A história do examinando Jurema Alcides Cunha INTRODUÇÃO A história e o exame do estado mental do paciente também constituem os recursos básicos de um diagnóstico e se desenvolvem, como outras interações clínicas, no contexto de uma entrevista (Strauss, 1999). Na realidade, compõem rotineiramente a avaliação clínica psiquiátrica. Num modelo psicológico, a história e o exame do paciente permitem a coleta de subsídios introdutórios que vão fundamentar o processo a que chamamos de psicodiagnóstico. Caracterizam, portanto, uma área de superposição profissional. Em muitos casos, a tarefa do psicólogo também vai se restringir à utilização desses recursos, dependendo das condições do paciente e/ ou dos objetivos do exame. Primeiramente, há pacientes que não são testáveis, dado o grau de comprometimento das funções do ego ou das funções cognitivas, pelo menos em determinadas fases da doença. Por outro lado, deve-se considerar que a maioria das técnicas e testes pressupõe alguma forma de comunicação intacta e um mínimo de condições de seguir instruções e de colaborar. Sem estarem preservadas essas condições, dificilmente um paciente será encaminhado a um psicólogo, exceto se este trabalha num contexto hospitalar ou em outros serviços de 6 saúde. Dessa maneira, quanto mais grave o estado do paciente, tanto mais o trabalho do psicólogo se assemelhará ao do psiquiatra. O objetivo de tal avaliação seria descritivo ou de classificação nosológica. Em segundo lugar, ainda dependendo dos objetivos, a tarefa do psicólogo pode se restringir à história e ao exame do paciente, sem a administração de testes, se se pretende apenas chegar a uma avaliação compreensiva com vistas a uma intervenção terapêutica imediata, ou a um entendimento dinâmico, para a identificação de conflitos e possíveis fatores psicodinâmicos. Assim, a avaliação deste tipo, feita pelo psicólogo, pode ter um caráter mais descritivo e formal ou mais interpretativo e dinâmico, conforme os objetivos do exame e a gravidade ou não do transtorno. Como história, pode-se compreender a história pessoal ou anamnese, a história clínica ou história da doença atual e, ainda, a avaliação psicodinâmica, que também explora a perspectiva histórica para entender uma problemática atual dentro de um contexto vital de desenvolvimento. Conseqüentemente, a distinção que se faz desses itens tem, primordialmente, um sentido didático, sendo também utilizada para sistematizar as informações, ou para organizá-las, na comunicação ao receptor dos PSICODIAGNÓSTICO – V 57 resultados. Da mesma forma, à medida que o paciente relata a sua história, o clínico tem condições de avaliar alguns aspectos que constam do exame do estado mental do paciente. Nesses dois recursos de avaliação, como salientam MacKinnon e Yudofsky (1988b), “existem várias áreas de superposição” (p.50). O primeiro contato com o paciente, por exemplo, permite não só descrever a sua aparência, como observar detalhes de seu comportamento, isto é, sobre atenção, concentração e pensamento, e até sintomas emergentes na história clínica podem ser relatados no exame. Da mesma maneira, a anamnese envolve um levantamento normativo do desenvolvimento, mas que, dependendo dos objetivos do exame, pode ser de pouca ou nenhuma utilidade se os padrões de comportamento emergentes ao longo da infância não forem focalizados em sua significação dinâmica. Na realidade, ao longo de sua experiência, o psicólogo vai se dar conta de que as várias perspectivas são áreas de informação tão integradas, que se torna mais econômico e produtivo não separá-las, na prática, completando os dados com perguntas suplementares, de forma que se termine com um registro sistemático de cada uma. Não obstante, é bom ter em mente que a avaliação deve ser feita com ênfases especiais, em sujeitos de faixas etárias diversas, como veremos mais adiante. HISTÓRIA CLÍNICA Por influência do modelo médico, a história clínica é muitas vezes chamada de história da doença atual. Porém, especialmente no caso do psicólogo, ocorre que muitos problemas com que se lida não podem ser categorizados como “doença mental”, ainda que envolvam uma sintomatologia que pode justificar uma intervenção clínica. A história clínica pretende caracterizar a emergência de sintomas ou de mudanças comportamentais, numa determinada época, e a sua evolução até o momento atual, que habitualmente é entendido como a ocasião em que o exame foi solicitado. 