmo. Talvez somente nas megastores como Saraiva e Siciliano. Já no
exterior,
especialmente
nos
Estados
Unidos,
encontramos
seções
denominadas de ‘judaica’. Lá sim tem muita variedade de títulos”.
“Eu tenho o hábito de comprar regularmente livros sobre judaísmo. Mas
quase sempre o faço através do site da Amazon. É bastante completo, tem
todos os lançamentos e livros que seriam muito difíceis de serem
encontrados aqui no Brasil. Os assuntos que mais me interessam são os
culturais: personalidades judaicas da história, humor judaico, história do
povo judeu etc”.
É importante frisar que os objetos / produtos religiosos também foram citados
pelos informantes. Simbolizam por si só os mais de cinco mil anos da história judaica.
São impregnados de um valor simbólico que excede em muitas vezes seu valor
comercial. Entre eles encontram-se a mezuzá, a kipá, o talit, o tefilim, a menorah, a
maguen David, o chamsa e a Torah. (uma explicação detalhada destes termos encontrase no glossário).
Há diversas lojas de decoração que têm objetos de natureza judaica, como os
citados no parágrafo anterior. Encontram-se geralmente nos shopping centers mais
78
sofisticados da cidade, como o Fashion Mall (no bairro de São Conrado), o Rio Design
Center (Barra e Leblon) e o Shopping da Gávea. Outros locais de grande concentração
destes tipos de loja são a Avenida Ataulfo de Paiva (Leblon), a Rua Visconde de Pirajá
(Ipanema) e a Rua Marquês de São Vicente (Gávea).
Na linha de produtos de mídia, nos últimos anos vem surgindo uma série de novos
periódicos destinados à comunidade judaica. Os mesmos são de alcance nacional ou
regional (geralmente para a Grande São Paulo ou o Grande Rio de Janeiro). É cada vez
maior o número de assinantes, conforme os depoimentos abaixo:
“A revista Messibá é muito interessante na medida em que aborda as
últimas novidades também sob o ponto de vista dos jovens, que estavam
sem este tipo de informação. (...) É bastante colorida, trata-se de uma
espécie de revista ‘Caras’ da comunidade, se é que você me entende!”.
“Uma coisa que eu achei sensacional foi uma nova revista que lançaram, a
Messibá, que é mais voltada para a juventude. Tem muitas fotos, coberturas
das festas mais badaladas, enfim, coisas para os jovens mesmo. É meio que
um guia para a vida judaica dos meus filhos. Sabe, quebra aquele paradigma
que informação na comunidade é de e para gente mais velha”.
“O Jornal Alef47 chegou para ficar mesmo. E acho que já existe há uns cinco
anos, quer dizer, é o periódico judaico que surgiu nos últimos tempos que
tem a maior duração. Deve estar fazendo sucesso porque tenho reparado que
cada edição tem mais anúncios que as anteriores”.
“Uma seção que eu acho muito interessante no Alef é a de aniversários,
casamentos, Bar-Mitzvas e formaturas. Ali nós encontramos um monte de
conhecidos, filhos de amigos e um monte de gente que nem lembrávamos.
Bem, na verdade é uma grande fonte de informação...”.
Ainda na linha de produtos consumidos pelos informantes e que são de natureza
étnica, há o produto (mencionado na seção anterior – 5.4 Hierarquias de consumo)
imóvel em Teresópolis. Seja uma casa ou um apartamento, constitui presença constante
na vida dos informantes e de suas famílias. Teresópolis funciona como uma espécie de
47
Alef é a denominação da primeira letra do alfabeto hebraico.
79
ponto de referência espiritual e comunitário para estes chefes de família. Espiritual
porque a cidade se transformou num recanto judaico desde algumas gerações:
“Sempre fiz questão de ter um cantinho em Teresópolis. Lembro que meu
pai adorava passar temporadas na cidade, que o fazia recordar da Polônia,
sua terra natal. E também encontrava seus amigos. Mas ele não tinha um
imóvel e sempre ficava de favor na casa de alguém. Desde 1984, quando
comprei uma casa confortável e espaçosa no bairro do Alto, este problema
passou a não existir mais. Depois ele faleceu, mas quando estou lá me sinto
mais próximo de meu pai”.
