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ANAIS DO SEMINÁRIO
INTERNACIONAL DE PRÁTICAS
RELIGIOSAS NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
Laboratório de
Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR)
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
20 a 22 d e s et em bro
2016
UMA ANÁLISE SOBRE O EVANGELHO DE MATEUS: A
RETÓRICA ANTIJUDAICA NO CRISTIANISMO ANTIGO NO
SÉCULO I D.C.
Kettuly Fernanda da Silva Nascimento dos Santos (UEL-PG) 1
13
Resumo: Este trabalho tem por objetivo desenvolver uma análise sobre o Evangelho de Mateus, o qual está
inserido num quadro de estudos relacionados à formação da identidade cristã a partir de uma retórica antijudaica.
Nele tem se voltado os olhares para o processo de separação do ‘judaísmo antigo’. O trabalho tem grande
interesse em identificar as circunstâncias da constante denuncia sobre a ‘Hipocrisia’ da Elite judaica, assim como
também busca investigar se estas denúncias se referem realmente aos escribas e fariseus ou se são ataques à
própria comunidade cristã. A comunidade mateana deve ser vista sob um olhar diferente das demais
comunidades cristã, ela é constituída por uma maioria de judeus convertidos a nova fé que aceitou a Cristo como
o Messias enviado ao povo de Israel. Onde acreditam que Jesus não suprime a Lei mosaica, mas deseja torná-la
perfeita, ou seja, levar a sua observância a perfeição. Portanto, a pesquisa será desenvolvida conduzindo a
análise sobre a formação da identidade cristã a partir da comunidade mateana. Pensando que a identidade do
indivíduo é construída a partir da sua relação com o outro, em que características são adquiridas ou repelidas
durante a formação de sua identidade, desta forma buscando identificar qual a importância da relação com os
judeus para a formação da identidade desta comunidade.
Palavras-Chaves: Identidade. Hipocrisia. Judeus. Cristã.
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objeto, desenvolver uma análise sobre a formação da
identidade da comunidade cristã do Evangelho de Mateus a partir da retórica antijudaica. Visa
também identificar neste discurso os ‘Hipócritas’ mencionados na fonte e que utilizam desses
ataques para construir uma identidade religiosa na fé em Jesus Cristo como o Messias.
O Evangelho de Mateus está inserido num quadro de estudo relacionado à
formação da identidade cristã a partir de uma retórica antijudaica e que volta seu olhar para o
processo de formação do movimento cristão a partir da separação do judaísmo antigo. Procura
identificar à constante denuncia da ‘Hipocrisia’ dos escribas e fariseus, questionando a quem
realmente é direcionada estas denúncias, pois o autor do evangelho apontaria a elite judaica
como possíveis corruptores da Lei e utilizaria a figura de Jesus Cristo para legitimar a
comunidade cristã como um grupo eleito para levar a observância da Lei mosaica à perfeição.
Desta forma, os documentos cristãos dos séculos I d.C. nos quais é apresentada
1
Graduada em História pela UEL, Especialista em Regiões e Religiosidades também pela UEL, atualmente é
aluna regular do Programa de Pós-Graduação no Mestrado em História Social. Vinculada a Universidade
Estadual de Londrina. E-mail de contato: [email protected]
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
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uma forte crítica aos judeus e aos ritos religiosos judaicos devem ser analisados como forma
de buscar compreender a questão da judaização que ocorreu no interior das comunidades
cristãs, percebendo que as identidades são mutáveis e que possuem um aspecto relacional.
Isso nos permite compreender o desenvolvimento das identidades no curso da história, pois as
relações sociais na antiguidade são mais fluidas do que antes se imaginava.
A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ A PARTIR DO EVANGELHO DE
MATEUS
O movimento cristão, desde os seus primórdios, mostrou se caracterizado por
diversas percepções. Sua matriz judaica seria uma das principais fontes de discussões dentro
das comunidades – principalmente através da retórica antijudaica, que encontraria neste
caminho a fonte de discurso para a formação da identidade cristã, ora usando o judaísmo
como exemplo de condutas religiosas que os “filhos” de Deus não deveriam seguir, ora
utilizando um discurso de que a comunidade cristã seria o povo que levaria a observância
correta de uma Lei corrompida pelos fariseus e sacerdotes – o que permite pensar em um
cristianismo plural e não singular, devido à multiplicidade comportamental das comunidades
(CHEVITARESE, 2011, p. 22).