58 JUREMA ALCIDES CUNHA Eventualmente, o paciente não consegue determinar o início de seus problemas. Então, temos de examinar a sua história pessoal, de maneira a identificar quando ou como, a partir de um ajustamento global regularmente bom, começaram a se delinear dificuldades ou a se evidenciar comprometimentos em uma ou mais áreas de funcionamento social, profissional, acadêmico, etc. Da mesma forma, embora, teoricamente, a história clínica termine com o encaminhamento, há situações em que se registra uma continuidade, durante o processo psicodiagnóstico, apresentando-se fatos que devem ser incluídos neste item na redação do laudo. Freqüentemente, ao se levantar a história clínica, já se tem conhecimento das queixas, dos motivos que levaram à consulta, conforme informações prévias dadas por alguém ou discriminadas no encaminhamento. Mas sempre é importante ter a versão do próprio paciente. Há casos em que ele não se encontra preparado para o exame, e é conveniente explorar as circunstâncias em que foi tomada a decisão da consulta. Essa abordagem permite ao profissional antecipar dificuldades e proporciona-lhe indícios sobre temas mais delicados ou ansiogênicos para o paciente. Exploradas as circunstâncias do encaminhamento, parece importante registrar as queixas literalmente, mesmo que “ele negue absolutamente ter problemas ou faça afirmações ilógicas ou bizarras, porque a resposta dada revela se ele compreende o propósito do exame” (Detre & Kupfer, 1975, p.730). Se o paciente nega ter problemas, pode se tratar de uma posição defensiva, falta de insight, ou ele pode estar falando a verdade, se considerarmos que certos encaminhamentos ocorrem por pressão do meio ante comportamentos não aceitáveis convencionalmente ou, ainda, por intolerância dos familiares ante uma crise. De qualquer modo, as queixas, os motivos explícitos ou, até, a não-admissão de sintomas fornecem um ponto de partida. Sejam as preocupações próprias ou das pessoas com as quais o paciente convive, elas devem se associar a algumas mudanças no comportamento ou a sintomas. É preciso descrevê-los, procurando localizar no tempo o seu aparecimento, associá-los com as circunstâncias de vida no momento, analisando o seu impacto em diferentes áreas da vida pessoal ou dos demais, isto é, procurando avaliar a sua repercussão em atividades e relações. É claro que, aqui, também se consideram as perdas secundárias e os ganhos secundários, em comparação com o “ganho primário que resulta da significação inconsciente do sintoma” (MacKinnon & Yudofsky, 1988, p.58). Neste sentido, deve-se focalizar o meio familiar, social, ocupacional e/ou escolar (acadêmico). Muitas vezes, as mudanças que se manifestam no comportamento da pessoa, em diferentes ambientes ou grupos sociais, não só nos fornecem indícios preciosos sobre a gravidade do caso e sobre o grau incapacitante que assumiu, como também sobre o papel das mesmas em relação com as necessidades inconscientes, definindo a extensão e a especificidade de perdas e ganhos secundários. Determinado o início da história clínica e de seu curso, ainda é necessário um levantamento da sintomatologia e das condições de vida do paciente, no momento atual, em várias áreas, além da investigação de sua história psiquiátrica pregressa. No caso, é importante examinar as atitudes das outras pessoas, investigar a rede social com que conta para apoio, definir a sua situação funcional, se trabalha, e registrar as características de seu desempenho profissional e/ou acadêmico. Também é essencial uma exploração da área sexual, incluindo relações pré-matrimoniais, matrimoniais e extramatrimoniais, se for o caso. Devem-se considerar relações hetero ou homossexuais, quanto a dificuldades específicas na escolha de parceiros ou na própria relação, bem como a estabilidade ou não das ligações. É bom lembrar que se tais temas são às vezes trazidos espontaneamente, este não é sempre o caso, e, então, devem ser abordados pelo psicólogo com a mesma naturalidade com que trata de outros. Evidentemente, se o sujeito é do sexo feminino, devem ser introduzidos assuntos sobre menstruação ou menopausa. A condução da entrevista pode ser mais, ou menos, diretiva, dependendo de características do paciente e das preferências do psicólogo. Há muitos profissionais que esperam que o paciente forneça sua visão pessoal sobre seus problemas e vá escolhendo os temas sucessivos, que são complementados por perguntas específicas. Há outros profissionais que preferem dar início com perguntas abertas para passar depois a perguntas fechadas, fazendo uso também de perguntas em eco, pela repetição de palavras ditas pelo paciente, implicitamente incentivando-o a esclarecer melhor (Strauss, 1999). De qualquer modo, espera-se que o psicólogo encerre essa etapa com a convicção de que realmente foram abordados todos os pontos essenciais sobre a emergência da problemática e seu curso, com dados cronológicos. HISTÓRIA PESSOAL OU ANAMNESE A história pessoal pressupõe uma reconstituição global da