UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA FREDERICO MEIRELES DANTAS COMPOSIÇÃO PARA BANDA FILARMÔNICA: ATITUDES INOVADORAS Salvador - BA 2015 ii FREDERICO MEIRELES DANTAS COMPOSIÇÃO PARA BANDA FILARMÔNICA: ATITUDES INOVADORAS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música, Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música. Área de concentração: Composição Orientador: Prof. Dr. Paulo Costa Lima Co-orientador: Dr. Wellington Gomes Salvador - BA 2015 D192Dantas, Frederico Meireles. Composição para banda filarmônica: atitudes inovadoras./ Frederico Meireles Dantas.____Salvador, 2015. 275f. Orientador: Prof. Dr. Paulo Costa Lima Co-orientador: Dr. Wellington Gomes da Silva. Tese (Doutorado em Composição) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Música, 2015. 1.Composição Músical 2.Filarmônica (Banda de Música) I. Lima, Paulo Costa – Orientador. II.Silva, Wellington Gomes da – Co-orientador. III.Universidade Federal da Bahia. Escola de Música. III.Título. CDU:78.02 Elaborada por: Linda Carla Vidal Bulhosa Gomes. CRB-5/1554. iii Copyright by Federico Meireles Dantas Abril 2015 iv TERMO DE APROVAÇÃO v AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas que, ao longo da minha vida, contribuíram para que se chegasse à realização deste trabalho. Faço questão de agradecer individualmente: Aos meus pais, Dorivaldo e Edith, por minha formação e pelo exemplo de vida. A Irma, que durante o curso foi namorada, noiva e finalmente esposa, pela ajuda efetiva na formatação do trabalho. Aos meus filhos Cayo, Betto, Pedro, Estevam e Helena, por me inspirarem. Aos meus irmãos, Nádia, Dina, Roberto e George, pelo apoio sempre. Ao meu orientador, Paulo Costa Lima, pelo brilhante exemplo profissional. Ao co-orientador Wellington Gomes, pela atenção amiga; a Ângela Lünhing e Joel Barbosa, da banca do qualificativo, pelas observações que influenciaram a versão final deste trabalho. Aos mestres de banda do interior da Bahia, do passado e do presente, por constituírem o assunto do presente trabalho. À Oficina de Frevos e Dobrados, por ser o painel de toda a minha atitude renovadora. Ao Dr. José Carlos Travessa, pelo exemplo que me incentivou retomar a vida acadêmica. À Orquestra Sinfônica da UFBA, pelo convívio, a Piero Bastianelli, pelo empenho em dar vida e estrear minhas obras. Aos professores do PPGMUS-UFBA pelas aulas e convívio. Aos funcionários da Escola de Música da UFBA. vi DANTAS, Frederico Meireles. Composição para Banda Filarmônica: atitudes inovadoras. 2015. 275 f.Tese (Doutorado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. RESUMO O presente trabalho de pesquisa toma como objeto a importância cultural, social e musical da banda filarmônica, especialmente a partir da dimensão do compor. Compreendendo que o meu processo poderá servir de exemplificação e laboratório, passarei a evocar episódios de geração de repertório na Banda de Caetité e na Banda 21 de Abril, onde me iniciei. Identificaremos diferentes estilos de composição em quatro áreas da Bahia: Recôncavo, Sertão, Lavras Diamantinas e a fronteira com Sergipe. Observaremos como a fundação da Oficina de Frevos e Dobrados, em 1982, contribuiu ara a criação de músicas inovadoras e diversas ações sociais que movimentaramo ambiente das bandas. A análise musicológica irá nos revelar como compor e instrumentar são ações simultâneas e que o repertório tradicional poderá ser resumido em três estilos: o Dobrado, a Peça de harmonia e a Música ligeira, onde revezam-se as funções que a tradição oral dos mestres denomina Canto, Contracanto, Centro e Marcação. Procurando por parâmetros fora da Bahia, encontraremos que, há cerca de um século, surgiram duas atitudes inovadoras: no Rio de Janeiro, Anacleto de Medeiros e sua banda do Corpo de Bombeiros; nos Estados Unidos, James Reese Europe e os Hellfighters, que foram fundamentais para o surgimento do choro e do jazz, respectivamente. A partir desse conhecimento vamos elencar Categorias da dimensão do compor para banda concluindo que uma dessas forças será a Preservação e transformação da tradição: licença histórica, parâmetros que podem ser transformados e relação entre antiga e nova vanguarda. Outra categoria é o Movimento: a re-texturização de padrões rítmicos populares, levando em conta tanto a condução quanto a melodia. O impulso de compor pode surgir por Ímpeto: nesse caso age a demanda por música, oprogresso do conjunto e competição entre diferentes bandas. O compor pode se inspirar no Discurso do mestre, sobre musica, ética da filarmônica ou sua história; outra dimensão será a noção da Repetição, seja por barras de compasso, por sinais de segno ou da capo: isso leva à reafirmação da forma, do discurso musical e à reflexão sobre temas já ouvidos. Finalmente observaremos que compor para banda considera a relação do Músico com o conjunto: seu pertencimento em relação ao grupo, o contraponto a ele confiado e sua participação em um naipe. A experiência de compor nos levará à criação de novas músicas como laboratório onde essas idéias serão aplicadas em três músicas renovadoras, correspondendo aos estilos adotados em banda filarmônica: dobrado Anysio Teixeira, Fantasia Sedare dolorem opus Divinum est e maxixe Bandeira do Divino. PALAVRAS-CHAVE: Música, Composição e Banda Filarmônica vii DANTAS, Frederico Meireles. Music of philharmonic band: innovative approaches 2015. 