Pensando na estrutura particular em que essas comunidades se reuniam. Essas
pequenas comunidades tendiam a se verem como detentoras da verdadeira mensagem de
Jesus o Messias renascido. “Quando, no contexto interno, são externadas visões dissonantes e/
ou contatos externos são estabelecidos entre diferentes comunidades cristãs, identifica-se
rapidamente o aparecimento de alteridades” (CHEVITARESE, 2011, p. 22).
O cristianismo surgiu no Mundo Antigo como um movimento messiânico judaico,
tendo a sua atuação sustentada pela cultura e pela religião judaica. As tensões existentes entre
cristãos e judeus não devem ser reduzidas apenas à rejeição do Cristo como o Messias, mas
cristãos gentios estariam se apropriando de símbolos judaicos com o intuito de criar sua
própria identidade religiosa. A partir desta reflexão devemos perceber que a comunidade
cristã não deve ser tratada como um grupo homogêneo, mas que existe uma pluralidade de
práticas comunitárias, cúlticas e de expressões religiosas que marcam o cristianismo primitivo
com fortes tensões e negociações (NOGUEIRA, 2009, p. 131-138).
Nesse contexto, é possível identificar a comunidade do Evangelho de Mateus, que
possuía uma maioria de fiéis judeus cristãos (judeus convertidos a mensagem de fé em Jesus
como Messias), que se difere da comunidade do Evangelho de Lucas ou ainda as
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comunidades que foram fundadas através do trabalho missionário do apóstolo Paulo, onde se
encontrava uma maioria de fiéis gentios convertidos (aqueles que não eram judeus de
nascimento). A comunidade mateana usava o discurso de que não queria abandonar as
observâncias da Lei, mas que desejavam levá-la a perfeição.
As comunidades cristãs primitivas se reuniam na maioria das vezes em casas
particulares. A estrutura local dos grupos cristãos estava ligada ao que comumente era
encarado como uma unidade básica da sociedade (MEEKS, 1992, p. 122). A casa como local
de encontro permitia que se estabelecessem algumas privacidades, com certo grau de
intimidade e estabilidade para as reuniões.
Esses locais privados podem ter propiciado o surgimento de grupos judaizantes
que passam a exigir o retorno das práticas religiosas judaicas (como é o caso da comunidade
do Evangelho de Mateus). Com a privacidade das reuniões a comunidade mateana, que era
formada por uma maioria de judeus convertidos a fé em Cristo como o Messias, pode ter
alcançado através de discussões sobre o que acreditava ser o certo para servir a Cristo. Um
apoio para dar continuidade nas antigas práticas religiosas, possivelmente em decorrência do
contexto vivenciado por essa comunidade no final do século I d.C..
O Evangelho de Mateus é um livro que foi escrito provavelmente em 80 a 90 d.C.
e nele se encontra a mensagem de vida deixada por Jesus para os cristãos. O livro também é o
mais importante dos evangelhos para a igreja cristã. Nele a Igreja tem se debruçado e
utilizado a mensagem de Jesus como instrumento para o ensinamento doutrinal – “[...] uma
Igreja construída sobre a rocha contra a qual as portas do inferno não prevaleceriam. [...]”
(BROWN, 2012, p. 261).
Acredita-se que o evangelho tenha sido composto em grego e o autor
demonstraria em sua composição grande habilidade linguística (no que se refere ao hebraico e
o aramaico) que tornaria possível apontar para uma educação na diáspora. A autoria do
Evangelho de Mateus é desconhecida, entretanto, acredita-se tratar de uma testemunha não
ocular e de origem gentílica devido a alguns erros referentes a indicações encontradas ao
longo do texto que não teria ocorrido se tratasse de um autor que fosse judeu de nascimento,
“[...] como a junção que o evangelista faz dos fariseus e saduceus, por quatro vezes, no
capítulo 16, como se eles tivessem o mesmo ensinamento (Mt 16:12). No entanto, tal juntura
pode simplesmente ser um modo de reunir os inimigos de Jesus. [...]” (BROWN, 2012, p.
310).
Raymond E. Brown (2012, p. 311), faz uma discussão mostrando que os escritos
de Mateus estariam ligados á Síria, especificamente à Antioquia, pois há algumas sugestões
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
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ao longo do texto e alguns argumentos referenciando a ‘cidade’ que sugerem que Mateus seria
usado como o evangelho de uma Igreja cristã importante, numa cidade como Antioquia. Em
Mt 4:24 lê-se:
24
Sua fama espalhou-se por toda a Síria, de modo que lhe traziam todos os
que eram acometidos por doenças e atormentados por enfermidades, bem
como endemoninhado, lunáticos e paralíticos.