vida do paciente, como um marco referencial em que a problemática atual se enquadra e ganha significação. Freqüentemente, a anamnese é delineada de forma mais sistemática e formal, produzindo um acúmulo de dados que não contribuem para o entendimento do caso. Um enfoque puramente normativo pode ter sentido quando há suspeitas de desvios de desenvolvimento numa criança. Caso contrário, muitas vezes, a série de dados, conseguidos exaustivamente, em busca de uma precisão cronológica, pode ser resumida, porque os dados são importantes, em vista de sua “possível conexão com a enfermidade corrente”, como lembram MacKinnon & Yudofsky (1988, p.17), criticando as deficiências no registro da história pessoal. Desta maneira, a história pessoal deve ser enfocada conforme os objetivos do exame e dependendo do tipo e da idade do paciente, o que vai se refletir, logicamente, na natureza e quantidade de dados que devem constar ou não do laudo. É praticamente impossível coletar dados completos sobre a vida de um paciente. Muitas vezes, também, ele não tem todas as infor- PSICODIAGNÓSTICO – V 59 mações necessárias (e se deve tentar usar fontes secundárias) ou as omitirá por motivos defensivos. Porém, no momento em que se tem a queixa e a história clínica, há condições para definir a estrutura da história pessoal necessária, considerando os objetivos do exame, o tipo de paciente e a sua idade. Se estamos lidando com uma criança cujo aproveitamento escolar é insatisfatório, temos de atentar para questões do desenvolvimento normativo. Entretanto, como tal desenvolvimento se deu num contexto familiar, além de dados cronológicos, devem-se explorar variáveis afetivas e sociais. Às vezes, importa pouco saber por quanto tempo o paciente foi alimentado ao peito sem ter uma noção sobre seus vínculos afetivos com a figura materna nessa época. Assim, é importante associar a perspectiva histórica a uma abordagem dinâmica. Por outro lado, dependendo da problemática e da estrutura de personalidade do paciente, certas áreas e certos conflitos deverão ser mais explorados do que outros, concentrando-se a atenção em certos pontos da vida do paciente que tenham probabilidade de fornecer explicações para a emergência e o desenvolvimento do transtorno atual. Conseqüentemente, a entrevista pode ser estruturada de forma diversa se o paciente apresentar sintomas obsessivo-compulsivos ou uma personalidade antisocial (MacKinnon & Yudofsky, 1988). A familiaridade com um enfoque teórico-psicodinâmico e com a técnica de entrevista em casos especiais é de especial importância para que a história clínica possa ser complementada pela história pessoal, como um marco referencial que lhe dê significação. Freqüentemente, o psicólogo segue um roteiro, que o ajuda a dar seguimento à sua investigação. Não estamos oferecendo exatamente um roteiro, mas apresentando tópicos que podem servir como pontos de referência para a exploração da vida do paciente. A maior ou menor ênfase a ser dada a cada tópico ou a forma de seleção das informações significativas têm que ver com o objetivo do exame, tipo de paciente e sua idade, ou, ainda, com “as circunstâncias da entrevista e da avaliação” (Strauss, 1999, p.574). 60 JUREMA ALCIDES CUNHA Contexto familiar Geralmente, é útil construir um genetograma, nem que seja de forma resumida, focalizando, principalmente, o núcleo familiar atual. Em alguns casos, é de interesse diagnóstico obter informações inter e transgeracionais (vide Capítulo 12, nesta edição). Deve-se procurar descrever o contexto familiar, por ocasião da concepção (ou da adoção da criança), especificando o status marital, as condições socioculturais (nível de instrução, nível socioeconômico, rede de apoio social, etc.), o clima das relações afetivas do casal ou da família, suas expectativas quanto à vinda de um bebê ou a existência de algum tipo de planejamento familiar, bem como as reações ante a gravidez. Por vezes, é conveniente registrar outros aspectos ou problemas que caracterizavam a vida familiar. História pré-natal e perinatal É importante descrever como transcorreu a gestação (ou o processo de adoção) do ponto de vista físico e psicológico. Não aceite simplesmente a classificação de “normal” (houve acompanhamento médico sistemático? prénatal?). Procure informar-se a respeito de aspectos nutricionais, doenças, acidentes, uso de drogas, ou, ainda, de fatos significativos na vida do casal, em especial para a mãe. Procure saber qual o estado psicológico da mãe, em termos de ansiedades, temores e fantasias e como isso repercutiu na vida do casal. Em muitos casos, é essencial se informar quando e como ocorreu o parto, isto é, se foi a termo, natural ou não, sobre o tempo de trabalho de parto e