275 f.Tese (Doutorado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. ABSTRACT The object of this investigation is the cultural, social and musical importance of the philharmonic band, with a particular focus on composition. An important frame of reference for this work was understanding my own development, as both exemplification and experimental laboratory, which led me to recall episodes from the generation involved in the repertoires of the Banda de Caetité and the Banda 21 de Abril, where my musical initiation began. Here, I identify different styles of composition from four areas in the state of Bahia: the Recôncavo; the Sertão; Lavras Diamantinas; and the border with Sergipe.I observe how the foundation of the Frevos and Dobrados Workshop in 1982 contributed to the creation of innovative music and to a range of social activities which stimulated the environment for such bands. The musicological analysis reveals how composition and instrumentation are simultaneous activities and how the traditional repertoire brings together three styles: the Dobrado, the Harmony Part, and Light Music, each of which has a well-defined function for the Main Melody, the Secondary Melody, the Accompaniment and the Bassline plus Percussion. When searching for parameters outside Bahia, one sees that two innovative approaches emerged almost a century ago: Anacleto de Medeiros and his band the Corpo de Bombeiros in Rio de Janeiro and James Reese Europe and the Hellfighters in the United States, who were fundamental to the emergence of choro and jazz, respectively. From there, I list the Categories related to composing for a band, concluding that one of its forces is the Preservation and Transformation of tradition, encompassing: artistic license with history, parameters that may be transformed and the relationship between the old and new vanguard. Another category is Movement: the retexturing of popular rhythm patterns, taking both conducting and melody into account. The urge to compose may emerge through Impetus: in this case the demand for music, the group’s progress and competition between different bands. Composition may emerge from the maestro’s Discourse about music, the ethic of the philharmonic or its history. Another dimension is the notion of Repetition, either through bar lines, segno marks or da capo: this leads to a reassertion of both form and musical discourse and a reflection on themes already heard. Finally, I observe that composing for a band takes account of the relationship between the Musician and the group: their sense of belonging to the group, the musical counterpoint entrusted to them and their participation in an instrumental section. The experience of composing led me to create new music, through a laboratory in which these ideas are applied to three revised pieces of music, which correspond to the styles adopted by the philharmonic band: the AnysioTeixeira Dobrado, the Sedare dolorem opus Divinum est Fantasia and the Bandeira do Divino Maxixe. KEYWORDS: Music, Composition and Philharmonic Band viii LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Banda do 1º Regimento da Armada Real em 1793 24 Figura 2 - Carimbo da Sociedade Muzical 5 Rios de Maracangalha, 1927 30 Figura 3 - Anacleto de Medeiros 40 Figura 4 - Banda do Corpo de Bombeiros, com Anacleto de Medeiros, em 1896 42 Figura 5 - Músicos de banda na I Guerra e instrumentos danificados em campanha 43 Figura 6 - Jim Europe 45 Figura 7 - Edição de Castles in Europe, de Jim Europe 47 Figura 8 - Funeral de James Reese Europe 48 Figura 9 - Poloneza O canto da serra, de José Propheta Silveira, o Zeca Laranjeiras 68 Figura 10 - Dedicatória ao filho 68 Figura 11 - Tuada no Sertão, de Isaias Gonçalves Amy 70 Figura 12 - Banda de Caetité tocando em Urandi 83 Figura 13 - Álvaro Villares Neves 84 Figura 14 - Banda 21 de Abril 95 Figura 15 - Tranquillino, o mestre dos mestres de filarmônica 99 Figura 16 - Filarmônica Recreio Operário, de Aramari 108 Figura 17 - 2ª Turma da Oficina de Frevos e Dobrados em 1983, na EMAC-UFBA 111 Figura 18- Dedicatória do mestre Antônio Matheus de França 117 Figura 19- Lira de Maracangalha 122 Figura 20- Festival de Filarmônicas do Recôncavo 125 Figura 21- São Félix durante o Festival de Filarmônicas 126 Figura 22- Músicos e caboclo em São Félix 129 Figura 23- Banda de Música Claudionor Wanderley, do Corpo de Bombeiros 138 Figura 24 - Giriba tubas 148 Figura 25 - Luis Ayala grava a Oficina 158 Figura 26- Dorivaldo Dantas, pracinha 196 Figura 27 - Curso Mestres em Sr. do Bonfim 212 Figura 28 - Tabela serial 224 ix LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS Exemplo Musical 1 - Marcha fúnebre 25 Exemplo Musical 2 - Dobrado dos barbeiros de Irará 33 Exemplo Musical 3 - Zinha, de Pattapio Silva 34 Exemplo Musical 4 - Afrikaan Beat, de Bert Kaempfert 36 Exemplo Musical 5 - Saltitando 37 Exemplo Musical 6 - Os bohêmios, de Anacleto 42 Exemplo Musical 7 - Síncopes em Castles in Europe 47 Exemplo Musical 8 - Canto do dobrado 220, de A. M. do Espírito Santo 55 Exemplo Musical 9 - Phase de noivado, de Estevam Moura 56 Exemplo Musical 10 - Dobrado Baptista de Mello, de José Alves 57 Exemplo Musical 11 - Modelos de centro 58 Exemplo Musical 12 - Modelos de marcação 59 Exemplo Musical 13 - Forma do dobrado 63 Exemplo Musical 14 - Fantasia “7 Palavras”, de Isaias Gonçalves Amy 75 Exemplo Musical 15 - Fantasia “7 Palavras”, de Isaias Gonçalves Amy 76 Exemplo Musical 16 - Fantasia “Cruz de Honra”, de autor não mencionado 76 Exemplo Musical 17 - Dobrado Tusca, de Estevam Moura 77 Exemplo Musical 18 - Abertura A Cruz de Honra 77 Exemplo Musical 19 - Dobrado Os Músicos, de João Sacramento Neto 78 Exemplo Musical 20 - Dobrado Os Músicos, com bordaduras feitas de ouvido 78 Exemplo Musical 21 - Samba Galhofeiro, de Álvaro Villares Neves 84 Exemplo Musical 22 - Dobrado Saudades de minha terra 88 Exemplo Musical 23 - Dobrado Dois Corações 89 Exemplo Musical 24 - “Uma melodia singela” 89 Exemplo Musical 25 - Marcha religiosa Fra Terenzio 92 Exemplo Musical 26- Maxixe Carinhoso 92 Exemplo Musical 27- Dobrado Victória 93 Exemplo Musical 28 - “O bolerin de Fred” 93 Exemplo Musical 29 - “Bolerin” com melodia corrigida 93 Exemplo Musical 30 - Terça maior na segunda voz 94 Exemplo Musical 31 - Dobrado n. 155, “O navio negreiro” 100 x Exemplo Musical 32 - Dobrado Dioclécio Ferreira, de Amando Nobre 101 Exemplo Musical 33- Dobrado Verde e Branco, de Estevam Moura 103 Exemplo Musical 34- Polaca Maria Almeida, de Tertuliano Santos 103 Exemplo Musical 35- Dobrado O bode preto, de Júlio Cezar Souza 105 Exemplo Musical 36- Marcha-frevo n. 9, de Isaias Gonçalves Amy 107 Exemplo Musical 37 - Ave Maria, de Abelardo Enéas Campos 109 Exemplo Musical 38 - Ave Libertas, de Waldemar da Paixão 142 Exemplo Musical 39 - Dobrado Luis Ayala 157 Exemplo Musical 40 - Padrões de centro e marcação 165 Exemplo Musical 41 - Padrões populares de centro-marcação 165 Exemplo Musical 42- Abertura na Levada 166 Exemplo Musical 43 - Afixerê 167 