Para sustentar este argumento, Raymond Brown (2012, p. 312) mostra que o
Evangelho de Mateus estaria sendo direcionado a princípio para uma Igreja de judeus cristãos,
mas que seus caminhos estariam sendo guiados em direção aos gentios. Se pensarmos desta
forma poderíamos encaixar o argumento de Brown sobre a cidade de Antioquia, pois ali se
encontravam mais judeus do que em qualquer outro lugar da Síria. Portanto, Antioquia seria o
lugar para encaixar o relacionamento instável existente entre judeus e judeus cristãos como é
encontrado em Mateus, onde a Lei é utilizada como corretivo a comunidade.
No Evangelho de Mateus, o autor afirma ao longo do texto através da figura de
Jesus Cristo a legitimidade da Lei, que ele não veio para suprimir-la, mas tornar correto o seu
cumprimento. Desta forma o autor transmite á mensagem atacando os fariseus, os saduceus e
os escribas como hipócritas, que transgrediam a lei deixada por Moisés e que tornava o fardo
do povo pesado. Entretanto, através de Jesus o evangelista mostra que enquanto os sacerdotes
se preocupavam com os cuidados externos da Lei, a comunidade cristã deveria compreender
que a sua observância vai além do Templo, visa também uma preparação interiorizada ao
dizer, “[...] misericórdia é que eu quero e não sacrifício [...]” (Mt 12:7).
Os discursos antijudaicos apresentados ao longo do Evangelho de Mateus atacam
a elite judaica: os fariseus, saduceus e escribas constantemente como homens que
corromperam a Lei Mosaica apontando-os como “Hipócritas”. Que do Greco significaria
dissimulador, fingido e literalmente um ator, aquele que encobre suas ações do outro (Léxico
Grego-Português, 1993, p. 214). O ataque feito pelo evangelista teria como finalidade chamar
a atenção da comunidade mateana para que percebessem que o “verdadeiro povo de Deus”
deveria levar a observância da Lei a sua perfeição, pois essa elite judaica estaria cometendo
falhas nas observâncias ao se dedicarem a uma vida externa e menos espiritualizada, exibindo
uma falsa dedicação religiosa que teria o propósito de conseguir a obediência do povo através
das práticas religiosas.
Mateus em sua retórica antijudaica, por diversas vezes exemplifica a atuação dos
sacerdotes preocupada com manifestações externas, deixando claro sua postura ao falar do
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jejum, da esmola e da oração que devem ser feitas em segredo e não explícitas como fazem os
fariseus, saduceus e escribas a quem o autor chama de ‘hipócritas’. Em Mt 6:1-4 lê se quando
ensina a comunidade cristã a doar esmolas:
1
Guardai-vos de praticar a vossa justiça diante dos homens para serdes vistos
por eles. Do contrário, não recebereis recompensa junto ao vosso Pai que
está nos céus. 2Por isso, quando deres esmola, não te ponhas em publico,
como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de ser
glorificado pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua
recompensa. 3Tu, porém, quando deres esmola, não saiba tua mão esquerda o
que faz a tua direita, 4para que tua esmola fique em segredo; e o Pai que vê
no segredo, te recompensará.
Sob o argumento de serem os verdadeiros filhos de Deus, o evangelista leva a
comunidade cristã a se apropriar das práticas religiosas judaicas com o argumento de levar a
Lei para um cumprimento correto e digno, algo que não está sendo feito pelos sacerdotes. Em
Mt. 5:17-20, lê-se:
17
Não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas. Não vim revoga-los,
mas dar-lhe pleno cumprimento, 18por que em verdade vos digo que, até que
passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só virgula da Lei,
sem que tudo seja realizado. 19Aquele, portanto, que violar um só desses
menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será
chamado o menor do Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os
ensinar, esse será chamado grande no reino dos Céus. 20Com efeito, eu vos
asseguro que se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e a dos
fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.
A retórica antijudaica encontrada no Evangelho de Mateus, no ataque aos escribas
e fariseus pode ser interpretada não como um ataque direto a observância da Lei, mas a
atuação do homem sobre ela. A elite judaica corrompe a Lei e a vivencia de modo o tornar a
sua observância pesada e o seu cumprimento difícil, buscando somente o reconhecimento
carnal e não uma vida espiritual dedicada a Deus. Isso é identificado em Mt 23: 1-7, em que
se lê:
1
Jesus então dirigiu-se às multidões e aos discípulos: “2Os escribas e fariseus
estão sentados na cátedra de Moisés. 3Portanto, fazei e observai tudo quando
vos disserem. Mas não imiteis suas ações, pois dizem mas não fazem.