sobre problemas especiais. Procure saber das condições da criança ao nascer, sobre o Apgar e a necessidade de algum atendimento especial. Investigue as reações dos pais em relação ao bebê, quanto à sua aparência, sexo e estado geral e, também, informe-se sobre as experiências iniciais (sucção, deglutição, qualidade da relação mãe-filho, etc.). Verifique como os pais reagiram afetivamente às mudanças ocorridas pela inclusão de mais um membro na constelação familiar, pro- curando saber como a mãe amamentava a criança e qual a participação paterna ou de outras pessoas na nova rotina. A primeira infância (até os 3 anos) Nessa fase, é de especial importância a qualidade da relação materno-infantil, desde a ligação simbiótica primária, até a fase de separação-individuação, “que se estende dos doze-dezoito meses aos trinta e seis meses” (Mahler, 1983, p.8). Assim, a partir de perguntas sobre hábitos e problemas alimentares, podem-se explorar os contornos que assumiram as relações de objeto. Indícios significativos sobre a experiência afetiva podem ser encontrados exatamente nos problemas na amamentação ou nos sintomas exacerbados de cólicas. Também, “distúrbios precoces nos padrões de sono ou sinais de necessidades não satisfeitas, como bater com a cabeça nos objetos ou embalar o corpo continuamente, fornecem indícios sobre possível privação materna” (MacKinnon & Yudofsky, 1988, p.61). A ansiedade básica é de separação, de maneira que é importante investigar a acessibilidade da mãe e a disponibilidade de mães substitutas, o papel desempenhado pelas pessoas no lar (em termos de afeto ou disciplina), a qualidade dos cuidados em creches, bem como as reações da criança a estranhos ou a períodos de separação. A emergência de padrões de comportamento motores (e, mais especificamente, de manipulação e deambulação), de linguagem e sociais, como também de jogo, deve ser registrada e confrontada com as expectativas médias específicas para cada tipo. Embora tais aspectos normativos possam ser de ajuda, é essencial saber o quanto o ambiente foi estimulante para o desenvolvimento, como foram manejadas as tentativas frustradas, o quanto o meio parecia ansiogênico ou oferecia um clima de afeto. Os aspectos sociais podem ser bem explorados, principalmente pela análise das ligações afetivas com irmãos e na competição pelo afeto dos pais. Alianças e rivalidades devem ser examinadas, com ênfase na caracterização das respostas afetivas usuais do sujeito. Os jogos constituem uma área rica de informações, desde que o brinquedo era uma parte do próprio corpo ou um objeto simples, até se tornar o campo para a estruturação das relações sociais, explorando as respostas a frustrações e gratificações e as reações ao aprendizado rudimentar de normas. Como a criança se comportava em tais situações? Isolava-se ou buscava companhia? Ao se falar em aprendizado de normas, é essencial obter informações sobre o treinamento da higiene. A idade em que ocorreu o controle dos esfíncteres em geral é fácil de detectar. Mas explorar os conflitos entre obediência e oposição é mais complexo, embora tais experiências tenham repercussões importantes no desenvolvimento caracterológico do indivíduo. Sintomas, atitudes claramente associadas com esse período ficaram circunscritas à fase ou houve manifestações posteriores? Quais as atitudes dos pais ante tais ocorrências? Além disso, devem ser considerados sintomas especiais, como o de chupar o dedo, roer unhas, enurese, explosões de raiva, tiques, terrores noturnos, medos, etc. (Kaplan & Sadock, 1999b), especificando-se se ficaram restritos a essa fase ou tiveram continuidade, procurando-se examinar como foram percebidos e manejados pelos pais. Infância intermediária (3 a 11 anos) Geralmente é nessa fase que há um alargamento da rede de relações sociais da criança, pelo ingresso na “escolinha”. Como se deu a experiência de separação, em termos das ansiedades da mãe e do sujeito? Como foram se estruturando as suas relações no grupo de iguais? “Os primeiros padrões de auto-afirmação, impulsividade, agressividade, passividade, ansiedade ou comportamento anti-social freqüentemente emergem no contexto das relações escolares” (MacKinnon &Yudofsky, 1988, p.63). Paralelamente, no começo dessa fase, a criança vê-se às voltas com a experiência e os conflitos, associados com a situação de triangularidade edípica do lar, dos quais deve emergir com novos recursos de socialização e com PSICODIAGNÓSTICO – V 61 uma nova percepção de sua identidade. É importante analisar a sensibilidade do ambiente no manejo de suas expressões afetivas (de amor ou de ódio), identificar os responsáveis por recompensas ou castigos usuais, as circunstâncias em que ocorriam e evidências de