Íntegra da Ação Civil Pública - Procuradoria da República no

Propaganda
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Procuradoria da República na Paraíba
Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão
EXMO. SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA __ VARA DA SEÇÃO
JUDICIÁRIA DA PARAÍBA.
REF. : PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO MPF Nº. 1.24.000.001421/2014-74
JGBS Nº.
/2014 - MPF/PR/PB
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do
Procurador da República abaixo subscrito, no exercício das suas atribuições
constitucionais e legais (arts. 129, incs. II e III, da Constituição Federal e 5º, da
Lei Nº. 7.347/1985), vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência,
propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DOS
EFEITOS DA TUTELA
em face da:
UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, podendo ser citada no endereço
Avenida Maximiano Figueiredo, N°. 404, Centro, CEP 58.013-470, João PessoaPB e da
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA), autarquia
federal, vinculada ao Ministério da Saúde, inscrita no CNPJ sob o número
031.123.386/0001-11, com sede no Setor de Indústria e Abastecimento (SIA),
Trecho 05, Área Especial, Lote 200, Guará, Brasília-DF, CEP 71205-050,
com lastro nos fatos e fundamentos a seguir:
1. DOS FATOS
Em representação encaminhada ao Ministério Público Federal
por Sheila Dantas Geriz (fls. 02/10 do Procedimento Preparatório N°.
1.24.000.001421/2014-741, em anexo), em nome de seu filho, Pedro Américo
Geriz Pinto * – e de outros menores e jovens portadores de patologias
neurológicas, caracterizadas por constantes crises epiléticas resistentes a
tratamentos medicamentosos tradicionais, mencionados no item a seguir – foi
relatada a urgente necessidade de providências para que os pacientes possam se
utilizar do medicamento conhecido como Cannabidiol (CBD), derivado da planta
Cannabis sativa.
Isto porque os tratamentos aos quais já se submeteram, além
de não terem diminuído as frequentes crises convulsivas – que provocam
inegáveis danos ao desenvolvimento cognitivo e psicomotor dos enfermos –,
resultam em sérios efeitos colaterais prejudiciais ao bem estar e à rotina dos
pacientes e de suas famílias, tais como sonolência extrema, falta de
concentração, cefaleias, gastrites medicamentosas, problemas hepáticos e renais,
entre outros.
A notícia acerca da existência da referida substância
sobreveio após uma desesperada busca por tratamentos alternativos pelos
familiares. O contato com pais enfrentando situações parecidas foi estreitado
após a veiculação de uma matéria no programa “Fantástico”, da TV Globo, sobre
um casal com filho nessas mesmas condições, e que clandestinamente fez uso
do medicamento, obtendo ganhos significativos na eliminação das crises e na
recuperação psicomotora do paciente, sem os efeitos colaterais nefastos dos
medicamentos usuais.
A grande questão, além da dificuldade para conseguir obter a
substância, que não tem registro ou fabricação em território nacional e teria de ser
importada, é que o produto figura na lista de substâncias de uso proscrito (“F2”)
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Ou seja, sua importação e
uso são proibidos, e apenas excepcionalmente há a possibilidade de liberação a
partir de pedido de autorização específico dirigido à autarquia, com análise caso a
caso.
Entretanto, tal procedimento a cargo da Agência Reguladora,
embora represente uma esperança para os familiares das crianças e jovens com
síndromes epiléticas, é extremamente demorado e requer uma série de
providências burocráticas, tais como a apresentação de uma série de documentos
e termos, que tornam a sua efetivação praticamente impossível. Uma dessas
exigências é a obtenção de uma prescrição médica específica, acompanhada de
termo de responsabilidade firmado por médico. A representante aponta, inclusive,
que nenhum profissional da medicina no Estado da Paraíba se dispôs a fornecer
a documentação completa.
1 Os números de folhas de páginas mencionados no curso desta exordial referem-se a esse procedimento
administrativo.
Entretanto, há prescrição médica para todos os pacientes
listados nessa exordial, como se pode verificar dos documentos juntados em
anexo. Não houve, infelizmente, como conseguir os termos de responsabilidade
exigidos pela Agência Reguladora, o que impede a formulação dos pedidos de
liberação pelos interessados. Percebe-se, inclusive, um receio da classe médica
local em assinar um termo de responsabilidade ao prescrever um medicamento
que consta da lista “F2” da ANVISA, embora tal substância seja
comprovadamente benéfica aos doentes, como se verá em continuação.
É certo que a resolução do problema por completo não se
limita à mera liberação do medicamento para os pacientes aqui mencionados.
Implica, também, em instar a agência a retirar o produto da lista de proscrição e
conseguir, junto ao poder público, via Sistema Único de Saúde, o fornecimento
gratuito do medicamento para as hipóteses em que este for necessário, pois a
substância possui um preço demasiado elevado e, mesmo com a liberação, não
ficaria efetivamente acessível para todos os doentes que dela necessitem, já que
os em situação de hipossuficiência não teriam como comprar o produto.
Acontece que tais objetivos apenas serão alcançados a médio
prazo, uma vez que a obtenção de uma prestação jurisdicional desse calibre
adviria de forma mais lenta e estudada, de forma que, na presente oportunidade,
apenas se busca a liberação da importação dessa substância para os pacientes
mencionados, tendo em vista a urgência envolvendo essa questão pontual,
resguardando-se o MPF para intentar ACPs com maior amplitude sobre o tema
em discussão em momento posterior. Buscamos aqui, em suma, providências que
cheguem com a velocidade que os pacientes aqui mencionados e seus familiares
esperam e necessitam, ou seja, a liberação para importação e uso do Cannabidiol
para os pacientes com síndromes convulsionantes abaixo listados.
1.1.SOBRE AS CRIANÇAS E JOVENS PORTADORES DAS PATOLOGIAS
Para situar a urgência e a necessidade da prestação judicial
aqui pleiteada, segue um histórico individual de cada paciente cujos familiares
buscam a importação e uso do Cannabidiol. Verifica-se, em todos eles, o mesmo
ponto em comum: a ausência de resultados satisfatórios no tratamento
medicamentoso tradicional (ou mesmo a piora, em relação à superveniência de
diversos efeitos colaterais nefastos). Todos possuem laudo devidamente subscrito
por profissional médico, bem como prescrição receitando o uso do Cannabidiol
na finalidade de diminuir as crises, para possibilitar a recuperação cerebral e
psicomotora (documentos em anexo à petição).
PEDRO AMÉRICO GERIZ PINTO*, menor, com 4 anos de
idade, filho de Sheila Dantas Geriz, CPF nº 019.887.824-90, ambos residentes e
domiciliados na Rua Prof. Oscar de Castro, 154, Brisamar, João Pessoa. Pedro
Américo é portador de Epilepsia Multifocal de Difícil Controle, CID: G40-2,
decorrente de Síndrome de West. Apresenta quadro de hipotonia e atraso global
do desenvolvimento neuropsicomotor. Em razão desse quadro, tem limitações
bastante significativas no que concerne ao exercício das Atividades da Vida Diária
(AVD’s) – alimentação, vestir-se, administração de medicamentos, locomoção,
higiene pessoal, entre outras (o paciente não anda, não fala, não tem controle de
suas necessidades fisiológicas, não faz uso funcional das mãos e tem um
importante atraso cognitivo). Já fez uso, sem sucesso, de diferentes esquemas de
drogas antiepilépticas, combinando medicações como: fenobarbital, clonazepan,
vigabatrina, nitrazepan, clobazan, divalproato, primidona, oxcarbamazepina, entre
outros, tendo feito uso, inclusive, do Synacthen Depot (ACTH). Atualmente,
encontra-se em tratamento com uma combinação de duas medicações
antiepilépticas (Topiramato e Ácido Valpróico) e a Dieta Cetogênica, feita e
acompanhada pela equipe do Hospital da Clínicas da USP, para onde o paciente
vai a cada dois meses fazer exames e o acompanhamento da dieta, que é um dos
últimos recursos indicados para casos de Epilepsia Refratária. Apesar de todos os
medicamentos e outros tratamentos administrados até o momento, o paciente
apresenta entre 15 e 20 crises diárias.
JOÃO VITOR DE OLIVEIRA FERNANDES *, menor, com 14
anos de idade, filho de Cibelle Gomes de Oliveira Fernandes, portadora do CPF
nº 026.984.284-57, residentes e domiciliados na Rua Marieta S. Silva, 190,
Miramar, nesta Capital. João Vitor é portador de síndrome epiléptica de difícil
controle (Lennoux Gastaut) e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. É
cadeirante e tem dificuldade de interação, bem como déficit de linguagem.
Depende da ajuda de terceiros para as atividades cotidianas As crises
convulsivas iniciaram a partir de 1 ano e 6 meses de idade. A partir desta data,
começou a tomar remédios, tendo já utilizado todos os medicamentos disponíveis
no mercado, sem respostas ao tratamento. Atualmente utiliza uma combinação de
Lamotrigina, Sonebom e Topiramato e, mesmo assim, ainda apresenta, em
média, 60 convulsões semanais, que aumentam em número quando adoece ou
sua imunidade baixa. Devido a muitos anos de utilização desses remédios,
adquiriu uma gastrite medicamentosa e vários episódios de bexigoma, tendo que
usar cateter para retirar a urina.
SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES *, menor, com 12 anos
de idade, é irmão de João Vítor, e com ele reside. Também é portador da
Síndrome de Lennoux Gastaut, apresentando grau significativo de autismo,
movimentos estereotipados, grande irritabilidade na presença das convulsões
(agride ele mesmo com mordidas, murros e batidas de cabeça na parede). Tem
atraso de linguagem e déficit cognitivo, dependendo da ajuda de terceiros para as
atividades cotidianas. Além disso, não dorme bem à noite, por conta da
hiperatividade cerebral. Começou a apresentar os episódios de crises
aproximadamente aos 2 anos de idade. Já fez uso de diversos medicamentos.