Exemplo Musical 44- Maxixe Carinhoso 167 Exemplo Musical 45- Modelos centro-marcação no dobrado 168 Exemplo Musical 46- Movimento melódico no maxixe 168 Exemplo Musical 47- Movimento melódico no dobrado 168 Exemplo Musical 48- Movimento melódico na marcha popular 169 Exemplo Musical 49- Movimento melódico na passeiata 169 Exemplo Musical 50- Diálogo canto-contracanto na marcha lenta 169 Exemplo Musical 51- Dobrado Novo 171 Exemplo Musical 52 - Dobrado Pepezinho 172 Exemplo Musical 53 - Dobrado 2 de Julho 173 Exemplo Musical 54 - Trio do Dobrado 2 de Julho 174 Exemplo Musical 55- Suite Maragogipe 176 Exemplo Musical 56 - Marcha Santo Antônio 178 Exemplo Musical 57 - Trio do dobrado Anysio Teixeira 183 Exemplo Musical 58- Embalo da Suíte Maragogipe 186 Exemplo Musical 59 - Séries do dobrado Anysio Teixeira 190 Exemplo Musical 60- Tríades do dobrado Anysio Teixeira 190 Exemplo Musical 61 - Discurso serial do trio no dobrado Anysio Teixeira 190 Exemplo Musical 62- Introdução do dobrado Anysio Teixeira 191 Exemplo Musical 63- Primeira parte do Anysio Teixeira 191 Exemplo Musical 64- Divisi e gesto cromático no Anysio Teixeira 192 Exemplo Musical 65- Parte Forte do Anysio Teixeira 192 xi Exemplo Musical 66- Trio do dobrado Anysio Teixeira 193 Exemplo Musical 67 - Trio, 2ª parte no Anysio Teixeira 193 Exemplo Musical 68 - Série “Dr. Dantas” 195 Exemplo Musical 69 - Sprechgesang em Sedare dolorem 197 Exemplo Musical 70 - Ritmo do Divino Espírito Santo em Barreiras 198 Exemplo Musical 71 - Bandeira do Divino 199 Exemplo Musical 72 - Cativeiro de Iaiá 213 Exemplo Musical 73- Polaca Serra do Vento 219 Exemplo Musical 74- Fantasia Mocambo 220 Exemplo Musical 75 - Dobrado Dois corações 222 Exemplo Musical 76- Experiência serial 222 Exemplo Musical 77- Experiência temática 223 Exemplo Musical 78- Experiência com timbres 223 Exemplo Musical 79- Experiência com improvisação 224 xii SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16 1 OS REPERTÓRIOS TRADICIONAIS E A PRÁTICA DO COMPOR .................... 19 1.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA DE BANDA ..................................... 21 1.1.1 Música de banda no mundo antigo e na Europa ........................................... 22 1.1.2 Música de banda no Brasil........................................................................... 26 1.1.2.1 Banda de barbeiros............................................................................... 31 1.1.2.2 Jazz da Filarmônica ............................................................................. 35 1.1.3 Experiências inovadoras com a música de banda ......................................... 38 1.1.3.1 Anacleto de Medeiros e a Banda do Corpo de Bombeiros .................... 40 1.1.3.2 James Reese Europe e os Hellfighters .................................................. 43 1.1.4 Repertório Significativo para Banda de Música ........................................... 48 1.2 PRÁTICA DO COMPOR, FORMA E FUNÇÃO INSTRUMENTAL ............... 54 1.2.1 Canto .......................................................................................................... 55 1.2.2 Contracanto ................................................................................................. 56 1.2.3 Centro ......................................................................................................... 57 1.2.4 Marcação .................................................................................................... 58 1.2.5 Exemplo de distribuições das funções ......................................................... 59 1.3 ESTILOS DE MÚSICA PARA BANDA NO BRASIL ...................................... 62 1.3.1 Dobrado, a marcha brasileira ....................................................................... 63 1.3.2 Peça de harmonia ........................................................................................ 67 1.3.3 Música Ligeira ............................................................................................ 69 1.4 NUANCES NA ESCRITA E INTERPRETAÇÃO............................................. 70 1.4.1 A simplificação da escrita musical............................................................... 71 xiii 1.4.2 Detalhamento na escrita musical ................................................................. 75 1.4.3 Prejuízos e possibilidades ............................................................................ 78 2 CONHECENDO, REPENSANDO E RECRIANDO A BANDA.............................. 81 2.1 BANDA DE CAETITÉ ..................................................................................... 81 2.2 BANDA 21 DE ABRIL ..................................................................................... 89 2.3 A MÚSICA DE BANDA E SEUS MESTRES EM QUATRO ÁREAS DA BAHIA .................................................................................................................... 96 2.3.1 Música de Filarmônica no Recôncavo ......................................................... 98 2.3.2 Música de Filarmônica no Sertão............................................................... 101 2.3.3 Música de Filarmônica nas Lavras Diamantinas ........................................ 104 2.3.4 Filarmônica e ferrovia na fronteira com Sergipe ........................................ 106 2.4 A OFICINA DE FREVOS E DOBRADOS...................................................... 110 2.4.1 História da Oficina e seus personagens ...................................................... 111 2.4.2 Filarmônica e mestre ................................................................................. 115 2.4.3 A ação social e formação de músicos......................................................... 118 2.4.4 Ação para surgimento, retomada ou transformação de bandas de música ... 120 2.4.4.1 A Filarmônica Ambiental e a Lira de Maracangalha ........................... 121 2.4.4.2 Festival de Filarmônicas no Recôncavo.............................................. 123 2.4.4.3 Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho ............................................. 127 2.4.4.4 A Oficina e as políticas oficiais para com as bandas ........................... 