OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE: O COMPORTAMENTO DE CONSUMO DE JUDEUS BEM-SUCEDIDOS CARLOS BLAJBERG UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro COPPEAD – Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em Administração Mestrado em Administração Orientador: Prof. Dr. Everardo P. Guimarães Rocha Rio de Janeiro 2001 ii OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE: O COMPORTAMENTO DE CONSUMO DE JUDEUS BEM-SUCEDIDOS Carlos Blajberg Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Pós Graduação e Pesquisa em Administração – COPPEAD/UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre. APROVADA POR: __________________________________ Prof. Dr. Everardo P. Guimarães Rocha (Orientador) __________________________________ Profa. Dra. Letícia M. Casotti __________________________________ Prof. Dr. Bernardo Jablonski Rio de Janeiro 2001 iii Blajberg, Carlos. Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos. / Carlos Blajberg. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001. ix, 96 p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPEAD, 2001. 1. Marketing. 2.Antropologia. 3.Etnografia. 4.Religião. 5.Dissertação (Mestr. - UFRJ/COPPEAD). I. Título. iv Uma pesquisa de Marketing foi realizada entre consumidores de três países: Rússia, Estados Unidos e Israel. A primeira pergunta era: “Desculpe, o que acha da falta de carne?”. Mas a pesquisa fracassou. Os russos não sabiam o que é “carne”, os americanos não sabiam o que é “falta”, e os israelenses não sabiam o que é “desculpe”. Anônimo Nos anos 30, o ministro de propaganda nazista visitou uma escola secundária alemã antes da expulsão dos judeus. Durante a visita avisou que daria um prêmio ao aluno que sugerisse o melhor slogan para a Alemanha. Após algumas sugestões, um estudante se levanta: - Nosso povo viverá eternamente. - Excelente! Você merece o prêmio. Como é seu nome? - Abraham Goldenstein. Anônimo v Aos meus avôs Abram e Josef, que transpuseram todos os obstáculos colocados pelo destino e construíram uma maravilhosa família. Aos meus queridos pais Marlene e Israel, corajosos pais de quatro filhos, fundamentais na conquista de mais esta realização. Aos meus irmãos Silvia, Rosa e Rubens, grandes amigos e incentivadores dos meus projetos. À Jane, pelo amor e compreensão infinitos, que sempre me apoiou em todos os momentos. vi AGRADECIMENTOS A Deus, guia presente em todos os momentos. A minha mãe e ao meu pai por todo carinho e dedicação, mas principalmente pelo apoio fundamental nesta importante etapa acadêmica da minha vida, e aos meus irmãos pelos incentivos. Obrigado pela enorme paciência, principalmente nesta etapa final da Dissertação. À Jane, minha namorada e amiga, pelo amor e compreensão infinitos. Aos meus colegas da turma 98 do COPPEAD, que sempre me incentivaram tanto nas minhas realizações profissionais quanto pessoais. Ao meu orientador e amigo Everardo, por seu apoio em todas as etapas do desenvolvimento desta Dissertação. Aproveito também para agradecer aos amigos da secretaria acadêmica do COPPEAD – Cida, Eva e Carlos – pelo apoio constante durante o curso de Mestrado e à Elza da AMEA, por sua ajuda no meu desenvolvimento profissional. Agradeço a todos os que pacientemente concederam uma parcela do seu valioso tempo ao apoiar a minha pesquisa. A receptividade de vocês foi fundamental para o alcance dos objetivos desta Dissertação. Ao povo judeu, por ter resistido a séculos de dificuldades, obrigado por tudo. Sinto-me orgulhoso e feliz por fazer parte desta bela história. Divido com vocês esta grande realização da minha vida. vii BLAJBERG, Carlos. Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos. Orientador: Everardo P. Guimarães Rocha. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001. Dissertação. (Mestrado em Administração). O objetivo do presente estudo, de caráter exploratório, é a compreensão, através da prática da Etnografia, de como os judeus bem-sucedidos vêem o fenômeno do consumo em suas vidas. Os mesmos foram selecionados através de algumas fronteiras dentre as quais: homens, casados, com filhos solteiros e freqüentadores de uma mesma sinagoga da cidade do Rio de Janeiro. Os judeus bem-sucedidos são um grupo bastante representativo em termos de mercado, pois além de consumirem diversas categorias de produtos, influenciam o padrão de compra de suas famílias, além de serem formadores de opinião dentro da comunidade judaica como um todo. A perspectiva adotada é a de pensar questões de mercados, produtos e consumidores, acentuando a dimensão cultural que atravessa suas práticas e visões de consumo. Ao captar e analisar os diversos temas que emergiram dos discursos dos judeus sobre o seu comportamento como consumidores e adotando o prisma repleto de simbolismos proporcionado pela Antropologia, este estudo apresenta uma significativa contribuição aos profissionais de Marketing que tenham como público-alvo os consumidores cujos padrões culturais apresentem similaridades. viii BLAJBERG, Carlos. Os paradoxos de uma identidade: o comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos. Orientador: Everardo P. Guimarães Rocha. Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2001. Dissertação. (Mestrado em Administração). The aim of the present paper, of an exploratory character, is the understanding through Ethnography, of how well-succeeded the Jews see the phenomenon of consumption in their lives. The respective sample was selected according to some parameters as for instance being male, married, with unmarried children, and active members of the same synagogue in Rio de Janeiro, Brazil. Well-succeeded Jews constitute a very representative group as a specific market, since besides consuming various categories of products. They tend to bias the buying standards of his respective families, as well as acting as opinion formers inside the brazilian jewish community. The perspective adopted is one of thinking market, product and consumer questions. It is also important to stress the cultural dimension related to this group consumer practices and visions. By selecting and analyzing the various trends that emerged from the group tales about their respective behavior as consumers, and following the point of view full of symbolisms proportioned by the Anthropology Science, it is hoped that this study presents a significant contribution to Marketing professionals, targeting consumers with similar cultural standards. ix SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR.................... 1 2 MARKETING E ANTROPOLOGIA: UM REFERENCIAL TEÓRICO ...... 5 2.1 UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA ................................................................... 5 2.2 DIMENSÕES HISTÓRICO-CULTURAIS DO JUDAÍSMO ............................................... 9 2.3 CONSUMO: RELAÇÕES ENTRE MARKETING E ANTROPOLOGIA............................ 16 2.4 CONSUMO, RELIGIÃO E ETNIA: IMPLICAÇÕES NO MARKETING ........................... 29 3 O MÉTODO ETNOGRÁFICO E O CONSUMO............................................ 35 3.1 A PESQUISA ETNOGRÁFICA ................................................................................. 35 3.2 FRONTEIRAS DO GRUPO ESTUDADO .................................................................... 38 3.3 ENTREVISTAS E OBSERVAÇÕES PARTICIPANTES.................................................. 39 3.4 ANÁLISE DO DISCURSO: INTERPRETANDO OS CONSUMIDORES ............................ 42 4 O CONTEXTO DO GRUPO ESTUDADO ...................................................... 43 4.1 POSICIONAMENTO NO MUNDO E NO BRASIL ....................................................... 44 4.2 DESCRIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DE SEUS INTEGRANTES .................................... 47 4.3 O PROCESSO DE CAPTAÇÃO DO DISCURSO DOS INFORMANTES ............................ 50 5 IDENTIDADE JUDAICA E CONSUMO: ANÁLISE DO DISCURSO........ 54 5.1 O ATO DE CONSUMIR .......................................................................................... 55 5.2 CANAIS E CARACTERÍSTICAS DE CONSUMO......................................................... 57 5.3 UMA NOVA DIMENSÃO DO CONSUMO: A INTERNET ............................................. 61 5.4 HIERARQUIAS DE CONSUMO ............................................................................... 64 5.5 CONSUMO ÉTNICO .............................................................................................. 67 6 CONCLUSÕES: OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE...................... 80 6.1 ASPECTOS DO CONSUMO .................................................................................... 81 6.2 CONTRIBUIÇÕES E INTERROGAÇÕES GERADAS PELA DISSERTAÇÃO ................... 88 7 BIBLIOGRAFIA................................................................................................. 90 8 GLOSSÁRIO ....................................................................................................... 94 1 INTRODUÇÃO: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR O objetivo deste estudo é compreender os padrões de consumo encontrados junto a um determinado grupo de judeus bem-sucedidos sob a ótica de suas práticas e dimensões culturais. Neste primeiro capítulo da Dissertação encontram-se: o detalhamento de seus objetivos, as delimitações que a envolvem e as contribuições geradas, na medida em que busca estreitar a parceria entre o Marketing e a Antropologia a partir de uma análise do fenômeno do consumo. No limiar de um novo milênio, em meio a uma sociedade complexa, é cada vez maior a quantidade e a diversidade de bens e serviços oferecidos ao consumidor. Cabe ao Marketing - através do comportamento do consumidor - estudar e compreender as razões por trás dos padrões de consumo em determinados segmentos da sociedade. O estudo do comportamento do consumidor procura compreender as razões da formação dos padrões de consumo dos mesmos. Portanto utiliza-se dos conhecimentos desenvolvidos em ciências centradas no estudo de atividades humanas, como a Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Antropologia, entre outras. Este trabalho visa estreitar a parceria entre o Marketing e a Antropologia, numa perspectiva interdisciplinar. Torna-se importante compreender as dimensões culturais presentes no comportamento de consumo de determinados grupos sociais urbanos. Tal compreensão também é importante em relação ao universo simbólico, composto por um sistema de classificações que define suas identidades. Com o auxílio deste sistema, uma espécie de mapa cultural, é possível coletar subsídios sobre a formação dos hábitos de consumo dos integrantes de um grupo social urbano. Neste trabalho o grupo escolhido foi constituído por judeus bem-sucedidos. Esta Dissertação possui um objetivo principal e outros aspectos ligados ao mesmo. O objetivo principal consiste em compreender se os padrões de consumo encontrados no grupo de judeus bem-sucedidos podem ser explicados através de suas práticas e dimensões culturais. Tais dimensões são encontradas a partir dos valores e práticas constantes no discurso dos elementos deste grupo. São obtidas por meio de descrição profunda do comportamento de consumo dos mesmos. A metodologia 2 empregada, através da pesquisa de campo etnográfica, fornece os subsídios para a elaboração do universo simbólico deste grupo social. Há outros aspectos importantes relacionados com o objetivo principal, como o estreitamento das relações entre o Marketing e a Antropologia, no sentido de aprimorar a compreensão do fenômeno do consumo. Outro aspecto a ser observado é a verificação da existência de oportunidades de negócio com foco neste grupo social, que embora pequeno em termos de população relativa, representa um público-alvo com elevado potencial de consumo. Também será abordada nesta Dissertação a análise, no mercado do Rio de Janeiro, uma visão empresarial voltada para o consumo de etnias específicas, denominada de Marketing étnico. Já que a realidade é extremamente complexa, qualquer projeto de pesquisa possui limitações de diversas ordens. Aqui estão descritos os fatores que definem o que será contemplado neste trabalho, e por outro lado, o que não está ao alcance do mesmo. O meio de investigação a ser empregado é a pesquisa de campo, configurada através de entrevistas com os informantes, que compõem a etnografia. Entre as inúmeras variáveis que poderiam revelar os valores e práticas culturais do grupo em questão (exemplo: o grau de religiosidade) o estudo está circunscrito àquelas que traduzem basicamente a condição sócio-econômica do informante. Não obstante, estas variáveis encontram-se intimamente relacionadas com outras, que revelam o conceito de identidade social, ou seja, o sentimento de pertencer ao grupo de judeus bem-sucedidos. Algo que também afeta diretamente a análise é a constatação de que a assimilação cultural sofrida pelos judeus nas últimas décadas vem enfraquecendo a comunidade judaica mundial, especialmente no Brasil. Portanto não basta que o informante seja judeu e sim que o mesmo realmente sinta-se parte integrante do grupo social. O trabalho é essencialmente qualitativo e interpretativo, sendo importante haver uma cumplicidade com o informante. Entretanto recomenda-se um certo distanciamento, saudável para uma melhor compreensão das práticas e valores culturais dos informantes do grupo. A parceria entre o Marketing e a Antropologia é relativamente recente. Estudos antropológicos usualmente centram-se nas práticas culturais, mas sem contemplar de 3 modo mais focado os padrões de consumo de certos grupos sociais. Em contrapartida, o Marketing procura estabelecer uma parceria mais sistemática com a Antropologia. O trabalho pretende contribuir para uma reflexão dos padrões e hábitos de consumo de um segmento da população judaica do Rio de Janeiro. Desta forma, esperase que ao analisar os hábitos e costumes culturais deste grupo, seja possível compreendê-lo. As informações poderão ser utilizadas pelas empresas de forma a atender aos anseios e às necessidades deste mercado consumidor. A comunidade judaica carioca constitui-se na terceira maior comunidade da América Latina, após Buenos Aires e São Paulo. Calcula-se algo em torno de 50 mil pessoas, participantes de forma ativa da sociedade carioca: houve prefeitos judeus, há empresários, jornalistas, políticos, comerciantes, artistas, profissionais liberais, entre outros. (LEWIN, 1997) Há também o aspecto do desenvolvimento de um Marketing mix que venha a atender segmentos específicos do mercado, minorias com culturas (e necessidades de consumo) peculiares: é o que se denomina de Marketing étnico. O estudo surge num momento em que há um aparente paradoxo, que é o da coexistência entre dois movimentos, o de globalização e o de tribalização. Esta dicotomia é perfeitamente possível num mundo cada vez mais interconectado de forma real e virtual, através de um sentimento de coesão em determinados grupos étnicos como forma de reforçar sua identidade frente às constantes mudanças no cenário mundial. O consumo nada mais é do que uma das formas deste grupo étnico se relacionar com o mundo globalizado, do qual ele faz parte. Este relacionamento será contemplado especialmente no que tange à diáspora do povo judeu, pois o colocou em contato com as mais diversas culturas. Uma vez conhecidos alguns aspectos do comportamento do consumidor neste segmento analisado, o seu universo simbólico poderá fornecer subsídios para diversas decisões de Marketing pelas empresas. Conseqüentemente está configurada a importância deste trabalho, pois é essencial compreender alguns dos mecanismos que estão por trás de decisões de consumo de determinados grupos étnicos. Os mesmos têm sua importância destacada em meio às sociedades nas quais faz parte, pois o fenômeno de globalização também atua no sentido de torná-los relevantes. 4 Há inúmeros fatores que me influenciaram a escrever esta Dissertação. Entre estes há os de ordem social, pois a mesma trata-se de uma prestação de contas à sociedade brasileira, na medida em que esta me forneceu condições de estudar numa Escola cujo renome é de fato internacional, o COPPEAD. Tal estudo foi financiado em parte pela bolsa de estudos concedida por órgãos governamentais como o CNPQ e a CAPES. A Dissertação representa a materialização das atividades ocorridas neste período. Há também os fatores que poderiam ser classificados como sendo de ordem acadêmica, ou seja, a oportunidade de estudar como se relacionam e interagem determinados campos do conhecimento, como o Marketing e a Antropologia, produzindo assim um estudo sobre o comportamento do consumidor. Entretanto, no âmago destes fatores encontram-se motivações pessoais. Sou judeu, assim como os demais membros de minha família, tendo sido minha educação realizada durante nove anos em tradicionais escolas judaicas da cidade do Rio de Janeiro, como o TTH (Talmud Torah-Hertzlia) e o Instituto de Tecnologia ORT. Três de meus quatro avós nasceram na Europa, mais precisamente no interior da Polônia, um país eminentemente cristão. Devido às condições extremamente precárias de vida (e ao crescente anti-semitismo) os mesmos emigraram para o Brasil durante o período compreendido entre a 1a e a 2a guerra mundiais (1918-1939). Desde sempre admirei a ousadia e a coragem de meus antepassados, que tomaram uma decisão de tamanho impacto, ao emigrarem para um país desconhecido, praticamente sem recursos financeiros e sem sequer falar quaisquer idiomas que não fossem o polonês ou o ídiche, sendo este muito popular entre os judeus ashkenazim. Sem mencionar o fato de que, àquela época, não havia sequer vestígios de uma série de recursos tecnológicos disponíveis atualmente. Abram Blajberg, meu avô paterno, ensinou-me a admirar o Brasil, que tão bem o acolheu na primeira metade do século XX. Ao ser perguntado sobre a razão de ter escolhido o Brasil, em 1929, para tentar uma nova vida, Abram respondeu: - “Porque nós sabíamos que aqui não havia anti-semitismo, muito embora o país fosse relativamente desconhecido para todos nós que viemos da Europa, que vivíamos num outro mundo”. 5 2 MARKETING E ANTROPOLOGIA: UM REFERENCIAL TEÓRICO No capítulo inicial destaca-se a introdução, tratando-se das peculiaridades da Dissertação, como seus objetivos, possíveis delimitações, contribuições ao Marketing e as motivações que me levaram a escrevê-la. O referencial teórico no qual baseia-se este trabalho será contemplado neste capítulo. Compreende as teorias da Antropologia que serão utilizadas: o arcabouço teórico sobre cultura, o conceito de trabalho de campo, além do contexto histórico da sociedade judaica, produzindo uma espécie de panorama cultural do povo judeu. Finalizando, uma análise sobre o encontro das culturas judaica e brasileira. Também serão abordadas neste capítulo as teorias sobre o comportamento do consumidor. Diversas delas são apresentadas, fornecendo ângulos possíveis para vislumbrar este campo do Marketing: representam a maior parte do referencial teórico deste trabalho. Há ainda os aspectos religiosos do consumo, de forma a analisar as relações entre a religião e o consumo; e se há de fato uma perspectiva judaica no mundo dos negócios e do consumo. Aqui também estão os conceitos sobre o denominado Marketing étnico, difundido nos Estados Unidos embora seja praticamente desconhecido no Brasil. 2.1 Uma perspectiva antropológica Campo do conhecimento relativamente recente, a Antropologia contribui de forma significativa para uma melhor compreensão dos hábitos culturais de diversos povos. Entre estes hábitos, encontram-se também as práticas de consumo, incorporadas de forma mais densa após a revolução industrial. Quando se analisa um determinado grupo à luz da Antropologia, é possível desvendar parte do universo simbólico e seus valores, práticas, mitos, rituais, enfim, um conjunto de características que moldam sua identidade cultural. Este princípio também pode ser aplicado sobre os hábitos de consumo dos integrantes deste grupo, auxiliando a compreensão do comportamento de consumo dos mesmos. A Antropologia esteve desde sempre ligada às formas de cultura praticadas pelo homem. Certos elementos, tais como instituições, ritos, normas e mitos seriam formas 6 de se atender às necessidades básicas e primárias que determinam uma resposta humana e forçam determinado grupo na direção de uma invenção da cultura. (MALINOWSKI apud DAMATTA, 1997) O papel da Antropologia não consiste em buscar leis gerais e abrangentes sobre o comportamento de uma sociedade, mas sim interpretar os significados que os homens dão as formas pelas quais escolheram para viver suas vidas. Resgatar e arquivar alternativas humanas de existência, preservando seu universo simbólico é uma das funções da Antropologia. (GEERTZ apud ROCHA, 1984) “A Antropologia possui, portanto, dois tipos de significado. De um lado coleta, classifica e analisa o conhecimento a cerca dos seres humanos, como vivem e o que fazem. De outro lado, questiona algumas das idéias mais fundamentais do mundo contemporâneo (...) e nos torna mais conscientes do que somos através do confronto com o que não somos”. (BOHANNAN, 1990, p.256) Diversos autores foram acrescentando contribuições em relação à idéia de cultura, na medida em que o próprio estudioso foi tornando-se menos etnocêntrico: passou a compreender e identificar as diferenças entre os diversos grupos sociais sem tomar-se como ponto de referência para eventuais comparações. A relativização nos estudos antropológicos tornou-se uma constante, através de uma postura mais flexível. Segundo Rocha (1984, p.20) a idéia de “relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença”. Conforme Geertz (1978, p.15), “o conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico. Acreditando que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise”. No transcorrer do século XX os conceitos de cultura começaram a se ampliar, incorporando elementos de outras ciências. O espectro de grupos sociais estudados ampliou-se de forma considerável, englobando não somente povos isolados como também grupos sócio-econômicos, urbanos, étnicos, religiosos, entre outros. Este processo de diálogo com outros campos do conhecimento continuou até chegar à Administração. As empresas passaram a se caracterizar como possuidoras de 7 uma cultura de natureza organizacional. No entanto, alguns autores, como Hofstede (1997, p.34) afirmam que “a cultura organizacional é um fenômeno em si mesmo (...) pelo fato de os membros da organização terem tido alguma influência na sua decisão de se juntarem a ela (...) e poderem um dia abandoná-la”. Mas as organizações possuem também um universo simbólico com um sistema composto de ritos, tradições, mitos, enfim, códigos que constituem por si só um grupo social com uma cultura específica. Hofstede (1997, p.210) então define a cultura organizacional como “a programação coletiva da mente que distingue os membros de uma organização dos de outra”. As diferenças entre as teias culturais de Geertz tornaram-se mais visíveis após o contato entre as diversas sociedades promovido pela evolução dos transportes. Surgiram relatos de visitantes estrangeiros como o francês Alexis de Tocqueville, que esteve nos Estados Unidos em meados do século XIX: “Porque os americanos erguem (...) monumentos tão grandiosos? Eles traçaram o circuito de uma imensa cidade onde pretenderam construir sua capital, embora até o momento seja quase deserta; de acordo com eles, terá um dia um milhão de habitantes. Erigiram um magnífico palácio para o Congresso no centro da cidade e deram-no o nome pomposo de Capitólio”.1 (TOCQUEVILLE, 1999) Como afirma Bohannan (1990, p.256), “as observações de Tocqueville sobre a América jamais poderiam ser feitas por um observador do país”. Progressivamente os viajantes deixaram de adotar uma postura etnocêntrica ao descrever culturas completamente novas. Embora segundo Cicourel (1990, p.87) “os pesquisadores em ciências sociais defrontam-se com um problema metodológico singular: as próprias condições de suas pesquisas constituem variável complexa e importante para o que se considera como os resultados de suas investigações”. No entanto, o trabalho de campo pode trazer consigo alguns resultados implícitos, na medida em que muitas vezes o pesquisador pode conduzir a pesquisa de modo a encontrar as informações que vem corroborar suas idéias iniciais. E a apresentação dos resultados pode realçar os principais pontos de seu trabalho. (CICOUREL, 1990) 1 Tradução livre do autor. 8 A partir das expedições de Malinowski nos arquipélagos da Nova Guiné e Melanésia (Ilhas Trobriand), o trabalho de campo difundiu-se como um instrumento básico para o registro do discurso social. “(...) A Antropologia, especialmente em seus modernos aspectos, tem a seu crédito o fato de que a maioria dos que a ela se dedicam são obrigados ao trabalho de campo etnográfico, ou seja, um tipo empírico de pesquisa. (...) O etnólogo estuda a realidade da cultura sob a maior variedade de condições ambientes, raciais e psicológicas. Ele deve ser ao mesmo tempo perito na arte da observação (...) e na teoria da cultura“. (MALINOWSKI, 1975, p.21) Culturas que estariam perdidas de forma irreversível devido a diversos fatores (intensa assimilação, genocídio) como no caso das dezenas de tribos indígenas brasileiras, foram registradas por antropólogos. “O conjunto dos costumes de um povo é sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas. Estou convencido de que esses sistemas não existem em número ilimitado, e que as sociedades humanas, assim como os indivíduos (...) jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher combinações num repertório ideal que seria possível reconstituir”. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 167) A partir destes relatos, tornou-se possível resgatar e preservar a cultura de determinadas sociedades. O viajante - e etnógrafo - registra o discurso social e transforma-o a partir de um acontecimento passado existente apenas no seu momento de ocorrência, num relato para ser consultado a posteriori. (GEERTZ, 1978) Compete ao estudioso buscar as dimensões simbólicas das ações sociais, como a arte, religião, ideologia, leis, moral, senso comum, e pensá-las de um modo profundo, a fim de interpretá-las. O objetivo não é responder às questões do próprio estudioso, mas sim colocar à disposição as respostas concedidas pela sociedade estudada. Assim, a Antropologia cria uma espécie de arquivo de culturas. (GEERTZ, 1978) Como sintetiza DaMatta (1987, p.146), “a base do trabalho de campo como técnica de pesquisa é fácil de justificar abstratamente. Trata-se, basicamente, de um 9 modo de buscar novos dados sem nenhuma intermediação de outras consciências, sejam elas as dos cronistas, dos viajantes, dos historiadores ou dos missionários”. 2.2 Dimensões histórico-culturais do judaísmo A religião judaica remonta a milhares de anos, constituindo-se na primeira religião monoteísta de que se tem registro. De acordo com Freud (1997, p.91), “de todos os povos que viveram na bacia do Mediterrâneo na antiguidade, o povo judeu é quase o único que ainda existe em nome e também em substância. Enfrentou infortúnios e maustratos com uma capacidade sem precedentes de resistência”. Ainda segundo Freud (1997, p.115) “após a instituição da combinação de clã fraterno, matriarcado e totemismo, começou um desenvolvimento que deve ser descrito como um lento ‘retorno do reprimido’, (...) sob a influência de todas as mudanças da civilização humana”. Um deus surgiu substituindo o animal totêmico, numa série de transições. De início, o deus em forma humana ainda portava uma cabeça de animal. Entre o animal totêmico e o Deus, surgiu o herói, como um elo no sentido da deificação. O passo seguinte foi o de prestar respeito a apenas um só Deus, e não tolerar outros deuses além deste. (FREUD, 1997) Um importante fator para a formação da tradição cultural judaica foi o caráter impresso por Moisés, na medida em que este reforçou a auto-estima do povo ao receber as tábuas da lei, no Monte Sinai. Moisés permitiu aos judeus participarem da grandiosidade de uma nova idéia de Deus; afirmou que esse povo fora escolhido por este Deus; e impôs um avanço em intelectualidade que lhe abriu o caminho à apreciação do trabalho intelectual e às renúncias aos instintos. (FREUD, 1997) Constantemente surgiram, em meio ao povo judeu, homens que reviveram a tradição e que não descansaram até que aquilo que estava perdido fosse mais uma vez estabelecido. (FREUD, 1997) Após seu surgimento e estabelecimento, num contexto de anti-semitismo, o povo judeu foi alvo de diversas perseguições, sendo obrigado a migrar com freqüência. Por 10 esta razão, desde sempre a convivência com distintas sociedades foi algo corriqueiro, como forma de sobrevivência. Conforme Sartre (1987, p.87) “a partir do momento em que o judeu está vinculado a opiniões sobre sua profissão, seus direitos e sua vida, sua situação é completamente instável. Ele deve observar a evolução do anti-semitismo para prever possíveis tempestades e saber que se encontra vulnerável”.2 Ainda sob o impacto da II guerra mundial, o filósofo francês tece uma comparação entre o povo judeu, por diversas vezes oprimido, e o protagonista de ‘O processo’, de Franz Kafka: “Ambos estão empenhados num longo julgamento. Não se sabe quem são os juízes, muito menos seus advogados; nem o motivo pelo qual estão sendo acusados, embora saibam que estão sendo considerados culpados. Ainda que sua situação externa seja de aparente normalidade, o julgamento interminável acaba por miná-los por dentro”. 3 (SARTRE, 1987, p.88) O primeiro registro dos movimentos migratórios do povo judeu encontra-se no Velho Testamento, no livro do Êxodo (12:39 – 15:21): “Embora o faraó permitisse que os israelitas saíssem do Egito, enviou suas tropas para persegui-los assim que eles partiram. Mas uma vez que eles cruzaram as águas do Mar Vermelho, ficaram livres para glorificar o Senhor. Hoje em dia o povo judeu comemora esta libertação através da páscoa judaica (Pessach)”.4 (KELLER, 1992, p.32) Durante a Idade Média os judeus se estabeleceram na Península Ibérica, onde permaneceram por alguns séculos, constituindo um centro intelectual e cultural baseado em Toledo, Espanha. Mas em 1492, os reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela assinaram o édito de expulsão dos judeus, a fim de que os mesmos não subvertessem os cristãos, segundo palavras dos próprios reis. Surgiram novas correntes migratórias, mas agora o panorama global também compreendia o Novo Mundo. Os judeus (assumidos ou conversos) participaram das grandes navegações - ainda que de forma clandestina - como forma de escapar de um 2 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 4 Tradução livre do autor. 3 11 ambiente de intolerância religiosa. E no século XVI fundaram colônias judaicas no Brasil, principalmente em Salvador e Recife. Durante a ocupação holandesa em Pernambuco, os judeus foram contemplados com a igualdade de direitos e liberdade de culto graças a Maurício de Nassau. Mas este cenário durou apenas vinte anos, devido à reconquista do Recife pelos portugueses. Parte dos judeus voltou à Europa, juntamente com os holandeses. Em 1655 os judeus enviam uma petição à Companhia das Índias Ocidentais com o objetivo de negociar e viver nos Estados Unidos. Autorizado o pedido, os judeus participam da fundação de Nova Amsterdam (atualmente Nova Iorque), surgindo a comunidade judaica norte-americana, hoje a maior do mundo. Durante o século XVII os judeus participaram da Companhia das Índias como os principais acionistas. Tal fato se devia à influência que os mesmos exerciam sobre o comércio europeu, especialmente na Holanda, devido à liberdade religiosa. Weber (1989, p.118) expõe as diferenças entre as culturas protestante e judaica através de uma perspectiva de participação no então emergente sistema capitalista: “Os judeus participavam do capitalismo ‘aventureiro’, político ou especulativo - seu ethos era o do capitalismo sem pátria -, enquanto o puritanismo inglês oriundo do calvinismo, baseava-se no ethos da organização racional do capital e do trabalho, apenas adotando da ética judaica o que se adaptasse a tal propósito”. Este aspecto citado por Weber classifica os judeus como especuladores, cujo capital possui uma característica internacional, sem uma pátria definida. Tal conceito foi progressivamente sendo incorporado ao imaginário coletivo dos europeus, nas últimas décadas do século XIX. “Para os puritanos ingleses, os judeus de seu tempo eram representantes do capitalismo comprometido com contratos governamentais, monopólios estatais, promoções especulativas e projetos financeiros dos príncipes. (...) O capitalismo judaico era sem pátria e especulativo, enquanto que o puritano integrava-se na organização burguesa do trabalho”. (WEBER, 1989, p.212) No início do século XX, este conceito foi perigosamente distorcido e utilizado por líderes de partidos nacionalistas, de extrema direita. Até culminar no grande genocídio 12 cometido pelos nazistas na II guerra mundial, na qual cerca de seis milhões de judeus foram assassinados. Com o objetivo de reunificar os judeus em um só local - a ‘Terra Prometida’, onde de acordo com o Velho Testamento seria onde hoje se encontra Israel - surgiu no final do século XIX na Europa, o movimento sionista. Publicado em 1896 pelo judeu húngaro Theodor Herzl, o livro ‘O estado judeu’ lançou as bases deste movimento. Dois anos antes, na França, houvera um caso de antisemitismo contra o oficial judeu Dreyfus, cuja repercussão mobilizou os judeus da Europa a favor do sionismo, no limiar do século XX. Herzl (1988, p.69) é bastante pragmático em relação a sua opção: “A idéia a qual vou desenvolver neste panfleto é muito antiga: a restauração de um estado judeu”.5 Após o surgimento do sionismo e de intensas negociações políticas, com o voto de Minerva da delegação brasileira na ONU, em 1948 foi criado o Estado de Israel. Desde então dois milhões de judeus migraram para Israel. Hoje em dia, a população judaica mundial é de aproximadamente 13 milhões. Os Estados Unidos com seis, Israel com quatro, França com quase um milhão e os demais vivendo principalmente na Ucrânia, Rússia, Argentina, Inglaterra e Brasil. Atualmente há os que residem (nascidos ou imigrantes) em Israel e os da diáspora, ou seja, aqueles que residem em outros países embora sejam judeus. Estes vivenciam em seu cotidiano a dualidade entre sua cultura religiosa, tradicional e universal, e a cultura nacional, de seu país de adoção. Os primeiros judeus chegaram ao Brasil na época do descobrimento, durante as primeiras expedições portuguesas do século XVI. Mas eram em sua maioria conversos, fugindo da inquisição que estava no auge na Península Ibérica. Naquela época, o judaísmo não obteve um desenvolvimento estruturado, pois os conversos, conhecidos como cristãos novos, não se sentiam judeus de fato. Devido ao fugaz domínio holandês no Recife, os judeus fundaram a primeira sinagoga das Américas, aproximadamente em 1650. Alguns hábitos culturais recifenses cultivados até hoje são heranças deixadas pelos judeus: pintar as casas no final do ano, arrumá-las às sextas-feiras, comprar mercadorias à porta de casa e em prestações, entre outros. 13 Mas a grande corrente imigratória originária principalmente da Europa Oriental começou na década de 80 do século XIX. Centenas de milhares de judeus deslocaram-se para as Américas, especialmente Estados Unidos e Argentina. O Brasil também recebeu milhares de imigrantes que se estabeleceram basicamente no Rio de Janeiro, São Paulo, Belém e Porto Alegre. Mas o principal fluxo imigratório de judeus ao Brasil começou em 1903 e durou cerca de meio século. Sua origem era basicamente de países do leste europeu (Polônia, Rússia, Bessarábia, Romênia) e do Oriente Médio (Síria, Líbano, Turquia). Um importante registro do encontro entre as duas culturas aparentemente tão distintas foi colhido por um popular cronista carioca do princípio do século, que em 1906 escreveu o livro ‘As religiões no Rio’. Ele descreve a festa religiosa de Pessach, embora o número de participantes tenha sido exagerado: “Cerca de quatro mil famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com discrição, é certo, beberam sem violência, riram com calma, exatamente porque a gente do país de Judá tem a tristeza n’alma e a tenacidade na vida. Quem assistiu à orgia contínua dos batuques carnavalescos, talvez não possa compreender como cerca de dez mil judeus comemoraram com tanta modéstia e tanta correção”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN, 1998, p.31) O cronista faz às vezes de Malinowski ao agir como o antropólogo, observador solitário das Ilhas Trobriand, estando na sociedade do “outro”. João do Rio estava envolvido à época numa espécie de trabalho de campo na então nascente sociedade judaica brasileira. A diferença é que os judeus não estavam isolados como os indígenas do referido arquipélago. A sociedade na qual os judeus estavam (e estão) imersos é, na visão dos mesmos, do “outro” e do “eu”: a brasileira. “Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a alegria n’alma. É que os filhos de Israel são receosos, sempre curvados ao sopro das perseguições, sempre sábios. Festejam sem que ninguém desse por tal. (...) Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da rua da Alfândega”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN, 1998, p.32) 5 Tradução livre do autor. 14 Cita o Carnaval, àquela época um traço cultural que ia tomando um vulto cada vez maior no Rio de Janeiro. Mas o faz apenas com o intuito de estabelecer diferenças pelas quais judeus e não-judeus comemoram suas festas. Não se torna etnocêntrico, devido ao seu posicionamento, de compreensão e entendimento das razões pelas quais os judeus são um tanto quanto discretos. Há também uma coincidência: os judeus que chegavam ao Rio de Janeiro procuravam residência numa área que tivesse terrenos com preços acessíveis e fosse ao mesmo tempo próxima das estações de trens, pois muito trabalhavam como mascates e tinham clientes no subúrbio. Optaram pela Praça Onze, no centro da cidade. Foi exatamente ali, no início do século, que o samba urbano nasceu, e de onde os blocos carnavalescos se concentravam para os desfiles. “O bairro da Praça Onze, tendo a praça como ponto de convergência e de encontro, teve uma vida judaica dinâmica e ativa do começo dos anos vinte até o fim dos anos trinta, e dava a impressão de um enorme gueto, sem muralhas ou restrições”. (MALAMUD, 1988, p.20) Diversos rituais da comunidade, como a festa de Pessach, são semelhantes aos praticados pelos judeus de todo o mundo. Mas por menor e mais homogênea que pudesse parecer, a comunidade da época praticava seu judaísmo de diversas maneiras, de acordo com as observações de João do Rio: “Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam de chasán e fazem apenas as duas grandes cerimônias: a do Iom Kipur ou dia do perdão, e o ano novo, em Rosh Hashaná. (...) Algumas sinagogas já têm sido estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber todos esses senhores”. (JOÃO DO RIO apud VELTMAN, 1998, p.34) Um fato curioso é que até hoje, decorridos praticamente cem anos, na mesma cidade, grande parte dos descendentes desta comunidade também festejam apenas as mesmas duas festas. Como se vê, algumas características permanecem atuais. Mas a situação econômica dos judeus recém-chegados era precária. Alguns foram trabalhar como motorneiros de bonde ou empregadas domésticas. Mas a grande maioria tornou-se mascate ou vendedor ambulante: 15 “O vendedor ambulante judeu foi o precursor dos grandes estabelecimentos de venda a crédito. (...) A venda a prestação contribuiu também para que o vendedor ambulante fosse penetrando pouco a pouco na sociedade brasileira e facilitou o estabelecimento de relações de amizade entre a população e o imigrante, que assim foi se integrando ao meio ambiente”. (MALAMUD, 1988, p.29) A imagem do judeu prestamista foi incorporando-se no inconsciente coletivo dos brasileiros. Configurava-se como um tipo astuto, hábil, sempre envolvido em transações comerciais e negociações das mais diversas. O compositor Noel Rosa fez um samba nos anos trinta que cita esta figura, de uma forma sarcástica: “Quem dá mais? / Por um violão que toca em falsete, / Que só não tem braço, fundo e cavalete, / Pertenceu a Dom Pedro, morou no palácio, / Foi posto no prego por José Bonifácio? / (...) Quem arremata o lote é um judeu, / Quem garante sou eu, / Pra vendê-lo pelo dobro no museu”.6 (ROSA apud MÁXIMO e DIDIER, 1990, p.167) De certo modo, a dicotomia sócio-cultural vivida pelos membros do grupo tornouse visível, uma vez que o ‘ser judeu’ pode-se constituir uma característica concomitante com o ‘ser brasileiro’. Dependendo do grau de identificação em relação ao grupo social judaico, esta dicotomia pode estabelecer-se de um modo mais latente em situações muitas vezes cotidianas. Uma experiência pessoal torna-se ilustrativa: estava caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro7, com uma kipá. Trata-se de um sinal de respeito, mas também de um símbolo, uma identidade do ‘ser judeu’, de orgulho de pertencer ao grupo. Na zona sul, fui abordado por uma pessoa que indagou: “você é brasileiro?”. No imaginário popular dos brasileiros, às vezes, há uma impossibilidade de alguém ser judeu e brasileiro. É interessante verificar o approach judaico em relação aos rituais típicos da cultura brasileira através de um fato verídico. Quando meu avô desembarcou no porto do Rio de Janeiro, em 1929, proveniente da Polônia, um brasileiro ofereceu uma xícara de café 6 7 Devido a este tipo de ironia, o compositor foi rotulado de anti-semita, o que não era o caso. Durante o Iom Kipur (outubro de 1998). 16 quente. O imigrante acreditou ser uma brincadeira pois de acordo com o mesmo seria impossível tomar algo tão quente num calor intenso de um país tropical. A língua utilizada pelos recém-chegados era um dialeto bastante popular originário do leste europeu: o ídiche. Havia ainda nos anos trinta uma imprensa judaica que publicava livros e periódicos neste dialeto. Muitos judeus, donos de estabelecimentos comerciais, não aprenderam o português: seus funcionários não-judeus é que necessitaram aprender o ídiche. Mas após cerca de 50 anos (duas gerações), o dialeto praticamente morreu no Brasil. O que apenas simboliza o processo de assimilação pela qual os judeus brasileiros passaram. Embora atualmente no Rio de Janeiro existem oito escolas judaicas, que ensinam o idioma hebraico e os costumes e tradições judaicas. No que tange ao aspecto geográfico, antes restrita à Praça Onze, a comunidade judaica carioca disseminou-se por toda a cidade. Nos anos 50 e 60, estabeleceu dois grandes pólos: na Tijuca e em Copacabana. A partir dos anos 90 iniciou-se um fluxo migratório das zonas norte e sul da cidade em direção à Barra da Tijuca. Em termos de tamanho, pode-se dizer que a população atual da comunidade é de cerca de 50 mil pessoas, número equivalente ao de 1950. Tal fato se dá devido à forte assimilação que vem se sucedendo nas últimas décadas, fazendo com que a população mantenha-se num mesmo patamar. Portanto, a dualidade do ‘ser judeu’ e ‘ser brasileiro’ é algo extremamente atual. A convivência entre estas duas culturas constitui-se num fator decisivo para a definição da futura posição da comunidade judaica no Brasil e no Rio de Janeiro. 2.3 Consumo: relações entre Marketing e Antropologia Determinar quando, como e quem adquire algum bem ou serviço é algo relativamente simples de ser obtido. No entanto, determinar as razões pelas quais as pessoas compram, é uma tarefa razoavelmente complexa. Para tanto, é necessário o estudo de modelos de comportamento humano. (KOTLER, 1968) Segundo o próprio Kotler (1968, p.545), “o estrategista de Marketing deve associar o comportamento do consumidor às potenciais contribuições interpretativas de 17 diversos modelos explicativos”.8 Aqui encontram-se as mais importantes teorias de comportamento do consumidor relacionadas de um modo efetivo com os objetivos deste trabalho. Os conceitos provenientes destas teorias estão interligados com a metodologia a ser utilizada, através da pesquisa de campo etnográfica. O referencial teórico relativo à metodologia empregada (etnografia) encontra-se no capítulo três. O consumo nas sociedades pré-industriais, assim como os demais aspectos da vida cotidiana eram fortemente influenciados pelos hábitos e tradições. A ambição individual de melhorar a qualidade de vida criando novas necessidades era considerada ameaçadora à sociedade, além de possuir um caráter imoral. A sociedade inglesa do século XVIII demonstrou uma propensão inédita em termos de consumo. A variedade de produtos ofertados aumentou de forma nunca vista anteriormente, devido à escala de produção decorrente da revolução industrial. A demanda por consumo acompanhou a oferta, iniciando a chamada revolução do consumo. (CAMPBELL, 1987) Durante o século XVIII surgiu também o ‘padrão de moda do ocidente europeu’, que foi se constituindo num fenômeno de dimensão global. A velocidade com a qual os produtos passaram a serem modificados em função da moda foi aumentando, alterando o padrão de produção. A moda dependia de alguns fatores tais como localização (Londres era o centro da sociedade) e o extrato social, pois a preocupação com a moda começou nas classes mais elevadas. (MCKENDRICK apud CAMPBELL, 1987). A emergência de uma moderna sociedade de consumo na Inglaterra, segundo Campbell (1987, p.31) “foi conduzida pelos setores da sociedade com as tradições puritanas mais arraigadas, quais sejam: a classe média, os negociantes e os artesãos”.9 Com o objetivo de explicar as causas que motivaram esta sociedade a consumir, surgiram duas teorias, a da tradição instintiva e da manipulativa. A perspectiva da tradição instintiva é baseada no conceito de demanda latente, isto é, o comportamento humano possui um potencial, em termos biológicos, por determinadas necessidades (de subsistência ou de consumo). Este potencial latente será realizado uma vez que haja a adequada oferta de produtos. Mas o conceito de comportamento instintivo é insustentável, uma vez que se existissem de fato inclinações 8 9 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 18 e vontades pré-determinadas, seria improvável explicar o tamanho grau de variabilidade que caracteriza os desejos humanos. (CAMPBELL, 1987) A tradição manipulativa vislumbra os consumidores como alvo de agentes que os impelem no sentido de desejar determinados bens. Esta teoria posiciona os consumidores de uma forma passiva, uma vez que apenas atuam como receptores de agentes como a propaganda ou os pesquisadores de mercado. (CAMPBELL, 1987) Uma crítica a esta teoria refere-se ao fato de que os anúncios constituem apenas parte das influências recebidas pelos consumidores. Há outras entidades que têm uma forte influência cultural, como instituições religiosas, escolas, entre outros. Além do mercado de consumidores não ser homogêneo, trazendo diversas interpretações para a percepção do conteúdo da mensagem. (CAMPBELL, 1987) Com o surgimento do capitalismo moderno, após a revolução industrial, alguns economistas começaram a desenvolver teorias sobre as novas formas de relacionamento comerciais. Algumas destas teorias contemplavam as práticas de consumo, fenômeno que estava adquirindo uma complexidade inédita. Àquela época, a instituição da propriedade privada, por mais embrionária que fosse, representava um processo econômico com o caráter de luta pela posse de bens. O motivo que está na base da propriedade é a emulação, a rivalidade. E já que a mesma não possui relação direta com a subsistência humana, estimula uma comparação odiosa entre o proprietário e os demais membros do grupo. (VEBLEN, 1965) A propriedade adquire um sentido de troféu. Num ambiente industrial, a posse da riqueza torna-se mais importante como base de estima e reputação, e funciona como algo que confere honra ao seu possuidor. Este processo de acumulação de riquezas transforma-se num processo contínuo no qual o fundamento de tal necessidade é o desejo de cada um sobrepujar os demais. O conceito da emulação pecuniária é o principal motivo pelo qual os homens buscam a acumulação de riquezas. Surge o conceito do consumo conspícuo, ou seja, um consumo improdutivo de bens, de natureza honorífica, como forma de alimentar uma emulação social. Assim, pessoas pertencentes às mais altas classes sociais cultivam o chamado ‘bom gosto’, criam um sistema classificatório e tornam-se connoiseurs em determinadas categorias de produtos. (VEBLEN, 1965) 19 É interessante verificar que, quando o consumo conspícuo é adotado por classes mais elevadas, o mesmo pode tornar seus membros mais preconceituosos na medida em que aqueles que não possuam tais bens são discriminados. O próprio conceito de ‘bom gosto’ é algo extremamente duvidoso, além de etnocêntrico por natureza. Na visão de Veblen, o homem é um ‘animal social’: seus desejos e comportamentos são moldados de forma primordial pelos seus códigos de identidade de grupo, o que pertence e o que aspira pertencer. Ao utilizar seu conceito de classe ociosa, Veblen admite que o consumo é motivado não somente pelas necessidades intrínsecas, mas também pela busca de prestígio. (KOTLER, 1968) Os economistas denominaram de ‘efeito Veblen’ certos preceitos aplicáveis sobre a definição de preços de commodities, pois são determinados não somente por sua utilidade ou valor econômico, mas também pelo seu símbolo cultural. Portanto, a demanda por bens pode aumentar proporcionalmente ao preço dos mesmos, caso a função de consumo seja de natureza de emulação pecuniária. Alguns críticos afirmam que a teoria de Veblen não distingue o consumo tradicional do moderno, pois esta não contempla alguns fenômenos contemporâneos do consumo, tais como a insaciabilidade e o desejo do ‘novo’. O approach da teoria da classe ociosa também é visto como, embora seja influenciado pela Antropologia, aplicado de um modo generalizado a sociedades que são, muitas vezes, distintas entre si. (CAMPBELL, 1987) Uma análise mais detalhada do ponto de vista psicológico possibilita uma crítica ao conceito de consumo conspícuo de Veblen: “Em sociedades modernas nas quais os padrões de consumo são mutantes, os indivíduos necessitariam modificar constantemente seus hábitos de consumo para continuar a emitir seus sinais concernentes ao status social almejado. (...) Ou seja, as pessoas poderiam efetuar uma avaliação errônea de alguém que estivesse utilizando um carro ultrapassado ou roupas fora de moda. A razão principal não seria decorrente de imitação, emulação ou até mesmo de competição, mas sim do fenômeno da moda”.10 (CAMPBELL, 1987, p.56) 10 Tradução livre do autor. 20 O autor continua a montar o que chama de ‘quebra-cabeças’ do consumo moderno, na medida em que combina o comportamento social emulativo sugerido por Veblen com o fenômeno da moda: “Há uma combinação entre a emulação social e a moda: quem está no topo da escala social tem uma necessidade de inventar novos modismos com a intenção de manter sua superioridade sobre os que se encontram imediatamente abaixo, que, devido aos anseios emulativos, copiam os novos padrões de consumo. Este processo se repete até contemplar todos os demais extratos do sistema social em questão”.11 (CAMPBELL, 1987, p.56) É importante observar que Veblen foi um dos pioneiros no estudo das relações de consumo. Daí as críticas que surgiram posteriormente. Como McCracken (1988, p.89), que afirma: “só recentemente as limitações impostas por Veblen foram ultrapassadas. Hoje é visível o reconhecimento de que há um significado cultural associado aos bens de consumo, sendo mais vasto e complexo do que a atenção Vebleniana direcionada ao status foi capaz de conceber”.12 De acordo com Rocha (1995, p.125) “nossa sociedade industrial é uma formidável máquina de produção. (...) O eixo do produtivismo é parte integrante da configuração de nossa cultura. (...) Distingue e opõe a sociedade industrial àquelas que ainda resistem no planeta”. A grande transformação pela qual passou o mundo ocidental não foi somente a revolução industrial, mas também a ‘revolução do consumo’. Esta revolução significa não só uma modificação nas atitudes e padrões de compra, mas também uma mudança fundamental na cultura do mundo ocidental moderno. (MCCRACKEN, 1988) Segundo McCracken (1988, p.30), “a revolução do consumo constituiu-se num agente de mudança social, transformando de modo contínuo e sistemático praticamente todos os aspectos da vida social”.13 Há uma dinâmica de significados nas relações de consumo: entre o mundo culturalmente constituído e os bens de consumo; e entre estes e o consumidor. Cada um destes três elementos (mundo, bens e consumidor) representa 11 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 13 Tradução livre do autor. 