Atualmente recorre a uma combinação de Lamotrigina, Sonebom, Trileptal,
Neozine+Fenergan. Apesar disto, apresenta ainda uma média de 60 crises
semanais e frequentes episódios de bexigoma (retenção da urina na bexiga,
sendo necessário o uso de cateter para esvaziá-la). Apresenta problemas renais
decorrentes da grande quantidade de anticonvulsivantes que utiliza.
VITOR BEZERRA DE SOUTO *, maior incapaz, com 21 anos
de idade, filho de Luciana Bezerra Von Szilagsi, portadora do CPF nº
806.581.214-72, residentes e domiciliados na Av. Monteiro da Franca, 913, Apto.
301, Bairro de Manaíra, João Pessoa-PB. Vitor foi diagnosticado, aos 3 meses de
idade, com cranioestenose, sendo submetido a uma cirurgia aos cinco meses
para abertura das fontanelas. Após a cirurgia, seu desenvolvimento psicomotor
continuou defasado. Após exames com especialistas em São Paulo, seu
diagnóstico foi firmado como Síndrome de Dandy-Walquer e má formação
Dechiari (estreitamento do tronco encefálico). Com dois anos de idade passou a
apresentar crises de espasmos e convulsões, quadro que permanece até o
presente. Já fez uso de diversos tipos de medicações, chegando a ser internado
por duas vezes, com crises graves e sem controle. Nessas internações, usou um
medicamento muito forte, capaz de levar o paciente à morte (Hidantal), fato que
gerou nele reações alérgicas como vômito e mal estar generalizado. Atualmente
faz uso de uma combinação de Lamotrigina, Carbamazepina e Fenobarbital.
Mesmo assim, apresenta uma média de 50 convulsões generalizadas por
semana, sem contar as que lhe acometem durante o sono e que nem sempre são
presenciadas (mas que já foram comprovadas em exames). Ultimamente, seu
quadro tem se agravado, com a presença de crises muito fortes, chegando a
causar dificuldades respiratórias a alterações cardíacas. Além disso, o uso
excessivo de medicamentos tem causados um progressivo comprometimento das
suas funções hepáticas.
CAMILE GONZALEZ ROCHA *, maior incapaz, com 20 anos,
filha de Marília Leite Gonzalez Rocha, CPF nº 396.443.084-68, residentes e
domiciliadas na Av. Cabo Branco, 4600, Cabo Branco, João Pessoa-PB. Camile
tem atraso global do desenvolvimento, apresenta malformação cerebral congênita
(paquigiria) e quadro de deficiência mental importante, sendo totalmente
dependente de terceiros. Apresenta quadro de epilepsia de difícil controle e
cifoescoliose importante, tendo feito uso de colete corretivo. Atualmente faz uso
de politerapia medicamentosa com Sonebom 5mg, Topiramato 300mg e Gardenal
150mg ao dia. Ao longo de sua vida sempre precisou de politerapia, usando a
cada etapa associações de diversas medicações como: Depakene, Lamictal,
Sabril, Hidantal, Tegretol, Ttrileptal, Primidona, Diazepan. Essas medicações
apresentaram efeitos colaterais, como: gengivite, estomatite, agitação, entre
outras. Em 2003, com 10 anos e por apresentar muitas crises, fez um vídeo EEG,
no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, cujo resultado concluiu que
aconteceram em 48 horas de registro 87 crises clínicas focais. A lobotomia foi
contraindicada pelo fato de as crises acontecerem em todo o cérebro. Por outro
lado, a lobotomia é uma medida que pode ter sequelas, de acordo com a área do
cérebro a ser retirada. Os pais relatam muitos anos de angústia. As crises de
Camile ocorrem das mais diversas formas, acontecendo, em algumas vezes,
cinco por dia. Muitas são as tentativas de novos medicamentos. Após a
ocorrência de crises, fica apática ou muito agitada, e isso muitas vezes interfere
nas terapias. Ela não pode ter emoções ou alegrias, pois tais estados sempre
desencadeiam uma crise.
PEDRO GABRIEL GUIMARÃES FERREIRA SIGISMUNDO *,
menor, com 4 anos de idade, filho de Paula Gabriel F. de Santana, portadora do
CPF nº 059.542.284-50, residentes e domiciliados na Rua Miguel Santa Cruz,
699, Torre, nesta Capital. Pedro Gabriel é portador de Síndrome de West, sofre
cerca de 20 crises (em espasmos) diárias e já fez uso de vários medicamentos
antiepiléticos, sem qualquer sucesso – continua apresentando espasmos mesmo
com a administração atual de drogas. Atualmente toma Sabril, de 500mg (5
comprimidos ao dia) e Amato, de 100mg (3 e meio comprimidos ao dia). As
crises comprometem muito o seu desenvolvimento, causando atraso motor e
cognitivo. Desde que os pais descobriram sua condição, aos 7 meses de vida,
disponibilizaram acompanhamento de Fisioterapia Motora, Fonoaudiologa e
Terapia Ocupacional, na Funad e no Centro de atividades Helena Holanda.
DAVI TABOSA SOUTO *, menor, com 2 anos de idade, filho
de Sheila Maria Tabosa Silva Souto, CPF nº 026.971.074-44, residentes e
domiciliados na Rua Carlos Barros, 500, Apto. 402, Miramar, João Pessoa-PB.
Davi é portador de microcefalia congênita e espasticidade de membros. Possui
visão subnormal e encefalopatia epilética. Convulsiona cerca de 100 vezes por
semana. Atualmente utiliza uma combinação de Depakote Sprinkle e Lamictal.
Não senta, não usa as mãos, só se alimenta de líquidos, não fala. Faz diversas
intervenções terapêuticas. Todavia, o avanço no desenvolvimento é seriamente
prejudicado pela frequentes crises convulsivas.
MARINA CARVALHO DE SOUZA *, menor, com 5 anos de
idade, filha de Clarissa Figueiredo de Carvalho, CPF nº. 008.117.954-54,
residentes e domiciliadas na Rua Esmeraldo Gomes Vieira, 350, Apto. 101,
Bancários, nesta Capital. Marina é portadora de Síndrome de Rett, transtorno
global de desenvolvimento, apresentando crises convulsivas e por vezes
ausências, junto com espasmos frequentes. Não usa as mãos, deixando-as o
tempo todo dentro da boca. Tem retração dos Aquiles e ataxia de marcha com
hipotonia. Faz uso de 2 medicações: LAMICTAL de 50mg (2 vezes ao dia) e
Depakote Sprinkle de 125mg ( 3 vezes ao dia).
FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS *, menor, com
4 anos de idade, filho de Joelma Farias de Queiroz, portadora do CPF nº
025.493.664-41, residentes e domiciliados na Rua Maria Ferreira da Silva, 43,
Bancários, João Pessoa-PB. Francisco é portador de epilepsia multifocal de difícil
controle, decorrente de Síndrome de West. Apresenta cerca de 10 crises
convulsivas diárias, em espasmos e crises de ausência. Tem um importante
atraso no desenvolvimento, apresenta movimentos estereotipados e involuntários.
Não fala e não tem segurança no andar, precisando de amparo. Já fez uso de
todos os tipos de anticonvulsivantes disponíveis no mercado, inclusive o ACTH
(Synacthen Depot). Atualmente usa uma combinação de Topamax e Trileptal.
ISABELLY LARISSA DIAS ARAÚJO *, menor, com 3 anos de
idade, portadora do RG 3904863 e CPF 10891705481, filha de Vandaleide Dias
Bandeira, portadora do RG 1560541 e CPF 839.313.414-53, residentes e
domiciliadas na Rua Cícero Alves de Brito, 189, Campina Grande-PB. Isabelly foi
diagnosticada, aos quarenta e oito dias de vida, com paralisia cerebral do lado
esquerdo (E.E.G com presença de atividade irritativa cerebral e crises convulsivas
refratárias). Nenhum remédio receitado pelos nove neurologistas que já a
acompanharam conseguiu controlar suas crises convulsivas. Um deles falou que
as crises de Larissa são de difícil controle. Apresenta, em média, 16 convulsões
ao dia. Faz uso de Sabril 500mg, de 12 em 12 horas, Topiramato 50mg, 8 em
8hrs e Diasepan 5mg, 8 em 8 horas.
FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA *, menor, filho de
Zélia de Lima Bardella, CPF 039.581.664-58, residentes e domiciliados na Rua
Abelardo da Silva Guimarães Barreto, 115, Ap. 2404, Altiplano Cabo Branco. Com
um ano de vida apresentou atraso global no desenvolvimento neuropsicomotor,
seguido de uma epilepsia de difícil controle, com crises convulsivas. Submete-se
a Fisioterapia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Equoterapia e Hidroterapia.
Já fez uso das seguintes drogas antiepilépticas: Depakene; Depakote; Sonebon;
Trileptal; Topiramato; Lamitor; Keppra; Etoxin; Rufinamida; Sabril; Zonegran e
Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH), com internação. Realizou ainda a Dieta
Cetogênica e a implantação de Estimulador do Nervo Vago, sem controle efetivo
das crises epilépticas. Hoje permanece com pelo menos 50 crises ao dia, entre
crises de ausência, espasmos e parciais. Faz uso diário de 3 cápsulas de
Keppra , 05 cápsulas de Depakote Sprinkle, 1,5 comprimidos de Frisium, 1,5
comprimido de Topiramato e 1,5 comprimido de Primidona.
MARCELLY MARIA SILVA MAIA *, menor, filha de Inaldete
Silva Santos Maia de Oliveira, CPF N°. 877.003.894-68 e RG N°. 1.553.035
SSP/PB, residentes e domiciliadas na Rua Luiz Sodré Filho, 70, Catolé, Campina
Grande-PB. Foi diagnosticada com Microcefalia, causada por Citomegalovírus.