131 2.4.4.5 A Banda de Música Maestro Wanderley ............................................ 137 2.4.4.6 Os 100 anos da Lira 8 de setembro ..................................................... 142 2.4.4.7 Os 90 anos da Lira Santamarense ....................................................... 146 2.5 À GUISA DE CONCLUSÃO DESTE CAPÍTULO ......................................... 150 3 CATEGORIAS DA DIMENSÃO DO COMPOR................................................... 152 3.1 PRESERVAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA TRADIÇÃO .......................... 154 xiv 3.1.1 Licença histórica para a minha experiência ................................................ 155 3.1.2 Pilares transformáveis ............................................................................... 159 3.1.3 Antiga e nova vanguarda ........................................................................... 161 3.2 MOVIMENTO ................................................................................................ 163 3.2.1 Re-texturização ......................................................................................... 164 3.2.2 Fator rítmico na condução ......................................................................... 166 3.2.3 Contribuição melódica do movimento ....................................................... 168 3.3 ÍMPETO.......................................................................................................... 170 3.3.1 Demanda ................................................................................................... 170 3.3.2 Progresso ................................................................................................. 171 3.3.3 Competição ............................................................................................... 172 3.4 PROPEDÊUTICA .......................................................................................... 174 3.4.1 Discurso sobre musica ............................................................................... 175 3.4.2 Discurso ético ........................................................................................... 177 3.4.3 Discurso histórico..................................................................................... 177 3.5 REPETIÇÃO ................................................................................................... 179 3.5.1 Reafirmação da forma ............................................................................... 179 3.5.2 Reafirmação do discurso musical .............................................................. 180 3.5.3 Reflexão .................................................................................................... 180 3.6 RELAÇÃO INDIVÍDUO - TODO................................................................... 181 3.6.1 Contraponto .............................................................................................. 182 3.6.2 Pertencimento ........................................................................................... 183 3.6.3 Naipes ....................................................................................................... 185 4 CONCLUSÃO: TRÊS MÚSICAS RENOVADORAS PARA BANDA FILARMÔNICA ....................................................................................................... 187 4.1 DOBRADO ANYSIO TEIXEIRA ................................................................... 188 xv 4.2 FANTASIA SEDARE DOLOREM OPUS DIVINUM EST ............................... 194 4.3 MAXIXE BANDEIRA DO DIVINO ................................................................. 198 4.4 CONCLUSÃO................................................................................................ 199 REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ......................................................................... 202 Anexo 1 - Ensinando a compor com liberdade e pertencimento ................................. 210 ANEXO 1.1 CURSO DE CAPACITAÇÃO PARA MESTRES E MÚSICOS LÍDERES .............................................................................................................. 210 ANEXO 1.2 JORNADA DE CAPACITAÇÃO PARA FILARMÔNICAS ........... 216 Anexo 2 -Um debate e cinco experiências ................................................................. 221 Anexo 3 -Audições - Faixa do CD em anexo ............................................................. 227 Anexo4 - Partitura: Dobrado Anysio Teixeira ........................................................... 228 Anexo 5 - Partitura: Fantasia Sedare Dolorem Opus Divinum Est............................. 240 Anexo 6 - Partitura: Maxixe Bandeira do Divino ....................................................... 267 INTRODUÇÃO “O abuso dos apud, a meu ver enfraquece qualquer trabalho e só deve ser usado quando realmente não se tem jeito de ir à fonte” (Manuel Veiga, no grupo internet Bibliografia, em 1º/06/2012). Este trabalho tem o propósito de abrir caminhos para um processo renovador de natureza composicional nas bandas filarmônicas. Para isso, pretende investigar a poética musical delas, levando em conta o contexto social e histórico de onde surgiram, recuperando e analisando aspectos de sua prática musical. Espero que esse processo seja fator de dinamização junto às bandas filarmônicas cujas consequências atinjam seus mestres-compositores, para que se possa conhecer sua história, seus processos composicionais e chegar a um modelo de criação que seja vanguarda e, ao mesmo tempo, capaz de assegurar que elas continuem a desempenhar seu importante papel dentro do ambiente social que as originam e mantêm. Nada por ser inevitável, tampouco imperativo, mas por compreendermos que podia ser plausível, assumi a linha autobiográfica no texto que se segue. Fui notar que a ação composicional contínua junto às bandas de música apresenta uma coerente unidade desde meus primeiros rabiscos numa banda de música no sertão até uma elaboração de música serial no seio da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Isso passa por diversos momentos, ocorridos, muitas vezes, de forma simultânea: a composição funcional, o discurso político, a pedagogia e a