Trata-se de um consumo nitidamente de natureza étnica na medida em que seus
familiares têm a oportunidade de interagir com os demais membros da comunidade.
Esta interação social se dá até mesmo em lugares públicos:
“Quando minha família está lá nos sentimos em casa. É uma sensação
estranha, como se estivéssemos na nossa Terra, sabe? Por incrível que
pareça, é muito mais fácil encontrar uma pessoa da comunidade em
Teresópolis do que em bairros com grande concentração de judeus no Rio,
como Copacabana ou Ipanema. Meus filhos fizeram grandes amigos”.
“Depois que eu comprei minha casa num condomínio situado na Granja
Comary minha família passou a ter uma integração muito maior com a
comunidade. Para começar a maioria dos proprietários das demais casas
também era composta por judeus. O pessoal sempre organizava churrascos e
convidava uns aos outros. Quer dizer, meus filhos se enturmaram
rapidamente”.
Portanto os informantes entrevistados mostraram-se consumidores ativos de
produtos e serviços que estão intimamente ligados com o ‘ser judeu’. Muitas vezes este
consumo atua como um fator que reforça o elo de ligação dos informantes e suas
famílias com a própria comunidade. Em outros momentos determinados produtos estão
imbuídos de valores simbólicos milenares que concorrem para reforçar o vínculo de
suas identidades. Estes depoimentos ressaltam o viés de consumo de natureza étnica que
está presente no cotidiano da maioria absoluta dos informantes.
80
6
CONCLUSÕES: OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE
No quarto capítulo foi apresentada a contextualização do grupo sob três aspectos:
posicionamento no mundo e no Brasil; descrição e características de seus integrantes; e
descrição do processo de captação do discurso dos informantes. A análise do discurso
foi desenvolvida no capítulo cinco. Através da mesma foi possível verificar: o
simbolismo do ato de consumo junto aos integrantes do grupo; os canais e
características de consumo; novas dimensões de consumo, como a internet; a hierarquia
de consumo dos informantes; e finalmente como o consumo étnico está representado
através de produtos e serviços feitos sob medida para os integrantes da comunidade em
questão.
Neste capítulo serão apresentadas as conclusões deste trabalho. Diversas
inferências serão apresentadas a seguir, retiradas a partir do rico material extraído
através da pesquisa de campo etnográfica realizada com os informantes. Duas foram as
principais fontes de captação de material através da pesquisa etnográfica: as entrevistas
em profundidade e as observações participantes. Este material gerou a análise do
discurso, desenvolvida no capítulo cinco.
É importante relembrar neste momento a pergunta da Dissertação, que foi
apresentada no primeiro capítulo: ‘é possível compreender alguns aspectos do
comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos através de suas práticas
culturais?’. O objetivo principal deste trabalho é justamente responder a esta questão, o
que será realizado neste capítulo. Há ainda outros objetivos que serão contemplados:
! Estreitar as relações entre o Marketing e a Antropologia, no sentido de
aprimorar a compreensão do fenômeno do consumo;
! Verificar a existência de nichos de mercado para este grupo social, que
representa um público-alvo extremamente segmentado e com elevado
potencial de consumo;
! Analisar, no mercado do Rio de Janeiro, a visão empresarial de mercado
voltada para o consumo de etnias específicas, denominada de Marketing
étnico.
81
Portanto, quatro aspectos serão abordados neste capítulo: a lógica do discurso dos
informantes, a network judaica, possíveis nichos de mercado e por fim as contribuições
assim como as interrogações que serão geradas pela Dissertação para eventuais
pesquisas futuras.