Apresentou a primeira convulsão com um ano de vida, dando inicio ao tratamento
medicamentoso com Gardenal, sem o efeito esperado. Chegou a apresentar 30
convulsões por dia. Após tratamento com um comprimido duas vezes ao dia de
Topamax e Trileptal, e um comprimido três vezes ao dia de Depakene, Marcelly
ainda apresenta em torno de 15 crises ao dia, mesmo durante o período do sono.
BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ
*, menor, com 4 anos de idade, filha de Sayonara Nyji Amaral Albuquerque
Guedes e Dion Carvalho Gomes de Sá, residentes e domiciliados na Av. Cairu,
386, apto 902, Cabo Branco, João Pessoa-PB. As suas primeiras crises foram
acontecer no quarto mês de nascida. Dois dias depois, aconteceu uma crise mais
forte, com contração de membros e olhos virados para o alto. Médico neuropediatra receitou TRILEPTAL, substituído por GARDENAL e, duas semanas
depois, por RIVOTRIL. Retornando à administração do TRILEPTAL, apresentou
sucessivas crises do mesmo gênero e duradouras. Foi levada para internação
hospitalar em UTI, por oito dias, e mais dois em apartamento. Sobreveio o
diagnóstico de síndrome de West e encefalopatia crônica não progressiva.
Seguiu-se a administração de synacthen depot (ACTH), hidantal, sonebon,
depakene, topiramato, levetiracetam, ospolot, frisium. Atualmente utiliza-se de
forma exclusiva do Topiramato, 25 mg, 6 comprimidos por dia. As crises
convulsivas continuam e são comuns ao acordar, quando leva algum susto,
quando baixa a imunidade, durante e após viagens de automóvel. Foram
oferecidas outras terapias de apoio, para complementar o tratamento alopático:
acupuntura, floral, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras. Durante a
administração de tantas drogas, ocorreram diversos efeitos colaterais decorrentes
da medicação: alteração do sistema endócrino, fazendo com que a bebê
apresentasse manifestações de desenvolvimento sexual precoce, a exemplo de
pelos pubianos e seios; retenção de líquidos, produzindo deformação na cabeça
conhecida como “cara de gato”; refluxo gástrico; vômito após ingestão de
medicamentos; sono profundo e prolongado, quase como um coma; excesso de
secreção na região oro-faríngea, com risco de causar broncoaspiração; crises de
otite e de garganta frequentes. Em razão de não ter conseguido obter ainda a
conquista do primeiro passo no tratamento (controle das crises), não conseguiu
evoluir em termos cognitivos e motor. Mesmo tendo 4 anos e meio, ainda não fala
e não anda. Está evoluindo, lentamente, na conquista do controle do pescoço e
tronco, dentro do processo de se colocar em pé. E ainda não desenvolveu o
aparelho fonador, não sendo capaz de articular palavras e de mastigar
adequadamente, o que compromete a alimentação e a nutrição.
JOÃO VITOR BATISTA FERREIRA * , menor, com 5 anos de
idade, filho de Perla Calixto de Brito Batista, portadora do CPF 068.846.624-92 e
do RG 3.250.297 SSP/PB, residentes e domiciliados na Rua Luiz Antônio, 507,
São José da Mata, Campina Grande-PB. Foi diagnosticado com epilepsia
congênita. Começou a ter crises convulsivas com 1 ano e 9 meses. Já ficou
internado várias vezes em razão das fortes crises. foram administradas várias
combinações de medicamentos, sem nenhum resultado. Devido à piora no quadro
das crises, está perdendo os movimentos do lado direito e apresentando
dificuldade para falar. Atualmente, submete-se aos seguintes medicamentos:
Tegretol, Hidantal e Topiramato.
RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA *, menor, com 3 anos
de idade, filha de Rayane Nunes da Silva, portadora do CPF 087.967.484-94,
residentes e domiciliados na Rua Luiz Gonzaga H. Almeida, S/N, Bloco B II, Ap.
304, Mangabeira VII, nesta Capital. Foi diagnosticada com paralisia cerebral aos 3
meses de nascida. Aos 8 meses, sobrevieram as primeiras crises, com novo
diagnóstico, agora de Síndrome de West. Administrou-se Sonebom, e em seguida
Sabril juntamente ao Depakene. Passou para o Topiramato, mas os espasmos
continuaram, quando foi retirado o Sabril e acrescentado Lamitor. Foi internada
novamente. Novo médico neurologista retirou todos os medicamentos e
prescreveu Frisium, Rivotril e Trileptal, que também não funcionaram, pois os
espasmos continuavam. Novamente, ela apresentou quadro de alergia, e outra
médica receitou Gardenal, Sonebom, Trileptal e Topiramato. As crises diminuíram
um pouco, mas ainda são mais de 10 por dia.
SAMUEL VITOR LIMA FERNANDES *, menor, com 2 anos e
seis meses de idade, filho de Roberta Karoline L. Fernandes, residentes e
domiciliados na Rua João Lordês, 60, Nordeste III, Guarabira-PB. Samuel possui
diagnóstico de Síndrome de West, epilepsia multifocal, retardo no
desenvolvimento neuropsicomotor e infecção congênita por CMV. Sofre crises
convulsivas desde os oito meses de vida e, atualmente, ocorrem episódios numa
média de até 100 vezes por dia. Faz uso de ácido valproico, Vigabratina,
Gardenal e Rivotril, além de estimulação psicomotora por fisioterapia. O
tratamento não resultou em nenhuma evolução no quadro do menor, que
apresenta problemas de coordenação motora, neurológica e auditiva.
Em suma, as crianças e jovens acima mencionados são
portadores de patologias neurológicas que tem como característica comum um
quadro de epilepsia refratária a medicações. Na busca pelo controle das
frequentes crises convulsivas, já se submeteram aos diversos tipos de tratamento
e combinações de anticonvulsivantes disponíveis no mercado, sem sucesso. As
altas dosagens de medicação a que são submetidos provocam sérios efeitos
colaterais, como comprometimento das funções hepáticas e renais, perda de
visão, fraqueza muscular, depressão do sistema imunológico, inflamação das
mucosas, entre outros.
Esses pacientes, apresentam crises diárias que causam
danos ao seu desenvolvimento neuropsicomotor, provocando perdas e involuções
que podem ser irreversíveis, visto que a plasticidade neural – mecanismo
essencial para a recuperação de danos cerebrais – diminui com o avançar da
idade, o que pode comprometer de forma definitiva sua autonomia. O quadro
ainda repercute na vida de suas famílias, tanto do ponto de vista econômico e
social, quanto no que concerne ao equilíbrio psicoemocional, comprometendo a
rotina e o bem estar dos que sofrem, direta ou indiretamente, com a enfermidade
dos requerentes. Exemplo dessa realidade é a angústia experimentada pelos pais
e familiares, ao vê-los, após inúmeras crises, perder ganhos cognitivos e/ou
motores já adquiridos após meses de árduo trabalho de estimulação dos diversos
profissionais que os acompanham, tendo que sempre reiniciar todo o processo
sem a garantia de reconquistar o que foi perdido.
1.2. RESUMO DA PRETENSÃO DO AUTOR MINISTERIAL
Claro está que as crianças e jovens cuja história clínica foi
aqui trazida se submeteram a toda espécie de tratamento possível para eliminar
ou diminuir a quantidade de crises epilépticas sofridas – que, sabe-se, chega-se a
450 ou 500 por mês e podem até conduzi-los à morte. No horizonte, apenas a
substância conhecida como Cannabidiol desponta como tratamento viável e com
resultados importantes obtidos até o momento. Porém, em que pese a
necessidade de tal medicamento, estão os pacientes impossibilitados de obtê-lo,
pois, além de ser produzido e comercializado apenas no estrangeiro, sem registro
no país, sua importação e uso em território nacional, como já colocado, é proibida
pelas regulamentações baixadas pela ANVISA.
Diante disto, é na esteira do sucesso de casos isolados, nos
quais se obteve, através de prestação jurisdicional, a liberação da importação e
do uso da substância para portadores de síndromes epiléticas, que a presente
ação se lastreia – como a decisão liminar exarada pelo Juízo de Direito da 1ª Vara
da Infância e da Juventude da Comarca de Cuiabá-MT (fls. 174/175), a decisão
liminar proferida pelo Juiz Federal da 24ª Vara da Seção Judiciária de
Pernambuco, Subseção de Caruaru-PE (PJE 0800100-75.2014.4.05.8302) e a
decisão de antecipação dos efeitos da tutela de lavra do Juízo Federal da 3ª Vara
da Seção Judiciária do Distrito Federal, sempre condicionando a liberação da
importação à requisição médica.
Nesses termos, a pretensão aqui inserta é de todo razoável e
necessária. Busca a concretização dos preceitos constitucionais de acesso à
saúde e de proteção à infância e à juventude, estes últimos também presentes no
Estatuto da Criança e do Adolescente, que pontua o desenvolvimento saudável, a
dignidade e o fornecimento de medicamentos por parte do poder público.
Assim, em razão da ineficácia do tratamento permitido em
solo nacional e da impossibilidade de importação e utilização do medicamento
Cannabidiol sem o demorado e burocratizado processo administrativo de
liberação por parte da ANVISA, é que se insurge o autor ministerial contra a União
e a própria Agência Reguladora, para que se abstenham de destruir, devolver,
reter, impedir a compra e a obtenção ou, de alguma outra forma, fazer com que
qualquer objeto postal importado, contendo produto com o referido medicamento,
acompanhado da devida receita médica, e endereçado aos pacientes listados
nesta inicial e/ou seus responsáveis, não chegue ao seu destino, com base nos
fundamentos apresentados em continuação.
2. DOS FUNDAMENTOS
2. 1. DO SUPORTE CONSTITUCIONAL E LEGAL
Os documentos médicos e artigos científicos que
acompanham a presente inicial apontam inexistir dúvida de que o medicamento
em questão é necessário ao tratamento de crises epilépticas sofridas pelos jovens
e menores mencionados. Não é demais repetir que todo tipo de tratamento
tradicional, com medicamentos disponíveis aos médicos no Brasil, já foi utilizado
sem que se conseguisse eliminar os episódios de crises convulsivas enfrentados.