provocação de vanguarda. Assim, serão úteis as informações encontradas no memorial das bandas filarmônicas, tendo como veículos as narrativas da minha própria pesquisa e experiência, desde a criação de grupos novos, posicionamentos a favor de instituições centenárias, até fatos mais recentes envolvendo bandas de música e suas cidades, onde fui convidado. No primeiro caso, os grupos novos, estão a Filarmônica Ambiental, a Filarmônica Jovem do Centro Histórico de Salvador e a Lira de Maracangalha. No segundo caso, está o discurso pela Banda de Música da Polícia Militar, os grandes concertos com mais de 400 músicos realizados em Salvador com filarmônicas convidadas e o Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho, que reúne bandas em concerto no Campo Grande, em Salvador. Entre fatos mais recentes, estão os 100 anos da Lira 8 de Setembro, na cidade de Riachão do Jacuípe, a inauguração da nova sede da Lira 17 Santamarense em Jiribatuba e,finalmente, os atuais 30 anos da Oficina de Frevos e Dobrados. Nenhum desses momentos será perfeitamente compreendido sem que eu reconstrua o meu memorial envolvendo a banda de Caetité e a criação da Banda 21 de Abril em Urandi, onde me iniciei em música. A estratégia de ação proposta para a presente pesquisa tem como ponto central traçar uma linha contínua entre: o repertório representativo da tradição, o meu repertório de peças convencionais, e o de peças contemporâneas – todas elas apresentadas publicamente por diversas bandas de música – chegando finalmente até uma composição atual e inédita. Isso implica em conhecer os três principais modelos de repertório da banda de música brasileira: o dobrado, a peça de harmonia e a música ligeira. O dobrado é peça característica e indispensável, pois é com ele que a banda de música se movimenta. Escolhemos, desse primeiro caso, a música de movimentação, o exemplo tradicional do Dobrado Os Músicosde João Sacramento Neto e, para a presente tese, o Dobrado Luis Ayala. Chamamos peças de harmonia às músicas compostas para situação de concerto, onde a banda toca para uma plateia atenta. Nossos exemplos para esse caso são, na música tradicional a Polaca Maria Almeida, de Tertuliano Santos e para esta tese a Suíte Maragogipe. O terceiro modelo ou finalidade para músicas de filarmônica é o que, por falta de terminologia melhor, chamamos de música ligeira, aquela que se destina a chamar a atenção, animar, comover e distrair a comunidade. Podemos chamar assim a Tuada no Sertão, de Isaias Gonçalves Amy e no presente trabalho a Abertura na Levada. A seguir, exemplifico as músicas não-tonais ou experimentais, de minha autoria, que também foram tocadas por diversas bandas de música, não só na Bahia. Só que elas foram desde sempre pensadas como uma ponte feita de composições de vanguarda, mas fortemente embasadas na experiência do já existente e executado na tradição bandística, que possa organicamente nos levar até uma composição atual e inédita: Dobrado Novo (1983), Dobrado Pepezinho (1983),Marcha Santo Antônio (1983) e o Dobrado2 de Julho (1998). A primeira tarefa é, desde já, entender a formação instrumental que estamos estudando e seus aspectos socioculturais. As bandas de música estão presentes na sociedade brasileira colonial como Terços ou Ternos (por unirem metais, madeiras e 18 percussão, ou seja, serpentões, charamelas e pancadaria), depois como bandas de barbeiros (grupos de escravos alforriados que atuavam nas festas comunitárias). Após 1808, sempre seguindo o exemplo dos similares na Europa, grupos de músicos civis se organizam com diretoria eleita e estatutos. A segunda tarefa é a análise do conteúdo composicional nas bandas de música, onde há um grande desejo de renovar o repertório com novas músicas de qualidade, de preferência exclusivas, mas não se encontram facilmente pessoas capazes de compor e arranjar. Num histórico processo de descaso com a memória (e não só a memória musical), não se valoriza no Brasil o conteúdo dos arquivos e também não se cria música nova dentro desse mesmo espírito1. Desse modo, a maior parte dos conjuntos em maiores cidades do sul do país, principalmente, curvou-se a um repertório composto e editado no exterior. Nas cidades do interior, as bandas de música dividem-se entre tocar os dobrados tradicionais e música de orquestra de baile, adaptações de música clássica simplificada ou música de rádio e novela. A terceira tarefa envolve recriação e memorial. Implica em reinvenção de uma nova música para a banda, que surgirá embasada no que de melhor se fez no passado e no que permite que esses conjuntos permaneçam ativos há dois séculos no Brasil, e essa nova música virá resgatando um dos aspectos mais fundamentais da banda: a criação do seu próprio repertório, relacionado a datas, fatos e pessoas. 1 Nesse particular, abre-se um caminho que não é o foco central deste trabalho, mas o afeta. Os canais de comunicação com a herança portuguesa têm sido recentemente reabertos através de simpósios e iniciativas, envolvendo inclusive as bandas de música, que levaram a Portugal os doutores Regina Cajazeira e Marcos Moreira. Mas a influência anglo-saxônica está sempre à mão, principalmente através da poderosa indústria de entretenimento. 1 OS REPERTÓRIOS TRADICIONAIS E A PRÁTICA DO COMPOR Este capítulo inicial pretende estudar a prática de composição e instrumentação na banda de música, conhecer o que se tornou uma praxe bem sucedida e analisar atitudes que podemos considerar inovadoras, pois abriram direções que tiveram continuidade e consequência. Embora a pesquisa extensiva não seja o foco do presente trabalho, é necessário, em certa medida, que se conheça o repertório internacional para sopros e percussão, onde se inclui a banda sinfônica e o que se faz no Oriente e na América Latina. Então não será difícil constatar que existem estruturas musicais recorrentes em diversas culturas de banda de música no mundo, facilitadas até mesmo pela organologia dos instrumentos de sopro. Ao tentar entender o que tradicionalmente se fez na banda filarmônica, reafirmamos que o foco do nosso trabalho é aplicar os conhecimentos da sua metodologia composicional, instrumentação, noção de forma e estratégias de