A primeira seção busca verificar a existência de padrões de consumo
determinados pelos hábitos sócio-culturais dos informantes. Esta lógica segue alguns
aspectos como, por exemplo, os mecanismos que estão por trás da tomada de decisão de
consumo, assim como o universo simbólico dos informantes. Também será
desenvolvida a questão da network judaica. Ou seja, o quão verdadeiro é o conceito préconcebido que afirma que os judeus formam redes de contato e auxílio entre seus
integrantes. E até que ponto esta rede impacta nos seus hábitos de consumo.
Os possíveis nichos de mercado vislumbrados a partir do discurso dos informantes
também serão abordados. Na medida em que haja demandas reprimidas ou malatendidas pela atual oferta de produtos e serviços, há também nichos de mercado que
têm como target principal o universo de informantes estudados. Assim estarão, de uma
forma mais ampla, as contribuições legadas por este trabalho. A Dissertação contribui
para um maior estreitamento entre as relações do Marketing e da Antropologia, no
sentido de aprimorar a compreensão do fenômeno do consumo.
Também serão abordados os questionamentos que poderão ser gerados pela
Dissertação e até mesmo atuarem como motivadores de estudos futuros. Possíveis
alterações nas fronteiras da amostra ou na metodologia utilizada poderiam
eventualmente proporcionar resultados distintos.
6.1
Aspectos do consumo
Esta primeira seção do capítulo conclusivo busca trazer à tona a lógica que está
implícita (ou explícita) no cerne dos discursos dos informantes. Desta forma é possível
analisar em profundidade como o universo cultural do grupo estudado encontra-se
alinhado com seus padrões de consumo. Como exemplos dos aspectos deste universo
cultural há símbolos, mitos, rituais, linguagens, valores, crenças e percepções, todos
elementos presentes no discurso dos informantes.
82
A partir da emergência desta lógica é possível responder à questão proposta no
primeiro capítulo da Dissertação: ‘É possível compreender alguns aspectos do
comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos através de suas práticas
culturais?’. A resposta à pergunta acima é ‘sim, é possível compreendê-los’. A mesma é
afirmativa uma vez que, devido as suas características peculiares, delimitadas pelas sete
variáveis de contorno (descritas na seção ‘3.2 – Fronteiras do grupo estudado), o grupo
estudado demonstrou um discurso coeso e homogêneo. E este mesmo discurso
apresentou uma lógica em comum, definindo um padrão de consumo para o grupo. E
suas características mais marcantes estão descritas nos parágrafos seguintes.
Um elemento presente na maioria absoluta dos discursos foi o que pode ser
denominado como consumo temporal: a relevância atribuída pelos informantes ao
consumo com o propósito da imobilização do patrimônio. Ou seja, a tendência de
adquirir bens de alto valor agregado, como imóveis (principalmente) ou veículos. O
objetivo primário é o de garantir que o patrimônio da família estará seguro contra
possíveis adversidades, como inclusive uma eventual ausência da figura patriarcal do
próprio informante.
Um fato que também foi bastante frisado nos depoimentos é a questão da partilha.
Em grande parte dos casos, estes bens como imóveis e veículos eram adquiridos num
número que fosse múltiplo do número de filhos. Assim ficava claro o intuito de uma
possível divisão para seus descendentes. Por exemplo, um informante que tinha duas
filhas e um filho possuía seis imóveis. O consumo temporal também significa que os
informantes apresentam uma elevada capacidade de poupança interna, devido à
constante preocupação com o futuro, materializado através de seus filhos e de sua
aposentadoria. Daí surgem os investimentos em produtos financeiros focados em fundos
mais conservadores, como os de renda fixa e até mesmo a caderneta de poupança.
Um dos informantes comprou até mesmo um título do Governo de Israel no valor
de alguns milhares de dólares, cuja importância só poderia ser resgatada num prazo de
cinco anos, para presenteá-lo a seu filho mais velho. Diversos depoimentos inclusive
confirmaram a tendência desta cultura da poupança e do resguardo contra adversidades
ser passada de pai para filho, numa espécie de ritual: “Veja, quando meu filho tinha seis
83
anos de idade já levei o pequeno numa agência bancária para ele abrir uma conta de
poupança. Assim ele começou a valorizar o dinheirinho que ganhava”.