Não bastasse isso, esses medicamentos, além de não debelarem as severas
crises, ainda provocam sérios efeitos colaterais, que trazem uma segunda
preocupação para os responsáveis pelos pacientes. A continuidade das crises
ainda agrava o quadro de saúde mental e psicomotora dos enfermos, pois a
recuperação do tecido neural dessas crianças e jovens fica cada vez mais
comprometida após os episódios, frisando o perigo da demora da prestação
jurisdicional pretendida.
Dessa forma, havendo necessidade em saúde, devem os
requeridos (União e ANVISA) disponibilizar os meios necessários para satisfazêla, abstendo-se de impedir a importação e a utilização do medicamento.
Afinal, tal obrigação é imposta pela própria Constituição Federal que, além de
incumbir os entes públicos envolvidos de cuidarem da saúde e assistência pública
(art. 23), aponta que a saúde é direito social (art. 6º) de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Como se não
bastassem essas disposições constitucionais, a Lei Nº. 8.080/90, que regula o
Sistema Único de Saúde, preceitua, no mesmo sentido, que:
“Art. 2.º - A saúde é um direito fundamental do ser humano devendo o
Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.”
“Art. 5.º - São objetivos do Sistema único de Saúde SUS :
(…) III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de
promoção e recuperação da saúde com a realização integrada das
ações assistenciais e das atividades preventivas.”
“Art.6.º - Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único
de Saúde (SUS):
I - a execução de ações:
(…) d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”
“Art. 7.º - As ações e serviços públicos de saúde e os serviços
privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único
de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes
previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios:
(…) II - integralidade de assistência, entendida como um conjunto
articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema”.
Vê-se, assim, que tanto o legislador constitucional quanto o
infraconstitucional determinaram aos poderes públicos o atendimento integral à
saúde, não fazendo em nenhum momento restrição aos medicamentos ou forma
de tratamento a serem utilizados. Aliás, se com apoio nestes preceitos normativos
a jurisprudência pátria já vem decidindo ser possível compelir o fornecimento de
todo um tratamento hospitalar adequado – mesmo sem previsão no SUS e sem
profissionais aptos a prestá-lo no Brasil, bastando que o paciente dele precise –
com mais justiça ainda caberia à União e à ANVISA deixar de impedir que
pessoas com condições de se submeterem a um tratamento necessário para a
sua qualidade de vida possam fazê-lo, de forma a efetivamente fazer cumprir os
preceitos constitucionais e legais. É o que se apanha do seguinte precedente:
ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL.
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). TRATAMENTO MÉDICO NO
EXTERIOR. UNIÃO E ESTADO DO CEARÁ. LEGITIMIDADE
PASSIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MINISTÉRIO
PÚBLICO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NATUREZA
INDISPONÍVEL. LEGITIMIDADE ATIVA PARA MANEJO DE AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. PEDIDO INICIAL. EXISTÊNCIA E HIGIDEZ.
ALEGAÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
CONFUSÃO COM O MÉRITO DA LIDE. CUSTEIO DE TRATAMENTO
MÉDICO NO EXTERIOR PELO SUS. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO
LEGAL. MSUD ("MAPLE SYRUP URINE DISEASE"). TRATAMENTO
ATRAVÉS DE TRANSPLANTE DE FÍGADO. CENTRO MÉDICO NO
EXTERIOR. ÚNICO COM EXPERIÊNCIA E PROTOCOLO
ESPECÍFICO. AUSÊNCIA DE REALIZAÇÃO ANTERIOR DESSA
CIRURGIA NO BRASIL. CUSTO FINANCEIRO DO TRATAMENTO
NO EXTERIOR APENAS UM POUCO SUPERIOR. SOPESAMENTO
DOS INTERESSES FINANCEIRO DA ADMINISTRAÇÃO E DO
MENOR SUBSTITUÍDO. RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA E À VIDA
MAIOR NO TRATAMENTO LOCAL. PREVALÊNCIA DOS
INTERESSES DO MENOR. REALIZAÇÃO DO TRANSPLANTE NO
EXTERIOR. DIREITO. EXISTÊNCIA. CUSTEIO DA VIAGEM E
ESTADIA NO EXTERIOR. ALTO CUSTO. AUSÊNCIA DE PROVA DE
DESNECESSIDADE. CABIMENTO. 1. A jurisprudência do STJ
encontra-se pacificada no sentido de que as ações relativas à
assistência à saúde pelo SUS (fornecimento de medicamentos ou de
tratamento médico, inclusive, no exterior) podem ser propostas em
face de qualquer dos entes componentes da Federação Brasileira
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios), sendo todos
legitimados passivos para responderem a elas, individualmente ou em
conjunto. 2. Em face da legitimidade passiva da UNIÃO nesta causa,
resta evidenciada a competência da Justiça Federal para seu
processamento, afastando-se a preliminar de incompetência deduzida
pela UNIÃO. 3. A jurisprudência do STJ encontra-se, também,
pacificada quanto à legitimidade do Ministério Público para propor
ação civil pública, bem como quanto ao cabimento da utilização desse
instrumento processual, na defesa do direito à vida e à saúde de
pessoa determinada para fins de fornecimento a ela de tratamento
médico, em face da natureza indisponível desses direitos. (…) 7.
Conforme corretamente analisado pela sentença apelada, o tratamento
da MSUD ("Maple Syrup Urine Disease") (em português, Doença do
Xarope do Bordo na Urina - DUXB) através de transplante de fígado,
nos termos das informações médicas colhidas nos autos, nunca foi
realizado no Brasil, havendo, apenas, um centro médico no mundo
com protocolo específico para sua realização (Thomas E. Starzl
Transplantation Institute, em Pittsburgh, Pennsylvania, EUA) e casos
bem-sucedidos decorrentes desse tratamento. 8. As manifestações
médicas transcritas pela UNIÃO em sua apelação e já existentes nos
autos, sobretudo a do Hospital das Clínicas da UFRGS, apenas
indicam, como já examinado na sentença apelada, que a possibilidade
de realização dessa cirurgia no Brasil dependeria da confecção de
protocolo médico específico, aquisição de equipamentos e de solução
parental necessária à estabilização metabólica, e de viagem de
treinamento de membro da equipe médica ao exterior para
capacitação técnica. 9. Na hipótese, conforme, também, bem
analisado na sentença apelada, em sendo os custos médicos do
tratamento cirúrgico do menor substituído no exterior, em face de
descontos e subvenções conseguidas, apenas um pouco superior ao
de seu tratamento no Brasil, não há razoabilidade na sua submissão
ao tratamento local por equipe sem experiência na modalidade
específica de transplante em questão, como o demonstram as
necessidades de criação de protocolo específico e aquisição de
equipamentos e solução parental, com maior risco à sua integridade
física e à sua vida, devendo, na hipótese, prevalecer o interesse dele
na proteção desses bens jurídicos indisponíveis. (…) 14. Não
provimento das apelações. TRF 5, AC 200481000202989 Apelação
Civel 360863, Relator Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira,
1ª Turma, unânime, DJE 19/11/2009, p. 176. No mesmo sentido:
TRF5, AC 200884000084312, Apelação Civel 469254, Relator
Desembargador Federal Fernando Braga, 2ª Turma, unânime, DJE
24/04/2014, p. 87.
Dessa forma, não se requer aos entes listados no polo
passivo, com a presente ação, nenhum procedimento mirabolante, além daquele
estritamente necessário a prover uma qualidade de vida digna aos jovens e
crianças acometidos pelas enfermidades neurológicas convulsionantes. Entender
de forma distinta é sucumbir à burocracia, em detrimento dos mandamentos da
Carta Magna que pregam a dignidade da pessoa humana e o acesso irrestrito aos
meios necessários para uma vida digna e com saúde!
2.2. DO SUPORTE CIENTÍFICO - EFICÁCIA DO MEDICAMENTO
O exame dos documentos e artigos científicos anexos à
presente exordial dão conta que o medicamento em questão se presta ao
tratamento do mal sofrido pelas crianças e jovens relacionados pelo autor civil
público. Há uma série de evidências e estudos científicos em que ficou assente a
propriedade antiepiléptica do Cannabidiol. Seu uso já é autorizado em vários
países como Inglaterra, Nova Zelândia e Canadá, e em mais de 20 estados
americanos consoante se pode perceber da leitura de vários artigos existentes na
rede mundial de computadores2.
No Brasil, inclusive, os estudos com Cannabidiol vinham
sendo sendo feitos desde a década de 70, tendo se constatado sua eficácia no
tratamento de pacientes infantis sofredores de crises epiléticas severas e
resistentes a medicamentos tradicionais. Aliás, sobre o tema merece destaque a
carta confeccionada pelo Professor Dr. Antonio Waldo Zuardi e outros professores
que integram o Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, defendendo a reclassificação da
substância pela ANVISA e a sua eficiência na terapêutica de crises epiléticas.
Artigo científico subscrito pelo Professor Renato MalcherLopes, do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília,
Doutor em Neurociências e pós-doutor em Neurofisiologia Celular e Bioquímica
Analítica3, comprova a atividade antiepilética em humanos do Cannabidiol,
destacando o registro na literatura científica de redução de convulsões e,
inclusive, sintomas de autismo. E o mais importante: coloca que a substância não
é tóxica para as células, e seu uso crônico não causa reações adversas, não
alterando funções psicomotoras e não demonstrando propriedades psicotrópicas
– o único efeito colateral observado em alguns casos foi a possível ocorrência de
sonolência, efeito presente em diversos tratamentos liberados pela ANVISA.