instrumentação, como a divisão de funções entre Cantoria, Centro, Contracanto e Marcação, para gerar composições experimentais, como forma de incentivar a criatividade e provocar o público com uma banda de música atual e atuante. É importante, nesse momento, esclarecer o que vem a ser a “nossa” banda de música em relação a outros grupos de formação semelhante, mas que não estão no nosso foco de interesse: é a formação de sopros e percussão amplamente aplicada em todo o Brasil, onde se inclui flautim e flauta, clarineta, saxofones (em quatro modelos), trompa, trompete, trombone, eufônio, tuba souzafone em si bemol e em mi bemol, caixa clara, pratos manuais e bombo, modelo para o qual colecionei centenas de partituras manuscritas. Esta formação é chamada de “corpo musical” de uma organização regida por estatutos e diretoria eleita, além de adeptos e associados. As formações instrumentais semelhantes, mas que não estão no nosso foco imediato, são: a) Banda sinfônica: conjunto de sopros e percussão que toca sem se locomover. Nesse modelo, serão acrescentados instrumentos de orquestra como nos sopros o 20 oboé, o fagote; na percussão o par de tímpanos; e até contrabaixo e cellos. Em seu repertório, embora haja uma tendência à execução de reduções de obras originalmente compostas para orquestra sinfônica, se tem gerado uma vasta coleção de obras originais, inclusive em linguagem do século XX. Geralmente as bandas sinfônicas não existem por si, mas sempre associadas a uma instituição, como conservatório, universidade ou projeto social. b) A “banda musical”, conjunto mais comum no sul do país, une elementos de banda militar com fanfarra. Diferentemente das “bandas de coreto” (como lá passaram a designar as bandas de música), a banda musical transita num ambiente que inclui a ginástica e o cênico, e seu repertório inclui canções populares prontamente reconhecidas em arranjos importados. Embora eventualmente possam atuar como “banda que marcha”, essas bandas musicais diferem da banda filarmônica pela indumentária, pelo repertório e pela própria noção de finalidade do fazer musical. Pode estar vinculada instituição ou por estatuto próprio. c) A fanfarra, um grupo musical gerado, principalmente, no ambiente escolar formal, como banda de desfile, onde se inclui maior proporção de instrumentos de percussão, uso de instrumentos de metal, normalmente cornetas, e elementos de significação de movimento e hierarquia, como evoluções e balizas. As fanfarras surgiram em colégios, como ainda hoje a maioria delas se mantém, mas algumas adquiriram status de organização social. d) A charanga, grupo musical formado com instrumentos de sopro e percussão, principalmente saxofones, trompete, trombone e eventualmente tuba, tocando de ouvido, dobrando cantos em uníssono ou em terças. Nesses grupos, pode haver até maior número de instrumentos de percussão que de sopro. De modo mais intenso que nas bandas sinfônicas, das bandas musicais, fanfarras e charangas, a banda filarmônica tem criado em seu entorno músicos e simpatizantes que encaram suas corporações não como uma ação artística isolada, nem uma experiência social direcionada, mas uma bandeira diária, onde se vivencia música para solenidade, movimentação e entretenimento, sempre composta ou adaptada em íntima relação com a comunidade. Além das músicas geradas ali mesmo, dobrados compostos 21 em caserna tornam-se, em alguma cidade pequena, fundo musical para namoros e licores. Ao nosso trabalho interessa sobremaneira a produção de repertório na banda de música, a composição nova e local, influenciada por fatos, datas e pessoas. 1.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA DE BANDA Nesta etapa inicial, nosso objetivo é conhecer a banda de música para adiante entender a minha relação com ela. A história da banda se dá em um tempo muito longo e em múltiplos territórios, de forma que aqui falaremos apenas o indispensável sobre suas origens e desenvolvimento na Europa e Brasil. Em seguida, vamos nos referir à existência de um repertório consagrado e reconhecido nacionalmente, sempre obras originais, instrumentais e unificadas por um mesmo sistema composicional envolvendo forma e instrumentação. Finalmente, vamos conhecer um pouco de iniciativas revolucionárias envolvendo a herança musical do povo negro no Brasil e nos Estados Unidos, operadas dentro da banda de música e documentadas em partitura, gerando poderosas escolas como o choro e o jazz. A música em movimento, com instrumentos de sopro e percussão, associa-se à cerimônia e ao rito desde a idade antiga até os dias atuais, onde o uso em cortejos militares permanece inalterado2. Símbolos religiosos são conduzidos ao som de bandas; reis são coroados, exércitos marcham e multidões comemoraram ao som de instrumentos de sopro e percussão. Os hinos nacionais dos países do mundo são, em geral, executados por bandas de música. A grande tradição musical da Europa, antes que o Barroco sacramentasse o desenvolvimento técnico dos instrumentos de arco,valeu-se dos grupos de instrumentos de sopros para estabelecer as divisões de vozes e funções instrumentais. Enquanto os instrumentos de corda e os teclados assumem a condução da música instrumental, um repertório significativo foi se estabelecendo por parte tanto de compositores voltados à banda de música quanto por outros que ocasionalmente a ela dedicaram alguns pentagramas. Mas toda e qualquer análise sobre a música de banda terá de levar em conta não só os aspectos intramusicais, mas o ambiente onde é 2 Há uma correlação entre bandas militares pelo mundo, mesmo entre culturas diferentes. A ideia hino e marcha é praticamente a mesma em países de culturas diferentes, mas associadas ao espírito militar. Nos desfiles associados ao Dia da Independência, nos anos de 2013 e 2014, em diversas cidades do Brasil, praticamente todas as reportagens de TV mostravam bandas de música. 