A questão do consumo étnico também foi observada como presente nos padrões
de consumo do grupo. Possivelmente o judaísmo ou o ‘ser judeu’, talvez seja uma das
mais antigas e tradicionais identidades que ainda existam na face da Terra. Como uma
forma de se buscar e preservar esta identidade, os informantes utilizam o consumo de
produtos e serviços de natureza étnica como elos para permitir a continuidade desta
trajetória milenar.
Os serviços principais como escolas, clubes e outros ligados aos ritos de passagem
(casamento, Bar-Mitzva, Bat-Mitzva) ou à preservação dos valores culturais (cursos,
viagens) foram citados em todos os depoimentos como forma essencial de se preservar a
própria identidade judaica assim como de seus familiares. É como se as execuções dos
ritos de passagem nos padrões reconhecidamente judaicos assegurassem a pertinência
dos informantes e de suas famílias à tradição judaica. Portanto o consumo daquela série
de serviços de natureza étnica colabora de forma decisiva para a contínua construção da
identidade.
Entretanto, no comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos não há
elementos de competitividade entre os mesmos. Como exemplos destes elementos
ausentes há desde a obtenção de prestígio social e a ostentação pura e simples, até o
consumo conspícuo ou características de emulação social. Também não se verificaram
características de insaciabilidade de consumo, pois a perspectiva de consumo temporal
se movimenta num sentido oposto. Tal fato pode ser comprovado pelos depoimentos
dos informantes, cujas finanças sempre estiveram equilibradas. Ou seja, os mesmos
jamais contraíram dívidas ou empréstimos bancários com o intuito de consumir algum
produto ou serviço.
No entanto, como integrantes de um grupo de natureza étnica, o depoimento
destes judeus bem-sucedidos deixou configurada a importância do meio social, ou
seja, a aceitação social. Em diversas passagens, ficou patente o quanto era importante
para os informantes inserirem a si próprios e a seus familiares num ambiente judaico.
Este objetivo possuía alta importância em termos da hierarquia de consumo: nem que
84
fosse preciso adquirir um imóvel em determinados condomínios sofisticados em
Teresópolis com o propósito de se aproximar de integrantes da comunidade.
Na realidade, a importância do meio social para os informantes comprova que a
aceitação social junto a seus pares é fundamental para aqueles. Um exemplo é o
consumo de objetos judaicos dotados de grande valor simbólico e que são colocados de
forma estratégica em suas residências, na sala de estar ou nos cômodos principais.
Assim a identidade judaica permanece patente para seus convidados, que são muitas
vezes integrantes do próprio grupo estudado.
Outro elemento percebido nos padrões de consumo é a construção da autoimagem. Na verdade esta característica caminha juntamente com o sentimento de
coesão do grupo. Os informantes possuem vínculos muito fortes com algumas
instituições comunitárias, sendo algumas de origens filantrópicas. Ao serem
questionados sobre o motivo pelo qual ainda permaneciam sócios de clubes ou
instituições às quais não participavam mais no seu dia-a-dia, eles afirmaram: “veja bem,
eu ainda continuo sócio daquele clube porque muitos outros utilizam seus serviços e
como membro da comunidade judaica eu preciso colaborar para a manutenção de
instituições deste tipo. Nem eu nem meus familiares freqüentamos esta instituição, mas
eu me sinto no dever de contribuir”.
Ou seja, o sentimento de coesão do grupo é tão intenso que muitos informantes
ainda pagam mensalidades de clubes ou cursos sem sequer freqüentá-los. Sem
mencionar entidades filantrópicas (Lar das crianças e dos idosos), cujas doações
contribuem para a construção de uma auto-imagem de dignidade e honradez a partir de
seus valores culturais. Além da manutenção da imagem de networking gerada pelos
não-integrantes da comunidade.