O caso Fischer é um dos mais emblemáticos na História
recente da administração do Cannabidiol no Brasil, ganhando destaque na mídia
nacional. A menor Anny de Bortoli Fischer *, com cinco anos de idade, portadora
de encefalopatia epilética infantil precoce tipo 2, sofria desde os 45 dias de vida
crises convulsivas, numa frequência de 30 a 80 vezes por semana, provocando
atraso intenso e global do desenvolvimento, que evoluiu para um retardo mental e
pobre controle motor, com falhas no desenvolvimento da fala, dismorfias faciais,
distúrbios do sono, anormalidades gastrointestinais e movimentos estereotipados
das mãos. Nenhum tratamento convencional surtiu qualquer efeito sobre os
episódios – inclusive a realização de cirurgia para implante de marca-passo no
nervo vago.
Mesmo antes de obter decisão judicial favorável, liberando a
importação e uso do Cannabidiol, exarada pelo Juízo da 3ª Vara Federal do
Distrito Federal, os pais da criança resolveram administrar a substância
clandestinamente, com supervisão médica, e obtiveram resultados
surpreendentes: a contínua redução das crises, até a sua completa cessação.
Interrompido o uso do medicamento, para testar a sua eficácia, as crises
retornaram (42 vezes em uma semana). E, com a retomada do tratamento em
seguida, as convulsões desapareceram por completo novamente 4.
2 Por exemplo: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/07/bele-reduziu-convulsoesb-de-minha-filha.html
3 Revisão da literatura científica sobre o uso de Cannabidiol e óleo de Cannabis sativa rica em Cannabidiol
para o tratamento de epilepsia e autismo. 22/07/2014. Texto a ser publicado na Revista de Biologia da
Universidade de São Paulo (USP).
4 Vide decisão de antecipação dos efeitos da tutela nos autos N°. 24632-22.2014.4.01.3400, exarada em 3
de abril de 2014, em anexo.
Sabe-se que, dentre os motivos que impedem a
disponibilização do Cannabidiol no Brasil, está o fato de que a substância figura
entre um dos 80 canabinoides presentes na planta Cannabis Sativa L. (maconha).
Trata-se de medicamento não integrante da lista de medicamentos fornecidos
pelo SUS, sem registro no país e feito à base de substância derivada de planta
com potencial entorpecente ou psicotrópico (e por isso não sujeito à prescrição
médica). Por essas razões, nem o Ministério da Saúde, tampouco a ANVISA,
toleram a sua importação e utilização em solo brasileiro. Entretanto, o Cannabidiol
(CBD), como já dito, não produz os efeitos típicos da planta (euforia,
despersonalização, distorção sensorial, alucinações, delírios), que são resultantes
de outro componente químico, qual seja, o tetrahidrocanabinol (THC). O professor
Malcher-Lopes pontua que as muitas informações da literatura científica
comemorando os resultados positivos do uso do medicamento Cannabidiol em
portadores de síndromes neurológicas convulsionantes parecem ser ignoradas
pelas autoridades e boa parte dos conselhos médicos.
Dessa forma, os argumentos lançados pela agência
reguladora não podem ser invocados para obstar o acesso dos enfermos aqui
listados à medicação, por meio de seus pais ou representantes legais. Em
primeiro lugar, como exposto, o uso de Cannabidiol para tratamento de crises
epilépticas vem sendo reconhecido pela ciência médica como uma alternativa
viável e segura às substâncias tradicionais, de efeitos limitados e com reações
adversas graves. É o que se apanha de vários artigos publicados por autoridades
em neurologia no Brasil e em outros países, alguns deles juntados à presente
peça.
As listas oficiais de medicamentos se prestam a possibilitar o
planejamento da assistência, uniformização, exercício da farmacovigilância e,
inclusive, o controle da disponibilidade do estoque pela população e Poder
Público. Atende-se, assim, a exigência de economia de recursos públicos,
transparência, impessoalidade e eficiência da gestão administrativa. Ora, a
pretexto de proteger tais valores, não parece razoável negar ao indivíduo o
acesso a tratamento medicamentoso que se constitui na última alternativa
disponível na ciência ao restabelecimento de sua saúde.
Por sua vez, o registro de medicamento no órgão de vigilância
sanitária depende de pedido do laboratório interessado, que o efetua, ou não, em
virtude de razões econômicas, de mercado e de oportunidade. Por isso, nem
sempre coincidem o interesse de determinado laboratório e o interesse público na
introdução de um medicamento em território nacional. Logo, a obstaculização do
acesso a alternativas terapêuticas existentes em outros países, feita no caso
concreto por meio da exigência do registro do medicamento, termina por
subordinar ou restringir o atendimento adequado de direito indisponível
fundamental a interesses e pretensões de caráter puramente econômico.
Além disso, a ausência de prescrição médica decorre, no
caso, de imposição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que, no artigo 61
da Portaria ANVISA RDC Nº. 344/98, dispôs que as plantas que podem originar
substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, bem como seus sais e isômeros
não poderão ser objeto de prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos
e homeopáticos. Destarte, a impossibilidade de prescrição decorre não de uma
omissão estatal, mas de uma portaria emitida pela autarquia federal ora
requerida.
Como se vê, não resta qualquer motivo razoável que impeça
o acesso ao medicamento pretendido. Além disso, comprovado está que os
pacientes possuem o direito de acesso a medicação integral para a garantia de
sua saúde, e que esse direito constitucional não pode ser exercido em sua
plenitude no território nacional, em razão dos problemas que cercam o registro,
comercialização, importação e prescrição do medicamento em questão. Ante o
exposto, alternativa não resta senão o ajuizamento da presente Ação Civil
Pública, como único instrumento possível para o resguardo do comando
constitucional de garantir à pessoa humana o tratamento adequado à sua saúde.
2.3. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS EM VIGOR NO BRASIL SOBRE O
TEMA
Os Tratados Internacionais aplicáveis à demanda possuem
naturezas jurídicas diversas, conforme o rito de incorporação no ordenamento
jurídico interno ou a matéria regulamentada em seu teor. Dessa forma, possuem
status de lei ordinária as três Convenções da ONU sobre entorpecentes, como
será visitado em seguida, tendo em vista que não são consideradas tratados de
direitos humanos e nem foram internalizadas pelo quórum especial do art 5º, § 3º
da CRFB/88.
Todavia, a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, por ter sido internalizada no Brasil pelo rito do §3º, art. 5 da CRFB/88,
adquiriu status constitucional. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
por sua vez, apresenta natureza jurídica de norma supralegal e
infraconstitucional, conforme decisão do STF nos Recursos Extraordinários (RE
349703 e RE 466343) e do Habeas Corpus (HC 87585).
Por outro lado, cuidando da relação jurídica entre os Tratados
Internacionais e o direito interno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos –
órgão judicial responsável pela aplicação da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), com jurisdição sobre o Brasil – no
ano de 2006, ao abordar o caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile, expôs a
necessidade do exercício de um juízo de compatibilidade entre as normas
internas do Estado e os dispositivos da Convenção Americano sobre Direitos
Humanos e de outras convenções internacionais através de “uma espécie de
‘controle de convencionalidade’”5.
Dessa forma, constitui dever do Estado Brasileiro a
compatibilidade do direito interno com os tratados internacionais em vigor no país,
por meio do controle jurisdicional da convencionalidade das leis, tendo por
finalidade compatibilizar a atividade administrativa e as normas domésticas com
5 Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas.
Setencia de 26 de septiembre de 2006, Serie C, nº 154. § 124.
os tratados internacionais6. Sendo assim, a omissão Estatal em realizar o
controle de convencionalidade na atividade jurisdicional interna gera hipótese de
responsabilidade internacional, como preceitua o art. 2º da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que assegura a
obrigação de adotar disposições de direito interno para satisfazer os preceitos da
Convenção.
No mesmo sentido, ressalta a Corte, ainda no caso
Almonacid Arellano y otros vs. Chile, § 124, que o Judiciário não deve levar em
conta somente os tratados internacionais para o exercício do controle de
convencionalidade, mas também a jurisprudência da Corte Interamericana, que é
seu intérprete autêntico, conforme preceito dos arts. 62 e 64 da citada
Convenção. Nesse deambular, a jurisprudência produzida pela Corte é
parâmetro de controle da convencionalidade das leis 7 – podendo ser definido
como a compatibilização das leis à jurisprudência interamericana – uma vez que
declara o real sentido do texto da Convenção e deve ser observada pela atividade
jurisdicional brasileira. Dessa forma, é inconvencional (e, por lógica, ilegal)
qualquer negação ou limitação dos efeitos da jurisprudência da Corte IDH em
âmbito interno.
Portanto, a falta de regulamentação doméstica não pode ser
arguida para eximir o Estado de observar os standards determinados pela Corte
nos diferentes casos sujeitos à sua jurisdição, sendo configurada uma omissão
inconvencional a negligência em internalizar e cumprir os preceitos do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, seja o próprio Tratado ou a
jurisprudência que o ilumina, sob pena de responsabilidade internacional
Estado. Vejamos, em seguida, em que sentido essa omissão ocorre no caso ora
em discussão.
2.3.1. O dever convencional em regulamentar o uso de substâncias
psicotrópicas para fins medicinais.
O sistema universal de controle de drogas é determinado por
três convenções internacionais da Organização das Nações Unidas, ratificadas no
Brasil com status de lei ordinária: a (i) Convenção Única de Drogas Narcóticas de
1961, emendada pelo Protocolo de 1972 (ratificada no Brasil pelo Decreto nº
54.216, de 27 de Agosto de 1964); a (ii) Convenção de Substâncias Psicotrópicas
de 1971 (ratificada no Brasil pelo Decreto nº 79.388, de 14 de março de 1977); e a
(iii) Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas e Substâncias
Psicotrópicas de 1988 (ratificada no Brasil pelo Decreto n o 154 de 26 de junho de
1991).
Frise-se que as referidas convenções foram motivadas pela
necessidade de prevenção da produção, uso e comercialização de drogas ilícitas,
6 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2º ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 132.