22 executada. Isso envolve compreender como dobrados compostos em situação de guerra (Saudades de minha terra, o Bombardeio da Bahia) podem se tornar símbolos de determinada festa em cidades do interior. As notáveis experiências de renovação realizadas na formação banda de música, no início do século XX, são resultado da diáspora negra e da adaptação do seu sentimento musical em ambiente e instrumentos adversos. Foi na banda de sopros que, pela primeira vez, se representou o ritmo sincopado em partitura, um mérito de Anacleto de Medeiros e sua Banda do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal e de James Reese Europe e sua banda militar dos Hellfighters, regimento de soldados recrutados no bairro do Harlem, em Nova Iorque. 1.1.1 Música de banda no mundo antigo e na Europa O que nos diz a iconografia dos gregos: pinturas tumulares egípcias, pinturas orientais colocam sempre o cortejo cerimonial ou o deslocamento militar acompanhado de música soprada e percutida, ficando os alaúdes para música interna e mais amena. Seja para referência pessoal ou como material de sala de aulas sobre banda de música, o livro A Concise History of The Wind Band, de DavidWhitwell3é o mais abrangente panorama histórico da banda reunido num só volume. Aqui se estuda a banda de música em suas feições civis, na corte, na igreja ou no ambiente militar, desde a Idade Antiga até os nossos dias. Nele se encontra que: A palavra [banda] pode ter origem no latim medieval bandum (“estandarte”), a bandeira sob a qual marchavam os soldados.Portanto, se um grupo de músicos militares com alguns pífaros e tambores é considerado como um tipo de Banda, pode-se considerar que o conhecido fato bíblico das trombetas, que acompanhavam o exército, que derrubaram as muralhas de Jericó, já era o princípio ou o germe de uma Banda (Josué, VI, 4,5 e 9). Com isso, a origem da Banda pode ser muito mais antiga do que sua própria denominação e está intimamente ligada à evolução dos instrumentos de sopros e percussão (WHITWELL apud GIARDINI, 2005). Withweel nos informa que na Europa “A Banda de Sopros Aristocrática atinge seu clímax durante o séc. XV, em função do entusiasmo por música instrumental, adquirido das experiências das Cruzadas. Segundo ele, a banda “Alta” 4, no sentido de 3 4 David Whitwell, A Concise History of The Wind Band. Austin, Texas: Withwell Publishing, p. 32. Termos originais encontrados em Whitwell, p. 32: “loud” e “soft”. 23 estridente, era sempre a pura banda de sopros, constituída usualmente de charamelas e sacabuchas, o ancestral do trombone, mas contando algumas vezes com trompetes, gaita de foles e percussão, e sua apresentação se dava em grandes salas de dança formal ou fora do Palácio. O conjunto “leve” 5 , no sentido de suave , consistiu frequentemente de famílias de flautas ou flautas doces, com tipos de alaúdes e teclados que se apresentavam em jantares aristocráticos e em cômodos menores. Mônica Giardini afirma que não se pode deixar de mencionar Leonardo da Vinci também na história da banda.Descobriu-se, entre seus esboços, que ele focou nos principais problemas de construção dos instrumentos de sopros do seu tempo: a adição de notas diatônicas no trompete e a criação de orifícios de tom nos instrumentos de sopro de madeira ao alcance da mão humana: “Nos seus esboços, é aparente que ele estava pensando na direção de tentar acrescentar chaves a estes instrumentos!” O Renascimento na história da banda corresponde somente ao séc. XVI e, desde o seu início, foi marcado com uma grande renovação dos instrumentos musicais medievais por novos, feitos agora em “famílias”, que são diversos tamanhos do mesmo instrumento. A organização destes instrumentos por famílias chamados “naipes” substituiu o velho princípio de música “alta” e “leve” da Idade Média, citados por Withwell: “A preferência por naipes do mesmo instrumento (...) tornou possível um som do conjunto mais parecido e homogêneo, em contraste com o som estridente e heterogêneo medieval.” A banda de música do século XVIII ainda conta com a família do oficleides, em três modelos. O oficleide tenor, atuando na região do fagote, seria utilizado nas bandas de música brasileiras até os anos 1940.6 No Brasil, os terços medievais valiam-se da charamela e do serpentão, madeira e metal respectivamente. De acordo com o músico Carlos Eduardo dos Santos, atualmente estudante do curso de Instrumento (tuba) na Escola de Música da nossa Universidade, nos arquivos musicais do mosteiro da Cidade de Cairu, fundada em 1505 (!), onde nasceu e aprendeu música na Lira Cairuense, ainda se encontram partituras para charamela. 5 Aqui no Brasil, no período colonial, um equivalente era “música de fora” – a banda de música e “música de dentro” – pequena orquestra com violinos e alguns sopros. 6 Sou executante de um oficleide, herdado do músico Gerônimo Oliveira, que pertencia à Sociedade Musical 15 de Março, da cidade de Curaçá, Bahia. Gerônimo é avô de João Gilberto, o pai da bossa-nova. 24 Embora no Rio de Janeiro já se tinha formado bandas militares modernas e equipadas com instrumentos de tecnologia recente, em 1808, com a chegada da Família Real, veio junto a Banda da Brigada Real, que viria a se tornar o novo modelo para a banda filarmônica, considerada uma das mais modernas da Europa. Ao contrário dessas bandas já existentes no país antes de 1808, a banda da Brigada Real, que chegou ao Brasil com D. João VI, tinha dimensões enormes para a época. Certamente, já tinha sido influenciada, por mais paradoxal que isso possa parecer, pelo gigantismo das novas bandas criadas pelas necessidades musicais da Revolução Francesa, ocorrida poucos anos antes e por força da qual a corte portuguesa acabara de fugir da Europa. Não temos conhecimento de bandas regulares existentes antes de 1780 que tenham ultrapassado o número de 12 músicos. A revolução Francesa, com a sua promoção de eventos de massa, criou imediatamente as grandes comemorações revolucionárias e utilizou para isso massas igualmente impressionantes para a execução musical nessas festas. Cerca de quatro semanas após o 14 de julho, era criada a banda da Guarda Republicana, com 65 membros efetivos e, a partir daquele momento, as notícias de concertos monstruosos com mais de 300 músicos e 1000 cantores [...] nascia nesse momento a banda moderna, que se espalhou por toda a Europa. [...] influenciando a banda da Brigada Real que, ao desembarcar no Brasil, tinha 24 músicos (SCHWEBEL, 1987, p. 234). Figura 1- Banda do 1º Regimento da Armada