12 21 uma dada situação de um significado cultural. Cabe aqui uma descrição de cada um destes três elementos e suas respectivas relações de transferência: Elemento “mundo cultural”: as sociedades são constituídas por uma cultura, que nada mais é do que uma lente que determina como o mundo é visto, suprindo-o com significados. Os membros de uma certa cultura estão empenhados na construção do mundo no qual vivem. Os bens são não só uma oportunidade para a expressão das categorias (idade, sexo, ocupação) estabelecidas pela cultura, como também pelos princípios, tais como ideais e valores. A transferência mundo / bens é realizada através de duas formas: a publicidade, que funciona como um método de transferência de significados ao trazer de modo integrado um bem de consumo e sua representação num mundo culturalmente constituído; e de um sistema de moda, que associa a novos produtos certas categorias e princípios culturais estabelecidos; (MCCRACKEN, 1988) Elemento “bens de consumo”: segundo McCracken (1988, p.83) “os bens exercem um papel de canal pelo qual os indivíduos comunicam significados culturais, de acordo com a expressão constituída de nosso mundo. Alguns significados culturais dos produtos são aparentes; outros estão ocultos”.14 A transferência bens / consumidor faz-se através dos rituais, que são ações de caráter social voltadas à manipulação de significados culturais com o propósito de categorização ou comunicação individual ou coletiva. Quatro formas de rituais são enumeradas: (MCCRACKEN, 1988) A primeira é a troca: ocorre no Natal ou em aniversários, quando o comprador seleciona um produto devido às propriedades de significado que o mesmo possui, e deseja transferi-las para o recebedor. A possessão é a segunda forma de ritual: manifestado pelo tempo dispendido pelos consumidores na manutenção de suas posses. Em verdade, há outras ações envolvidas: discussões, reflexões, exibições, comparações, entre outras. O conjunto de tais ações permite ao consumidor reivindicar estes bens assim como sua posse; Devido à natureza perecível, alguns significados de bens de consumo necessitam de constante manutenção por parte do consumidor: é o embelezamento, o terceiro ritual. Embora alguns destes rituais de embelezamento envolvam serviços aplicados diretamente ao consumidor (cortes de cabelo, personal trainers), outros rituais referem14 Tradução livre do autor. 22 se a bens tangíveis, como automóveis. O quarto e último ritual é a libertação: ocorre devido à confusão que o consumidor faz entre as suas propriedades e as do bem de consumo. Quando uma casa ou carro é adquirido, o ritual de libertação consiste em apagar quaisquer significados do antigo proprietário. O fenômeno também ocorre no sentido inverso, ou seja, quando o proprietário se desfaz do bem. E por fim o elemento “consumidor”: é alguém que se encontra engajado num ‘projeto cultural’ com o objetivo de realizar suas idéias para tornar-se um cidadão, um profissional, um familiar, entre outros papéis sociais. Os bens de consumo estabelecem uma oportunidade para uma comunidade expressar um significado cultural num meio que não a linguagem, de modo que este significado é corrigido ou então preservado. (MCCRACKEN, 1988) No contexto do extrato cultural e social de uma sociedade, os indivíduos identificam-se a partir de características como: idade, profissão, nível educacional, religião, sexo, classe, nível de renda, bairro ou etnia a qual faz parte. Estes aspectos por sua vez influenciam o comportamento do consumidor. Surge o conceito de status vinculado à posição social simples, ou seja, sem implicações de ordem hierárquica. Cada indivíduo possui um conjunto de status: pai, irmão, filho, marido, pescador, vendedor. Esta associação verifica-se igualmente em termos de consumo: comprador de música reggae, livros esotéricos, jogos de futebol, artigos esportivos, teatro, gourmet, entre outros. (COSTA, 1995) Como status de consumo há obrigações, direitos e comportamentos esperados, construindo-se assim um papel social do consumidor. A partir da composição de sua personalidade o indivíduo encontra-se mais propício a consumir os bens que socialmente representem uma coesão de sua identidade. (COSTA, 1995) Mas não são somente os bens de consumo que configuram a identidade de um dado universo de consumidores: Wallendorf e Arnould (1988, p.542) afirmam que “objetos de predileção expressam aspectos pessoais como gênero, idade ou experiência cultural característica”.15 Estes objetos de predileção podem possuir vínculos: entre si e com o papel social representado pelo proprietário. Então um consumidor de jantares sofisticados - um 23 gourmet – pode apreciar vinhos franceses, roupas de alta costura, carros de luxo de estilo europeu, cristais Lalique, tapetes persas, entre outros. Ao se analisar o consumo de modo fragmentado ao final surgirá uma identidade coesa. (COSTA, 1995) Os objetos de predileção somados ao conjunto de bens de consumo formam as chamadas possessões. Ou de acordo com Belk (1988, p.139): “Nós definimos as possessões como o conjunto de coisas que chamamos de nossas (...) e que constituem um fator decisivo para a formação e reflexão de nossas identidades”.16 “Parece um fato inquestionável da vida moderna que nós aprendemos, definimos e nos recordamos o que somos de acordo com nossas possessões. As evidências sugerem que a identificação com nossas possessões começa cedo na vida. Desde a infância aprendemos a nos diferenciar do meio e conseqüentemente dos demais que poderiam cobiçar nossos pertences. A ênfase em possessões materiais tende a decrescer com a idade, mas mantém-se elevada na medida em que procuramos nos expressar através das mesmas e utilizá-las para a busca da felicidade, da lembrança de certas experiências e até mesmo criar um senso de imortalidade. A acumulação de possessões provê um senso de passado e nos diz quem somos, de onde viemos e talvez para onde vamos”.17 (BELK, 1988, p.160) Em países nos quais o consumo alcançou um elevado grau de desenvolvimento e sofisticação, como nos Estados Unidos, espera-se que os indivíduos comuniquem suas identidades através de determinadas classes de bens de consumo como automóveis, roupas e restaurantes. Além disso, os comportamentos e as identidades de consumo estão diretamente associados com grupos com os quais há interação. Torna-se imprescindível analisar a organização social na qual está inserido o consumidor. Em função do dinamismo das relações sociais e do processo de identidade social e individual, é possível desvendar os hábitos de consumo e todo o contexto do comportamento de um determinado grupo étnico. (COSTA, 1995) Nas últimas décadas, o comportamento do consumidor desenvolveu-se a partir de uma ênfase em aspectos meramente racionais, como a microeconomia, até envolver 15 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 17 Tradução livre do autor. 16 24 aparentes necessidades de consumo de ordem irracional. Um approach recente, denominado modelo de processamento de informações, vislumbra o consumidor como um pensador lógico que resolve problemas ao tomar decisões de compra. Mas alguns fenômenos tais como prazeres sensoriais, respostas emocionais, devaneios e prazeres estéticos também passaram a serem relevantes. Todo este conjunto de características é conhecido como uma visão experimental das práticas de consumo. (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) O composto formado por lembranças, fantasias, sentimentos e emoções, vivido pelo consumidor em suas relações com produtos ou serviços, é denominado de consumo hedônico. Critérios estéticos e significados simbólicos também compõem este conjunto. Portanto a visão experimental contrastada com o processamento de informações provenientes do consumidor oferece um panorama qualitativo do consumo. (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) Mas há variações: o chamado hedonismo tradicional é concernente ao conceito de ‘prazeres’, ou seja, à valorização de atividades que produzam prazer ao indivíduo. O objetivo primordial é o de aumentar o número de vezes nas participações em atividades prazerosas. (CAMPBELL, 1987) Enquanto que ainda há outra forma de hedonismo, com uma distinção essencial em relação ao tradicional: “O hedonismo moderno também consiste numa forma de conduta balizada pelo desejo de antecipar a qualidade do prazer que uma dada experiência possa produzir. Mas aqui o prazer é obtido via estímulo emocional e não meramente sensorial; as imagens que provocam tal estímulo são criadas ou modificadas pelo consumidor e não devido a uma presença de estímulo ‘real’. Tende a ser auto-ilusório, pois o indivíduo constrói imagens mentais, configurando um fenômeno de sonhar (day-dreaming) ou fantasiar”.18 (CAMPBELL, 1987, p.77) Segundo o modelo de contraste entre a visão experimental e o processamento de informações, há alguns fatores que agem como inputs para o consumidor. Após um processamento por um sistema reativo é gerada uma série de outputs, que funcionam 25 como uma espécie de alimentador para um aprendizado constante por parte do consumidor. (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) A seguir, encontram-se as subdivisões do sistema proposto. Em cada uma delas há um contraste entre variáveis mensuráveis e outras experimentais, ou seja, de percepção: Os inputs do ambiente: tais como as características dos produtos, mas não somente as técnicas, como também as de significado simbólico: elegância, sociabilidade, satisfação. Propriedades de estímulo, verbais ou não-verbais: tato, olfato ou paladar. Os inputs do consumidor: recursos de capital ou tempo. A definição propriamente dita da tarefa de consumo: pragmática, para resolver um problema, ou então com característica hedônica. O tipo de envolvimento, de natureza cognitiva ou aspecto orientação / reação / estímulo. Características da atividade de procura: se meramente de aquisição de informações ou então com comportamento de natureza exploratória. Diferenças individuais como religião ou nacionalidade; (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) O sistema reativo: a cognição individual atua através da memória, estrutura de conhecimento, crenças e protocolos; mas também graças ao subconsciente, ao imaginário, utopias, fantasias e livres associações. O processo cognitivo gera a afeição do consumidor, representada seja através de suas preferências e atitudes seja por suas emoções e sentimentos. Finalmente a afeição resulta no comportamento do consumidor, simbolizado por sua decisão de compra ou sua experiência de consumo; (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) Os outputs: Numa perspectiva de processamento de informações, os propósitos, resultados e funções do bem adquirido representam o resultado do consumo; mas numa visão experimental, a satisfação, a alegria e o prazer dão o tom da prática de consumo, numa visão hedonista; (HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1990) Por fim, como que funcionando como um feedback ao sistema reativo, surge o aprendizado adquirido pela experiência de consumo como uma das principais conseqüências do processo de compra. Holbrook e Hirschman (1990, p.189) complementam citando “o comportamento do consumidor como um fascinante complexo resultante de uma interação multifacetada entre os organismos e o ambiente. 18 Tradução livre do autor. 26 Neste processo dinâmico, nem variáveis quantificáveis nem componentes experimentais como fantasias, sentimentos e alegria podem ser ignorados”.19 Tomando-se o consumo como a utilização de possessões materiais, acima do conceito do comércio e das leis, as decisões que são decorrentes do mesmo caracterizam-se como uma fonte vital dos sinais emitidos pela cultura do grupo social em questão. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979) Em toda cultura há certas leis que estão implícitas no código simbólico coletivo: regras do que é ou não aceito pelos membros do grupo. Por exemplo, não se pode vender a própria honra ou uma pessoa, por exemplo. Ou a diferença entre dar um presente e dar dinheiro, que possui uma fronteira bem delimitada: é aceitável dar flores a uma tia hospitalizada. No entanto não é recomendável enviar a quantia respectiva com uma mensagem ‘compre flores’, pois a mesma não seria bem recebida. Há um limite bastante claro entre determinadas atividades na sociedade ocidental: em termos pessoais, é aceitável presentear os serviços realizados por alguém através de presentes ou recompensas, embora no âmbito profissional ou comercial seja permitido utilizar dinheiro. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979) Douglas e Isherwood (1979, p.59) visualizam o consumo sob um novo enfoque na medida em que “ao invés de supor que os bens são almejados essencialmente devido à subsistência e à necessidade de exibição, vamos assumir que são almejados para tornar visíveis as categorias de cultura envolvidas”.20 Os bens de consumo representam um universo, desempenhando algumas funções. Este complexo construído por commodities traz consigo um significado social assim como um aspecto cultural devido ao uso dos mesmos como elementos ativos de comunicação. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979) Este universo de significados também é muito bem captado pelo mundo da propaganda, como afirma Rocha (1995, p.154): “Um complexo sistema de classificações (...) é elaborado tanto pela publicidade quanto por outras produções da comunicação de massa. A publicidade articula e correlaciona um sistema de diferenças e (...) a complementaridade entre o mundo da produção e o do consumo”. 19 20 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 27 Tais significados culturais fazem e mantêm relações sociais. Este approach produz uma idéia de significados sociais mais rica do que meramente um sentido de competição. Os bens de consumo desempenham um papel de meio de comunicação não-verbal para a criatividade humana. Sem meios de selecionar e fixar significados o menor consenso de uma sociedade encontra-se comprometido. Assim como funciona para as sociedades tribais, nossa sociedade ocidental utiliza os rituais para conduzir o fluxo dinâmico de significados. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979) Entre alguns rituais temos a entrada na escola, o vestibular, o ‘trote’ de iniciação na faculdade, a formatura na faculdade, o casamento, e até mesmo a defesa desta Dissertação. O judaísmo, por exemplo, possui rituais bastante característicos como o bar-mitzva, o shabat, o brit-milá, sendo alguns com milhares de anos de tradição. “Alguns rituais são verbais, não sendo gravados, portanto desvanecendo-se no ar. Assim sendo, os mesmos dificilmente auxiliam na elaboração do limite de um escopo interpretativo. Mas os rituais mais efetivos utilizam-se de objetos tangíveis, facilitando a identificação de significados. Nesta perspectiva os bens são rituais suplementares e o consumo é um processo no qual a função principal é atribuir sentido ao fluxo de eventos”.21 (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979, p.65) De acordo com esta teoria, um dos principais objetivos do comportamento do consumidor é o de montar um universo compreensível ao seu redor com os bens de sua própria escolha. Este universo é compartilhado com o grupo social que está a sua volta (composto por familiares, amigos e conhecidos). O julgamento deste grupo em relação aos seus padrões de consumo é extremamente importante, na medida em que vai caracterizar se os mesmos são compreensíveis ao grupo. Através deste ritual que é o consumo, o indivíduo diz algo sobre si mesmo, sua família, localização, hábitos, entre outros. Desde as atividades mais rotineiras, como arrumar a mesa, até outras mais complexas, como a decoração da casa. O consumo é um processo ativo no qual as categorias sociais estão sendo continuamente renovadas. (DOUGLAS e ISHERWOOD, 1979) 21 Tradução livre do autor. 28 Há ocasiões em que o ambiente de uma loja funciona como uma moldura na qual o comportamento do consumidor é conformado a fim de que seja pertinente. De certo modo uma persona ou um estilo de comportamento é assumido pelo consumidor. As pessoas adotam uma forma característica de andar e falar. (MILLER, 1997) A postura denota leves sinais de movimentação do corpo, de apreciação da música que vem dos arredores. Dependendo do grupo social em questão, o hábito de fazer shopping proporciona uma boa desculpa para encontrar outras pessoas. E mais: os compradores ‘passam o tempo’ nos shoppings e malls e aproveitam para fazer comentários sobre a aparência das pessoas, entre outros aspectos. (MILLER, 1997) Na cidade do Rio de Janeiro, este comportamento é perfeitamente visível em shoppings centers como o São Conrado Fashion Mall e o Shopping da Gávea, utilizados por determinados grupos sociais como pontos de encontro, gerando uma forma altamente característica de sociabilidade. O ambiente destas catedrais do consumo favorece o aspecto ritualizado, dentro de um contexto urbano. Um processo semelhante ocorre em lugares públicos como cinemas, templos religiosos, museus ou galerias de arte. Todos estão conectados fisicamente à rua, o espaço público por excelência. (MILLER, 1997) Mas, uma vez dentro de um shopping center, a configuração espacial torna-se diferente em relação à rua: a fronteira entre o interior (lojas) e o exterior (corredores e galerias) tende a ser dissolvida. Todos os espaços são devassáveis - devido às vitrines e não há uma distinção clara entre o público e o privado. (FALK, 1997) Conseqüentemente os shoppings e malls vêm se constituindo em locais cada vez mais apropriados para novas formas de interação social. Até mesmo os produtos que estão expostos nas vitrines comunicam uma informação social específica para os consumidores. (MILLER, 1997) O conceito de consumo em shoppings assume, segundo Falk (1997, p.183), “um papel marginal, no qual a realização da compra – em alguns sentidos – pode adquirir um caráter de mero potencial a ser realizado (...) embora haja fatores tão díspares presentes, como o prazer e a ansiedade”.22 22 Tradução livre do autor. 29 O prazer encontra-se presente tanto na ação de circular pelo shopping como em consumir. A atividade social, a mudança de ambiente que não o do confinamento do lar, o sentido de investimento (e não dispêndio) em pequenos bens que serão configurados no patrimônio do consumidor, todos estes fatores compõem o prazer de circular e comprar nos shoppings. Em oposição ao prazer, surge o conceito de ansiedade, decorrente da associação com as compras comuns do dia-a-dia, representadas por alimentos e objetos do lar. Embora pareça por demais mecânico ou monótono, este tipo de consumo possui seus próprios rituais, complexidades e experiências correlatas. (MILLER, 1987) Ao tomar-se a compra de um desinfetante, há fatores técnicos e econômicos envolvidos, como o cheiro, a cor, a embalagem, a eficiência e o preço. Mas observandose os envolvidos na compra, a atmosfera reflete as implicações decorrentes das relações sociais: uma neta que demonstra conhecimento sobre o mercado e afirma que o produto que sua avó escolheu é ultrapassado; duas donas-de-casa que têm liberdade de compra, abstraindo-se do domínio de seus maridos; filhos que não gostariam de ter seus desejos de consumo frustrados por seus pais, e assim por diante. (MILLER, 1997) 2.4 Consumo, religião e etnia: implicações no Marketing Nesta seção está o referencial teórico relativo aos aspectos religiosos que estão ligados ao fenômeno do consumo. A fim de trazer subsídios para esta perspectiva heterodoxa do consumo, foram utilizados artigos contemporâneos de alguns journals de Marketing americanos. A religião, como um aspecto cultural, tem uma considerável influência nos valores, hábitos e atitudes das pessoas, assim como em seus estilos de vida. Estes fatores, por sua vez, afetam o comportamento do consumidor. (DELENER, 1994) Finalizando a seção encontra-se uma abordagem do Marketing étnico, direcionado para grupos sociais com uma cultura peculiar, sendo geralmente constituídos por uma minoria. Uma introdução sobre as condições presentes para o surgimento de um mercado segmentado também é apresentada. O segmento do Marketing étnico é mais representativo nos Estados Unidos. Entre os artigos que forneceram os subsídios, há também anúncios que fazem referência ao assunto. 30 A orientação religiosa possui uma forte influência no desenvolvimento familiar, contribuindo para a definição de um código de valores. Assim sendo, há uma relação, com maior ou menor intensidade, envolvendo os valores familiares e o comportamento de consumo. Uma das funções da religião é a de fornecer significados às pessoas, muitas vezes trazendo um propósito para suas vidas. A religião define caminhos para a execução de certas tarefas, promovendo a base para o comportamento social, além de sustentá-las moralmente. No entanto, estudos no sentido de investigar a relação com o consumo têm sido raros. (DELENER, 1994) A perspectiva de uma experiência religiosa aplica-se no consumo a partir de conceitos como o ‘sagrado’ e o ‘profano’. Entre as propriedades do sagrado temos: o sacrifício, como elemento de abnegação e submissão; o comprometimento, devido às intensas ligações dos participantes com o sagrado; os rituais, regras de conduta na presença de objetos sagrados; e os mitos, que mantêm o status de sagrado através da repetição. (BELK, WALLENDORF e SHERRY JR, 1989) Com o surgimento ou a flexibilização de determinadas religiões, através de serviços não-tradicionais ganhando cada vez mais adeptos, a banalização (secularização) da religião ganha cada vez mais força. Este fenômeno, juntamente com a sacralização do mundano (como as estrelas de Hollywood ou os mitos do esporte) permite a aplicação da dualidade entre o sagrado e o profano no contexto do secular consumo moderno. Entre os domínios do consumo moderno com elementos da dualidade em questão, temos: lugares, tempo, coisas tangíveis, intangíveis, personalidades e experiências. Assim, os bens de consumo potencializam e catalisam as experiências do sagrado. Este processo de sacralização ocorre devido a ritualização, peregrinação, arrecadação, herança, entre outros. (BELK, WALLENDORF e SHERRY JR, 1989) Os consumidores, na visão de Belk, Wallendorf e Sherry Jr (1989, p.30), “ao expressar seus valores através de seu consumo, participam numa celebração de sua conexão com a sociedade como um todo e com eles próprios. Independente dos esforços de Marketing ou considerações de marca, os próprios consumidores sacralizam seus bens de consumo criando significados transcendentes em suas vidas”.23 23 Tradução livre do autor. 