4
Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos homens, mas deles
mesmos nem com um dedo se dispõem a movê-los. 5Praticam todas as suas
ações com o fim de serem vistos pelos homens. Com efeito, usam largos
filactérios e longas franjas. 6Gostam do lugar de honra nos banquetes, dos
primeiros assentos nas sinagogas, 7de receber as saudações nas praças
públicas e de que os homens lhes chamem ‘Rabi’.
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
17
8
Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso
Mestre e todos vós sois irmãos. 9A ninguém na terra chameis ‘Pai’, pois só
tendes o Pai Celeste. 10Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é
vosso guia, Cristo. 11Antes, o maior dentre vós será aquele que vos serve.
12
Aquele que se exalta será humilhado, e aquele que se humilha será
exaltado”.
Enquanto questionamos se a preocupação com os cuidados da Lei remontam a
uma dificuldade em abandonar práticas religiosas. Que foram arraigadas no judeu cristão
antes da sua conversão a mensagem de fé anunciada por Jesus ou se essa permanência
significaria a falta de interesse em abandonar tais práticas, outro fator se apresenta e amplia a
discussão desta pesquisa. A comunidade cristã primitiva entraria a partir de 70 d.C. em
confronto com os fariseus, chegando ao ponto de sofrer perseguições, o que nos leva a pensar
que a permanência de algumas práticas religiosas seria uma maneira de passar despercebido
aos olhos dos outros, mas é também a partir deste momento que a comunidade cristã
questionaria sobre sua identidade religiosa e quais os caminhos que deviam seguir
(RICHARD, 1998, p. 32-44).
A guerra judaica contra Roma no ano 70 d.C. deixou Jerusalém arrasada, neste
cenário de destruição o único grupo judeu (os fariseus) que sobreviveu ao conflito, “[...]
empreende a tarefa de reestruturar a religião judaica em uma nova perspectiva: a prática dos
mandamentos da Lei. A leitura que ele fará é que a desgraça que se abateu sobre o povo judeu
foi provocada pela heterodoxia que permeava o judaísmo do Templo [...]” (GALLARDO,
1993, p. 59). Os rabinos farisaicos, com uma postura mais ortodoxa e impositiva fundarão a
Academia ou Sinédrio de Jâmnia ou Jabne, inclinando-se exclusivamente a comentar a Lei e é
sob este contexto que a comunidade cristã começaria a ter problemas (RICHARD, 1998, p.
41).
Sob o contexto de perseguição enfrentado pela comunidade judaico-cristã que se
desenvolvia depois da destruição do Templo de Jerusalém em 70 d. C., quando os fariseus
começaram a reestruturar o judaísmo a partir da Lei, Paulo Roberto Garcia (1996, p. 58- 66)
afirma que o texto do Evangelho de Mateus carrega em seus ensinamentos um pedido de
escolha para os cristãos, que a comunidade deveria escolher entre a fé oficial dos judeus (o
judaísmo rabínico) e a fé em Jesus e os seus ensinamentos. A escolha dos fiéis significaria
uma decisão sobre sua vida econômica, pois ao escolher seguir a Jesus Cristo estaria
escolhendo uma vida de pobreza e sem benefícios, mas estaria acima de tudo escolhendo
viver sob o manto da justiça divina.
No final do século I d.C., os cristãos já eram reconhecidos pelo Império romano
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
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como um grupo distinto ao dos judeus, começavam a ser perseguidos pela sua fé no Cristo, o
Império não via o movimento cristão com bons olhos, essa também poderia ser vista como
uma possível justificativa para ter levado muitos fiéis a dar continuidade nas práticas
religiosas da Lei mosaica, numa tentativa de passar despercebidos pelo governo romano.
Mesmo depois da Guerra Judaica de 70 d.C. os judeus conseguiram manter os privilégios
religiosos através do Fiscus Judaicus2, privilégios esses que não foram alcançados pelos
cristãos.