sintomas específicos. O desempenho escolar é outro campo a ser investigado, considerando forças e fraquezas em determinadas áreas. Se houve fracassos, deve-se verificar se foram exploradas causas, que medidas foram adotadas e qual seu impacto sobre a criança. Mudanças na escola, necessidade de reforços para a aprendizagem e atividades extracurriculares (interesses específicos) podem ser importantes no contexto vital, pela consideração das épocas e circunstâncias em que ocorreram, bem como de sua inter-relação com outros eventos. “História de pesadelos, fobias, urinar na cama, provocação de incêndios, crueldade com animais e masturbação compulsiva é também importante no reconhecimento dos primeiros sinais de distúrbio psicológico” (MacKinnon & Yudofsky, 1988, p.63-64). Mas, igualmente, é essencial considerar a freqüência, a intensidade, as circunstâncias do aparecimento de sintomas, sua coexistência com outros sinais de perturbação ou a sua relação com situações críticas. Pré-puberdade, puberdade e adolescência Há quatro pontos importantes para os quais se deve dirigir a atenção do examinador. Em primeiro lugar, esta é a época em que as relações sociais vão se tornando mais importantes e devem ser consideradas, enfocando irmãos, colegas e amigos. Deve-se analisar a facilidade ou não de estabelecer e manter relações, avaliar a extensão da rede de amizades, o grau de intimidade nas amizades, identificar qual o papel desempenhado nos grupos, grau de popularidade e liderança, a tendência de participar de grupos que se envolvem em atividades não aceitas pelas normas sociais ou, ao contrário, de organizações com interesses artísticos, políticos, religiosos, etc. Também, neste item, devem ser examinadas caracterís- 62 JUREMA ALCIDES CUNHA ticas, conflitos na relação com pais, professores e outras figuras. Da mesma maneira, é conveniente identificar figuras idealizadas no contexto familiar ou na sociedade mais ampla, o que “fornece indícios valiosos com relação à auto-imagem idealizada do paciente” (MacKinnon & Yudofsky, 1988, p.64). Em segundo lugar, é importante registrar a história escolar, em termos de desempenho, aproveitamento, ajustamento, interesses específicos em relação às atividades curriculares e extracurriculares (cursos, passatempos, esportes, etc.), bem como as expectativas quanto ao futuro acadêmico ou profissional. Da mesma forma, é conveniente analisar fracassos, interrupções na vida escolar, por necessidade de trabalhar ou por outras razões, e o conseqüente impacto na vida do sujeito. Em terceiro lugar, é essencial considerar a área sexual, quanto às primeiras experiências, atitudes frente ao outro sexo, práticas sexuais (masturbação, jogos), escolha e variabilidade de parceiros, dificuldades, conflitos e as reações da família frente ao desenvolvimento sexual (preparação para menarca, esclarecimentos necessários, precauções a serem tomadas, etc.). Em quarto lugar, aparecem problemas específicos, com repercussões de ordem emocional, física ou social. As questões psicodinâmicas típicas da fase devem ser examinadas, como também a presença de sintomas em uma ou mais áreas de funcionamento (Wilson Jr., 1971), o que será considerado mais especificamente adiante. Problemas comuns são sentimento de inferioridade, muitas vezes se relacionando com a aparência, comportamentos de atuação (fugas de casa, infrações legais, uso, dependência e abuso de drogas ou álcool, etc.). Além desses quatro pontos importantes (como em outros períodos do desenvolvimento), não se pode deixar de investigar a ocorrência de doenças, acidentes ou de experiências comuns. Idade adulta Os principais temas a serem abordados incluem a história e a situação ocupacional, as relações sociais, a área sexual, a história conjugal e as atitudes frente a mudanças ocorridas na vida. A história ocupacional pode ser investigada em continuidade às expectativas do adolescente com relação ao futuro acadêmico e/ou profissional, examinando-se a concretização ou não dos planos prévios, a escolha profissional, a preparação e o treinamento para o trabalho atual, êxitos e fracassos (número de empregos, estabilidade ocupacional, fatores positivos ou negativos associados com mudanças de emprego ou da ocupação), relações com chefias, colegas e subordinados, bem como o grau de satisfação quanto ao status profissional alcançado. Deve-se incluir uma análise da situação ocupacional atual (emprego, desemprego, subemprego, em benefício), das condições financeiras do paciente e do impacto de seus problemas atuais sobre a sua situação ocupacional e financeira. Ao examinar as relações sociais, é importante não só aquilatar a extensão do círculo de amizades, da rede social que conta como apoio (parentes, amigos, etc.), mas também aferir a qualidade de seu relacionamento, a duração e a profundidade de suas relações interpessoais. Aqui, convém chegar a um entendimento dos motivos subjacentes que levam o paciente a escolher e manter determinados tipos de relacionamento ou as dificuldades e problemas para o estabelecimento e manutenção de relações ou, ainda, as dificuldades para compartilhar idéias, interesses e afetos com os demais. A área sexual pode ser explorada, até certo ponto e em certos casos, junto com a história conjugal, embora deva incluir experiências (escolha de parceiros, troca de parceiros, práticas sexuais, etc.) e problemas pré-conjugais, bem como sintomas de disfunção sexual (frigidez, ejaculação precoce, etc.), continuando-se com a análise do ajustamento sexual do casal (características da relação, preferências, freqüência e grau de satisfação dos parceiros), considerando-se também arranjos maritais homossexuais e experiências e/ou ligações extramatrimoniais (bem como seus efeitos sociais e psicológicos para a relação do casal). Todavia, a história conjugal deve descrever também o início e a evolução da vida matri- monial, abrangendo áreas de satisfação e insatisfação, de atrito ou concordância, em termos da rotina cotidiana e em relação à educação e outros aspectos da vida dos filhos. Por último, a história da vida adulta deve se deter na análise do enfrentamento de mudanças e crises ocorridas ao longo da vida. Aqui, devem-se incluir as reações, as atitudes e os ajustes ocasionados pelo nascimento e crescimento dos filhos, por doenças, acidentes, mortes de membros da família, por mudanças drásticas na área profissional, social ou financeira, pelo casamento dos filhos, nascimento de netos, pela ocorrência da menopausa, aposentadoria, etc. Em outras palavras, é importante verificar como o sujeito lidou com situações críticas e fatores estressantes. As maneiras típicas de lidar com o estresse são essenciais para o seu entendimento psicodinâmico. Fontes subsidiárias Como já foi referido, nem sempre o paciente dispõe de todos os dados. Mesmo quando o paciente é adulto, em vista da gravidade de seu transtorno, muitas vezes a história deve ser complementada por um exame objetivo, através da entrevista com um familiar ou pessoa de seu convívio, como se verá mais adiante. Eventualmente, uma entrevista conjunta com todos os membros da família é fundamental para uma compreensão da dinâmica familiar, tanto no caso do paciente adulto, como adolescente ou criança. Também, em muitos casos, são, às vezes, de muita valia resultados de exames anteriores, realizados por médicos de várias especialidades, psicólogos, etc., bem como pode ser de interesse o exame de material resultante da produção espontânea do paciente, de caráter literário, artístico, etc. No caso do adolescente, dependendo dos objetivos do psicodiagnóstico, há profissionais que abrem mão da entrevista com pais ou responsáveis. Entretanto, quando se pretende um entendimento mais global de um sujeito que está ultrapassando uma crise de desenvolvi- PSICODIAGNÓSTICO – V 63 mento, tal entrevista pode ser essencial para analisar como o sujeito enfrentou e ultrapassou as crises psicossociais pré-adolescentes, bem como para obter dados sobre o seu manejo das questões psicodinâmicas sintônicas com a fase em que se encontra. Como material suplementar, além dos citados em relação ao paciente adulto, podem ser utilizadas fontes de informações da escola (boletins, entrevistas ou contatos telefônicos com psicólogos, orientadores, professores, etc.), diários ou outras produções espontâneas. No caso de parecer pertinente, pode-se utilizar material de produção infantil, como dados ilustrativos das fases evolutivas precedentes. Em relação à criança, a entrevista com a mãe e, eventualmente, com outros familiares, especialmente o pai, torna-se essencial, pois constituirá realmente a fonte primária de dados, tornando-se quase sempre a própria criança a pessoa que poderá complementá-los. No entanto, há fontes subsidiárias importantes, desde o álbum do bebê, gravações em vídeo, fotografias, desenhos, cadernos escolares, até entrevistas ou contatos telefônicos com pessoas que atendem ou atenderam a criança, seja de forma sistemática (professores, fonoaudiólogos, pediatra, etc.) ou assistemática (especialistas na área médica), sendo também eventualmente úteis laudos médicos ou psicológicos anteriores. Pode-se ainda acrescentar o recurso da observação do comportamento da criança no lar ou em outras situações. AVALIAÇÃO DINÂMICA A não ser em casos muito específicos, em que o objetivo diagnóstico é bastante circunscrito, a avaliação dinâmica é realizada geralmente integrada com a história, buscando-se