O fato da dimensão cultural deste grupo ter se formado há muitos séculos e ter
sido preservada no seu âmago talvez contribua para diversas das características
abordadas. Ainda que haja uma constante influência das culturas das sociedades nas
quais os mesmos estiveram inseridos (pós-Diáspora), a estrutura básica da identidade
judaica assim como seus valores têm sido preservados. Assim, o consumo consiste
numa das formas pelas quais os informantes buscam reforçar esta mesma identidade
judaica. As características principais de consumo temporal, étnico, a importância do
85
meio social e a construção da auto-imagem contribuem para a definição dos padrões de
consumo dos informantes.
Um dos mais estabelecidos pré-conceitos sobre os judeus é o que afirma que os
integrantes das comunidades judaicas são bastante unidos, formando importantes redes
de contato (networks). Aqui serão buscados subsídios para um maior entendimento
sobre a existência ou não destas networks e como as mesmas concorrem para a
formação do padrão de consumo dos informantes.
Primeiramente é importante verificar que há uma série de fatos que contribuem
para a formação deste pré-conceito. Alguns destes fatos, provenientes dos Estados
Unidos, confirmam que os judeus representam 2% da população americana e 45% dos
top 40 milionários da lista Forbes 40048, constituem um terço de todos os
multimilionários (patrimônio pessoal acima de um milhão de dólares) americanos, são
20% dos professores das principais Universidades americanas, são sócios de 40% dos
principais escritórios de advocacia de New York e Washington e por fim representam
25% de todos os americanos laureados com o Prêmio Nobel.
Alguns fatos como os citados acima passaram a contribuir para a idéia préconcebida que os judeus detêm poder e assim sendo organizam-se em networks. Tal
percepção se disseminou a partir dos Estados Unidos até outros países. Geralmente o
tamanho e grau de união da comunidade judaica de um determinado país é diretamente
proporcional à intensidade destes pré-conceitos. Em diversas passagens apuradas junto
aos informantes, ficou claro que contatos pessoais provenientes de atividades sociais
judaicas são muito importantes para suas relações comerciais.
Estas relações podem consistir em benefícios como obtenção de novos clientes ou
até mesmo formação de parcerias entre empresas. Alguns informantes confirmaram que
preferem fazer negócios com integrantes da comunidade judaica, porque “quando se faz
negócios com pessoas com os mesmos valores e crenças, enfim, com a mesma cultura, o
entendimento durante a negociação fica muito mais fácil”, segundo um informante.
Verificar a origem do sobrenome é uma forma utilizada comumente pelos
informantes para se ter uma boa idéia da probabilidade do outro ser judeu. Mas aqui
também se parte de um pré-conceito, pois na realidade há muito judeus cujos nomes
86
possuem origem ashkenazim, ou seja, possuem sufixos típicos alemães ou russos, como
‘Berg’, ‘Man’, ‘Vitz’, entre outros.
Esta maior pré-disposição para se fazer negócios ocorre também quando a
comunidade encontra-se ciente que a alta gerência da empresa é constituída de
integrantes da comunidade. Um exemplo clássico é o dos irmãos banqueiros Safra:
Joseph, Moise e Edmond, cuja história familiar remonta ao século XIX, na Síria. O mais
velho dos irmãos, Joseph, era banqueiro, proprietário de um banco nova-iorquino, o
National Republic Bank. O banco, bem-sucedido, era um dos cinqüenta maiores bancos
norte-americanos em volume de recursos.
Devido a problemas pessoais, Joseph decidiu vender seu banco ao HSBC (Hong
Kong and Shangai Banking Corporation), um dos maiores bancos do mundo, em 1999.
Após a venda ter sido concretizada, um sem-número de contas e investimentos de
clientes judeus foram cancelados. Este fato representou um efeito colateral inesperado
para o HSBC. Assim ficou caracterizado o quanto que grande parte dos integrantes da
comunidade prezam o fato da empresa ser administrada por um judeu.
A história acima foi citada por um dos informantes. O mesmo afirmou verificar
sempre quem faz parte da alta gerência dos bancos nos quais ele depositava seus
investimentos. Portanto as networks existem e desempenham importante papel na
comunidade. No entanto, não se trata de algo exclusivo dos judeus, pois os demais
grupos étnicos também possuem suas redes de contato específicas. Além disso,
networks judaicas possuem relevância devido ao caráter de preservação dos integrantes,
representando uma variável na definição dos padrões de consumo dos informantes.