7 NÓBREGA, Flavianne; TENNO, Yulgan. Os desafios para a efetividade das decisões do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos: estudo comparado sobre a convencionalidade da Lei da Anistia no
Brasil, no Peru e na Argentina. Revista Jurídica da Presidência. No Prelo. Disponível em:
<http://www4.planalto.gov.br/centrodeestudos/publicacoes/revista-juridica-da-presidencia>.
por causarem um grave mal para o indivíduo e constituírem um perigo social e
econômico para a humanidade. Por outro lado, todas elas ressaltam a
necessidade do uso dessas substâncias com fins medicinais ou científicos em
tratamentos que não respondem à terapia tradicional, para o fim de proporcionar o
mínimo de dignidade às pessoas que necessitam de medicação à base de
psicoativos, como as crianças e jovens no presente caso.
Aliás, constitui dever do Estado regulamentar sua
manipulação terapêutica, consoante o preâmbulo da Convenção Única sobre
Entorpecentes de 1961, no reconhecimento de que “o uso médico dos
entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que
medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de
entorpecentes para tais fins”. Nesse deambular, o art. 4º estabelece uma
obrigação de fazer do Estado, no sentido de que este deve adotar todas as
medidas legislativas e administrativas para limitar o uso de entorpecentes a fins
medicinais e científicos. Em seu teor, aduz:
As Partes adotarão todas as medidas legislativas e
administrativas que possam ser necessárias:
a) a entrada em vigor e ao cumprimento das disposições da presente
convenção em seus respectivos territórios;
b) à cooperação com os demais Estados na execução das disposições
da presente Convenção;
c) à limitação exclusiva a fins médicos e científicos, da produção,
fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio uso e
posse de entorpecentes, dentro dos dispositivos da presente
Convenção. (grifei).
Na mesma esteira, apresenta-se a Convenção de
Substâncias Psicotrópicas de 1971, objetivando também a restrição da produção,
distribuição e uso de drogas psicotrópicas a fins médicos e científicos. Tal qual a
Convenção anterior, esta estabelece uma classificação das drogas ilícitas, mas
vai além da Convenção Única, uma vez que procura equilibrar – levando em
conta sua utilidade terapêutica – o controle e as sanções contra danos e efeitos
da dependência de substâncias.
Complementarmente, assevera a Convenção de 1988, em
seu art. 14, § 2º, a respeito da necessidade de se combater o cultivo ilícito de
tais substâncias, dentre elas a cannabis, todavia respeitando os direitos humanos
fundamentais, ipsis litteris:
Cada uma das Partes adotará medidas adequadas para evitar o
cultivo ilícito das plantas que contenham entorpecentes ou
substâncias psicotrópicas, tais como as semente ópio; os arbustos de
coca e as plantas de cannabis, assim como para erradicar aquelas
que são ilicitamente cultivadas em seu território. As medidas
adotadas deverão respeitar os direitos humanos fundamentais e
levarão em devida consideração, não só os usos tradicionais, onde
exista evidência histórica sobre o assunto, senão também a proteção
do meio ambiente. (grifei).
Assim,
resta
claro
que
as
Convenções
multicitadas
estabelecem a obrigação do Estado em permitir o uso medicinal ou científico de
substâncias psicoativas, com fulcro em conceder uma melhor qualidade de vida
às pessoas que necessitam de seu uso terapêutico. Portanto, in casu, a
negligência do Estado brasileiro, em permitir esse uso às crianças e jovens
acometidos pela patologia neurológica que gera crises convulsivas, configura uma
omissão inconvencional – e, portanto, ilegal –, porquanto contrária aos preceitos
das Convenções da ONU aplicáveis ao tema.
2.3.2. A proteção contra ingerências que dificultam o pleno desenvolvimento
da autonomia e dignidade de vida dos incapazes ora substituídos, por meio
das diretrizes constitucionais da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
e seu protocolo facultativo, assinado em Nova Iorque, em 30 de março de 2007,
foram formalmente incorporados à Constituição Federal, por meio do rito previsto
no § 3º, art. 5ª da CRFB/88, adquirindo, portanto, status de Emenda
Constitucional, desde 9 de julho de 2008 (data de publicação do decreto). A
referida Convenção traz, em seu art. 1º, a definição do que seja pessoa com
deficiência, entendida como “(...) aquelas que têm impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com
diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdades de condições com as demais pessoas”.
No presente caso, as vítimas são portadoras de uma
patologia neurológica, que gera crises convulsivas, cuja severidade conduz os
seus portadores a danos no desenvolvimento neuropsicomotor, que têm como
consequência perdas e involuções cognitivas. Estas, por sua vez, podem ser
irreversíveis, em razão da diminuição da plasticidade neural com o decorrer dos
anos.
Com efeito, as crianças e jovens em questão têm sua
autonomia e inserção social dificultada pela patologia neurológica de que são
portadores, descrição que conduz à correta classificação delas como pessoas
com deficiência, nos termos do artigo supramencionado. Isso posto, e em
observação a urgência do pedido, decorrente do estado de risco no qual se
encontram, a pretensão jurisdicional aqui lançada tem amparo no documento
legal já citado, obtendo lastro principalmente nos artigos 3º, “a” e “h”, 7º, §1 e §2,
10º, 11º, ipsis litteris:
Art 3º. Os princípios da presente convenção são: a) O respeito pela
dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive liberdade de fazer
as próprias escolhas, e a independência das pessoas; [...] h) O
respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com
deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua
identidade.
Art. 7º. §1. Os Estados Partes tomarão todas as medidas necessárias
para assegurar às crianças com deficiências o pleno exercício de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de
oportunidades com as demais crianças. §2. Em todas as ações
relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da
criança receberá consideração primordial. (grifos nossos)
Art. 10º. Os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o
inerente direito à vida e tomarão todas as medidas necessárias para
assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com
deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Art. 11º. [...] Os Estados Partes tomarão todas as medidas
necessárias para assegurar a proteção e a segurança das pessoas
com deficiência que se encontrarem em situações de risco [...].
No mesmo sentido, o artigo 25º, “a” e “b”, verbis:
Art. 25. Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com
deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado
possível
[...] Os Estados Partes tomarão todas as medidas
apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a
serviços de saúde [...]; a) Oferecerão às pessoas com deficiência
programas de atenção à saúde gratuitos ou a custas acessíveis da
mesma variedade, qualidade e padrão que são oferecidos às demais
pessoa, inclusive na área [...] de programas de saúde pública [...] d)
Exigirão dos profissionais de saúde que dispensem às pessoas com
deficiência a mesma qualidade de serviços dispensada às demais
pessoas [...] Para este fim, os Estados Partes realizarão atividades de
formação e definirão regras éticas para os setores de saúde público e
privado, de modo a conscientizar os profissionais de saúde acerca dos
direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das
pessoas com deficiência.
Note-se que a finalidade superior dos artigos referenciados é
a proteção contra ingerências e/ou omissões que dificultem o pleno
desenvolvimento dos deficientes, sua autonomia, dignidade, seu projeto de vida.
No presente caso, a pretensão do autor ministerial busca diminuir uma das
barreiras para o caminhar de uma vida mais estável, de forma justa, sem
prejuízos ulteriores à sociedade.
Apesar de encontrado na Cannabis Sativa (maconha), o
Cannabidiol não provoca nenhum efeito colateral significativo, à exceção de
sonolência presente apenas em altas dosagens, de acordo com os estudos
realizados até então (vide artigo do Prof. Malcher-Lopes, citado acima). Portanto,
é dever do Estado garantir os direitos fundamentais de autonomia,
autodeterminação, desenvolvimento pleno das capacidades intelectuais,
socialização e – o princípio máximo da nossa constituição e dos direitos humanos
– a dignidade da pessoa humana aos portadores de enfermidades neurológicas
convulsionantes, bem como a todos os demais em condições semelhantes,
cabendo a responsabilização por omissão inconstitucional e/ou inconvencional,
caso as demandas não sejam atendidas.
2.3.3. O regime jurídico especial concedido pelo Sistema Interamericano de
Direitos Humanos – da ofensa ao direito convencional à saúde.
Quanto a esta matéria, importante repetir que a alta
frequência de crises epiléticas tem o condão de afetar a integridade física e
psicológica dos substituídos, a sua qualidade de vida e a sua dignidade, enquanto
seres humanos. Assim, evidente se torna que o Estado precisa tomar as posturas
necessárias para soluções de tais inconvenientes, para que seja tutelado,
urgentemente, o Fundamento da República Federativa do Brasil, exposto no art.
1º, inciso III, da Constituição de 1988.
Ainda, o direito de acesso à saúde é previsto, do mesmo
modo, na Constituição Federal, de 1988, em seu art. 196. Dessa forma, evidente
que o Estado tem uma obrigação positiva para com essas pessoas, posto que é
seu o dever de prover-lhes a saúde e, assim, restaurar sua dignidade enquanto
seres humanos. Desta forma, a liberação, pelo Estado, da importação e uso do
Cannabidiol a esses pacientes é medida urgente e necessária, uma vez
convolado, como aqui se demonstra, no tratamento mais eficaz e seguro.