uma relação entre a pessoa com seus problemas específicos atuais e as experiências de sua vida passada. Pretende-se colocar a problemática presente numa perspectiva histórica, que permita compreender o transtorno dentro de um processo vital, em um contexto temporal, afetivo e social, com base num quadro referencial teórico. Mas é importante sublinhar com Gab- 64 JUREMA ALCIDES CUNHA bard (1998) que “uma entrevista dinâmica não é uma sessão de psicanálise” (p.64). Trata-se de um modo específico de compreender os fatos. Desse modo, não se analisam os efeitos especiais de um e outro acontecimento, como também suas interações. Bellak e Small (1980) exemplificam: “a perda da mãe na infância do paciente deve ser posta em relação com a chegada anterior de um irmão e com a ausência prévia e prolongada do pai no lar” (p.51). Os acontecimentos também devem ser entendidos em função da época em que ocorreram, pois a sua repercussão psicodinâmica pode ser intensificada em meio a uma crise de desenvolvimento, por exemplo, e eventualmente agravada por vulnerabilidade no desenvolvimento anterior. Devemos lembrar, por outro lado, que “todo comportamento é uma tentativa de adaptação, e a desadaptação atual, que traz o paciente a nós, está baseada em grande parte em modos aprendidos mais antigos de se adaptar aos problemas” (p.51). Como os padrões psicodinâmicos tendem a se repetir, devemos entender a situação atual em termos de denominadores comuns, na vida do paciente, ou, mais especificamente, no conteúdo de eventos perturbadores e de reações passadas correlatas. Isso significa que, a partir do quadro atual do paciente, se pode levantar uma série de hipóteses etiológicas, com base em pressupostos teóricos, o “que deve ser justificado por dados históricos” (p.53). Neste processo, partimos de queixas, identificamos conflitos, pesquisamos causas, interrelacionamos conteúdos, reunindo e integrando informações que embasam o entendimento dinâmico no fluxo da história do paciente. Enfoque especial no caso do adolescente Considerando que o paciente adolescente atravessa uma crise de desenvolvimento, sua problemática pode ser entendida dentro de um esquema multiaxial, inspirado numa classificação diagnóstica de crise da adolescência, proposta por Wilson Jr. (1971) e baseada na linha teórica de Erikson. Embora esta seja uma abor- dagem bastante antiga, ainda parece útil, do ponto de vista didático. No Eixo I, é examinada a problemática do paciente, em função das questões psicodinâmicas da fase, categorizando-se a crise da adolescência em cinco classes. No Eixo II, verificase a existência de vulnerabilidades prévias no desenvolvimento psicossocial, com a presença ou não de sintomas anteriores à adolescência. No Eixo III, investigam-se sintomas de mau funcionamento em seis categorias ou áreas (afetiva, perceptual, cognitiva, somático-visceral, integrativa e societária). As questões psicodinâmicas sintônicas com a fase adolescente têm que ver com: a) impotência vs. onipotência; b) dependência vs. independência; c) altruísmo vs. narcicismo; d) passividade vs. agressão; e) femininidade vs. masculinidade. As vulnerabilidades pré-adolescentes consideradas são: a) sentimento de confiança vs. desconfiança; b) autonomia vs. vergonha e dúvida; c) iniciativa vs. culpa; d) operosidade vs. inferioridade. Tais vulnerabilidades podem ocasionar distorções em nível de ego, ideal do ego e superego. Para este enfoque, o clínico deve estar bem familiarizado com a linha teórica de Erikson (1971) sobre desenvolvimento, abordando a coleta de dados históricos sob este prisma. Já para o Eixo III são utilizados dados do exame do estado mental do paciente. Qualquer problemática do adolescente pode se enquadrar em uma das cinco classes seguintes: Classes Crise da adolescência I Vulnerabilidades préadolescentes Sintomas pré-adolescentes Questões psicodinâmicas da adolescência Mau funcionamento de uma ou mais áreas II III IV V Não Não Sim Sim Sim Não Não Não Sim Sim Sim Sim Sim Sim Não Não Sim Sim Sim Sim Vemos, assim, que, na Classe I, a problemática justifica-se exclusivamente pelo enfrentamento das questões sintônicas com a fase, e, provavelmente, o encaminhamento pode ser atribuído às dificuldades da família em tolerar ou manejar uma reação sadia. Os diagnósticos nos Eixos II e III são dispensáveis. O exame pode se restringir a esta etapa. Um psicodiagnóstico completo (com todos os passos) só seria indicado para confirmação da hipótese de categorização na Classe I. No caso, o início da “história clínica” coincidiria com a emergência de mudanças associadas com a fase. Na Classe II, o ponto focal da problemática é constituído pela confrontação com as questões psicodinâmicas da fase, que é complicada