Conforme pôde ser observado através dos depoimentos dos informantes, a
afirmação da identidade judaica é corroborada através do consumo de determinados
produtos e serviços de natureza étnica. Há algumas categorias que vem se
profissionalizando de forma mais acelerada, como a de serviços direcionados para as
festas judaicas. Foi somente durante os anos noventa é que surgiram e se desenvolveram
grupos de dança e música cujos nomes se tornaram conhecidos por toda a comunidade.
Outro setor que vem crescendo e possui como público-alvo um segmento mais
específico é o de mídia, como jornais, revistas e programas de TV (a cabo e aberta). No
48
A revista de negócios Forbes publica anualmente um ranking anual com os 400 americanos mais ricos.
87
entanto, o que se verifica no mercado brasileiro é que há uma série de nichos de
mercado que podem ser explorados de uma forma mais efetiva. Como exemplos há a
categoria de produtos carregados de valor simbólico, desde menorahs até mezuzás, entre
outros (citados na seção 5.5 - consumo étnico). Atualmente é bastante difícil encontrar
esta categoria de produtos no Rio de Janeiro.
Uma interessante oportunidade de negócios seria a criação de um ponto de vendas
que oferecesse uma completa experiência de consumo sob o ponto de vista étnico. Ou
seja, uma loja que tivesse um mix de produtos e serviços: objetos ligados à cultura
judaica, desde os mais tradicionais sob o ponto de vista religioso, até os mais modernos,
como cartões e artefatos de papelaria.
Mas que não comercializasse somente produtos, como também oferecesse uma
experiência de consumo total, através de uma lanchonete com comida kosher, por
exemplo. Assim estaria convertendo-se num ponto de encontro para integrantes da
comunidade, com determinada faixa etária. Cumpriria um papel não somente comercial,
mas também de elemento integrador para a comunidade local.
Fazendo-se um contraponto à experiência de consumo do ‘mundo real’, há
também oportunidades de desenvolver uma experiência de ‘consumo virtual’, ou seja,
através da internet. A mesma já possui grande penetração junto a este mercado, uma vez
que todos os informantes e seus familiares possuem alto nível de escolaridade e de
renda, conseqüentemente tendo acesso à internet. Ainda não há hoje no país um site que
seja uma referência para a comunidade judaica em termos regionais nem tampouco
regionais. Portanto há espaço no mercado para um portal judaico baseado na dicotomia
‘globalização X tribalização’.
‘Globalização’ na medida em que o usuário teria uma experiência de consumo
(via e-commerce) de produtos de natureza étnica de todo o mundo, inclusive Israel e
Estados Unidos. Por outro lado a ‘tribalização’ se daria através da participação de
membros da comunidade local para a geração de conteúdo para o portal, com artigos,
entrevistas e participações. Portanto os depoimentos junto aos informantes deixaram
claro que há setores desenvolvendo-se rapidamente, mas há oportunidades e nichos de
mercado para atender às demandas que porventura ainda não estejam sendo atendidas.
88
6.2
Contribuições e interrogações geradas pela Dissertação
Nesta seção encontram-se as contribuições geradas por este trabalho, assim como
possíveis interrogações. Ambas poderão atuar como elementos motivadores para futuras
Dissertações, enriquecendo as pesquisas sobre o Marketing e mais especificamente
sobre as relações entre a Antropologia e o Comportamento do Consumidor.
A contribuição fundamental foi ter proporcionado um maior estreitamento
intelectual entre as duas ciências humanas, quais sejam: a Administração (através do
Marketing) e a Antropologia. Ao confirmar as influências culturais na determinação do
padrão de consumo para o grupo, esta Dissertação colaborou para a aproximação destes
dois campos do conhecimento.