31 Há pesquisas realizadas nesta área. Através de informações coletadas com minorias religiosas (católicos e judeus) da região noroeste dos Estados Unidos e testando certas hipóteses, foi possível mensurar como a religião e o grau de religiosidade de casais afetavam o comportamento de compra de um carro. Diversas perguntas foram apresentadas: quanto gastar, além de quando, onde, qual modelo e qual cor comprar. (DELENER, 1994) O questionário focalizava três aspectos da relação familiar: performance da função (divisão interna de tarefas), poder (divisão na tomada de decisão) e conflitos (grau de discordância entre os cônjuges). A conclusão da pesquisa foi que entre as famílias católicas havia uma estrutura autoritária, além da centralização das decisões com o homem. Entre as famílias judaicas percebeu-se uma estrutura mais democrática além de um maior compartilhamento de decisões. (DELENER, 1994) Delener (1994, p.48) conclui que “existem nichos de Marketing em determinados mercados, devendo ser considerados fatores que moldam a cultura dos consumidores, como a religião. Os valores religiosos representam o mais básico elemento do universo cognitivo dos consumidores. Se o papel do homem ou da mulher for ignorado ou menosprezado, a venda do produto ou do serviço pode estar perdida”.24 Outra pesquisa semelhante apresentou as diferenças em meio a minorias religiosas nos Estados Unidos em relação ao risco percebido na decisão de compra de bens de consumo duráveis. Entre os judeus verificou-se uma menor lealdade à marca e às lojas do que em relação aos não-judeus. Não só a decisão de compra é afetada pela religião, como também a satisfação do consumidor, através do cumprimento de suas expectativas. O posicionamento e respectivas estratégias promocionais também, pois quando a mensagem for direcionada a mídias específicas pode envolver valores religiosos pertinentes a seu mercado consumidor potencial. (DELENER, 1990) Costuma-se utilizar o termo ‘pós-moderno’ para designar o estágio atual da sociedade. Mas quais são as características associadas a esta denominação? Algumas estão descritas a seguir: (PATTERSON, 1998) A tolerância, como uma aceitação da diferença (diferentes estilos ou modos de vida) sem prejuízos ou julgamentos de superioridade. Favorece o aparecimento de 32 ‘tribos’ urbanas. A fragmentação, ou seja, consumidores exigindo um tratamento mais individualizado com maior nível de exigência para os produtos demandados ao mesmo tempo em que os produtores segmentam seu público para obter crescimento em mercados maduros. Crescente aceitação do dinamismo que leva à fragmentação dos mercados. Outras características são as justaposições paradoxais: propensão cultural a justapor quaisquer fenômenos, por mais que ambos os elementos pareçam opostos, contraditórios ou sem relação aparente. Há também a inversão da importância entre produção e consumo: reconhecimento cultural que o valor é criado no consumo e não na produção. Uma conseqüência fundamental é o sensível aumento da importância dedicada ao estudo do consumo. É este cenário pós-moderno que favorece o surgimento de grupos urbanos, principalmente no que diz respeito ao processo de fragmentação do mercado. A aparente dualidade entre tribalização e globalização se faz presente mais do que nunca. Como afirma Patterson (1998, p.71) “é o atual sistema de consumo ao lado do poder das marcas como um ‘mosaico de significados’ que as novas tribos utilizam-se para gerar um senso de comunidade num mundo globalizado”.25 Em países como os Estados Unidos, quando são somadas as principais minorias como asian americans, afro americans, hispânicos e judeus, é possível verificar que o resultado é superior a 50% da população norte-americana. Tal fato é facilmente perceptível em áreas de grande concentração urbana como Nova Iorque, Washington, Los Angeles ou São Francisco. (GORE, 1998) Um dos mercados que vêm sendo explorados de forma eficiente é o de serviços financeiros para a população de asian americans. Na realidade, este segmento não é homogêneo, sendo subdividido por algumas empresas em seis diferentes culturas: vietnamitas, coreanos, chineses, filipinos, asian indians e japoneses. Diversos produtos ou serviços de instituições financeiras como First Union, Chase Manhattan e Charles Schwab são direcionados para determinados subgrupos sociais. Estas instituições criaram um serviço de atendimento ao consumidor (call center) em idiomas 24 25 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 33 apropriados. Mas o Marketing deve ser direcionado não a todo um grupo étnico mas sim a determinados segmentos inseridos no mesmo. (GORE, 1998) Muitas vezes, segundo Gore (1998, p.14) “os grupos étnicos sentem-se negligenciados pelo Marketing que não contempla seus interesses específicos. Uma vez que o comportamento cultural e de consumo do grupo tenha sido compreendido, a propaganda deve refletir esta dimensão”.26 Nos últimos anos alguns nichos de produtos passaram a serem explorados, embora se trate do sofisticado mercado norte-americano, como os season greeting cards (cartões comemorativos). A empresa Hallmark comercializa produtos direcionados a grupos étnicos como os hispânicos e afro americans, além da comunidade judaica. Neste caso, alguns artistas e editores foram enviados para Israel com o objetivo de captar as nuances da cultura judaica para elaborar a arte dos cartões. (LIEBECK, 1996) A americana Hallmark criou um centro de desenvolvimento para segmentos étnicos. Uma marca especial foi criada para atender especificamente a comunidade judaica, denominada Tree of Life. Cerca de 300 cartões foram lançados no mercado voltados principalmente para as chamadas ‘grandes festas’: Pessach e Rosh Hashaná. Além disso, a empresa criou um serviço de toll-free para auxiliar os consumidores a encontrar esta linha de produtos nos varejistas mais próximos. (LIEBECK, 1996) Agências de propaganda também se especializaram em grupos étnicos. Como a agência Joseph Jacobs, de Nova Iorque, que desenvolve programas de Marketing para grandes empresas que visam o segmento judaico. Entre os principais clientes da agência encontram-se desde gigantes da indústria de bens de consumo não-duráveis (Quaker Oats, Colgate-Palmolive e Kraft General Foods) até companhias que produzem comida kosher, como a Manischewitz. (LEVIN, 1990) A companhia de aviação Delta Airlines também é cliente da agência Joseph Jacobs. Foi criada uma campanha de Marketing para a empresa visando à comunidade judaica, sendo selecionados destinos de viagem que são tradicionalmente populares entre os judeus norte-americanos, como o estado da Flórida. (LEVIN, 1990) 26 Tradução livre do autor. 34 Mas há o caso em que a instituição interessada em desenvolver um programa de Marketing étnico faz parte da própria religião. É o caso da National Jewish Outreach Program (NJOP), uma corrente do judaísmo que decidiu criar um departamento de Marketing com o objetivo de atrair parte dos milhões de judeus norte-americanos que não possuem o hábito de freqüentar uma sinagoga. (MILLER, 1997) Após pesquisa de Marketing, detectou-se a razão pela qual há judeus que não participam dos cultos: o fato de não se sentirem confortáveis nas sinagogas. A NJOP desenvolveu um ‘produto’ mais amigável: cursos de hebraico (o idioma das rezas), serviço de toll-free para informações, material didático sobre o shabat e propagandas em rádios e jornais. Um anúncio, em parceria com a American Cancer Society, dizia: ‘Dê a seus pulmões uma experiência religiosa: neste shabat acenda velas e não cigarros’. É óbvio que se trata de uma postura polêmica. (MILLER, 1997) 35 3 O MÉTODO ETNOGRÁFICO E O CONSUMO Neste capítulo será abordada a metodologia adotada, que consistirá na pesquisa de campo etnográfica. Alguns conceitos já foram contemplados sob a perspectiva antropológica no capítulo dois (referencial teórico). A primeira seção apresenta o conceito de etnografia. Também traça um panorama da etnografia a partir de seus primeiros estudos até chegar aos dias atuais, nos quais a presença deste tipo de pesquisa é cada vez mais disseminada no estudo do comportamento do consumidor. As limitações associadas a esta metodologia se encontram após a apresentação de suas características. Na segunda seção as fronteiras do grupo estudado serão detalhados assim como apresentados os critérios de seleção dos mesmos. A coleta dos dados realizada através das entrevistas e de observação participante está na terceira seção. Finalmente, a abordagem interpretativista está descrita na quarta seção. Trata-se da forma pela qual serão realizados o tratamento e a análise das informações obtidas pelos processos descritos durante as entrevistas e as observações participantes. 3.1 A pesquisa etnográfica Segundo Vidich e Lyman (1994, p.25), “Ethnos é um termo grego que denota uma raça, povo ou grupo cultural. Funcionando como um prefixo, combina-se formando a palavra etnografia, ou seja, a descrição sócio-cultural de um povo”.27 A etnografia encontra-se vinculada a algumas das características básicas. Entre as mesmas há a forte ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social particular, ao invés de testá-lo através do emprego de hipóteses. Também encontram-se tendências de se trabalhar com informações ‘desestruturadas’, ou seja, sem terem sido coletadas de forma codificada numa série de categorias analíticas. Por fim há as investigações de um número restrito de casos, mas em detalhes, além das análises de informações que envolvem interpretações explícitas de significados e funções de atos humanos, que assumem de um modo geral a forma de descrições verbais e explicações: (ATKINSON e HAMMERSLEY, 1994) 27 Tradução livre do autor. 36 Quanto aos fins, a etnografia desta Dissertação pode ser classificada como sendo de natureza descritiva na medida em que expõe as características do fenômeno de consumo que ocorre em meio a um determinado segmento da comunidade judaica do Rio de Janeiro. (VERGARA, 1997) Mas também é uma investigação explicativa na medida em que busca justificar a razão pela qual o grupo social estudado consome determinados produtos e serviços, esclarecendo quais os fatores que contribuem para o comportamento destes consumidores. Quanto aos meios de investigação, a etnografia consiste numa pesquisa de campo, pois consiste numa forma empírica de verificar junto aos consumidores quais são os elementos que explicam os seus comportamentos específicos. O método de entrevistas e a observação participante são utilizados para investigar estes elementos. (VERGARA, 1997) A história da etnografia pode ser dividida em duas correntes. A primeira voltavase para as sociedades ditas ‘primitivas’, geralmente indígenas: representada pelos fundadores da moderna antropologia do início do século XX, como Radcliffe-Brown, Malinowski e Boas. Estavam comprometidos com a idéia de Antropologia como ciência e a etnografia possuía papel primordial, pois envolvia a coleta de informações em primeira mão e a descrição das características sócio-culturais daquele grupo. (VIDICH e LYMAN, 1994) A segunda corrente tornou-se conhecida como a escola de Chicago. Formada entre outros por Park, Redfield, Mead e Foote Whyte, buscou investigar grupos urbanos, que muitas vezes viviam em guetos. A cultura e os valores destas comunidades eram estudados num contexto de vida urbana e civilização industrial, em metrópoles cada vez maiores. Um exemplo destes estudos foram os italian americans de Boston estudados por Foote Whyte nos anos 50, que inclusive lançou o conceito de observação participante, ao vivenciar o cotidiano do grupo social em questão. Sob determinados pontos-de-vista, Whyte passou a agir como um dos próprios italian americans. (VIDICH e LYMAN, 1994; ATKINSON e HAMMERSLEY, 1994) Uma vez estudando os comportamentos sócio-culturais em grupos urbanos, não tardou muito para que a etnografia passasse a analisar o fenômeno do consumo, mais 37 visível em grandes cidades. Gradativamente, o Marketing passou a interagir com um número cada vez maior de disciplinas: “O campo de pesquisa de consumidores encontra-se numa crise de identidade. (...) Tem englobado uma variedade de tópicos cuja interação não seria sequer concebível anteriormente. Recentes exemplos desta tendência são os tópicos de rituais, linguagens, aspectos primitivos de consumo, ambientes, conflitos familiares, experiências de consumo, significados de produtos e os simbolismos envolvidos com o consumo”.28 (HOLBROOK, 1987, p.128) As etnografias com o intuito de analisar o comportamento de consumo experimentaram um grande crescimento durante as décadas de 80 e 90. Entre elas há a dos fazendeiros do meio oeste norte-americano (MCGRATH, SHERRY JR e HEISLEY, 1993), a dos ritos do dia de ação de graças ou Thanksgiving Day (WALLENDORF e ARNOULD, 1991), a de proprietários de motos Harley-Davidson (SCHOUTEN e MCALEXANDER, 1995) e a dos mergulhadores submarinos na Califórnia (CELSI, ROSE e LEIGH, 1993), entre outros. Havia limitações referentes à pesquisa de campo etnográfica desta Dissertação. Barreiras à coleta de informações: por exemplo, um certo temor em revelar determinados hábitos de consumo que fossem “excêntricos” ou que pudessem vir a comprometer uma possível imagem do informante perante o entrevistador. Dado a comunidade judaica carioca ser relativamente pequena, alguns informantes conheciam o entrevistador. Assim, algum constrangimento poderia ter sido causado no momento de relatar seus hábitos e experiências de consumo. Além disso, o Rio de Janeiro possui elevados índices de violência, o que também poderia ter contribuído para um eventual resguardo do informante, selecionando somente o que lhe for conveniente relatar. O temor de externar algumas informações sócio-econômicas relativas ao seu consumo poderia funcionar como um obstáculo, mesmo que o informante fosse notificado que sua identidade não seria revelada sob hipótese alguma. 28 Tradução livre do autor. 38 Mas o fato de que os informantes conheciam o entrevistado minimizou este problema. Foi um atenuante o entrevistador freqüentar (ainda que eventualmente) a mesma sinagoga dos informantes, diminuindo o risco da informação ser incompleta. E caso alguém não conhecesse o entrevistador, um dos líderes religiosos daquela instituição poderia apresentá-lo a eles, funcionando como uma espécie de elemento de ligação: afinal, embora seja um meio judaico, a sociedade em questão é a brasileira: essencialmente relacional. 3.2 Fronteiras do grupo estudado Conforme mencionado, a população judaica da cidade do Rio de Janeiro é de cerca de 50 mil pessoas. Mas este é um número extremamente difícil de ser mensurado, uma vez que muitos nascem judeus e em questão de anos já não se consideram como tais ou então se assimilam em meio a outras religiões. Possivelmente muitos brasileiros que têm sobrenomes provenientes de árvores (Pinheiro, Oliveira, Carvalho) são descendentes dos chamados cristãos-novos, nada mais do que judeus que tiveram que alterar seu nome devido às perseguições da inquisição na península ibérica. Este foi um costume entre os judeus da época, que mantinha de forma secreta sua identidade, mas que em gerações se perdeu. Após modificarem o nome, perderam totalmente sua identidade cultural judaica. Para limitar o perfil sócio-econômico e cultural do grupo a ser estudado na etnografia, é necessário segmentá-lo de acordo com algumas restrições. Foram selecionadas sete delas: ser do sexo masculino, casado com filho(s) solteiro(s), possuir nível universitário, ser bem sucedido profissionalmente, possuir um alto padrão individual de renda, ser um morador da cidade do Rio de Janeiro e freqüentar a sinagoga selecionada. As entrevistas foram invariavelmente balizadas pelas condições acima, pois somente os que preencherem estas restrições participaram da amostra. Há questões, como as relativas ao sexo, estado civil, nível educacional e moradia, que são simples de serem verificadas, pois são objetivas e confirmadas pelos próprios informantes ao iniciar a entrevista. 39 Mas há aspectos subjetivos em relação a duas das demais restrições: o sucesso profissional e o padrão de renda individual. Coube ao próprio entrevistado responder a pergunta: “sua renda individual é alta, média ou baixa?”. Se a resposta for “alta”, a condição está contemplada. Portanto assumi uma característica nativa do grupo, ou seja, como eles próprios se viam economicamente. Por mais subjetivo que possa parecer este critério, a característica nativa condiciona o entrevistado de fato devido ao mesmo se visualizar como possuindo um padrão de renda individual elevado frente a seus pares. Por sua vez, estes são nada mais do que membros do próprio grupo social freqüentado pelos demais entrevistados (sinagoga na cidade do Rio de Janeiro). Quanto à questão do entrevistado ser bem-sucedido profissionalmente, mediante sua resposta sobre sua função na empresa ou então sobre o empreendimento no qual é sócio ou proprietário, assumirei o sucesso profissional do mesmo. A identidade da sinagoga selecionada para limitar o grupo será mantida em sigilo, mas situa-se na cidade do Rio de Janeiro e devido às suas características peculiares (determinada linha de posicionamento religioso) constitui um fator de seleção do grupo de judeus bemsucedidos. O fato do informante participar com alguma assiduidade das atividades principais da sinagoga caracteriza que o mesmo atuava como um integrante ativo da comunidade judaica. Minha estimativa do universo de pessoas que atendam a estas sete restrições oscila em torno de 150 pessoas. A amostra foi não-probabilística e correspondeu a 10 pessoas. Os critérios de seleção básicos para a mesma foram os de acessibilidade e tipicidade. O primeiro devido a facilidade de acesso aos informantes uma vez que eu conheço os líderes religiosos e diversos integrantes daquela instituição. A tipicidade ocorreu devido à forma pela qual a seleção foi realizada, uma vez que para constar na amostra o informante deveria atender a todas as restrições mencionadas. Graças a estes elementos a amostra foi representativa. 3.3 Entrevistas e observações participantes A obtenção dos dados se deu através de duas formas: das entrevistas e da observação participante. As entrevistas foram realizadas na residência do informante. 40 Foi essencial a presença física para uma melhor compreensão e percepção de todo o conjunto de informações (que foram gravadas). “O lado menos rotineiro e o mais difícil de ser apanhado da situação antropológica (...) se constitui no aspecto mais humano (...) que realmente permite escrever uma boa etnografia. Porque sem ele, como coloca Geertz (...) não se distingue um piscar de olhos de uma piscadela marota. E é isso o que distingue a ‘descrição densa’ - tipicamente antropológica – da descrição inversa, fotográfica ou mecânica, do viajante ou do missionário. Mas para distinguir o piscar mecânico e fisiológico de uma piscadela sutil e comunicativa, é preciso sentir a marginalidade, a solidão e a saudade. É preciso cruzar os caminhos da empatia e da humanidade”. (DAMATTA, 1987, p.173) As entrevistas foram do tipo não-estruturadas, uma vez que forneceram uma amplitude maior de respostas do que a entrevista estruturada, devido à natureza qualitativa daquela alternativa. Embora esteja claro que diversos tópicos necessitam de abordagem mais detalhada durante a entrevista, não foi preciso utilizar questões fechadas ou um approach mais formal. (FONTANA, 1994) A entrevista estruturada busca capturar informações precisas de natureza codificável com a intenção de explicar um comportamento dentro de categorias préestabelecidas. Este não foi o objetivo aqui. E sim a compreensão do complexo comportamento do grupo social, sem imposições de ordem classificatória ou prioritária que possam limitar o campo investigativo. Foi preciso ‘submergir’ na cultura em questão, interagindo de forma efetiva com os informantes. (FONTANA, 1994) Existem algumas etapas básicas na fase de entrevistas, como a apresentação, que consiste na decisão de como se apresentar para os informantes: é crucial, uma vez que a impressão inicial é determinante e difícil de desfazer caso ocorram mal-entendidos. Como muitos freqüentadores da sinagoga selecionada me conheciam, não vislumbrei maiores problemas. A seleção dos informantes também foi importante: a presença de um insider é fundamental. Um dos líderes religiosos da sinagoga estudou no mesmo colégio que eu. Ao trilhar o caminho religioso, foi estudar numa yeshivá em Nova 41 Iorque, adquirindo uma visão global. O mesmo estava ciente da Dissertação. (FONTANA, 1994) O ganho de confiança constitui uma outra etapa: este processo é importante, pois faz com que os informantes possam estar mais despreocupados, mas é lento e gradual. É mais fácil destruir a confiança do que construí-la. E por fim o estabelecimento de rapport: devido ao âmago da entrevista não-estruturada consistir na compreensão de certos hábitos do informante, é essencial estabelecer um rapport como meio de manter as ‘portas abertas’. (FONTANA, 1994) A observação participante no decorrer desta Dissertação ocorreu de forma intermediária, pois estive engajado na vida do grupo, mas não na situação de consumo. Como faço parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro, a interação sócio-cultural com os demais integrantes desta comunidade é mais efetiva, havendo uma identificação natural. Embora eu não constitua exatamente um dos perfis do universo em questão, pois não atendo a todas as restrições do grupo estudado. Mas o fato é que se tornou praticamente impossível minha presença durante suas experiências de consumo. Já que foram ao todo dez pessoas entrevistadas, presenciar as suas mais diversas experiências de consumo seria impraticável. De qualquer modo os insights obtidos através da observação participante quando estive junto dos informantes, após as cerimônias religiosas na sinagoga, foram extremamente úteis para a consecução dos objetivos da Dissertação. Foi preciso, durante a fase de coleta de dados, captar o discurso livre do informante convivendo com os mesmos. Ouvi-los atentamente, perguntar de forma a instigá-los, provocá-los, questioná-los, ou seja, relativizando. Descrever fatos, coisas, idéias, opiniões, argumentações, preferências, modos, gestuais, conceitos, preconceitos, enfim, toda a essência cultural do grupo. Foi primordial entender o que é o consumo para o grupo, como se dão os gastos, qual a hierarquia de consumo, quais as marcas consumidas, se as marcas são valorizadas, quais são os shoppings freqüentados, e assim por diante. 42 3.4 Análise do discurso: interpretando os consumidores A forma pela qual os informantes foram interpretados é absolutamente fundamental. Foi preciso efetuar a passagem eficiente entre a coleta de dados e a construção de uma interpretação. O resultado realça os significados culturais e as estruturas conceituais que são extraídas a partir de experiências individuais, produto das informações etnográficas. (ARNOULD e WALLENDORF, 1994) Aqui cabem duas abordagens relativas ao tratamento dos dados: a positivista e a interpretativista. O approach positivista guia-se pela filosofia do experimento controlado, na medida em que o pesquisador designa e seleciona assuntos pertinentes, manipulando algumas variáveis e observando as demais. A utilização de hipóteses é algo bastante usual sob esta perspectiva. (HUDSON e OZANNE, 1988) A natureza da realidade analisada sob o prisma do positivismo é objetiva, tangível e divisível, sendo os seres humanos determinísticos e reativos. A utilização de determinados registros é baseada nas afirmações e valores do pesquisador sobre a realidade e os demais seres humanos. Há, portanto, a possibilidade de relações causais entre os fatos estudados, além de um desejo de revelar a ‘verdadeira’ realidade e predizer possíveis eventos que estão por vir. (HUDSON e OZANNE, 1988) Já o approach utilizado pelos interpretativistas é, segundo Hudson e Ozanne (1988, p.513), “uma busca contínua pela descrição de muitas realidades percebidas que não podem ser conhecidas a priori devido a serem específicas em relação ao seu tempo e contexto”.29 A corrente interpretativista foi utilizada nesta Dissertação, sob uma perspectiva vislumbrada por Geertz. O que o etnógrafo realiza, para Geertz apud Schwandt (1994, p.123) “é o traçar de uma curva de um discurso social, moldando-o de uma forma adequada”.30 A corrente interpretativista condiz com a atividade básica da pesquisa etnográfica na medida em que a última não é a observação e a descrição, mas sim a inscrição de uma descrição densa destes significados da ação humana. (GEERTZ apud SCHWANDT, 1994) 29 30 Tradução livre do autor. Tradução livre do autor. 43 4 O CONTEXTO DO GRUPO ESTUDADO No capítulo anterior foi descrito o referencial teórico que se encontra por trás da metodologia empregada nesta Dissertação. O terceiro capítulo compreendeu basicamente a pesquisa de campo etnográfica, o universo e a amostra selecionada, além da coleta e tratamento dos dados envolvidos. Antes de se efetuar a análise do discurso e as posteriores conclusões, torna-se essencial determinar o contexto no qual está inserido o grupo envolvido na etnografia. Segundo Buarque de Holanda (1986, p.464), contexto significa um “encadeamento das idéias (...) conjunto, todo, totalidade”. É esta a idéia central que norteia este capítulo. Portanto, será descrito como o grupo se encontra inserido em relação às comunidades judaica mundial e brasileira. Alguns pontos a serem abordados são os mitos e imagens relacionados com as mesmas, os papéis desempenhados pelos integrantes destas comunidades em suas respectivas sociedades, as formas de organização das comunidades, as correntes sócio-econômicas, culturais e religiosas que segmentam estas comunidades e a percepção das mesmas pelas sociedades nas quais estão inseridas. O objetivo é partir de uma visão macroscópica que se inicia a partir da comunidade judaica mundial, passando pela comunidade judaica brasileira, até chegar finalmente ao grupo estudado. A descrição deste grupo constitui-se no foco da primeira seção deste capítulo. A seção seguinte descreve de forma mais minuciosa o perfil dos integrantes do grupo. Detalhes pessoais dos entrevistados como: formação, profissão, papel econômico desempenhado em relação ao cônjuge, hábitos religiosos, entre outros, que são contemplados aqui. Constituem um retrato que, nesse momento, não necessariamente envolve ainda padrões e hábito de consumo, que são obtidos durante as entrevistas e serão analisados no capítulo 5 (análise do discurso). A terceira (e última) seção aborda a descrição dos processos de captação de dados, basicamente por meio de entrevistas e observações participantes. Esta descrição compreende alguns aspectos como: o espaço de tempo envolvido durante e entre as entrevistas, as vantagens e desvantagens de ser um membro da comunidade judaica e ao mesmo tempo entrevistar seus integrantes, e por fim os insights que surgiram a partir do contato direto com os informantes. 44 4.1 Posicionamento no mundo e no Brasil Os judeus sempre foram uma minoria (em termos religiosos, sociais e culturais) e viveram diversas vezes no transcorrer de sua história como um povo excluído das sociedades nas quais fizeram parte. Tal fato se verificou desde a antiguidade (exílio do Egito; perseguições na Babilônia, atual Iraque; segunda destruição do templo pelas legiões romanas de Tito em 70 d.C.) até os tempos modernos (caso Dreyfus na França; anti-semitismo na Polônia; holocausto na segunda guerra mundial). Somente lhes era permitido viverem enclausurados nos platea judeorum de Roma, borghetos da Itália, ghetos da Alemanha, juiverie da França, jewery da Inglaterra, juderías da Espanha, judiarias de Portugal, melahs de Marrocos e os shtetls da Rússia e Polônia. (BENCHIMOL, 1998) No entanto, a situação vem modificando-se de forma dramática nas últimas décadas. Hoje há diversos níveis quanto ao espectro de atuação e relevância desempenhadas pelas comunidades judaicas nos países nos quais elas se encontram presentes. Estes níveis são determinados por inúmeras variáveis. Talvez a mais determinante seja o grau histórico de receptividade social e cultural proporcionado pelo país “anfitrião”. Um bom exemplo são os Estados Unidos. Há mais de dois séculos foram publicados importantes documentos no que tange à garantia dos direitos dos cidadãos: a Constituição de 1776 e a Declaração do estabelecimento da liberdade religiosa, em 1777, por Thomas Jefferson. “É de conhecimento público que as opiniões e crenças dos homens (...) seguem as evidências propostas em suas mentes, e que as mesmas foram concebidas de modo livre (...) e que livres devem permanecer, totalmente isentas de restrições. (...) As opiniões dos homens não devem ser objeto do governo civil, tampouco de sua jurisdição”.31 (JEFFERSON apud PETERSON, 1977, p.251) 31 Tradução livre do autor. 