Desta feita, a negativa do Estado em liberar a citada
substância, para importação e utilização no tratamento dos acometidos, resulta
em flagrante desrespeito ao direito à integridade pessoal dos mesmos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH),
interpretando a Convenção Americana de Direitos Humanos, tem decidido que o
gozo do direito à vida está diretamente ligado ao fornecimento de condições que
permitam a proteção à integridade física, psicológica e moral (integridade pessoal)
dos indivíduos:
“A Corte tem, repetidamente, estatuído que o direto à vida é um direito
humano fundamental, o gozo e exercícios deste é prerrequisito para o
exercício de todos os outros direitos. Integridade pessoal é essencial
para o gozo da vida humana.” 8
Também, a Corte IDH tem julgado que a proteção ao direito à
integridade pessoal perpassa a proteção à saúde humana:
“No que toca à relação entre a obrigação de garantia (artigo 1 (1)) e
artigo 5(1) da Convenção, a Corte tem estabelecido que o direito à
integridade pessoal é direta e imediatamente ligado à atenção à saúde
humana”.9
Quanto à proteção e exigibilidade dos direitos econômicos,
sociais e culturais, como o é o direito a saúde, adverte a Corte IDH:
“Nesse contexto, a Corte julga que é apropriado recordar sobre a
interdependência que existe entre direitos civis e políticos e direitos
econômicos, sociais e culturais, uma vez que eles devem ser
totalmente entendidos como direitos humanos, sem nenhuma
hierarquia e exigíveis em todos os casos perante as autoridades
competentes.”10
Sobre a hipóteses de responsabilização do Estado, dispõe a
Corte IDH:
8 Caso Albán – Cornejo e outros v. Equador, Julgamento de 22 de novembro de 2007, parág. 117.
9 Caso Suárez Peralta v. Equador, Julgamento de 21 de maio de 2013, parág. 130.
10 Caso Acevedo Buendia e outros v. Perú, Julgamento de 1 de julho de 2009, parág. 101.
“As hipóteses de responsabilidade do Estado podem ser geradas
quando um órgão ou autoridade estatal ou uma instituição pública
pode afetar, ilegalmente, tanto por atos quanto por omissões, algum
dos interesses legais protegidos pela Convenção Americana.” 11
“A assistência médica deficiente recebida pela alegada vítima constitui
uma violação ao Artigo 5 da Convenção Americana.” 12
Ainda, tal ato de denegação Estatal constituirá violação da
integridade psicológica e moral dos familiares dos enfermos que tiveram seus
direitos violados pela omissão estatal, conforme inteligência da jurisprudência da
Corte IDH:
“Sobre este ponto, a Corte tem considerado que o direito à integridade
psicológica e moral de alguns membros das famílias das vítimas tem
sido violado devido ao sofrimento adicional ao qual foram submetidos
como resultado de circunstâncias específicas de violações perpetradas
contra seus entes queridos, e por causa dos subsequentes atos ou
omissões das autoridades do Estado em relação aos fatos.”13
Ex positis, entende-se que ao impedir o acesso dos
substituídos e/ou responsáveis à substância “Cannabidiol”, o Estado brasileiro
viola os supracitados artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos,
expondo-se à possível tutela da matéria pela Corte IDH, e à consequente
condenação internacional por parte desta.
2.3.4. Adequação das Normas Regentes do caso para uma efetiva tutela do
direito à saúde dos que dele necessitam.
A forma disciplinada pela ANVISA para acesso à tal
substância, frise-se, é demasiado imprópria, eis que as exigências estabelecidas
para o acesso daqueles que necessitam do tratamento constituem-se em tarefa
quase impossível, conforme os depoimentos colhidos no curso do Procedimento
Preparatório do MPF (em anexo, e com trechos transcritos na presente exordial),
posto que médicos não fornecem as prescrições acompanhadas do termo de
responsabilidade. Diante disto, uma medida que visa o interesse fiscalizatório, por
parte do Estado, termina por assumir claro viés proibitório, ao impor apresentação
de documento cuja obtenção é dificultosa, algo que vai de encontro à urgência do
acesso constante e ininterrupto ao produto inerente a qualquer tratamento de
médio e longo prazo.
Ante o exposto, resulta cristalina a omissão inconvencional do
Estado, em desacordo com os standards estabelecidos pelas Convenções da
ONU sobre entorpecentes; Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e
com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua jurisprudência
correlata, o que sedimenta ainda mais os pedidos lançados pelo autor ministerial
ao final desta peça.
11 Caso Albán – Cornejo e outros v. Equador, Julgamento de 22 de novembro de 2007, parág. 119.
12 Caso Tibi v. Equador, Julgamento de 07 de setembro de 2004, parág. 157.
13 Caso Suárez Peralta v. Equador, Julgamento de 21 de maio de 2013, parág. 156.
3. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Ao Ministério Público foi incumbida a defesa dos interesses
sociais e individuais indisponíveis, competindo-lhe ainda zelar pelos serviços de
relevância pública e pelos direitos assegurados na Constituição, promovendo as
medidas necessárias à sua garantia, conforme insculpido nos artigos 127 e 129,
inc. II, da Carta Magna. Com base nesse mesmo texto, ficou reconhecida a
legitimidade processual ativa ao Ministério Público para promover ação civil
pública na defesa de direito individual indisponível.
A saúde é direito individual, indisponível e homogêneo,
assegurado constitucionalmente e que constitui serviço de relevância pública,
competindo ao Estado assegurá-la a todos os cidadãos. Dessa forma, quando tal
direito é obstado, negligenciado, negado ou postergado, atinge a sociedade como
um todo, na medida em que seu direito líquido e certo à saúde está em vias de
ser lesionado pela ação desproporcional da autoridade pública (a quem compete
o ônus de garantir referido direito), ao obstar o acesso ao tratamento adequado à
recuperação do paciente, cuja saúde necessita de assistência e prioridade.
Assim, o Ministério Público, agindo em defesa de serviço
público relevante, de quadrante constitucional, que é o direito à saúde, possui
legitimação processual extraordinária para garantir o direito indisponível dos
substituídos PEDRO AMÉRICO GERIZ NETO, JOÃO VITOR DE OLIVEIRA
FERNANDES, SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES, VITOR BEZERRA DE
SOUTO, CAMILE GONZALEZ ROCHA, PEDRO GABRIEL GUIMARÃES
FERREIRA SIGISMUNDO, DAVI TABOSA SOUTO, MARINA CARVALHO DE
SOUZA, FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS, ISABELLY LARISSA
DIAS ARAÚJO, FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA, MARCELLY MARIA
SILVA MAIA, BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ, JOÃO
VITOR BATISTA FERREIRA, RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA e SAMUEL
VITOR LIMA FERNANDES * à obtenção do único tratamento medicamentoso
atualmente capaz de debelar crises epilépticas decorrentes de encefalopatia
incurável, mas que atualmente não pode ser realizado de forma ordinária no país
em razão da ausência de registro do medicamento e por ser a substância de uso
proscrito em lista da ANVISA.
Em inúmeras decisões, os Tribunais pátrios já reconheceram
a legitimidade do Ministério Público para atuar como substituto processual em
favor de pessoa doente, haja vista ser indiscutível a legitimidade do órgão
ministerial, como forma de preservar o direito do substituído que reclama do
Poder Público atuação efetiva para resguardar-lhe a saúde e a vida. É o que se
apanha dos seguintes julgados, verbis:
PROCESSO CIVIL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA
AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA VISANDO AO FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTO A PESSOA IDOSA. OBRIGAÇÕES DE FAZER E
ENTREGAR COISA. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA.CABIMENTO,
INCLUSIVE CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. 1. O Ministério Público
possui legitimidade para defesa dos direitos individuais indisponíveis,
mesmo quando a ação vise à tutela de pessoa individualmente
considerada. 2. O artigo 127 da Constituição, que atribui ao Ministério
Público à incumbência de defender interesses individuais indisponíveis,
contém norma auto-aplicável, inclusive no que se refere à legitimação
para atuar em juízo. 3. Tem natureza de interesse indisponível a tutela
jurisdicional do direito à vida e à saúde de que tratam os arts. 5º, caput e
196 da Constituição, em favor de pessoa idosa que precisa fazer uso
contínuo de medicamento. A legitimidade ativa, portanto, se afirma, não
por se tratar de tutela de direitos individuais homogêneos, mas sim por
se tratar de interesses individuais indisponíveis. 4. É cabível, mesmo
contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como
meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer (fungível ou
infungível) ou entregar coisa. Precedentes. 5. Recurso especial a que
se nega provimento (REsp 822712/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO
ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04.04.2006, DJ 17.04.2006
p. 196 referência).
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MENOR. DIREITO
INDIVIDUAL INDISPONÍVEL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTES DO STF E STJ.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.
1. A Primeira Seção deste Tribunal Superior pacificou o entendimento
das Turmas de Direito Público no sentido de que o Ministério Público
possui legitimidade para ajuizar medidas judiciais para defender direitos
individuais indisponíveis, ainda que em favor de pessoa determinada:
EREsp 734.493/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 16.10.2006; EREsp
485.969/SP, Rel. Min. José Delgado, DJ de 11.9.2006. 2. No mesmo
sentido, os recentes precedentes desta Corte Superior: EREsp
466.861/SP, 1ª Seção, Rel. Min Teori Albino Zavascki, DJ de 7.5.2007;
REsp 920.217/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 6.6.2007;
REsp 852.935/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 4.10.2006;
Resp 823.079/RS, 1ª Turma, Rel. Min. José Delgado, DJ de 2.10.2006;
REsp 856.194/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de
22.9.2006; REsp 700.853/RS, 1ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux,
DJ de 21.9.2006; REsp 822.712/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Albino
Zavascki, DJ de 17.4.2006. 3. Embargos de divergência providos
(EREsp 737958/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA
SEÇÃO, julgado em 12.09.2007, DJ 15.10.2007 p. 219).
PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO
EM MANDADO DE SEGURANÇA. SUS. FORNECIMENTO GRATUITO
DE MEDICAMENTO, PELO ESTADO, ÀPESSOA HIPOSSUFICIENTE
PORTADORA
DE
DOENÇA
GRAVE.
OBRIGATORIEDADE.
LEGITIMIDADE PASSIVA. SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE.
POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. ART. 515, §
3º, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.
EFETIVIDADE. AFASTAMENTO DAS DELIMITAÇÕES. PROTEÇÃO A
DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. DEVER
CONSTITUCIONAL. ARTS. 5º, CAPUT, 6º, 196 E 227 DA CF/1988.
PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR E DO COLENDO STF.