No entanto é importante frisar que este trabalho não esgota o tema, uma vez que
há uma série de variações que podem ser feitas a partir do mesmo. Como exemplo há
desde a metodologia utilizada, passando pelo referencial teórico estudado, ou até
mesmo pelas variáveis que delimitaram as fronteiras do grupo, entre outros fatores.
Estas variações podem ser transformadas em estímulos para a realização de
posteriores trabalhos, tendo como enfoque outros grupos culturais, com fronteiras
igualmente bem definidas. Por exemplo, a metodologia empregada foi fruto de uma
pesquisa etnográfica e observações participantes. Caso somente uma destas fontes fosse
utilizada, os insights e conclusões poderiam ter sido outros.
Em relação às fronteiras, um próximo trabalho poderia estudar os hábitos de
consumo dos demais elementos da família dos informantes desta Dissertação. Sua
esposa e seus filhos provavelmente possuem outros valores simbólicos além de
percepções, crenças e valores diferentes. Desta forma, seus padrões de consumo teriam
uma outra conformação. Ou se algumas variáveis fossem modificadas: seus filhos
fossem casados, ou os próprios informantes fossem divorciados, possivelmente os
resultados teriam sido diferentes, devido às novas fronteiras do grupo.
Caso outra sinagoga fosse utilizada como elemento básico para a seleção dos
informantes, o resultado apresentaria outra feição. Se a sinagoga fosse mais ortodoxa ou
mais liberal, qual seria o impacto dos valores culturais dos informantes em seus padrões
de consumo? Possivelmente seriam diferentes, mas em que intensidade? Assim como
outros grupos étnicos podem ser selecionados para futuras Dissertações. Grupos
89
segmentados em função do país de origem de seus integrantes, de suas religiões, de seus
bairros, de suas cidades, de seus hobbies, de suas profissões, entre outras variáveis.
Portanto neste capítulo foram apresentadas possíveis variações dos grupos
culturais a serem analisados através de pesquisa etnográfica. A finalidade é a de se
estimular futuros estudos que possam estar contribuindo para a compreensão do
fenômeno do consumo, fundamental nos tempos em que vivemos e intrinsecamente
ligado aos nossos valores culturais.
90
7
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8
GLOSSÁRIO
Diversos termos relacionados à cultura e às tradições judaicas possuem origem no
idioma hebraico ou no dialeto ídiche. São, na maioria das vezes, termos extremamente
difundidos entre os integrantes da comunidade judaica.
Por se tratar de uma linguagem oral tão importante e utilizada, sua contribuição e
influência dentro da cultura judaica são inquestionáveis. A seguir, os respectivos
significados das palavras que foram utilizadas no decorrer desta Dissertação:
Ashkenazim – São os descendentes dos judeus provenientes da Palestina ou da
Babilônia, que se instalaram na Europa Central e Oriental durante a Idade Média. Há
também os judeus sefaradim, ou seja, cujos ascendentes vieram da Península Ibérica ou
de países do norte da África (como o Marrocos ou o Egito).
Bar-Mitzva – Ao completar treze anos os rapazes tornam-se responsáveis por
seus atos. Um dos mais importantes e emblemáticos rituais da cultura judaica. Após a
leitura da Torah (livro do Velho Testamento) na sinagoga, a família e os amigos são
convidados para uma festa de confraternização. Há uma versão feminina, o Bat-Mitzva,
realizada aos doze anos de idade.
Brit-Milá – Cerimônia de circuncisão. Há um ritual religioso, com rezas
específicas. O médico que realiza a intervenção cirúrgica é denominado mohel, e em
pequenas comunidades é uma figura bastante popular.
Chamsa – Talismã em forma de mão. Utilizado desde a antiguidade pelos
fenícios, gregos e romanos, como um meio de se afastar os maus-olhados.
Posteriormente incorporado pelos judeus.
Chasán – Religioso que comanda os cânticos e rezas durante as cerimônias nas
sinagogas.