45 Graças a estas garantias dos direitos humanos, desde há muito incorporadas na cultura norte-americana, os judeus encontraram um ambiente propício para a prática de suas tradições e ritos. Além de espaço para desenvolverem-se socialmente de modo integrado à comunidade não-judaica, sem implicar em perdas de suas tradições culturais. A importância atual da comunidade judaica é tamanha, que questões como a relação entre o governo israelense e os territórios palestinos ocupados é decisiva em campanhas políticas naquele país. Isto ocorre especialmente em estados cuja população judaica é maior, como em Nova Iorque. Outro exemplo da relevância da comunidade judaica é o fato do partido democrata ter decidido compor a chapa de seu candidato à presidência Al Gore, com um judeu (Joseph Lieberman), nas eleições de 2000. Entretanto, em países como Polônia e República Checa a trajetória foi diferente. Após décadas de anti-semitismo, cujo ápice foi o holocausto praticado na II guerra mundial, houve um forte movimento de emigração da população judaica, especialmente para Israel e os EUA. Hoje, em suas capitais Varsóvia e Praga, há diversos registros da passagem da comunidade, embora praticamente não haja mais judeus nestes países. Em meio à população judaica mundial há uma espécie de moto no qual se afirma que o volume de manifestações anti-semitas é diretamente proporcional à força e à coesão da comunidade. Na Argentina, onde somente em Buenos Aires há mais de 200 mil judeus, nos últimos anos vêm ocorrendo diversos atentados contra instituições judaicas, inclusive com mortos. No entanto, uma vez estabelecidos, os judeus organizam uma série de associações e entidades, com vistas a assegurar sua organização comunitária. Passando por escolas, sinagogas, clubes e cemitérios até os estabelecimentos kosher, centros de caridade (lar dos idosos, assistência aos carentes) e veículos de comunicação (jornais, programas de televisão, sites na internet). “Os judeus sempre costumaram ter seus cemitérios comunitários, a fim de poder fazer suas orações coletivas em memória de todos os seus antepassados (...) após a diáspora, os judeus foram excluídos e segregados nos guetos e juderías (...) porque o enterro de um correligionário judeu em um cemitério cristão constituía uma profanação e o tornava impuro (...) estes são os motivos pelos quais toda a comunidade judaica constrói uma 46 sinagoga, um cemitério, uma escola e um clube, os quatro pilares da sua identidade e continuidade”. (BENCHIMOL, 1998, p.213) Justamente pelo fato destes pilares representarem sua identidade e continuidade, eles estão presentes hoje no Brasil em todos os grandes centros de concentração da população judaica: São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Manaus e Salvador. Quanto às características sócio-econômicas, os judeus encontram-se nos mais diversos extratos sociais no país. Há desde empresários com grandes fortunas até favelados que recebem serviços assistenciais de educação, saúde e alimentação dos demais membros da comunidade. Entretanto, a imagem que transparece para a sociedade brasileira é a de que os judeus são geralmente bem-sucedidos. Talvez devido a diversos exemplos positivos exponencializados pela mídia: no jornalismo (Alberto Dines, Gilberto Dimenstein), na televisão (Sílvio Santos, Boris Casoy), na política (Jayme Lerner, Israel Klabin), no empresariado (Moise Safra, Roberto Medina), na literatura (Márcio Souza, Arnaldo Niskier), no esporte (Arthur Nuzman, Bernard Razjman), na moda (Tufi Duek, Alexandre Herchcovitch), nas artes cênicas (Deborah Colker, Tereza Rachel), na propaganda (Roberto Justus, Armando Strozenberg), entre outros. Em termos religiosos, há correntes das mais até as menos religiosas (estes chamados de reformistas, e aqueles, de ortodoxos). Os ortodoxos respeitam uma série de preceitos religiosos na medida em que seguem estritamente o Velho Testamento, além de serem mais fechados a outros segmentos da sociedade não-judaica. Pode-se incluir neste segmento os movimentos religiosos Beit Lubavitch e Beit Chabad, originários de Nova Iorque. Ao passo que os reformistas (denominados popularmente de liberais) são mais flexíveis, aparecem na mídia e admitem uma série de modificações e “atualizações” na religião. Seus maiores expoentes no Brasil são os rabinos Henry Sobel e Nilton Bonder. Sejam sinagogas, clubes, cemitérios ou escolas, as instituições judaicas são freqüentadas por subgrupos culturais delimitados por diversos parâmetros. Entre estes há a origem de seus integrantes (ashkenazim ou sefaradim) e o grau de religiosidade (ortodoxos, conservadores e reformistas) dos mesmos. Todas estas instituições sociais 47 são influenciadas em maior ou menor escala pelas correntes religiosas da comunidade judaica local. Um outro grupo social fundamental no desenvolvimento das comunidades judaicas no Brasil é o dos movimentos juvenis. Consistem em grupos de alcance mundial que incentivam o convívio social entre jovens judeus, desde crianças até completarem a maioridade. Uma série de informações são passadas, como os valores judaicos, o conceito de hierarquia, convivência em grupo, entre outros. Entre os principais movimentos no Brasil encontram-se o Habonim Dror, Hashomer Hatzair, Bnei Akiva e Chazit Hanoar. No entanto, nos últimos vinte anos, estes movimentos têm perdido sua força de maneira bastante acelerada. Um fator que possivelmente concorre para tal fato é o crescente grau de assimilação da comunidade em relação à sociedade. Este é um outro importante elemento para a constituição de subgrupos culturais dentro da comunidade judaica, ou seja, o quão elevado é o índice de assimilação entre seus membros. Para concluir, a percepção da sociedade brasileira em relação aos judeus é de tolerância e respeito, ainda mais quando comparada à situação de outras comunidades, como a da Argentina. Há episódios esparsos que representam exceções à regra: violações de túmulos em cemitérios judaicos, pichações em paredes de escolas judaicas, entre outros. No entanto é fato que a sociedade brasileira ainda possui a imagem e o mito de que os judeus são bastante relevantes em termos políticos e fazem valer seu poder de forma orquestrada e discreta. 4.2 Descrição e características de seus integrantes É preciso limitar o perfil sócio-econômico e cultural do grupo estudado. Portanto, é necessário segmentá-lo de acordo com determinadas restrições. As fronteiras do grupo são: ser do sexo masculino, ser casado com filho(s) solteiro(s), possuir nível universitário, ser bem sucedido profissionalmente, possuir um alto padrão individual de renda, ser morador da cidade do Rio de Janeiro e freqüentar a sinagoga selecionada. Estes parâmetros construíram uma base homogênea de entrevistados, cujo grau de valores culturais verificado é bastante similar. Até mesmo a profissão dos antepassados 48 da grande maioria dos informantes eram constituídas de vendedores ambulantes. Esta profissão era comumente denominada na comunidade judaica de clienteltic. Cabe identificar a figura do clienteltic, que carrega sempre a mercadoria consigo, preenche a função de difusor de bens econômicos e de divulgar padrões e hábitos urbanos. A modalidade de pagamento era quase sempre feita à prestação, daí derivando o tipo de mercadoria que ele carregava. (LEWIN, 1997) Um aspecto importante a ser observado é que os clienteltics em sua maioria não possuíam nível superior. No entanto, os mesmos conseguiram oferecer aos seus filhos a oportunidade de estudar em boas universidades - estes representam grande parte dos informantes desta Dissertação. Por sua vez, os netos dos clienteltics conseguiram atingir não somente o nível de graduação, como também Mestrados (como o autor deste trabalho) e Doutorados. A vida dos clienteltics era muito árdua, pois segundo Lewin (1997, p. 88) “a rua – subúrbio do prestamista – é sinônimo de escassez, é trabalho pesado e desprovido de status social”. Talvez por seus pais vivenciarem esta rotina, seus filhos tenham optado por profissões liberais, devido às maiores possibilidades de desenvolvimento gerencial e empresarial. Os informantes ascenderam socialmente em relação aos seus pais, em grande parte devido aos seus cursos de nível superior. São em maioria engenheiros, médicos e advogados, ocupando funções de middle e top management em grandes e médias instituições ou gerindo suas próprias empresas. Além disto representam papel de destaque em relação à geração de receita familiar. Isto ocorre devido ao fato de suas esposas serem responsáveis pela gerência da casa e da educação dos filhos, não sendo remuneradas por estas tarefas. Há exceções, nas quais as mulheres desenvolvem uma carreira estruturada. No entanto, ainda neste caso elas contribuem com uma parcela inferior da receita total da família. Tal comportamento caracteriza de certa forma um desenvolvimento de estruturas paternalistas em meio às famílias dos informantes. Neste cenário o pai é responsável pelo sustento da família e a mãe pela educação dos filhos e gerência do lar. Em relação aos filhos, a quantidade variou entre dois e quatro para cada informante. Na maioria absoluta dos casos, os filhos dos informantes em idade não- 49 universitária (não há universidades judaicas no país) estudam em escolas judaicas. As exceções estudam em colégios como Santo Inácio ou Princesa Isabel, de tradição religiosa cristã, mas com expressivo número de alunos judeus. O fato dos informantes freqüentarem uma sinagoga com regularidade nos permite inferir sobre a observância dos mesmos em relação à religião judaica. Assim sendo, a continuidade das tradições por meio de seus descendentes passa a desempenhar um papel fundamental. E uma das principais formas de preservação destes costumes e tradições é justamente educar seus filhos em escolas judaicas. Por outro lado, as tradições também são mantidas pelos próprios informantes na medida em que há diversos momentos de interação com a sinagoga em questão. O principal constitui-se no shabat, nas noites de sexta e manhãs de sábado. Todos os informantes estão quase sempre presentes na cerimônia de saudação do shabat (sexta à noite), ocasião na qual a sinagoga atinge sua lotação máxima. Mas também há outras oportunidades durante a semana: aulas de hebraico, seminários abordando questões familiares e educacionais, leituras da Torah com os rabinos e atividades recreativas para as crianças. São laços fomentados pela sinagoga que acabam se constituindo em hábitos religiosos dos informantes. Justamente por freqüentarem a sinagoga em diversos momentos durante a semana, os informantes necessitam estar próximos da mesma, residindo em bairros próximos (cujas rendas médias são elevadas para os padrões da cidade). Conseqüentemente por estarem numa região privilegiada da cidade, têm maiores opções de entretenimento. Na mesma linha de opções de lazer e eventos sociais, há encontros e cerimônias promovidas pelas famílias dos informantes. Geralmente estes eventos ocorrem nas mais importantes datas judaicas do ano: Rosh Hashaná, Pessach, Sucot, Iom Kippur, onde os amigos e familiares mais próximos estão presentes. Na festa de Pessach inclusive há duas noites especiais, cada qual com cerimônias religiosas e jantares que são promovidos em diferentes residências de membros da família. Em relação ao entretenimento promovido por clubes, aqui há uma divisão entre os entrevistados: alguns são sócios de clubes judaicos situados em bairros da zona sul (Copacabana, Laranjeiras) e oeste (Barra da Tijuca); outros se encontram vinculados a clubes góis. Estes informantes alegaram que os clubes judaicos não dispõem de infra- 50 estrutura adequadas para seu lazer e de seus filhos. O fato paradoxal é que ainda assim eles se ressentem pelos filhos freqüentarem clubes não-judaicos. Portanto foi traçado nesta seção o perfil assim como as características dos integrantes do grupo selecionado. Seus membros, os chefes de família, pertencem às classes sociais mais elevadas e possuem uma preocupação da continuidade das tradições judaicas através de seus filhos. Na realidade, os filhos espelham-se em seus pais (os informantes) na medida em que estes são bem-sucedidos, tanto pessoal quanto profissionalmente. Além disso, possuem uma forte ligação em relação à religião, na medida em que se preocupam em freqüentar ambientes judaicos (clubes, escolas, sinagogas). Uma vez descritas as características dos informantes, neste momento será abordado o processo de captação das informações que vai permitir a análise do discurso dos mesmos. 4.3 O processo de captação do discurso dos informantes A pesquisa de campo desta Dissertação foi pautada basicamente na etnografia, que busca descrever e analisar, sob um prisma sócio-cultural, um grupo cujo limite é delimitado através de determinadas variáveis. O método etnográfico (proveniente da Antropologia) exige um contato direto e prolongado com seu objeto de estudo. Seus resultados são focados na obtenção de dados sobre pessoas, espaços, interações, símbolos e tudo o mais que possa vir a contribuir para sua investigação. (VERGARA, 1997) Portanto a etnografia consiste numa forma empírica de verificar junto aos consumidores quais são alguns dos elementos que explicam seus comportamentos. O método de entrevistas e a observação participante são as ferramentas mais utilizadas para investigar estes elementos. Já que faço parte da comunidade judaica do Rio de Janeiro, em relação ao grupo estudado não sou um membro da “sociedade do outro”, na medida em que faço parte da mesma e sempre convivi num ambiente judaico. Conseqüentemente sou um elemento da “sociedade do eu” (embora não seja exatamente um membro do grupo e sim da comunidade judaica carioca). O que à primeira vista pode parecer um tanto quanto 51 comprometedor em termos de prospecção e obtenção de informações, posteriormente configurou-se num típico trade-off. Há vantagens e desvantagens decorrentes do fato de eu ser um dos membros da comunidade na qual está inserido o grupo com o qual foi feita a pesquisa de campo etnográfica. Entre as desvantagens, há a possibilidade de não se visualizar determinados hábitos e comportamentos sócio-culturais com “outros olhos”, externos aos do grupo. O fato é que desde o início estive consciente deste risco, resguardando-me assim em relação à possibilidade de não levantar determinadas questões durante as entrevistas e as observações participantes. Para tal, foi preciso adotar e manter constantemente uma postura questionadora e inconformista. Assim foi possível minimizar o risco de aceitar passivamente determinados padrões que pudessem parecer facilmente compreensíveis sob o meu ponto de vista. Por outro lado, creio que as vantagens certamente superaram possíveis pontos desfavoráveis. O fato de eu freqüentar a mesma instituição religiosa judaica dos demais membros do grupo minimizou possíveis resistências. Inclusive possibilitou de forma decisiva o contato com diversos de seus membros, facilitando a realização das entrevistas. Uma vez o processo tendo se iniciado, os próprios membros do grupo iam sugerindo outros nomes que seriam mais receptivos, formando um processo de networking de entrevistados. Outro ponto que foi beneficiado pelo fato de eu conhecer diversos membros do grupo foi a possibilidade de conviver em diversas oportunidades com os mesmos, especialmente em momentos que não fossem exclusivamente os de gravação de entrevistas. Chamadas de observações participantes, estas interações possibilitaram uma compreensão mais aprofundada do universo simbólico e cultural dos entrevistados. Uma vantagem adicional importante foi o fato de não ter praticamente havido espaço para eventuais visões etnocêntricas de minha parte. O conjunto peculiar de comportamentos sócio-culturais do grupo em questão muitas vezes era alinhado com interpretações que envolviam fatos ou fenômenos de ordem histórico-religiosa que desde muito cedo estiveram presentes em meu ambiente cultural. Isto me permitiu captar nuances que poderiam muito bem ter permanecido ocultas caso eu não fosse um membro da comunidade. 52 Durante o processo em si, as entrevistas foram gravadas sob garantia de total confidencialidade em relação às informações prestadas. As mesmas foram transcritas posteriormente, com o único intuito de permitir uma compreensão mais detalhada e minuciosa do discurso dos informantes. É importante registrar que, em mais de uma oportunidade, alguns entrevistados mostraram-se reservados no início das entrevistas, e foram tornando-se mais à vontade com o passar do tempo. Por mais que alguns dos entrevistados fossem conhecidos, evidentemente trata-se de um assunto pessoal. As entrevistas foram realizadas individualmente, sempre na residência de cada um dos membros do grupo. Um dado importante a ser mencionado é que priorizei a execução das entrevistas de modo que não houvesse um período de tempo longo entre a primeira e a última entrevistas. Este prazo foi de aproximadamente dois meses, cuja extensão considerei compatível com minha meta inicial. Caso este período fosse muito maior, creio que a análise do conteúdo das entrevistas estaria afetada, na medida em que seria possivelmente mais difícil efetuar a conexão e a interação em meio ao material extraído de cada entrevista. Da forma pela qual foi feita, foi possível fazer emergir de forma mais natural uma lógica do discurso dos informantes, colaborando decisivamente para a análise final. Cada entrevista durou em média cerca de uma hora e meia. Algumas perguntas foram utilizadas como forma de balizar e direcionar o curso da entrevista. No entanto, o objetivo principal da pesquisa de campo etnográfica não é limitar nem tampouco falar mais do que o entrevistado. O respeito e a atenção ao discurso do informante devem sempre ser ressaltados e ficarem bastante claros durante a entrevista. Embora também tivessem sido essenciais observações e intervenções feitas para que o entrevistado ficasse à vontade para dar continuidade a certas linhas de pensamento. Um fato interessante que surgiu em algumas entrevistas foi o questionamento que partiu das esposas de alguns dos entrevistados. Elas interrogaram-me sobre a possibilidade de participar nas entrevistas uma vez que também tinham papel de destaque nas tomadas de decisão familiares sobre processos de compra. Respondi que havia variáveis que limitavam a participação de membros ao grupo. Outra fonte importante de material para o estudo dos padrões e hábitos sócioculturais foi a observação participante, que desempenhou papel fundamental. Alguns 53 dos membros do grupo sentiam-se mais à vontade junto a seus amigos mais próximos, sem a formalidade característica proporcionada pelo ato de acionar a tecla ‘recording’ do aparelho portátil de gravação. A observação participante possibilita o surgimento de insights, que muitas vezes poderiam ser praticamente imperceptíveis de serem captados através de um diálogo gravado. A própria interação do entrevistado com os demais membros do grupo é uma fonte extremamente rica para se fazer a prospecção dos hábitos e padrões culturais, entre estes os de consumo. Aqui cabe mencionar uma vantagem de pertencer à comunidade na qual está inserido o grupo em questão. Durante as observações participantes (após cerimônias religiosas e durante festas, aniversários ou casamentos) eu não tive problemas de espécie alguma em relação a atuar como um dos participantes do grupo, por ser judeu além de ser também já conhecido dos demais. Após a coleta de todo o material foram realizadas sucessivas audições das fitas que continham os depoimentos coletados nas entrevistas, além de anotados os insights captados durante diversos momentos de interação com os membros do grupo, como as observações participantes. Este material constituiu a fonte básica para que se erigisse a partir daí uma lógica dos discursos dos informantes. 54 5 IDENTIDADE JUDAICA E CONSUMO: ANÁLISE DO DISCURSO No capítulo anterior foi tratado o posicionamento do grupo frente à comunidade judaica como um todo, além do processo de apuração do material, através das entrevistas e observações participantes. A análise do discurso de seus integrantes será desenvolvida neste capítulo, através do estudo de alguns dos principais aspectos de seus hábitos de consumo. A primeira seção aborda o significado do ato de consumir, questão propositadamente ampla que procura descrever e classificar os mais básicos objetivos pelos quais os membros do grupo consomem. Desta forma, buscam-se as razões primordiais para analisar determinados padrões de consumo dos membros do grupo, além das proposições envolvidas. A análise dos hábitos e características de consumo está na segunda seção. Os canais através dos quais os informantes consomem, a participação dos momentos de consumo em suas rotinas diárias e a importância atribuída às marcas em serviços e produtos são alguns dos pontos básicos que caracterizam seus comportamentos de consumo. Uma nova dimensão de consumo é o escopo da terceira seção. É a internet, um novo canal que está modificando diversos comportamentos de natureza social de uma forma extremamente veloz. O consumo é um deles, através da variante do comércio eletrônico (e-commerce), um dos mais promissores canais surgidos nos últimos tempos, em termos de comodidade e volume de informação e produtos oferecidos. Devido ao elevado padrão social dos entrevistados, a grande maioria dos membros do grupo já possuía conexão com a internet desde seus primórdios no país (aproximadamente cinco anos). Inicialmente não estava nos planos o desenvolvimento mais detalhado do consumo via internet, intenção revista devido ao significativo número de entrevistados que utilizam este meio como mais um canal de consumo. Através do discurso captado, é possível determinar se a internet vem de fato alterando determinados comportamentos de consumo dos membros do grupo. O impacto deste novo canal varia em intensidade, dependendo (entre outros fatores) das classes dos produtos ou serviços em questão. 55 As hierarquias de consumo dos membros do grupo são descritas na quarta seção do capítulo. São baseadas fundamentalmente na organização em função das prioridades atribuídas às categorias de produtos e serviços. Através da análise das razões pelas quais determinadas categorias são priorizadas em detrimento de outras, estabelecem-se princípios que norteiam certos padrões de consumo do grupo. A quinta (e última seção) trata do consumo étnico, ou seja, todo o tipo de produto ou serviço de natureza vinculada às raízes do povo judeu e que seja efetivamente consumido pelos membros do grupo. Assim verifica-se a relação entre o consumo dos informantes e o universo simbólico do grupo. Também se constata desta forma sob que aspectos e com qual intensidade este consumo auxilia a construção da identidade cultural dos informantes. Por sua vez, o conjunto destas identidades compõe a estrutura cultural dos judeus bem-sucedidos que representam o grupo em questão. 5.1 O ato de consumir Após as apresentações iniciais, quando o gravador começava a registrar a entrevista, uma pergunta era disparada com o intuito de instigar o informante: “O que é consumo para você?”. Alguns respondiam com outra pergunta: “mas em que sentido?”, denotando que a questão era claramente ampla e aberta. Desta forma o informante possuía total liberdade de resposta. Num segundo momento, após o esclarecimento de que não havia respostas certas, as razões iam sendo citadas e justificadas. O fato é que para a grande maioria dos entrevistados o consumo não foi visto como uma atividade que envolvesse exclusivamente os próprios, mas sim toda a família. Um depoimento em especial foi bastante ilustrativo, pois o informante afirmou que “não consumo muito, na realidade tudo o que eu compro visa basicamente minha família (...) porque me contento com pouco”. Esta visão geralmente permeou todas as entrevistas, por diversos aspectos, já que todos os entrevistados têm filhos solteiros que residem com os mesmos. E em grande parte dos casos, o homem era o responsável pela totalidade das receitas da família. E quando a esposa também trabalhava, geralmente respondia por menos de 50% da fonte de renda conjunta. Este é um ponto de suma importância que será reforçado nas conclusões da Dissertação. 56 Em termos dos prazos através dos quais era objetivado o consumo, existiram duas correntes básicas de resposta: ou como um investimento, visando o longo prazo, ou como uma despesa, em geral atendendo às necessidades geradas num horizonte de tempo imediato ou de curto prazo. Portanto, o conceito de consumo temporal surgiu já na primeira interação com os informantes. Uma definição teórica que foi obtida é a de que “o consumo é tudo o que se adquire com o objetivo presente ou futuro de ser utilizado”. Este depoimento define claramente as duas formas de consumo classificadas em função do tempo. Diversas motivações estão envolvidas com cada uma das duas formas de consumo. No curto prazo, o consumo foi classificado como um “gasto de dinheiro e de recursos” para “suprir necessidades imediatas”. Ou seja, um ato absolutamente vital para a manutenção da rotina familiar, além de condição básica de subsistência para os demais membros da família. Por outro lado, sensações agradáveis também foram associadas com o consumo de alcance imediato, como algo que traz ”prazer, satisfação, bem-estar, conforto”. Ou seja, entre os insights obtidos através de uma pergunta amplamente abstrata, também foram mencionadas características intangíveis e positivas. É o denominado consumo hedônico, isto é, vinculado a critérios estéticos e significados simbólicos presentes no comportamento do consumidor. O tipo de envolvimento pode ser de natureza cognitiva, caracterizada por estímulos originados por orientação, reação ou estímulo. Ainda na linha de sensações positivas relacionadas ao fenômeno do consumo, outro ponto correlato foi levantado, a questão do lazer. Em muito casos, produtos ou serviços destinados a um consumo de curto prazo estão associados a determinados rituais. Neste momento surge o programa de lazer, de ir às compras, que representam uma “distração” tanto para os entrevistados quanto para seus familiares. Uma declaração observada durante os depoimentos foi que, na medida em que o consumo gera conseqüências como prazer e satisfação, também funciona como uma espécie de terapia, pois auxilia a elevar a auto-estima do indivíduo e a manter reduzido o seu grau de ansiedade. Contribui assim para manter a estabilidade emocional, num mecanismo de compensação relativo a eventuais estados psicológicos gerados devido a prováveis problemas de ordem pessoal ou profissional. 