19
Segundo Pablo Richard (1998, p. 41), o Evangelho de Mateus pertence à terceira
geração do movimento cristão, que tem Antioquia como centro difusor da mensagem da Boa
Nova de Jesus. Nos anos em que o evangelho fora escrito a comunidade se encontrava na
orfandade, pois os primeiros discípulos e discípulas já haviam morrido. Enquanto os
discípulos ainda viviam, a mensagem de fé estava segura e garantida, mas com a morte dos
primeiros representantes da comunidade cristã essa segurança acaba sendo abalada, trazendo
para a comunidade uma urgência em colocar por escrito as boas novas anunciada por Jesus e é
na construção desses textos que se encontram a conduta de fé a ser seguida pelo cristão que
conduzirá ao Reino de Glória.
O texto mateano era dirigido a uma comunidade que se encontrava no período da
orfandade, portanto, era um período em que havia um aumento na adesão aos ensinos de
Jesus, um aumento na diversidade de interpretações sobre o seu ministério, além do
distanciamento temporal que facilitava os esquecimentos sobre os ensinos de Jesus, que
permitia a suavização de algumas recomendações ou o acréscimo nos textos. Para Elisa
Rodrigues (2010, p. 224), “[...] o conjunto dessas consequências foi fortalecido, ainda, pelas
questões sociais do período que requeriam direcionamento, especialmente as questões que
envolviam a discussão sobre identidade social e religiosa [...]”.
O movimento cristão, desde os seus primórdios, mostrou se caracterizado por
diversas percepções. No caso do Evangelho de Mateus a matriz judaica foi apresentada
principalmente através da retórica antijudaica, utilizando um discurso de que a comunidade
cristã seria o povo que levaria a observância correta a uma Lei corrompida pelos homens. Nos
permitindo pensar em um cristianismo plural e não singular, devido à multiplicidade
comportamental das comunidades.
Grande parte dos textos do Novo Testamento apresenta uma retórica antijudaica,
que visava criar em seus fiéis uma consciência cristã que seria baseada na vivência de fé; uma
2
Uma taxa per capita designada a todos os judeus que deveriam pagar ao Império Romano como punição a
Guerra Judaica e depois da queda do Templo de Jerusalém. (GOODMAN, 2010, p. 60-61)
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
esperança no retorno de Cristo o Messias para uma vida de gozo sem sofrimento na Canaã
Celeste. Segundo a retórica antijudaica para alcançar essa dádiva o cristão deveria manter se
firme diante das perseguições e não se deixar guiar pelo medo negando a verdadeira prática
religiosa. O cristão deveria seguir um caminho diferente dos judeus e estabelecer uma
identidade distinta destes, pois os judeus não teriam reconhecido a Cristo como filho de Deus
e desta forma teriam perdido o direito de serem chamados herdeiros do Senhor de Israel.
Entretanto, destoando destes textos do Novo Testamento e mostrando a
multiplicidade existente na formação da identidade cristã, o Evangelho de Mateus apresenta
um discurso com ataque aos escribas e fariseus. Explicitando que não se tratava de um ataque
direto a Lei, mas a atuação do homem sobre ela. Para o evangelista a elite judaica havia
corrompido a Lei e agiam de modo o tornar a sua observância pesada e o seu cumprimento
difícil, buscando somente o reconhecimento carnal e não uma vida espiritual dedicada a Deus.
A retórica utilizada pelo evangelista pode ser interpretado a partir do processo
discursivo através das relações sociais dos indivíduos, “[...] o discurso remete à determinadas
condições de produção que são a base do modo de produzir o discurso, não se tratando de
analisar um discurso como texto isoladamente [...]” (ALVES, 2011, p. 222). Desta forma é
possível interpretar o Evangelho de Mateus como sendo uma produção textual que visa
atender as necessidades de sua comunidade, visa adaptar o sujeito e a sua situação real. A
retórica é a fala ou a escrita que possui o intuito de levar o ouvinte a aceitar o ponto de vista
do orador.
O estudo do conceito de identidade de grupo – não sob o olhar da modernidade,
mas a partir da perspectiva de formação da comunidade cristã – é benéfico para esta análise,
pois permite perceber como se deu a construção das identidades judaicas e cristãs nos
contextos históricos particulares de onde provêm os textos antigos analisados e verificar como
se deu o surgimento das diversidades e das particularidades de cada grupo aqui analisado, pois
a ideia de identidade aparece como um sentimento de pertencimento e reconhecimento de
certas características de cada grupo.