pela emergência de sintomas, na adolescência, que permitem um diagnóstico também do Eixo III, mas não no II. A história clínica tem início no aparecimento de sintomas, dentro da crise adolescente. Na Classe III, há problemas associados com as questões psicodinâmicas da fase, que são complicadas por vulnerabilidades anteriores, que podem ter causado distorções estruturais na personalidade, mas os sintomas só se evidenciam no enfrentamento da crise da adolescência. Justifica-se um diagnóstico também no Eixo II e no III. A história clínica tem início na emergência dos sintomas, dentro da adolescência, mas o entendimento dinâmico deve associar a problemática atual com os conflitos oriundos da crise pré-adolescente, que foi mal ultrapassada. Na Classe IV, novamente há problemas, associados com as questões psicodinâmicas da fase, mas vinculados à vulnerabilidade anterior, que pode se relacionar com distorções estruturais e ocasionou sintomas prévios, que podem ter sido tolerados antes, mas, manifestando-se na adolescência de forma exacerbada ou diversa, tornam-se fonte de preocupação. Justifica-se o diagnóstico também nos Eixos II e III. A história clínica tem início por ocasião da emergência dos primeiros sintomas, antes da adolescência, na crise ou crises mal ultrapassadas, que devem ser consideradas no entendimento psicodinâmico. Na Classe V, os problemas associam-se com crise ou crises anteriores à adolescência, levando a prováveis distorções estruturais e à emergência de sintomas prévios e não permitindo PSICODIAGNÓSTICO – V 65 o enfrentamento das questões psicodinâmicas da adolescência, isto é, o paciente não chegou a se “matricular” na adolescência. Justifica-se o diagnóstico também no Eixo II e no Eixo III. A história clínica tem início por ocasião do aparecimento dos primeiros sintomas, em fase anterior à adolescência, e o entendimento dinâmico deve abranger a crise ou crises mal ultrapassadas. Dessa maneira, vemos que um esquema teórico pode fornecer um embasamento, não só para a compreensão da problemática atual, como pode permitir que o clínico se situe no enfoque adequado da história clínica e no manejo da avaliação dinâmica. Enfoque especial no caso da criança No caso da criança, como no que se refere ao adolescente, a perspectiva do desenvolvimento é crucial, o que tem duas repercussões essenciais. Em primeiro lugar, a precisão cronológica dos dados da anamnese é muito mais importante do que em outras fases, porque podem se evidenciar desvios no desenvolvimento por atrasos na emergência de certos padrões de comportamento que podem estar diretamente relacionados com a problemática atual. Em segundo lugar, é extremamente importante que haja uma abordagem dinâmica dos fatos do desenvolvimento para permitir uma dimensão mais profunda na compreensão do caso. Na prática, porém, é recomendável sobrepor esses enfoques, na entrevista, diferenciando-os, depois, no laudo, se for o caso. Para a coleta de dados, contamos fundamentalmente com as informações da mãe, e pode-se iniciar pela queixa, procurando-se ter 66 JUREMA ALCIDES CUNHA uma percepção da sintomatologia atual, que serve como referencial para identificar conflitos ou áreas de desenvolvimento, que devem ser mais detidamente explorados. Não obstante, embora a maior densidade dos dados seja obtida por entrevista com a mãe, é bastante elucidativo ter a versão da própria criança. Além disso, em muitos casos, recomenda-se a entrevista lúdica (vide Capítulo 10, nesta edição) para a obtenção de indícios, que podem alargar e aprofundar o entendimento dinâmico. Como foi salientado em relação ao adolescente, é importante examinar o enfrentamento das questões psicodinâmicas da fase em que a criança se encontra, tentando determinar se os problemas estão circunscritos a ela. Caso contrário, é importante analisar a sua relação com fases anteriores, que podem ter ou não uma vinculação causal com os conflitos atuais, havendo ou não manifestações sintomáticas prévias. Por exemplo, a criança pode estar enfrentando mal a crise edípica, e seus sintomas podem se explicar por vulnerabilidade na fase anal, cujos conflitos explicam os mecanismos obsessivos que vem apresentando. Se os sintomas eclodiram na fase edípica, aí se inicia a história clínica, embora o entendimento dinâmico deva abranger as dificuldades mais antigas. Se houve sintomas de mau funcionamento prévio, aí se inicia a história clínica. Quando tratamos da problemática do adolescente, lançamos mão da formulação teórica de Erikson. Aqui, propositalmente, utilizamos pressupostos freudianos, para deixar bem claro que o importante é que o clínico eleja uma linha de pensamento e, a partir dela, tente um entendimento da problemática do paciente.