57 O consumo como uma terapia, segundo definição de um dos entrevistados, faz com que muitas vezes “eu e minha família levemos horas passeando em centros comerciais ou shopping centers, uma vez que estamos num meio em que há gente bonita, descontraída e bem vestida, todos num astral elevado. Assim, acabamos por consumir produtos que nem sequer cogitávamos em comprar”. Portanto, há um conjunto de sensações associadas não especificamente com o produto ou serviço em si, e sim com a experiência do consumo. Conforme citado por um dos informantes, “muitas vezes a curiosidade e a vontade de conhecer coisas novas através da possibilidade de experimentá-los ou vê-los em funcionamento são os fatores que nos levam a consumir determinados produtos”. Em contrapartida ao consumo de curto prazo, uma tônica entre todos os entrevistados foi a necessidade de investir seus rendimentos em ativos de menor risco envolvido, visando suprir eventuais necessidades futuras. Este consumo pode ser classificado como temporal. Durante o processo etnográfico junto aos informantes pôde-se verificar claramente o quão este tipo de consumo é intimamente ligado a questões de âmbito familiar, sendo que o processo decisório de consumo é geralmente compartilhado com o cônjuge. Esta visão de longo prazo representa a importância atribuída pelo grupo em relação aos hábitos de consumo que visem principalmente resguardá-los (assim como suas famílias) em caso de eventuais cenários futuros imprevistos. Transparece assim na definição do que é consumo, o comportamento prudente que norteia o modus vivendi dos informantes. 5.2 Canais e características de consumo Após a definição do significado do consumo, aqui serão analisados os canais utilizados e outros aspectos do consumo praticado pelos informantes. A seguir, algumas das características abordadas: canais de consumo comumente utilizados; quando e como os momentos de consumo participam em suas rotinas; a quem se destinam os produtos e serviços adquiridos; papel desempenhado pela marca; e o perfil psicológico dos informantes. 58 Os informantes confirmaram um fenômeno que vem ocorrendo com as classes sociais mais elevadas do Rio de Janeiro: as opções de lazer externas vêm diminuindo na mesma proporção da escalada da violência verificada nas ruas. Num movimento paralelo, também há cada vez mais opções de lazer intra-residências, como o DVD, a internet, a TV a cabo, entre outros. Em termos de canais de consumo utilizados, um sobressaiu-se de forma destacada durante a pesquisa de campo etnográfica: os shoppings centers. Diversos fatores podem ser enumerados para justificar o fato do mesmo ser citado quase que como um sinônimo de “consumo” entre os informantes. O próprio conceito é relativamente recente no Brasil, se comparados a outros países. Os primeiros shoppings centers de fato (com estacionamentos, áreas de entretenimento, praças de alimentação, lojas âncoras e serviços integrados) surgiram somente na segunda metade da década de 70, primeiro na cidade de São Paulo (Ibirapuera em 1977), e posteriormente no Rio de Janeiro (Rio Sul em 1980 e BarraShopping em 1981). Durante os anos 80 (e especialmente nos 90) a violência urbana nas grandes cidades forneceu condições favoráveis à disseminação dos shoppings por todo o país, além de torná-los mais segmentados, popularizando-os em definitivo como centros de compras. Analisando estas datas, pode-se notar uma coincidência cronológica entre a explosão do fenômeno dos shoppings centers no Brasil e o crescimento dos filhos dos informantes. Estes são atualmente solteiros, de acordo com os limites do grupo, e têm idades que variam aproximadamente de 15 até 30 anos. No entanto, quando os shoppings surgiram, os filhos dos membros do grupo eram desde recém-nascidos até adolescentes. Fizeram parte da primeira geração de crianças que cresceram em ambientes como os shoppings centers. A conseqüência é que o ato de fazer compras em shopping centers, para este grupo, tornou-se um hábito plenamente difundido durante todas as fases do crescimento de seus filhos, transformando-se num programa de lazer familiar. Hoje em dia são seus próprios filhos que reproduzem o hábito, parte integrante do cotidiano dos mesmos. Obviamente também há uma série de fatores citados que são características típicas de shopping centers. Pode-se citar como exemplo: praticidade, conveniência, segurança, 59 conforto, limpeza, ambiente “alto astral”, entre outros. Mas o fato é que em sua maioria os entrevistados têm o hábito de freqüentar os shoppings somente durante os finais de semana, por falta de tempo, mas também por considerarem as idas aos shoppings centers como um programa familiar. A questão de utilizar um canal de compras “real” versus um “virtual” também foi abordada. A voz predominante foi a de que, dependendo da classe de produtos, há uma necessidade de se ter um contato sensorial com o objeto de consumo, o que é impraticável pela internet ou até mesmo com a utilização de catálogos. Segundo um informante, “comprar produtos por catálogo é um hábito mais difundido em cidades do interior, uma vez que nas mesmas não há lojas com grande variedade de linha de produtos”. Somente determinados nichos de mercado foram supridos através de consumo por meio de catálogos entre os membros do grupo: roupas importadas de qualidade e aparelhos eletrônicos, ambos de marcas conhecidas. Entre as vantagens enumeradas pelos que consomem através de catálogo, encontram-se a comodidade, privacidade, opção de produtos, além da facilidade para encontrá-los. Entretanto, com a internet o processo é diferente, como seria de se esperar. A rede tem atingido uma penetração de destaque entre classes sociais mais elevadas, devido às inúmeras vantagens proporcionadas por este canal, conforme descrição dos informantes. Este meio de consumo merecerá um destaque maior, sendo mais detalhadamente ainda neste capítulo. Como foi visto, durante os finais de semana há um comportamento de consumo centrado basicamente nos shopping centers. Por sua vez, durante a semana o hábito predominante é o de consumo em lojas de rua, próximas das residências e locais de trabalho dos informantes. Em relação a quem se destina o consumo praticado pelos informantes, em geral é voltado para os próprios. Aqui cabe uma observação. Na cultura judaica a imagem da mãe judia (“ídiche mame”) é muito difundida, ou seja, aquela que trata seus filhos de uma forma excessivamente zelosa, além de funcionar como uma espécie de provedora das necessidades do lar. Esta figura geralmente está usualmente consumindo não somente por ela, mas também por toda sua família. No entanto, o mesmo não ocorre com a figura do pai. A família judaica (ainda) é paternalista na sua essência, principalmente em termos da figura do provedor 60 econômico. Ao passo que os informantes foram unânimes em afirmar que consomem visando apenas os próprios. Um deles informou categoricamente que “cada qual consome com os rendimentos que eu provejo”. A única exceção foi um entrevistado que afirmou que ao se deparar com um produto que seria adequado a um de seus filhos, traria o mesmo para verificar se compraria de fato aquele produto. Outra característica importante no comportamento do consumo dos membros do grupo é a questão das marcas. A mesma é preponderante na tomada de decisão dos informantes, na medida em que diminui o risco embutido em quaisquer processos de compra. Funciona como um elemento que confere credibilidade ao produto ou serviço adquirido, independente do valor agregado do mesmo. A questão da marca não se aplica somente ao produto, mas também ao canal selecionado para o consumo. Os informantes atribuem um grande valor à marca da loja na qual eles fazem compras. A tradição da marca e experiências de consumo anteriores são fatores decisivos para estabelecer relações de longo prazo. Um depoimento confirmou este ponto de vista: “valorizo as marcas por uma questão pura e simples de privilegiar produtos que possuem reconhecidamente uma qualidade superior”. E outro ainda completou o raciocínio: “(...) em muitos casos realmente não importa o preço, desde que o produto seja sinônimo de qualidade, poupando-me de aborrecimentos futuros”. Para compor o perfil psicológico de consumo dos membros do grupo seria fundamental determinar o comportamento de risco dos mesmos. Para tanto, foi utilizada uma questão cujo processo de tomada de decisão estivesse presente em seus cotidianos. Foram utilizados produtos de natureza financeira claramente definidos, como forma de facilitar a gradação do risco envolvido em cada um deles. Uma classificação razoável de produtos financeiros segundo seu risco (do menor para o maior) foi atribuída da seguinte forma: caderneta de poupança, fundos de renda fixa, fundos de renda variável (ações) e derivativos. Em determinado ponto da entrevista, quando o assunto de finanças pessoais entrava em discussão, invariavelmente aquela escala de gradação era apresentada em paralelo com a pergunta “como você aplica suas finanças pessoais em termos de produtos financeiros?”. O perfil obtido foi bastante homogêneo, uma vez que 61 pouquíssimos afirmaram aplicar em fundos de renda variável (ações, por exemplo) enquanto que nenhum informante aplica em investimentos mais sofisticados como derivativos. Alguns sequer aplicam em renda fixa. Entretanto a maioria absoluta concentra-se neste último. É mais importante ressaltar que, mais do que o produto em si, o processo cognitivo que leva à tomada de decisão no momento da aplicação é mais relevante. O discurso dos informantes remete a palavras básicas como segurança e estabilidade. Segundo o depoimento de um deles, “a minha época de correr riscos terminou há muito tempo atrás”. Alguns ainda carregam o trauma dos fracassados planos econômicos dos anos 80 e 90, evitando até mesmo aplicar seus rendimentos em fundos de renda fixa e poupança, embora os mesmos sejam mais estáveis. Estes informantes aplicam em ativos imobilizados cujo risco é menor, como imóveis. Embora possam oferecer um retorno elevado, as bolsas têm tido fortes oscilações, sendo vistas pelos entrevistados como um obstáculo difícil de transpor. O risco associado é considerado desnecessário: “não preciso correr riscos, ainda mais hoje que as bolsas de valores tornaram-se um investimento cujo retorno é alto somente para os que a acompanham diariamente e conseguem informações exclusivas”. Um ponto interessante a ser observado é que a maioria dos informantes aplicou em bolsas de valores durante algum momento de suas vidas, mas hoje em dia já não o fazem mais. Este fato ilustra de forma clara a aversão ao risco pela grande maioria dos informantes. A característica mais importante para os mesmos é a estabilidade proporcionada pelas suas aplicações e não o retorno em si. Um outro fator claramente percebido é a influência exercida pelos membros do grupo entre os demais, uma vez que a rede entre os mesmos possui uma forte interação. Assim, informações sobre fundos que são rentáveis, mas sem deixar de serem estáveis, fluem velozmente entre eles, influenciando-os na tomada de decisão. 5.3 Uma nova dimensão do consumo: a internet Durante o estudo dos canais e características de consumo, percebi através dos depoimentos que a internet já fazia parte do universo da grande maioria dos integrantes 62 do grupo. Além de funcionar como um canal alternativo poderoso, também possui grande impacto sobre a relação entre o fenômeno do consumo e os informantes, em especial para determinadas classes de produtos e serviços. Um informante resumiu de forma bastante ilustrativa o potencial do comércio eletrônico proporcionado pela internet: “Sempre existiram canais de consumo explorando a conveniência, como o telefone e as vendas por catálogo, por exemplo. Mas nenhum deles consegue aliar a tecnologia de informação a serviço do consumo de forma tão poderosa como a internet vem realizando”. Mas como o grupo em questão vem utilizando a rede? Na realidade, do universo de entrevistados, metade já efetivamente consumiu algum produto através da internet. O restante que possui acesso à rede a utiliza como ferramenta para pesquisa sobre produtos e preços. Entre as razões citadas como impedimentos pelos que ainda não consumiram pela rede, encontra-se em primeiro lugar o receio de enviar os dados do cartão de crédito, devido a possíveis vazamentos durante o fluxo de informações. A figura do hacker (invasor de sistemas de informação), descrita como um ente misterioso, foi mencionada diversas vezes pelos informantes. No entanto, segundo um informante que utiliza a rede para consumo, “o quadro atual brasileiro é semelhante ao cenário da internet norte-americana de alguns anos atrás. (...) O temor em relação ao cartão de crédito também era um obstáculo citado pelos internautas americanos. No entanto, com a evolução da segurança na rede, graças a sistemas de tecnologia como a criptografia, por exemplo, as transações vêm tornandose cada vez mais confiáveis”. Outros fatores além da insegurança foram citados como barreiras que impedem o crescimento mais veloz do consumo via internet: altos preços gerados pelo frete, incerteza quanto aos prazos de entrega, impossibilidade de tangibilizar o produto, desconfiança quanto às marcas virtuais, entre outros. Dificuldades para tangibilizar, visualizar e sentir o produto foram vistas como grandes empecilhos por um informante. Este utilizou o exemplo de uma livraria onde o sócio conhece seus clientes, além de possuir ambiente agradável, atendimento excelente, e demais regalias, como cafezinho servido aos consumidores e revistas para 63 serem folheadas. Enfim, um atendimento exclusivo e customizado, o oposto da internet, segundo seu depoimento: “onde você é apenas mais um que entra no site e não tem contato direto com seres humanos”. Um informante frisou que “o universo brasileiro seria mais desfavorável ao comércio eletrônico, pois é um tanto quanto distinto do individualismo e da cultura de resultados dos norte-americanos, (...) focada na eficiência e no respeito ao consumidor, fundamentada no ‘time is money’ como lema principal”. Sem dúvida alguma são culturas distintas, uma com predominância individualista; a outra, relacional e com uma necessidade maior de contato físico. São culturas que impactam a utilização da internet de um modo distinto. Mas entre os entusiastas da rede, constatou-se que os produtos mais consumidos são, pela ordem, livros e CDs. Um membro do grupo, freqüentador contumaz do site norte-americano Amazon, afirma: ”(...) a variedade de títulos, a conveniência da compra, a facilidade para se encontrar títulos através de mecanismos de busca são alguns dos atrativos do comércio eletrônico”. Sem mencionar que há uma série de vantagens competitivas oferecidas pelos recursos tecnológicos: “(...) há serviços prestados por certos sites que agregam valor à experiência do consumo (...) via internet: resenhas de livros, sugestão de títulos correlatos, fóruns de discussão com autores e leitores, entre outros”. Sites do tipo home broker (corretoras de investimentos virtuais) como Investshop e Patagon foram mencionados como endereços utilizados pelos informantes. Primeiramente como fontes de informação sobre fundos de investimento; posteriormente para aplicações efetivas. Mas a internet também é utilizada exclusivamente como uma ferramenta poderosa de auxílio na tomada de decisão de compra. Em diversas oportunidades os informantes afirmaram que apenas consultam-na para fins de pesquisas de preços, informações sobre canais de vendas e dados técnicos sobre os produtos. Portanto a internet vem modificando diversos hábitos de consumo, embora muitos ainda não crêem na segurança da rede. Seja como uma ferramenta de obtenção de informações, seja como um canal efetivo de compras, a maioria absoluta dos membros do grupo já incorporou a rede em suas rotinas de consumo. 64 5.4 Hierarquias de consumo Esta seção aborda o processo de organização das diversas classes de produtos e serviços em níveis de importância, denotando assim a hierarquia atribuída ao consumo pelos informantes. Conforme já citado, os membros do grupo são responsáveis por 50% ou mais da renda familiar conjunta. Como era de se esperar, a provisão das necessidades familiares mais básicas e urgentes foram citadas em primeiro lugar. Fato observado pelo seguinte depoimento: “primeiro penso no bem-estar da minha família, seja através do pagamento das despesas mensais, seja através do investimento do excedente em bens ou produtos financeiros; somente depois é que penso em meu consumo e nas outras necessidades pessoais”. Nesta categoria de consumo foram mencionados: alimentação (supermercados), saúde (remédios e seguros), educação (colégios, universidades particulares e cursos de inglês), moradia (pagamento do condomínio e demais despesas), automóveis (impostos, combustíveis, seguro e manutenção), entre outros. Um fato interessante é que para a maioria do grupo houve mais duas classes citadas com freqüência na categoria de despesas mensais básicas: lazer e informação. Segundo um depoimento, “a informação atualmente é uma commodity das mais relevantes em nossa sociedade, pois estamos vivendo atualmente uma revolução da informação com o surgimento da internet e da conexão cada vez maior, impulsionada pela globalização e pelos avanços da tecnologia de informação”. O que foi categorizado como informação através dos depoimentos é na realidade todo o conjunto de produtos e serviços voltados à formação e desenvolvimento pessoais dos membros da família, proporcionados pelo consumo da informação. Engloba desde assinaturas de jornais e revistas, passando pela compra de livros e compact discs, chegando às despesas com internet (hardwares, softwares, provedores de acesso, conta telefônica, comércio eletrônico). O fato é que a linha que separa as categorias de consumo “informação” e “lazer” é na realidade muito tênue. A internet, que será abordada com maior profundidade na próxima seção, foi considerada pelos membros do grupo como uma sofisticação 65 tecnológica que possui inúmeras funções, prestando diversos serviços. Destaca-se entre estes serviços exatamente as duas categorias acima mencionadas. Mas também há o lazer tradicional. Este pode ser simbolizado por atividades como cinemas, teatros, parques, museus, shows, esportes, restaurantes, entre outros. O fato dos informantes a incluírem entre as despesas mensais básicas reforça a importância atribuída pelos mesmos a esta categoria. Após a provisão das necessidades básicas da família, a próxima categoria de consumo é a de bens adquiridos com o intuito de imobilizar o patrimônio, ou seja, numa visão fundamentalmente de longo prazo. Em ordem, encontram-se: imóveis (casas, apartamentos e lotes), produtos financeiros (poupança, fundos de renda fixa e variável), e até mesmo automóveis. Os informantes adquirem estes bens visando reparti-los entre seus filhos, após o casamento dos mesmos. Este objetivo foi uma constante, verificado em grande parte dos depoimentos. O interessante é que estes informantes afirmaram que, conforme iam construindo seus patrimônios, em paralelo iam desenvolvendo uma partilha virtual entre seus filhos, numa demonstração clara de seus comportamentos prudentes. Na realidade, o consumo e a conseqüente formação do patrimônio adquire um símbolo de continuidade, paralelo à evolução de sua família. Esta constante preocupação com o futuro de seus descendentes está implícita nos rituais de consumo da maioria absoluta dos informantes. A capacidade de desenvolver uma capitalização através de poupança mensal é vista pela maioria como prioridade absoluta. Este sentimento misto de prudência e resguardo perante o futuro foi observado em diversos momentos de interação com os informantes. É interessante também observar que todos, sem exceção, jamais recorreram a empréstimos bancários de vulto, dívidas com instituições financeiras, ou demais instrumentos de crédito cujos juros elevados fossem causar um risco econômico para as finanças familiares. Um exemplo é o chamado “cheque especial”, que consiste num empréstimo realizado de forma automática por instituições financeiras: todos os informantes afirmaram que jamais utilizaram este recurso. Um depoimento em especial foi ilustrativo na medida em que faz uma analogia entre a estratégia do informante de administrar suas finanças pessoais e a da família de judeus sefaradim Safra, proprietários do Banco Safra e renomadas instituições 66 financeiras nos Estados Unidos, Israel e Europa: “(...) também não gosto de me endividar (...) creio que isto é um traço comum na comunidade judaica, que possui tradição em enfrentar situações adversas, como as perseguições. Veja o Banco Safra, cujo lema ‘tradição secular de segurança’, define-o como uma instituição que evita trabalhar alavancado, isto é, com volume de empréstimos superior ao patrimônio da instituição”. Em relação à imobilização do patrimônio, há uma importante observação colhida nos depoimentos. Na hierarquia de consumo do grupo, todos os membros entrevistados, sem exceção, possuem casas ou apartamentos na cidade serrana de Teresópolis (RJ). Seria uma coincidência ou há uma justificativa plausível por trás deste fato? Sim, há uma razão. O fato de serem judeus, além de membros do mesmo grupo cultural e de classes sociais mais elevadas dentro da comunidade, fornece alguns subsídios para a justificativa. Desde sempre, cresci consciente que os judeus tinham residências de verão em Teresópolis. Há inclusive um trocadilho que circula entre os judeus cariocas que a cidade de fato deveria chamar-se ‘Eretzópolis’ (eretz significa terra em hebraico) devido à elevada concentração da comunidade judaica. O mesmo ocorre no balneário do Guarujá (SP), chamado de ‘Guarushalaim’ (Yerushalaim significa Jerusalém em hebraico) devido ao mesmo fato. Talvez razões climáticas (clima temperado, mais próximo do europeu), geográficas (situação estratégica, no topo da serra) e sociais (local ermo e pouco habitado) tenham contribuído para a disseminação de sua fama na comunidade. Assim, Teresópolis tornou-se popular entre os judeus que se estabeleceram no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. O fenômeno denominado de emulação social por Veblen explica em parte este comportamento. Inicialmente com o objetivo de socialização entre seus pares, os membros da comunidade mantinham assim sua estima e reputação. Em fins-de-semana, feriados e principalmente no carnaval, a cidade fica repleta de integrantes da comunidade. Amigos que dificilmente se encontrariam na capital fluminense têm diversos pontos de encontro nas esquinas de Teresópolis. Há outra justificativa importante para este fato: a maioria absoluta das famílias prefere que seus filhos se casem com cônjuges da mesma religião. A presença maciça 67 da comunidade em Teresópolis funciona como um elemento que contribui para evitar dispersões, que são maiores numa cidade grande e cosmopolita como o Rio de Janeiro. Uma pergunta adicional foi realizada com o intuito de gerar subsídios para uma definição mais apurada sobre a hierarquia de consumo dos integrantes do grupo. A questão era: “Se você recebesse uma herança milionária, o que faria com a mesma?”. A resposta confirmou alguns dos aspectos abordados nesta seção, uma vez que emergiram com maior freqüência entre as respostas: imóveis (apartamentos e casas de campo) para si próprio e para os filhos, aplicações em fundos de investimentos estáveis, fundos de ações, entre outros. Portanto alguns optariam também por investimentos de risco (como fundos de ações). Mas um ponto ficou claro nos depoimentos: a parcela da herança aplicada em investimentos agressivos nunca seria superior a 20%. Ou seja, investimentos com menor risco e / ou tangíveis representariam a maior parte do portfolio. Este tipo de consumo é claramente temporal, uma vez que visa à imobilização do patrimônio (imóveis) ou ao investimento puro e simples (aplicações financeiras). Em ambos os casos visando a proteção contra possíveis intempéries futuras, além de um compartilhamento entre os filhos. A vantagem da pergunta é sua natureza abstrata e aberta, a qual não limita a resposta, dando margens para transparecer o prudente comportamento de consumo dos informantes. Não foram citados num primeiro momento nem viagens nem tampouco bens de consumo como automóveis, micro-computadores ou demais produtos de maior valor agregado. Apenas dois dos entrevistados citaram viagens exóticas e renovação de automóveis, mas assim mesmo após os investimentos iniciais. 5.5 Consumo étnico Todos os informantes entrevistados, sem exceção, consomem determinados produtos e serviços de natureza judaica que, com maior ou menor intensidade, estão presentes na formação do universo simbólico do grupo. Portanto, o consumo dos mesmos atua como um dos mais importantes elementos que vão concorrer para compor suas identidades culturais. E é exatamente esta gama de produtos e serviços que será abordada. 