Fredrik Barth (2011, p. 187) afirma, a partir do raciocínio antropológico, que as
variações culturais não são permanentes, visto que um grupo recebe influências de outro sem
ao menos perceber devido à relação existente em cada sociedade. Pois a etnicidade está
diretamente ligada à construção subjetiva da identidade na relação cultural compartilhada, é
uma relação onde o indivíduo se reconhece e se molda a partir da relação com o outro,
podendo ocorrer na relação dentro de um mesmo grupo ou até mesmo em uma relação social
mais ampla.
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
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Podemos perceber a partir da relação existente entre judeus e gentios na formação
da comunidade cristã que a ausência de uma mobilidade social em um território não impede
que se estabeleçam distinções étnicas. Segundo Barth (2011, p. 188), a mobilidade social
permite que ocorra “processo de exclusão e de incorporação” onde características discretas
são mantidas apesar das transformações sofridas pelo indivíduo ao longo de sua história de
vida e que, portanto, se mantêm as fronteiras étnicas. Porém, mesmo mantendo a fronteira
étnica, muitas relações sociais estáveis permanecem, pois para que se estabeleçam essas
fronteiras não há necessidade de se impor uma ausência de interação social. As diferenças
culturais podem permanecer apesar de todo o contato interétnico, a partir de uma interação
social.
As práticas culturais e crenças que se tornam símbolos de um determinado grupo
são resultados de experiências pessoais e práticas constantes; isso nos leva a perceber que esse
simbolismo inserido nos grupos étnicos refletem os interesses pessoais e as condições
imediatas do grupo (JONES, 2005, p. 35-37). Levando a perceber que as representações
discursivas e literárias da etnicidade e sua manifestação na prática social se encontram em
situação de oposição. O que nos permite levar toda essa discussão para as comunidades cristãs
primitivas, onde podemos dizer que a retórica antijudaica inserida nos textos cristãos não são
ataques a judeus, mas sim uma resposta ou uma justificativa para a insistência da observância
da Torá por parte dos cristãos. Atacar os judeus seria uma forma de mostrar aos cristãos os
problemas na observância da Lei enfrentada pelos judeus.
Entretanto, ao afirmarmos que a retórica antijudaica da obra está direcionada a
própria comunidade, não significa que não houvesse nenhum embate entre a comunidade
cristã e os judeus, apenas expõe uma dificuldade encontrada pela atual historiografia.
Estudiosos têm questionado a ausência dos judeus nas pesquisas historiográficas e levantam
suposições de que talvez exista um medo em colocar os judeus como perseguidores ou em
uma situação de confronto direto com as comunidades cristãs. Ainda alguns estudiosos
justificam através do “Holocausto” a ausência dos judeus nas pesquisas, afirmando que
colocá-los em uma pesquisa sobre a relação entre judeus e cristãos primitivos poderia ser
interpretado como antisemitismo.
CONCLUSÃO
A comunidade cristã do Evangelho de Mateus, como pode se observado, se
manifestava numa busca incessante em estabelecer-se como um grupo característico, que
In: Seminário Internacional de Práticas Religiosas No Mundo Contemporâneo (LERR/UEL), 4, 2016,
Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
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mantinha o posicionamento de levar a observância da Lei a sua plenitude, diferente da
maneira como os judeus observam, que visavam somente o respeito externo sem nenhuma
preocupação com a vida espiritual.
Desta forma deve-se considerar que, a elaboração do texto estava inserida em uma
realidade pluralista e diversificada no que se refere à cultura e suas fronteiras étnicogeográficas. Tornando necessário a identificação das matizes presentes no processo relacional
dos povos, nações e territórios que podem ter influenciado na elaboração dos escritos do Novo
Testamento (IZIDORO, 2008, p. 54).
Portanto, é possível concluir o trabalho relembrando o texto de Pedro Paulo
Funari, que partindo do pressuposto de que as pessoas de um mesmo grupo compartilham
valores dos que se sentem partícipes forma-se o conceito normativo de “pertencimento”.
Entretanto, o sentimento de pertencimento deve ser analisado com muito cuidado e não se
deixar guiar por uma generalização ou até mesmo tomá-lo como um sentimento único e
imutável, pois as pessoas se comportam de acordo com a situação a que são expostas e
guiadas por seus meios de representação, desta forma o pertencimento se torna múltiplo e
suscetível a mudanças. Nos permite pensar que, as práticas religiosas adotadas pela
comunidade do Evangelho de Mateus seria uma maneira se identificarem como um grupo, se
reconhecerem como uma comunidade com identidade que os definiria como legítimos filhos
de Deus (FUNARI; NOGUEIRA; COLLINS, 2010. p. 14).
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Londrina. Anais... Londrina: UEL, 2016.
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