(…) 5. Constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar
a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer
medicamento essencial à saúde de pessoa carente, especialmente
quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar,
prematuramente, a sua morte.
6. O Estado, ao negar a proteção perseguida nas circunstâncias dos
autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a
cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostenta prática
violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e
insensível.
7. Pela peculiaridade do caso e em face da sua urgência, hão de se
afastar as delimitações na efetivação da medida sócio-protetiva
pleiteada, não padecendo de ilegalidade a decisão que ordena à
Administração Pública a dar continuidade a tratamento médico.
8.Legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública
em defesa de direito indisponível, como é o direito à saúde, em benefício
de pessoa pobre.
9. Precedentes desta Corte Superior e do colendo STF.
10. Recurso provido(RMS 23.184/RS, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 27.02.2007, DJ 19.03.2007 p. 285).
4. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO
O debate quanto à legitimidade passiva da UNIÃO, em ação
judicial que busca a liberação do fornecimento de medicamento, cujo controle e
fiscalização cabe a autarquia federal, qual seja, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA), é questão que dispensa maiores discussões.
É importante repisar que, indubitavelmente, a substância em
foco é necessária ao tratamento de crises epilépticas sofridas pelos menores e
jovens acometidos, referidos no item 1.1. desta petição, que correm risco de
danos cerebrais e psicomotores irreversíveis (inclusive de morte) caso não seja
ministrada, pois todo tratamento à disposição não surte qualquer efeito.
Com isso, diante da clara necessidade em saúde, deve a
União disponibilizar os meios necessários para satisfazê-la, uma vez que é a
ANVISA, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, órgão da União, principal
órgão responsável pelo entrave que resulta na não administração regular do
medicamento para os substituídos.
Afinal, tal obrigação é imposta pela própria Constituição
Federal que, além de incumbir União e Estados de cuidarem da saúde e
assistência pública (art. 23), aponta que a saúde é direito social (art. 6º) de todos
e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art.
196). Como se não bastassem as disposições constitucionais supra, a Lei nº
8.080/1990, que regula o Sistema Único de Saúde (SUS), preceitua no mesmo
sentido (arts. 2º, 5º, inc. III, 6º, inc. I, “d”, e 7º, caput e inc. II).
5. DOS REQUISITOS PARA A CONCESSÃO DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
Diante da gravidade do direito protegido por meio desta
demanda (saúde de jovens e crianças), e levando em consideração a evidente
situação de impossibilidade de assistência a esse direito através dos meios e
técnicas ordinários (tratamentos medicamentosos tradicionais) à disposição dos
profissionais de saúde em território nacional, como demonstrado no curso da
presente peça, é de se supor que a solução judicial ora pleiteada – qual seja, a
liberação para importação e uso da substância Cannabidiol pelos substituídos,
por se tratar de único tratamento viável para as crises epiléticas e os danos
cerebrais e psicomotores delas provenientes – deva oferecer a mais célere tutela
possível.
A possibilidade de concessão de medida liminar em ação civil
pública encontra previsão legal expressa no artigo 12, caput, da Lei Nº.
7.347/1985. Ante a ausência, no regramento próprio, de previsão acerca dos
requisitos para o deferimento da medida liminar, aplicam-se as regras do Código
de Processo Civil atinentes à tutela antecipatória, especialmente a seguinte,
verbis:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou
parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde
que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da
alegação e:
I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação;
II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto
propósito protelatório do réu.
§ 1º. Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e
preciso, as razões do seu convencimento.
§ 2º. Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo
de irreversibilidade do provimento antecipado.
§ 3º. A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e
conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º
e 5º, e 461-A (…).
Percebe-se, sem muita dificuldade, que os requisitos legais
exigidos para a concessão da tutela antecipatória assecuratória aqui requerida
estão efetivamente presentes. A verossimilhança vem demonstrada pela
exposição fática e jurídica até o momento exposta, corroborada pela conteúdo
probatório que acompanha a inicial, consubstanciado no Inquérito Civil Público Nº.
1.24.000.001421/2014-74, donde se extrai senão a prova inequívoca dos fatos
narrados, mas elementos suficientes para a formação do convencimento
provisório do Juízo (ineficiência dos tratamentos à disposição e eficácia da
substância proscrita pela ANVISA nos casos enfrentados pelas crianças e jovens
aqui mencionados).
Demais disso, não faria sentido que, em sede de antecipação
de tutela, se exigisse um grau de certeza ainda maior do que o propugnado pelos
próprios princípios do direito processual civil, sabendo-se que sequer para a
sentença que julga o mérito é necessária a demonstração da verdade real. Nesse
sentido, comprovada a verossimilhança da alegação, pois certo é o direito das
crianças e jovens substituídos de acesso à única alternativa médica disponível no
momento para amenizar os efeitos nefastos da enfermidade que enfrentam, qual
seja, o uso do medicamento conhecido como CANNABIDIOL.
Certa, também, é a responsabilidade da União e da Agência
de Vigilância Sanitária, ora requeridos, ao impedir, de forma totalmente
desarrazoada, a disponibilização desse tratamento, ao vedar a importação e
proibir o uso e, ainda, criar fortes entraves burocráticos para excepcionar alguns
poucos casos, sem que tal possa ser posto em dúvida diante do arcabouço
normativo ora citado.
No tocante ao perigo da demora, de maneira nenhuma poderse-á duvidar do atendimento ao requisito da existência de "fundado receio de
dano irreparável ou de difícil reparação". O estado de saúde das crianças e jovens
é grave, senão preocupante, pois as crises por eles sofridas, como já discutido,
seguidamente vão solapando a possibilidade de recuperação do epitélio neural,
resultando em sérios danos psicomotores que prejudicarão, em definitivo, o
desenvolvimento mental e físico dessas pessoas, podendo até levá-los a óbito,
caso não lhes sejam administrado o CANNABIDIOL.
Nesse contexto, conclui-se que a antecipação dos efeitos da
tutela é medida que se impõe, haja vista que o seu não deferimento acarretará em
prejuízos irreparáveis à saúde e à vida das pessoas envolvidas.
Assim, uma vez que se encontram presentes os requisitos
legais autorizadores previstos no art. 273 e incisos do CPC, há a possibilidade de
concessão de medida de natureza cautelar, evitando o perecimento do direito do
autor, conforme preceitua o artigo 273, §7º, verbis:
§ 7º Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência
de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos
pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do
processo ajuizado.
Evidenciada, portanto, a necessidade de obtenção da
medida antecipatória, de fundamental importância para (16 crianças e
jovens)*PEDRO AMÉRICO GERIZ NETO, JOÃO VITOR DE OLIVEIRA
FERNANDES, SAMUEL DE OLIVEIRA FERNANDES, VITOR BEZERRA DE
SOUTO, CAMILE GONZALEZ ROCHA, PEDRO GABRIEL GUIMARÃES
FERREIRA SIGISMUNDO, DAVI TABOSA SOUTO, MARINA CARVALHO DE
SOUZA, FRANCISCO GABRIEL QUEIROZ DE FARIAS, ISABELLY LARISSA
DIAS ARAÚJO, FERNANDO RUY DE LIMA BARDELLA, MARCELLY MARIA
SILVA MAIA, BÁRBARA ISADORA AMARAL CARVALHO GOMES DE SÁ,
JOÃO VITOR BATISTA FERREIRA, RAYSSA GABRIELY NUNES DA SILVA e
SAMUEL VITOR LIMA FERNANDES , requer o MPF:
a) em primeiro lugar, seja determinada à UNIÃO e à
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA que se abstenham de
destruir, devolver, reter, impedir a compra e a obtenção ou, de alguma outra
forma, fazer com que qualquer objeto postal importado, contendo produto com
medicamento composto de CANNABIDIOL com a devida receita médica, e
endereçado aos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou seus responsáveis,
não chegue ao seu destino;
b) a aplicação de multa diária na ordem de R$ 100.000,00
(cem mil reais) em razão de eventual descumprimento a quaisquer das
determinações acima;
6. DOS PEDIDOS
Em face de tudo quanto acima foi exposto, o MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL requer:
a) a concessão de antecipação de tutela nos termos
formulados acima (item “5”, letras “a” e “b”);
b) a citação dos demandados, nos endereços mencionados,
para, querendo, responder aos termos da presente ação, sob pena de revelia;
c) provar o alegado por todos os meios em Direito admitidos,
especialmente, juntada posterior de documentos, realização de perícias médicas
e oitiva de testemunhas, tudo desde logo requerido;
d) por fim, a procedência do pedido, ordenando-se:
d.1. a confirmação da tutela antecipada requerida, para que
se determine à UNIÃO e à AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA
que se abstenham de destruir, devolver, reter, impedir a compra e a obtenção ou,
de alguma outra forma, fazer com que qualquer objeto postal importado, contendo
produto com medicamento composto de CANNABIDIOL com a devida receita
médica, e endereçado aos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou seus
responsáveis, não chegue ao seu destino;
d.2. à AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA
que se abstenha de exigir, dos pacientes listados nesta inicial (item 1.1) e/ou dos
seus responsáveis, a apresentação de termo de compromisso firmado por médico
ou de qualquer outra documentação para a importação e o uso do medicamento
CANNABIDIOL além da receita médica mencionada no item anterior;
e) a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros
encargos, na forma do que dispõe o art. 18 da Lei Federal nº 7.347/1985, e no
artigo 87, do Código de Defesa do Consumidor;
f) à causa, para efeitos fiscais, dá-se o valor de R$ 1.000,00
(mil reais).
João Pessoa, 31 de julho de 2014.
JOSÉ GODOY BEZERRA DE SOUZA
Procurador da República
Procurador Regional dos Direitos do Cidadão
*Todas as informações de caráter pessoal foram retiradas em obediência ao artigo 9º, inciso III, da Portaria
PGR/MPF nº 918, de 18 de dezembro de 2013, que instituiu a Política Nacional de Comunicação Social do
Ministério Público Federal.
Download