Clienteltic – Palavra em ídiche derivada do termo “cliente”. Denominação dos
judeus que trabalhavam com vendas à prestação, batendo de porta em porta e se
relacionando comercialmente através da venda a crédito. Tratava-se de uma profissão
bastante difundida entre os imigrantes recém-chegados durante a primeira metade do
século XX no Brasil.
95
Gói – Todo aquele que não é judeu, não importando qual seja sua religião, raça ou
crença. Termo bastante utilizado pela comunidade judaica.
Ídiche – Dialeto semelhante ao alemão, com forte influência do idioma hebraico.
Bastante popular entre os judeus ashkenazim do Leste Europeu.
Iom Kipur – Possivelmente o dia mais sagrado para os judeus: dia do perdão e da
expiação do povo, no qual há um jejum de 24 horas. Trata-se de uma festa com data
móvel, com freqüência anual.
Kipá – Pequeno solidéu utilizado para cobrir a cabeça. Utilizado sempre que o
judeu encontra-se na sinagoga, como símbolo de respeito ao ambiente religioso.
Kosher – Adjetivo que classifica os alimentos preparados de acordo com as leis
dietéticas de Moisés, sendo ritualmente puros.
Maguen David – A Estrela de David. Trata-se de um hexagrama formado por
dois triângulos eqüiláteros. Um dos símbolos gráficos da identidade nacional judaica
mais conhecidos no mundo.
Menorah – Candelabro de sete braços, utilizado em diversas cerimônias
religiosas. Re-introduzida em 1948 (Proclamação do Estado de Israel) como símbolo
nacional do povo judeu e da identidade de Israel.
Mezuzá – Caixa tubular de madeira, vidro ou metal, contendo um pequeno
pedaço de pergaminho. No mesmo há passagens bíblicas presentes em orações. Pregada
numa posição inclinada na parte superior direita das portas das residências.
Mitzvá – Palavra do hebraico que significa ‘preceito’. São ao todo 613
mandamentos fundamentais que representam a estrutura de toda a moral judaica.
Estabelece normas de conduta em todos os momentos da vida do homem, quer nas
relações com seus semelhantes, quer nas relações com Deus.
Pessach – A páscoa judaica. Festividade que celebra o fim da escravidão do povo
judeu no Egito. A palavra significa ‘travessia’ e evoca a milagrosa passagem em meio
ao Mar Vermelho. Tal festa possui numerosos símbolos e tradições.
96
Rosh Hashaná – Ano novo judaico. Festividade na qual se comemora a criação
do mundo. O ápice da festa é quando o rabino toca o shofar, espécie de trompa feita a
partir do chifre de carneiro, que representa o despertar das almas.
Sefaradim – Ver o termo ‘ashkenazim’.
Shabat – Dia sagrado, reservado para reflexões de ordem religiosa. Dia no qual
Deus descansou após criar o mundo. A cerimônia inicia-se após o pôr-do-sol, todas as
sextas-feiras, quando milhões de judeus em todo o mundo rezam nas sinagogas ou em
suas próprias casas. Termina quando surgem as primeiras estrelas no sábado.
Sucot – Festa anual na qual constroem-se estruturas com bambus, galhos e
folhagens, lembrando os tempos difíceis da Diáspora no Egito.
Talit – Uma espécie de xale de orações, que fica por cima das vestes habituais.
Deve ser utilizado após o cumprimento do Bar-Mitzva, sempre durante as orações, tanto
nas residências quanto nas sinagogas.
Tefilim – Dois cubos com tiras de couro preto. Dentro dos cubos encontram-se
depositadas tiras de pergaminho. Um é colocado na cabeça e o outro enrolado no braço
esquerdo. O ritual consiste em colocá-los diariamente, antes das rezas matutinas.
Torah – Um dos livros sagrados do Velho Testamento. Palavra que significa
‘ensinamentos’, tendo sido derivada do termo Pentateuco (do grego ‘cinco
pergaminhos’), pois engloba os cinco livros de Moisés (Gênese, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio).
Yeshivá – Escola de formação de rabinos (líderes religiosos judaicos). O curso é
extenso e fornece uma visão não somente religiosa, como também humanística.
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