68 Evidentemente que há inúmeros membros da comunidade judaica do Rio de Janeiro que não consomem nenhum tipo de produto ou serviço de natureza judaica. Mas nestes casos provavelmente o comportamento de consumo apenas reflete uma ausência de identificação com a comunidade judaica. Ou seja, trata-se de um processo muito comum quando o grau de assimilação é bastante elevado, como nas comunidades judaicas brasileiras. São pessoas que, por diversas razões, não se sentem pertencentes de fato à comunidade, não obstante o fato de terem nascido judias. Os serviços foram citados com mais freqüência do que os produtos, uma vez que se encontram mais diretamente relacionados aos ritos de passagem e demais acontecimentos sociais judaicos. Estes eventos são tidos como básicos e fundamentais na cultura judaica, caracterizando de fato a inserção e manutenção dos indivíduos na comunidade. Pode-se citar o Brit-Milá, o Bar-Mitzva (ou Bat-Mitzva) e o casamento judaico, ritos estabelecidos e consagrados há milênios. Há diversas instituições sociais judaicas que contribuem de forma decisiva para a manutenção e conseqüente sobrevivência da sociedade. Tal contribuição se dá mais comumente através de serviços básicos, como escolas e clubes. Mas não podem ser esquecidas atividades de entretenimento tais como festas, shows, viagens e programas de rádio e TV. Diversos depoimentos coletados durante a pesquisa etnográfica ratificam a importância dos serviços de natureza étnica. Algumas das mais tradicionais escolas judaicas do Rio de Janeiro fazem parte dos serviços consumidos pela maioria dos entrevistados para esta Dissertação: “Meus filhos sempre estudaram no Liessin32. Quando eles eram menores eu não tinha tempo de transmitir grande parte dos ensinamentos do judaísmo. (...) Estava engrenando na minha carreira profissional, e minha esposa também trabalhava fora. Mas nós desejávamos fortemente que eles seguissem a cultura judaica”. “Desde cedo eu percebi que em escolas judaicas haveria uma carga horária considerável de matérias como hebraico e história judaica. Eventualmente matérias que logo mais seriam fundamentais para o vestibular, como 32 O Colégio Israelita Brasileiro A. Liessin é um dos mais tradicionais da comunidade judaica do Rio de Janeiro. Situa-se em Botafogo e foi fundado na década de 40. 69 matemática, português e química, seriam certamente prejudicadas. Mas não tem importância: nada substitui um autêntico ambiente judaico”. “Na verdade, o principal fator pelo qual eu coloquei meu filho no Bar-Ilan33 foi o fato dele crescer num ambiente judaico e poder fazer amigos judeus, com uma cultura similar, onde ele não seria diferente e possivelmente discriminado”. “Sei que não existem Faculdades nem Universidades judaicas no Brasil. Por isso mesmo sempre incentivei meus filhos a estudarem em colégios judaicos no primeiro e segundo graus, já que depois eles iriam inevitavelmente para a Universidade. (...) Veja bem, a não ser que eles fossem estudar em Israel, mas pessoalmente não gostaria que eles fossem (...) a situação lá é sempre complicada devido às guerras”. “Bem, minha filha acabou conhecendo um rapaz judeu no ORT34. Como ela iria conhecê-lo se estudasse numa escola gói? Seria muito difícil, com certeza absoluta...”. Os clubes também exercem um papel social bastante similar ao das escolas judaicas. Um dos fatores citados foi o da criação de um ambiente judaico onde os jovens possam conhecer pessoas com cultura e background bastante similar aos seus. “Desde pequenos os meus filhos freqüentavam o CIB35, onde jogavam futebol e praticavam natação. Infelizmente hoje em dia estão indo mais à praia do que ao clube, talvez por terem ficado cansados das limitações de espaço do clube. (...) O ruim é que agora estão se afastando dos amigos de antigamente...”. “Desde a minha adolescência que eu freqüentava o CIB. Naturalmente meus filhos foram pelo mesmo caminho, jogando basquete e vôlei pelo clube, participando até mesmo de campeonatos internacionais. Mas agora eles 33 O Colégio Israelita Bar-Ilan situa-se em Copacabana, tendo sido baseado na Universidade israelense de Bar-Ilan, na cidade de Ramat Gan. Possui uma importante sinagoga e também representa as atividades do movimento juvenil Bnei Akiva no Rio de Janeiro. 34 O Instituto de Tecnologia ORT é uma escola profissionalizante de segundo grau, fundada na Rússia, em 1880. Existe em mais de 50 países e possui cerca de 250 mil alunos em todo o mundo. 35 Clube Israelita Brasileiro, um dos mais tradicionais do Rio. Situado no bairro de Copacabana. 70 alegam que os judeus estão se assimilando e por isso tem cada vez menos gente no clube. Isto é muito ruim para a nossa comunidade...”. “Eu sei que a maioria dos clubes góis têm infra-estrutura superior e muitas vezes até mais atividades do que os judaicos. A falta de espaço é um problema para nossos clubes. Mas foi pelo CIB que meu filho conquistou uma medalha jogando futebol na seleção juvenil nas Macabíadas36! (...) Sabe, é este tipo de coisa que nos dá satisfação!” Outro aspecto dos mais importantes na cultura judaica são os hábitos alimentares. Entretanto, na cidade do Rio de Janeiro há pouquíssimos restaurantes especializados em culinária judaica (kosher). Os estabelecimentos ativos (um ou dois) possuem um ciclo de vida bastante curto devido a questões de gerenciamento, localização e até mesmo de comunicação junto ao seu público-alvo. “Uma coisa que não entendo é a questão dos restaurantes kosher. Quando eu era mais novo, no tempo da Praça Onze, havia dezenas de pequenos estabelecimentos kosher. Acho que a própria comunidade perdeu o hábito de freqüentá-los. (...) Em São Paulo, no Bom Retiro37, ainda há restaurantes que atraem pessoas da comunidade que moram em bairros bons, tipo Jardins ou Morumbi. Eles pegam seus carros importados e se deslocam até lá. O restaurante Cecília, por exemplo, é um clássico. Se você vai lá num domingo vai encontrar muita gente que hoje em dia dificilmente anda naquela região”. “Você vê, na minha casa só entra comida kosher, mesmo que seus preços sejam praticamente o dobro da comida normal. (...) Não me incomodo com o preço, o que eu quero é manter a tradição. O que está ficando cada vez mais complicado porque adquirir carne kosher ou até mesmo ir a um restaurante deste tipo aqui no Rio tem se tornado muito difícil...”. 36 As Macabíadas são eventos esportivos envolvendo atletas judeus de todo o mundo. São realizadas anualmente e têm edições nacionais, continentais e mundiais. 37 O bairro do Bom Retiro, situado na zona norte de São Paulo, é aonde os judeus provenientes da Europa e do Oriente Médio iam residir, devido ao baixo custo da moradia e à proximidade da Estação Ferroviária da Luz. Possui uma importância histórico-cultural similar ao bairro carioca da Praça Onze. 71 “Recentemente descobri o restaurante ‘Delícias da Babe’, que fica em Copacabana. Lá eu posso comer aqueles beigales38 que só a minha tia-avó sabia fazer. Assim minha esposa e meus filhos continuam conhecendo as tradições da culinária ashkenazim de nossos antepassados”. Também há os serviços que são intimamente ligados às festas judaicas. Entre eles temos: animação para festas, cantores e bandas especializados em músicas judaicas e cursos especializados na preparação para estes eventos. “Quando meu filho fez Bar-Mitzva, eu contratei um professor particular para ele não dar vexame na hora de ler a Torah. Sabe como é, toda a família reunida num momento tão importante para todos. Não pode sair nada errado”. “No noivado da minha filha eu contratei os serviços da banda Celebrare39, porque eles só fazem casamentos importantes. E a qualidade da banda é muito boa, embora eles cobrem bastante caro por duas horas de música ao vivo. Mas eu quis fazer uma festa bonita, pois era minha filha mais velha. Mas é importante frisar que a festa foi discreta porque nós não gostamos de ostentação”. “(...) e meu filho queria casar num clube gói. Eu falei que por mim tudo bem, desde que houvesse antes uma cerimônia na Sinagoga. Sabe, é importante manter acesa a chama da tradição. Decidimos de comum acordo fazer na Sinagoga da Rua Tenente Possolo40, exatamente no mesmo lugar onde me casei com minha mulher. Foi realmente o momento mais emocionante da minha vida!”. “Quando fizemos 30 anos de casados decidimos dar uma festa para cerca de 300 pessoas. Contratamos a cantora israelense Varda para animar a festa. Ela é excelente e canta músicas em hebraico e ídiche, o que nos fez lembrar de nossos falecidos pais e avós...”. 38 Pequeno bolo de batata, tradição da culinária judaica da Rússia e Leste europeu. Banda que surgiu no início dos anos 90 e rapidamente tornou-se conhecida em meio à comunidade. Gravaram diversos CDs e tornaram-se conhecidos fora da comunidade judaica. 40 Uma das mais antigas Sinagogas da cidade, fundada nos anos 30. Situada no Centro do Rio. 39 72 Um tipo de serviço que vem crescendo nos últimos anos e que foi mencionado por diversos informantes foi o de cursos de curta ou média duração voltados para a cultura e história judaicas. Estes cursos encarregam-se de suprir virtuais deficiências em relação à difusão deste conteúdo, uma vez que não há faculdades judaicas no país. “Um curso que eu tenho freqüentado desde o ano passado é o que a ARI41 está oferecendo três vezes por semana à noite. O horário é ótimo porque assim posso conciliar com o escritório de advocacia no qual sou sócio. Saio do trabalho e mergulho na milenar cultura judaica. E o interessante do curso é que consegui rever alguns amigos da época da juventude que não via há muitos anos”. “Descobri recentemente um curso espetacular sobre filósofos judeus. Abrange desde a filosofia dos profetas dos tempos bíblicos, passando por Maimônides42, até chegar aos modernos, como Ludwig Wittgenstein43 e Karl Popper44. (...) É um curso com qualidade e profundidade raras de se encontrar...”. Outra linha de serviços intimamente conectada à cultura judaica são os pacotes turísticos oferecidos por agências de viagens. Estes pacotes são direcionados para membros da comunidade que desejam visitar Israel e até mesmo cidades européias que têm ou tiveram uma comunidade judaica ativa: “Ultimamente surgiram uns pacotes de viagens muito interessantes porque além de visitarmos Israel podemos conhecer cidades espetaculares como Praga, que tiveram uma influência judaica muito forte. E os guias que nos acompanham são muito preparados, tornando a viagem uma experiência única (...) um tem até Mestrado em História da Arte, veja só...”. 41 ARI – Associação Religiosa Israelita, situada em Botafogo. Possui uma importante sinagoga e um moderno prédio para estudos. 42 Moshe Bem Maimon, o Maimônides (1183 – 1204) foi considerado um dos maiores filósofos judaicos de todos os tempos. Principal líder espiritual da comunidade sefaradim de sua época, publicou dezenas de trabalhos de teor religioso. Sua tumba encontra-se na cidade de Tiberíades, em Israel. 43 Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951) foi um dos mais influentes pensadores do século XX. Sua principal contribuição se deu através do movimento denominado filosofia lingüística e analítica. 44 Karl Popper (1902 – 1994), filósofo e pensador político austríaco, escreveu “A lógica da descoberta científica”. 73 “Um amigo meu me contou sobre uns pacotes turísticos voltados para um lado mais cultural e histórico, para pessoas de mais idade. São sensacionais! (...) Conheci as cidades de Praga e Budapeste e me encantei. Dificilmente poderia ser oferecido por agências que não conhecessem mais profundamente a história do povo judeu”. Em termos de mídia, o surgimento de conteúdo voltado especificamente para a comunidade judaica acompanha o fenômeno de segmentação do mercado consumidor. Desta forma, o volume de conteúdo de natureza judaica em diversos canais de comunicação tais como rádio, cinema e TV vêm crescendo e se firmando como importantes canais difusores e integradores na comunidade. “Um programa que ouço sempre é o da Rádio Imprensa FM. Sabe, nem sei o nome dele, mas sei o horário e nunca perco uma edição. Tem um pouco de tudo: notícias importantes, as coisas que acontecem na comunidade, eventos, e é sempre bom estar a par de tudo. (...) Este negócio de escutar programas judaicos no rádio me faz lembrar do meu avô, que escutava um programa de rádio quando eu era pequeno, a TV ainda não estava popularizada (...) embora o programa que ele ouvia, aqui mesmo no Rio, fosse em ídiche”. “(...) tem uma coisa que eu venho percebendo: hoje a cidade tem centros de cinema focados em filme de arte, com qualidade superior. Antigamente tinha o Paissandu. Hoje em dia estes centros são geridos por empresas, de forma profissional. Quase todos os anos passam ciclos de filmes com temática judaica. O Cineclube Estação Unibanco, a Cinemateca do MAM e a Cinemateca do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) sempre passam estes filmes”. Muitas vezes, a audiência destes programas e filmes funciona como uma espécie de elo com o passado e a tradição do judaísmo. Quando um dos informantes disse que seu avô escutava programas judaicos no rádio e ele agora se vê na mesma posição, isto reforça a tradição impregnada na religião e cultura judaicas até mesmo em aspectos corriqueiros do consumo diário. O mesmo se dá através do cinema: 74 “As grandes produções de Hollywood estão cada vez mais fazendo filmes dramáticos, históricos, baseados em fatos reais. São feitos para ganhar Oscars (...) ‘A Lista de Schindler’ do Spielberg, foi emocionante demais. Não conheço ninguém que não foi assistir. Realmente não nos permite esquecer que o holocausto não pode ocorrer novamente. E mais: que nós pertencemos a este povo com uma história tão bonita quanto sofrida...”. A televisão especificamente colabora para a integração da comunidade. Os programas dificilmente não são vistos pelos informantes entrevistados. Um deles encontra-se há mais de uma década no ar, o semanal carioca ‘A Comunidade na TV’. Outros por sua vez são gerados para todo o Brasil. “Se tem um programa que me deixa a par de tudo o que circula pela comunidade, até mesmo as fofocas, sem deixar de lado os aspectos mais sérios e profundos é ‘A Comunidade na TV’. (...) Agora mesmo teve uma exposição no Museu Nacional da Quinta da Boavista sobre a Torah mais antiga do mundo, comprada pelo D. Pedro II. Eu só soube pelo programa”. Até mesmo aspectos pitorescos envolvendo a audiência de programas deste tipo foram revelados pelos entrevistadores: “O programa ‘Shalom Brasil’ é bem representativo do nível de qualidade e integração dos programas judaicos. (...) cobre aspectos judaicos de diversas cidades brasileiras. Imagine se minha falecida avó visse um programa como este, com cobertura nacional: em 1969 quando os astronautas aterrissaram na Lua ela disse que tudo não passava de um truque cenográfico...”. Assim como a avó deste informante provavelmente também teria ficado impressionada caso tivesse a oportunidade de conhecer e utilizar a internet. Desde a metade dos anos 90 a quantidade e a qualidade dos sites judaicos brasileiros tem aumentado de forma sensível. No início eram listas de discussão, quando a internet ainda não tinha uma interface gráfica tão poderosa que permitisse sites mais sofisticados: “Como sou professor universitário, tive acesso à internet desde 1994. Era ainda nas instalações do LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica) na Urca. A rede era para poucos, geralmente professores 75 universitários como eu. Me lembro que a web havia se difundido a partir da Califórnia e especificamente da Universidade de Stanford. Já nasciam ali as primeiras listas de discussão e me lembro de ter participado de diversas listas compostas exclusivamente por judeus. (...) conversávamos em inglês com pessoas do mundo todo. Ali vislumbrei o quão poderosa ainda seria a internet”. Conforme mencionado quando discutimos a questão da internet como uma nova dimensão do consumo, atualmente a rede faz parte do cotidiano da grande maioria do universo dos informantes. Alguns dos sites já são utilizados com freqüência pelos informantes, conforme depoimentos abaixo: “É interessante analisar o quanto mudou a forma pela qual eu passei a utilizar a rede nos últimos dois anos. Antes era mais uma curiosidade mesmo, eu entrava nos sites judaicos embora eles não fossem atualizados constantemente. Eram muito amadores... Hoje não, são úteis, relevantes, com serviços, mas ainda podem melhorar muito, especialmente quanto ao ecommerce. Utilizo muito o site da Netjudaica e também o Aleinu”. “Um dos sites que mais gosto é o Pletz.com, onde eu posso participar de listas de discussão. Ainda tem classificados, conteúdo de humor, cinema, música, receitas, agendas de eventos (...) e o interessante é que há uma série de serviços, como por exemplo para jovens se conhecerem através do site. Sabe que meu filho até já conheceu moças judias desta forma?”. “Veja o ponto de sofisticação a que chegamos... descobri recentemente um mecanismo de busca voltado especificamente para o judaísmo no Brasil e no mundo! O Eifo45 acha qualquer site relacionado com a comunidade. È um serviço muito útil. Já falei inclusive para meus filhos utilizarem”. É importante frisar que muitos dos sites citados nos depoimentos acima não visam o lucro, sendo mantidos por instituições da comunidade. No entanto, há os da iniciativa privada, sendo que destes, nenhum cobra pelos serviços oferecidos. Na verdade seguem o modelo que vem sendo praticado na internet brasileira até o momento: aumentar a base de usuários para posterior geração de receita a partir desta base. Não foram 76 somente os serviços relacionados à cultura judaica que foram mencionados pelos informantes. Algumas linhas de produtos também são consumidas devido ao fato de serem voltadas especificamente para este mercado potencial. Durante as entrevistas e observações participantes, foi possível constatar o grau de importância atribuído pelos membros do grupo a determinados segmentos de produtos. Os alimentícios constituem um bom exemplo. Alguns dos informantes consomem apenas os estritamente kosher. Ou seja, freqüentam estabelecimentos como delicatessens e importadoras que revendem estes alimentos, trazidos de Israel e dos Estados Unidos46. Grande parte destes produtos é industrializada, como determinados produtos da Coca-Cola cujas latas apresentam um pequeno selo que significa uma aprovação do Rabinato norte-americano. “Sabe, na minha casa só entra comida kosher (...) é uma questão de hábito, de educação para meus filhos. (...) Considero uma mitzvá o fato de eu conseguir vencer todos os obstáculos para trazer estes produtos para minha casa”. “Tenho percebido que supermercados mais sofisticados e situados próximos de grandes concentrações de população judaica têm tido maior variedade de produtos kosher. Aqui mesmo perto de casa o Supermercado Zona Sul é um deles”. Entretanto o fato deste tipo de produto ser bem mais caro que os produtos nãokosher também intimida diversos informantes na sua decisão de compra. Tal fato pode ser verificado no depoimento descrito abaixo: “Tentei durante anos seguir a mitzvá de somente consumir alimentos kosher. Mas chegou um momento em que não deu mais. (...) Realmente é muito oneroso ter que ficar pagando o dobro do que pagaria por um alimento comum. E para falar a verdade meus filhos preferem a carne normal mesmo, sabe? É porque eles dizem que a carne kosher ’não tem sabor’. Ter que lidar 45 A palavra Eifo significa ‘aonde’ no idioma hebraico. A comunidade judaica ortodoxa norte-americana é maior do que a de Israel. Tal fato ocorre devido ao grande número de movimentos ultra-ortodoxos sediados na costa leste dos Estados Unidos, especialmente em New York, New Jersey e Philadelphia. 46 77 com este tipo de oposição dentro de casa é complicado. Se eles quiserem comer alimentos não-kosher na rua o que eu posso fazer?”. Outros tipos de produto bastante citados, ainda que de forma eventual, são os artigos relacionados com a arte e a cultura. Exemplos são basicamente os livros e CDs voltados especificamente para a cultura judaica. “No último aniversário da minha esposa fui na loja Modern Sound, em Copacabana, e comprei uns dois ou três CDs de música judaica, especificamente de música clássica. Eram daquele violonista judeu, o Itzhak Perlman, junto com a Filarmônica de Israel. Muito emocionante, parece que eles conseguiram captar em alguns minutos os cinco milênios de história e cultura judaicas...”. “Acho que meu maior prazer em termos de consumo são os livros. Bem, não é à toa que somos conhecidos como o povo do livro, não é? Mas nas livrarias do Rio não encontramos com muita facilidade livros sobre judaísmo. Talvez somente nas megastores como Saraiva e Siciliano. Já no exterior, especialmente nos Estados Unidos, encontramos seções denominadas de ‘judaica’. Lá sim tem muita variedade de títulos”. “Eu tenho o hábito de comprar regularmente livros sobre judaísmo. Mas quase sempre o faço através do site da Amazon. É bastante completo, tem todos os lançamentos e livros que seriam muito difíceis de serem encontrados aqui no Brasil. Os assuntos que mais me interessam são os culturais: personalidades judaicas da história, humor judaico, história do povo judeu etc”. É importante frisar que os objetos / produtos religiosos também foram citados pelos informantes. Simbolizam por si só os mais de cinco mil anos da história judaica. São impregnados de um valor simbólico que excede em muitas vezes seu valor comercial. Entre eles encontram-se a mezuzá, a kipá, o talit, o tefilim, a menorah, a maguen David, o chamsa e a Torah. (uma explicação detalhada destes termos encontrase no glossário). Há diversas lojas de decoração que têm objetos de natureza judaica, como os citados no parágrafo anterior. Encontram-se geralmente nos shopping centers mais 78 sofisticados da cidade, como o Fashion Mall (no bairro de São Conrado), o Rio Design Center (Barra e Leblon) e o Shopping da Gávea. Outros locais de grande concentração destes tipos de loja são a Avenida Ataulfo de Paiva (Leblon), a Rua Visconde de Pirajá (Ipanema) e a Rua Marquês de São Vicente (Gávea). Na linha de produtos de mídia, nos últimos anos vem surgindo uma série de novos periódicos destinados à comunidade judaica. Os mesmos são de alcance nacional ou regional (geralmente para a Grande São Paulo ou o Grande Rio de Janeiro). É cada vez maior o número de assinantes, conforme os depoimentos abaixo: “A revista Messibá é muito interessante na medida em que aborda as últimas novidades também sob o ponto de vista dos jovens, que estavam sem este tipo de informação. (...) É bastante colorida, trata-se de uma espécie de revista ‘Caras’ da comunidade, se é que você me entende!”. “Uma coisa que eu achei sensacional foi uma nova revista que lançaram, a Messibá, que é mais voltada para a juventude. Tem muitas fotos, coberturas das festas mais badaladas, enfim, coisas para os jovens mesmo. É meio que um guia para a vida judaica dos meus filhos. Sabe, quebra aquele paradigma que informação na comunidade é de e para gente mais velha”. “O Jornal Alef47 chegou para ficar mesmo. E acho que já existe há uns cinco anos, quer dizer, é o periódico judaico que surgiu nos últimos tempos que tem a maior duração. Deve estar fazendo sucesso porque tenho reparado que cada edição tem mais anúncios que as anteriores”. “Uma seção que eu acho muito interessante no Alef é a de aniversários, casamentos, Bar-Mitzvas e formaturas. Ali nós encontramos um monte de conhecidos, filhos de amigos e um monte de gente que nem lembrávamos. Bem, na verdade é uma grande fonte de informação...”. Ainda na linha de produtos consumidos pelos informantes e que são de natureza étnica, há o produto (mencionado na seção anterior – 5.4 Hierarquias de consumo) imóvel em Teresópolis. Seja uma casa ou um apartamento, constitui presença constante na vida dos informantes e de suas famílias. Teresópolis funciona como uma espécie de 47 Alef é a denominação da primeira letra do alfabeto hebraico. 79 ponto de referência espiritual e comunitário para estes chefes de família. Espiritual porque a cidade se transformou num recanto judaico desde algumas gerações: “Sempre fiz questão de ter um cantinho em Teresópolis. Lembro que meu pai adorava passar temporadas na cidade, que o fazia recordar da Polônia, sua terra natal. E também encontrava seus amigos. Mas ele não tinha um imóvel e sempre ficava de favor na casa de alguém. Desde 1984, quando comprei uma casa confortável e espaçosa no bairro do Alto, este problema passou a não existir mais. Depois ele faleceu, mas quando estou lá me sinto mais próximo de meu pai”. Trata-se de um consumo nitidamente de natureza étnica na medida em que seus familiares têm a oportunidade de interagir com os demais membros da comunidade. Esta interação social se dá até mesmo em lugares públicos: “Quando minha família está lá nos sentimos em casa. É uma sensação estranha, como se estivéssemos na nossa Terra, sabe? Por incrível que pareça, é muito mais fácil encontrar uma pessoa da comunidade em Teresópolis do que em bairros com grande concentração de judeus no Rio, como Copacabana ou Ipanema. Meus filhos fizeram grandes amigos”. “Depois que eu comprei minha casa num condomínio situado na Granja Comary minha família passou a ter uma integração muito maior com a comunidade. Para começar a maioria dos proprietários das demais casas também era composta por judeus. O pessoal sempre organizava churrascos e convidava uns aos outros. Quer dizer, meus filhos se enturmaram rapidamente”. Portanto os informantes entrevistados mostraram-se consumidores ativos de produtos e serviços que estão intimamente ligados com o ‘ser judeu’. Muitas vezes este consumo atua como um fator que reforça o elo de ligação dos informantes e suas famílias com a própria comunidade. Em outros momentos determinados produtos estão imbuídos de valores simbólicos milenares que concorrem para reforçar o vínculo de suas identidades. Estes depoimentos ressaltam o viés de consumo de natureza étnica que está presente no cotidiano da maioria absoluta dos informantes. 80 6 CONCLUSÕES: OS PARADOXOS DE UMA IDENTIDADE No quarto capítulo foi apresentada a contextualização do grupo sob três aspectos: posicionamento no mundo e no Brasil; descrição e características de seus integrantes; e descrição do processo de captação do discurso dos informantes. A análise do discurso foi desenvolvida no capítulo cinco. Através da mesma foi possível verificar: o simbolismo do ato de consumo junto aos integrantes do grupo; os canais e características de consumo; novas dimensões de consumo, como a internet; a hierarquia de consumo dos informantes; e finalmente como o consumo étnico está representado através de produtos e serviços feitos sob medida para os integrantes da comunidade em questão. Neste capítulo serão apresentadas as conclusões deste trabalho. Diversas inferências serão apresentadas a seguir, retiradas a partir do rico material extraído através da pesquisa de campo etnográfica realizada com os informantes. Duas foram as principais fontes de captação de material através da pesquisa etnográfica: as entrevistas em profundidade e as observações participantes. Este material gerou a análise do discurso, desenvolvida no capítulo cinco. É importante relembrar neste momento a pergunta da Dissertação, que foi apresentada no primeiro capítulo: ‘é possível compreender alguns aspectos do comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos através de suas práticas culturais?’. O objetivo principal deste trabalho é justamente responder a esta questão, o que será realizado neste capítulo. Há ainda outros objetivos que serão contemplados: ! Estreitar as relações entre o Marketing e a Antropologia, no sentido de aprimorar a compreensão do fenômeno do consumo; ! Verificar a existência de nichos de mercado para este grupo social, que representa um público-alvo extremamente segmentado e com elevado potencial de consumo; ! Analisar, no mercado do Rio de Janeiro, a visão empresarial de mercado voltada para o consumo de etnias específicas, denominada de Marketing étnico. 81 Portanto, quatro aspectos serão abordados neste capítulo: a lógica do discurso dos informantes, a network judaica, possíveis nichos de mercado e por fim as contribuições assim como as interrogações que serão geradas pela Dissertação para eventuais pesquisas futuras. A primeira seção busca verificar a existência de padrões de consumo determinados pelos hábitos sócio-culturais dos informantes. Esta lógica segue alguns aspectos como, por exemplo, os mecanismos que estão por trás da tomada de decisão de consumo, assim como o universo simbólico dos informantes. Também será desenvolvida a questão da network judaica. Ou seja, o quão verdadeiro é o conceito préconcebido que afirma que os judeus formam redes de contato e auxílio entre seus integrantes. E até que ponto esta rede impacta nos seus hábitos de consumo. Os possíveis nichos de mercado vislumbrados a partir do discurso dos informantes também serão abordados. Na medida em que haja demandas reprimidas ou malatendidas pela atual oferta de produtos e serviços, há também nichos de mercado que têm como target principal o universo de informantes estudados. Assim estarão, de uma forma mais ampla, as contribuições legadas por este trabalho. A Dissertação contribui para um maior estreitamento entre as relações do Marketing e da Antropologia, no sentido de aprimorar a compreensão do fenômeno do consumo. Também serão abordados os questionamentos que poderão ser gerados pela Dissertação e até mesmo atuarem como motivadores de estudos futuros. Possíveis alterações nas fronteiras da amostra ou na metodologia utilizada poderiam eventualmente proporcionar resultados distintos. 6.1 Aspectos do consumo Esta primeira seção do capítulo conclusivo busca trazer à tona a lógica que está implícita (ou explícita) no cerne dos discursos dos informantes. Desta forma é possível analisar em profundidade como o universo cultural do grupo estudado encontra-se alinhado com seus padrões de consumo. Como exemplos dos aspectos deste universo cultural há símbolos, mitos, rituais, linguagens, valores, crenças e percepções, todos elementos presentes no discurso dos informantes. 82 A partir da emergência desta lógica é possível responder à questão proposta no primeiro capítulo da Dissertação: ‘É possível compreender alguns aspectos do comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos através de suas práticas culturais?’. A resposta à pergunta acima é ‘sim, é possível compreendê-los’. A mesma é afirmativa uma vez que, devido as suas características peculiares, delimitadas pelas sete variáveis de contorno (descritas na seção ‘3.2 – Fronteiras do grupo estudado), o grupo estudado demonstrou um discurso coeso e homogêneo. E este mesmo discurso apresentou uma lógica em comum, definindo um padrão de consumo para o grupo. E suas características mais marcantes estão descritas nos parágrafos seguintes. Um elemento presente na maioria absoluta dos discursos foi o que pode ser denominado como consumo temporal: a relevância atribuída pelos informantes ao consumo com o propósito da imobilização do patrimônio. Ou seja, a tendência de adquirir bens de alto valor agregado, como imóveis (principalmente) ou veículos. O objetivo primário é o de garantir que o patrimônio da família estará seguro contra possíveis adversidades, como inclusive uma eventual ausência da figura patriarcal do próprio informante. Um fato que também foi bastante frisado nos depoimentos é a questão da partilha. Em grande parte dos casos, estes bens como imóveis e veículos eram adquiridos num número que fosse múltiplo do número de filhos. Assim ficava claro o intuito de uma possível divisão para seus descendentes. Por exemplo, um informante que tinha duas filhas e um filho possuía seis imóveis. O consumo temporal também significa que os informantes apresentam uma elevada capacidade de poupança interna, devido à constante preocupação com o futuro, materializado através de seus filhos e de sua aposentadoria. Daí surgem os investimentos em produtos financeiros focados em fundos mais conservadores, como os de renda fixa e até mesmo a caderneta de poupança. Um dos informantes comprou até mesmo um título do Governo de Israel no valor de alguns milhares de dólares, cuja importância só poderia ser resgatada num prazo de cinco anos, para presenteá-lo a seu filho mais velho. Diversos depoimentos inclusive confirmaram a tendência desta cultura da poupança e do resguardo contra adversidades ser passada de pai para filho, numa espécie de ritual: “Veja, quando meu filho tinha seis 83 anos de idade já levei o pequeno numa agência bancária para ele abrir uma conta de poupança. Assim ele começou a valorizar o dinheirinho que ganhava”. A questão do consumo étnico também foi observada como presente nos padrões de consumo do grupo. Possivelmente o judaísmo ou o ‘ser judeu’, talvez seja uma das mais antigas e tradicionais identidades que ainda existam na face da Terra. Como uma forma de se buscar e preservar esta identidade, os informantes utilizam o consumo de produtos e serviços de natureza étnica como elos para permitir a continuidade desta trajetória milenar. Os serviços principais como escolas, clubes e outros ligados aos ritos de passagem (casamento, Bar-Mitzva, Bat-Mitzva) ou à preservação dos valores culturais (cursos, viagens) foram citados em todos os depoimentos como forma essencial de se preservar a própria identidade judaica assim como de seus familiares. É como se as execuções dos ritos de passagem nos padrões reconhecidamente judaicos assegurassem a pertinência dos informantes e de suas famílias à tradição judaica. Portanto o consumo daquela série de serviços de natureza étnica colabora de forma decisiva para a contínua construção da identidade. Entretanto, no comportamento de consumo de judeus bem-sucedidos não há elementos de competitividade entre os mesmos. Como exemplos destes elementos ausentes há desde a obtenção de prestígio social e a ostentação pura e simples, até o consumo conspícuo ou características de emulação social. Também não se verificaram características de insaciabilidade de consumo, pois a perspectiva de consumo temporal se movimenta num sentido oposto. Tal fato pode ser comprovado pelos depoimentos dos informantes, cujas finanças sempre estiveram equilibradas. Ou seja, os mesmos jamais contraíram dívidas ou empréstimos bancários com o intuito de consumir algum produto ou serviço. No entanto, como integrantes de um grupo de natureza étnica, o depoimento destes judeus bem-sucedidos deixou configurada a importância do meio social, ou seja, a aceitação social. Em diversas passagens, ficou patente o quanto era importante para os informantes inserirem a si próprios e a seus familiares num ambiente judaico. Este objetivo possuía alta importância em termos da hierarquia de consumo: nem que 84 fosse preciso adquirir um imóvel em determinados condomínios sofisticados em Teresópolis com o propósito de se aproximar de integrantes da comunidade. Na realidade, a importância do meio social para os informantes comprova que a aceitação social junto a seus pares é fundamental para aqueles. Um exemplo é o consumo de objetos judaicos dotados de grande valor simbólico e que são colocados de forma estratégica em suas residências, na sala de estar ou nos cômodos principais. Assim a identidade judaica permanece patente para seus convidados, que são muitas vezes integrantes do próprio grupo estudado. Outro elemento percebido nos padrões de consumo é a construção da autoimagem. Na verdade esta característica caminha juntamente com o sentimento de coesão do grupo. Os informantes possuem vínculos muito fortes com algumas instituições comunitárias, sendo algumas de origens filantrópicas. Ao serem questionados sobre o motivo pelo qual ainda permaneciam sócios de clubes ou instituições às quais não participavam mais no seu dia-a-dia, eles afirmaram: “veja bem, eu ainda continuo sócio daquele clube porque muitos outros utilizam seus serviços e como membro da comunidade judaica eu preciso colaborar para a manutenção de instituições deste tipo. Nem eu nem meus familiares freqüentamos esta instituição, mas eu me sinto no dever de contribuir”. Ou seja, o sentimento de coesão do grupo é tão intenso que muitos informantes ainda pagam mensalidades de clubes ou cursos sem sequer freqüentá-los. Sem mencionar entidades filantrópicas (Lar das crianças e dos idosos), cujas doações contribuem para a construção de uma auto-imagem de dignidade e honradez a partir de seus valores culturais. Além da manutenção da imagem de networking gerada pelos não-integrantes da comunidade. O fato da dimensão cultural deste grupo ter se formado há muitos séculos e ter sido preservada no seu âmago talvez contribua para diversas das características abordadas. Ainda que haja uma constante influência das culturas das sociedades nas quais os mesmos estiveram inseridos (pós-Diáspora), a estrutura básica da identidade judaica assim como seus valores têm sido preservados. Assim, o consumo consiste numa das formas pelas quais os informantes buscam reforçar esta mesma identidade judaica. As características principais de consumo temporal, étnico, a importância do 85 meio social e a construção da auto-imagem contribuem para a definição dos padrões de consumo dos informantes. Um dos mais estabelecidos pré-conceitos sobre os judeus é o que afirma que os integrantes das comunidades judaicas são bastante unidos, formando importantes redes de contato (networks). Aqui serão buscados subsídios para um maior entendimento sobre a existência ou não destas networks e como as mesmas concorrem para a formação do padrão de consumo dos informantes. Primeiramente é importante verificar que há uma série de fatos que contribuem para a formação deste pré-conceito. Alguns destes fatos, provenientes dos Estados Unidos, confirmam que os judeus representam 2% da população americana e 45% dos top 40 milionários da lista Forbes 40048, constituem um terço de todos os multimilionários (patrimônio pessoal acima de um milhão de dólares) americanos, são 20% dos professores das principais Universidades americanas, são sócios de 40% dos principais escritórios de advocacia de New York e Washington e por fim representam 25% de todos os americanos laureados com o Prêmio Nobel. Alguns fatos como os citados acima passaram a contribuir para a idéia préconcebida que os judeus detêm poder e assim sendo organizam-se em networks. Tal percepção se disseminou a partir dos Estados Unidos até outros países. Geralmente o tamanho e grau de união da comunidade judaica de um determinado país é diretamente proporcional à intensidade destes pré-conceitos. Em diversas passagens apuradas junto aos informantes, ficou claro que contatos pessoais provenientes de atividades sociais judaicas são muito importantes para suas relações comerciais. Estas relações podem consistir em benefícios como obtenção de novos clientes ou até mesmo formação de parcerias entre empresas. Alguns informantes confirmaram que preferem fazer negócios com integrantes da comunidade judaica, porque “quando se faz negócios com pessoas com os mesmos valores e crenças, enfim, com a mesma cultura, o entendimento durante a negociação fica muito mais fácil”, segundo um informante. Verificar a origem do sobrenome é uma forma utilizada comumente pelos informantes para se ter uma boa idéia da probabilidade do outro ser judeu. Mas aqui também se parte de um pré-conceito, pois na realidade há muito judeus cujos nomes 86 possuem origem ashkenazim, ou seja, possuem sufixos típicos alemães ou russos, como ‘Berg’, ‘Man’, ‘Vitz’, entre outros. Esta maior pré-disposição para se fazer negócios ocorre também quando a comunidade encontra-se ciente que a alta gerência da empresa é constituída de integrantes da comunidade. Um exemplo clássico é o dos irmãos banqueiros Safra: Joseph, Moise e Edmond, cuja história familiar remonta ao século XIX, na Síria. O mais velho dos irmãos, Joseph, era banqueiro, proprietário de um banco nova-iorquino, o National Republic Bank. O banco, bem-sucedido, era um dos cinqüenta maiores bancos norte-americanos em volume de recursos. Devido a problemas pessoais, Joseph decidiu vender seu banco ao HSBC (Hong Kong and Shangai Banking Corporation), um dos maiores bancos do mundo, em 1999. Após a venda ter sido concretizada, um sem-número de contas e investimentos de clientes judeus foram cancelados. Este fato representou um efeito colateral inesperado para o HSBC. Assim ficou caracterizado o quanto que grande parte dos integrantes da comunidade prezam o fato da empresa ser administrada por um judeu. A história acima foi citada por um dos informantes. O mesmo afirmou verificar sempre quem faz parte da alta gerência dos bancos nos quais ele depositava seus investimentos. Portanto as networks existem e desempenham importante papel na comunidade. No entanto, não se trata de algo exclusivo dos judeus, pois os demais grupos étnicos também possuem suas redes de contato específicas. Além disso, networks judaicas possuem relevância devido ao caráter de preservação dos integrantes, representando uma variável na definição dos padrões de consumo dos informantes. Conforme pôde ser observado através dos depoimentos dos informantes, a afirmação da identidade judaica é corroborada através do consumo de determinados produtos e serviços de natureza étnica. Há algumas categorias que vem se profissionalizando de forma mais acelerada, como a de serviços direcionados para as festas judaicas. Foi somente durante os anos noventa é que surgiram e se desenvolveram grupos de dança e música cujos nomes se tornaram conhecidos por toda a comunidade. Outro setor que vem crescendo e possui como público-alvo um segmento mais específico é o de mídia, como jornais, revistas e programas de TV (a cabo e aberta). No 48 A revista de negócios Forbes publica anualmente um ranking anual com os 400 americanos mais ricos. 87 entanto, o que se verifica no mercado brasileiro é que há uma série de nichos de mercado que podem ser explorados de uma forma mais efetiva. Como exemplos há a categoria de produtos carregados de valor simbólico, desde menorahs até mezuzás, entre outros (citados na seção 5.5 - consumo étnico). Atualmente é bastante difícil encontrar esta categoria de produtos no Rio de Janeiro. Uma interessante oportunidade de negócios seria a criação de um ponto de vendas que oferecesse uma completa experiência de consumo sob o ponto de vista étnico. Ou seja, uma loja que tivesse um mix de produtos e serviços: objetos ligados à cultura judaica, desde os mais tradicionais sob o ponto de vista religioso, até os mais modernos, como cartões e artefatos de papelaria. Mas que não comercializasse somente produtos, como também oferecesse uma experiência de consumo total, através de uma lanchonete com comida kosher, por exemplo. Assim estaria convertendo-se num ponto de encontro para integrantes da comunidade, com determinada faixa etária. Cumpriria um papel não somente comercial, mas também de elemento integrador para a comunidade local. Fazendo-se um contraponto à experiência de consumo do ‘mundo real’, há também oportunidades de desenvolver uma experiência de ‘consumo virtual’, ou seja, através da internet. A mesma já possui grande penetração junto a este mercado, uma vez que todos os informantes e seus familiares possuem alto nível de escolaridade e de renda, conseqüentemente tendo acesso à internet. Ainda não há hoje no país um site que seja uma referência para a comunidade judaica em termos regionais nem tampouco regionais. Portanto há espaço no mercado para um portal judaico baseado na dicotomia ‘globalização X tribalização’. ‘Globalização’ na medida em que o usuário teria uma experiência de consumo (via e-commerce) de produtos de natureza étnica de todo o mundo, inclusive Israel e Estados Unidos. Por outro lado a ‘tribalização’ se daria através da participação de membros da comunidade local para a geração de conteúdo para o portal, com artigos, entrevistas e participações. Portanto os depoimentos junto aos informantes deixaram claro que há setores desenvolvendo-se rapidamente, mas há oportunidades e nichos de mercado para atender às demandas que porventura ainda não estejam sendo atendidas. 88 6.2 Contribuições e interrogações geradas pela Dissertação Nesta seção encontram-se as contribuições geradas por este trabalho, assim como possíveis interrogações. Ambas poderão atuar como elementos motivadores para futuras Dissertações, enriquecendo as pesquisas sobre o Marketing e mais especificamente sobre as relações entre a Antropologia e o Comportamento do Consumidor. A contribuição fundamental foi ter proporcionado um maior estreitamento intelectual entre as duas ciências humanas, quais sejam: a Administração (através do Marketing) e a Antropologia. Ao confirmar as influências culturais na determinação do padrão de consumo para o grupo, esta Dissertação colaborou para a aproximação destes dois campos do conhecimento. No entanto é importante frisar que este trabalho não esgota o tema, uma vez que há uma série de variações que podem ser feitas a partir do mesmo. Como exemplo há desde a metodologia utilizada, passando pelo referencial teórico estudado, ou até mesmo pelas variáveis que delimitaram as fronteiras do grupo, entre outros fatores. Estas variações podem ser transformadas em estímulos para a realização de posteriores trabalhos, tendo como enfoque outros grupos culturais, com fronteiras igualmente bem definidas. Por exemplo, a metodologia empregada foi fruto de uma pesquisa etnográfica e observações participantes. Caso somente uma destas fontes fosse utilizada, os insights e conclusões poderiam ter sido outros. Em relação às fronteiras, um próximo trabalho poderia estudar os hábitos de consumo dos demais elementos da família dos informantes desta Dissertação. Sua esposa e seus filhos provavelmente possuem outros valores simbólicos além de percepções, crenças e valores diferentes. Desta forma, seus padrões de consumo teriam uma outra conformação. Ou se algumas variáveis fossem modificadas: seus filhos fossem casados, ou os próprios informantes fossem divorciados, possivelmente os resultados teriam sido diferentes, devido às novas fronteiras do grupo. Caso outra sinagoga fosse utilizada como elemento básico para a seleção dos informantes, o resultado apresentaria outra feição. Se a sinagoga fosse mais ortodoxa ou mais liberal, qual seria o impacto dos valores culturais dos informantes em seus padrões de consumo? Possivelmente seriam diferentes, mas em que intensidade? Assim como outros grupos étnicos podem ser selecionados para futuras Dissertações. Grupos 89 segmentados em função do país de origem de seus integrantes, de suas religiões, de seus bairros, de suas cidades, de seus hobbies, de suas profissões, entre outras variáveis. Portanto neste capítulo foram apresentadas possíveis variações dos grupos culturais a serem analisados através de pesquisa etnográfica. A finalidade é a de se estimular futuros estudos que possam estar contribuindo para a compreensão do fenômeno do consumo, fundamental nos tempos em que vivemos e intrinsecamente ligado aos nossos valores culturais. 90 7 BIBLIOGRAFIA ARNOULD, E., WALLENDORF, M. Market-oriented ethnography: interpretation building and Marketing strategy formulation. Journal of Marketing Research, Vol.31, November 1994, p.484-504. ATKINSON, P., HAMMERSLEY, M. Ethnography and participant observation. In: DENZIN, N., LINCOLN, Y. (Org.) Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 1994. BARNAVI, E. (Org.) A historical atlas of the jewish people – from the time of the patriarchs to the present. New York: Schocken Books, 1992. BAROUKH, E., LEMBERG, D. Enciclopedia practica del judaismo. Barcelona: Ediciones RobinBook, 1995. BELK, R. 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Um dos mais importantes e emblemáticos rituais da cultura judaica. Após a leitura da Torah (livro do Velho Testamento) na sinagoga, a família e os amigos são convidados para uma festa de confraternização. Há uma versão feminina, o Bat-Mitzva, realizada aos doze anos de idade. Brit-Milá – Cerimônia de circuncisão. Há um ritual religioso, com rezas específicas. O médico que realiza a intervenção cirúrgica é denominado mohel, e em pequenas comunidades é uma figura bastante popular. Chamsa – Talismã em forma de mão. Utilizado desde a antiguidade pelos fenícios, gregos e romanos, como um meio de se afastar os maus-olhados. Posteriormente incorporado pelos judeus. Chasán – Religioso que comanda os cânticos e rezas durante as cerimônias nas sinagogas. Clienteltic – Palavra em ídiche derivada do termo “cliente”. Denominação dos judeus que trabalhavam com vendas à prestação, batendo de porta em porta e se relacionando comercialmente através da venda a crédito. Tratava-se de uma profissão bastante difundida entre os imigrantes recém-chegados durante a primeira metade do século XX no Brasil. 95 Gói – Todo aquele que não é judeu, não importando qual seja sua religião, raça ou crença. Termo bastante utilizado pela comunidade judaica. Ídiche – Dialeto semelhante ao alemão, com forte influência do idioma hebraico. Bastante popular entre os judeus ashkenazim do Leste Europeu. Iom Kipur – Possivelmente o dia mais sagrado para os judeus: dia do perdão e da expiação do povo, no qual há um jejum de 24 horas. Trata-se de uma festa com data móvel, com freqüência anual. Kipá – Pequeno solidéu utilizado para cobrir a cabeça. Utilizado sempre que o judeu encontra-se na sinagoga, como símbolo de respeito ao ambiente religioso. Kosher – Adjetivo que classifica os alimentos preparados de acordo com as leis dietéticas de Moisés, sendo ritualmente puros. Maguen David – A Estrela de David. Trata-se de um hexagrama formado por dois triângulos eqüiláteros. Um dos símbolos gráficos da identidade nacional judaica mais conhecidos no mundo. Menorah – Candelabro de sete braços, utilizado em diversas cerimônias religiosas. Re-introduzida em 1948 (Proclamação do Estado de Israel) como símbolo nacional do povo judeu e da identidade de Israel. Mezuzá – Caixa tubular de madeira, vidro ou metal, contendo um pequeno pedaço de pergaminho. No mesmo há passagens bíblicas presentes em orações. Pregada numa posição inclinada na parte superior direita das portas das residências. Mitzvá – Palavra do hebraico que significa ‘preceito’. São ao todo 613 mandamentos fundamentais que representam a estrutura de toda a moral judaica. Estabelece normas de conduta em todos os momentos da vida do homem, quer nas relações com seus semelhantes, quer nas relações com Deus. Pessach – A páscoa judaica. Festividade que celebra o fim da escravidão do povo judeu no Egito. A palavra significa ‘travessia’ e evoca a milagrosa passagem em meio ao Mar Vermelho. Tal festa possui numerosos símbolos e tradições. 96 Rosh Hashaná – Ano novo judaico. Festividade na qual se comemora a criação do mundo. O ápice da festa é quando o rabino toca o shofar, espécie de trompa feita a partir do chifre de carneiro, que representa o despertar das almas. Sefaradim – Ver o termo ‘ashkenazim’. Shabat – Dia sagrado, reservado para reflexões de ordem religiosa. Dia no qual Deus descansou após criar o mundo. A cerimônia inicia-se após o pôr-do-sol, todas as sextas-feiras, quando milhões de judeus em todo o mundo rezam nas sinagogas ou em suas próprias casas. Termina quando surgem as primeiras estrelas no sábado. Sucot – Festa anual na qual constroem-se estruturas com bambus, galhos e folhagens, lembrando os tempos difíceis da Diáspora no Egito. Talit – Uma espécie de xale de orações, que fica por cima das vestes habituais. Deve ser utilizado após o cumprimento do Bar-Mitzva, sempre durante as orações, tanto nas residências quanto nas sinagogas. Tefilim – Dois cubos com tiras de couro preto. Dentro dos cubos encontram-se depositadas tiras de pergaminho. Um é colocado na cabeça e o outro enrolado no braço esquerdo. O ritual consiste em colocá-los diariamente, antes das rezas matutinas. Torah – Um dos livros sagrados do Velho Testamento. Palavra que significa ‘ensinamentos’, tendo sido derivada do termo Pentateuco (do grego ‘cinco pergaminhos’), pois engloba os cinco livros de Moisés (Gênese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Yeshivá – Escola de formação de rabinos (líderes religiosos judaicos). O curso é extenso e fornece uma visão não somente religiosa, como também humanística.