Real em 1793 25 Conforme nos expõe Fernando Binder, o surgimento de bandas em “bases orgânicas” no exército português ocorreu na passagem do século XVIII para o XIX, portanto antes de 1814 como escreveu Vicente Salles. Além disso, como demonstrou nos relatos de festividades referentes à chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro, “existem indícios que mostram a existência de bandas de música no Brasil com padrões instrumentais semelhantes àqueles encontrados em Portugal, antes da chegada da corte portuguesa ou da banda da brigada da Real da Marinha”. No Brasil, os poucos documentos conhecidos que citam a presença da banda da Brigada Real da Marinha são fés de ofício do músico baiano Damião Barbosa de Araújo, recentemente localizados na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional por Pablo Sotuyo Blanco (BLANCO, 2006, p. 271). Os documentos confirmam que a banda veio com D. João VI e que Damião acompanhou a corte portuguesa de Salvador para o Rio de Janeiro. A mais antiga gravação que se conhece sobre banda de música está no Arquivo fonográfico da Academia de Ciências da Áustria7. Trata-se de um funeral, provavelmente do imperador Guilherme II, onde ouvimos a banda se aproximar, uma voz de mulher cochichando a uma criança, o apogeu da passagem da banda e logo seu afastamento, quando ouvimos ao fundo um sino de catedral. Exemplo Musical 1 - Marcha fúnebre (AUSTRIAN ACADEMY, 2005) 7 Austrian Academy of Sciences Phonnogramarchiv, cuja exemplificação nós tivemos acesso em sala de aulas da profa. Ângela Lünhing, mas também disponibilizado na internet. São exemplos coletados de uma preciosa coleção das primeiras gravações em fonógrafo. Inclui discursos de imperadores europeus, cantos tribais, cantos de culturas do oriente e esse precioso exemplo de banda de música. 26 Este exemplo raro confirma os limites de frase musical e funções instrumentais que foram transmitidos para a banda filarmônica brasileira e por ela desenvolvidos. 1.1.2 Música de banda no Brasil A crônica sobre os primeiros anos de contato dos portugueses com os brasileiros nativos, principalmente após o início da Catequese, aponta a formação de bandas de música, inicialmente incorporando o próprio instrumental de flautas e percussão dos indígenas. A música, incluindo a música nativa aprendida pelo padre jesuíta, nesse caso estava a serviço da conversão e aculturação. Com a criação das primeiras unidades administrativas, criaram-se também as primeiras bandas de música, os conhecidos Terços ou Ternos, por agruparem instrumentos de palheta, bocal e percussão. A música aqui se faz por objetivos militares e religiosos, pois tudo que se fazia nesses pequenos agrupamentos de europeus em solo estranho tinha a ver com guerra e fé. A descoberta das grandes jazidas de ouro e diamantes fez modificarem o olhar da metrópole sobre esses primeiros colonizadores. De aliados na ocupação da terra, senhores de casa grande no nordeste e paulistas, no sul, passaram a ser vistos quase como adversários. Os terços musicais assistem à organização de novos grupos musicais militares, que vão acompanhar os regimentos vindos da metrópole e as milícias formadas por aqui.8Os acontecimentos de 1808 e a consequente vinda da banda militar organizada junto com D. João VI são de certa forma maximizados pela falta de hábito de se usar o termo banda: O próprio padre Perereca apontou a presença de música em várias passagens durante a entrada de dom João no Rio de Janeiro, embora em nenhuma delas ele utilize as locuções banda de música ou banda militar. As palavras usadas por ele foram: instrumentos músicos, música vocal e instrumental, música marcial, melodiosas vozes e música (SANTOS, 1981, p. 174, 179, 182, 184, respectivamente, v. 1). Esse descompasso entre os termos utilizados no início do século XIX e a expectativa dos estudiosos modernos, que procuravam por banda, fez que com a atuação destes conjuntos passasse despercebida. Com efeito, historiadores, musicólogos e folcloristas discutiram repetidas vezes a origem da palavra banda, procurando em sua etimologia informações que ajudassem a compreender a história destes conjuntos. Atiraram no alvo errado, pois, até onde nos foi possível examinar, somente na segunda década do século XIX é que a 8 Ver Nelson Weneck Sodré, História militar do Brasil, p. 83-4. 27 locução adjetiva banda de música passou a ser usada com frequência no Brasil (BINDER, 2008, p. 29). Gilberto Freire em Casa-Grande e Senzala escreve que “Várias casas-grandes, conservando a tradição de Mangue la Bote, mantiveram, para deleite dos brancos, banda de música de escravos africanos. No engenho Monjope, em Pernambuco (...) houve não só banda de música de negros, mas circo de cavalinhos em que os escravos faziam de palhaços e de acrobatas”. Depois as bandas de escravos espalharam-se no Rio de Janeiro, difundindo-se pela Serra do Mar e penetrando no Estado de São Paulo (CAMARGO, 1984, p.1)9. As bandas formadas pelos senhores de fazenda utilizando músicos escravos, lendo partitura e orientadas por um mestre profissional devem ser diferenciadas das bandas de negros em ação no Rio de Janeiro, conforme descritas em desenho e prosa por Debret, acompanhando o cortejo de religiosos, parentes e amigos para extremaunção. Essas nos parecem ancestrais das atuais charangas, que tocam de ouvido melodias conhecidas, com saxofones, trompete, trombone e percussão, e aceitam serviços menores, como aniversários de criança, promoções em porta de loja etc. Os grupos de barbeiros, por sua vez, parecem ser ascendentes dos grupos de choros, em alguns casos, ou de bandas filarmônicas. Como veremos adiante, ao falar dos barbeiros, o etnocêntrico pintor francês mostra-se um pouco condescendente, enquanto emite os mais desagradáveis comentários sobre a banda de negros, com a vantagem de, com o preciosismo com que cria suas pranchas e comentários, declinar os nomes dos instrumentos musicais: Extrema unção levada a um doente: [...] o cortejo mais decente comporta sempre um destacamento militar de oito homens mais ou menos, comandados por um oficial, todos de boné na mão, precedidos por um tambor e uma trombeta ou de um pífaro, conforme a arma. Quando por acaso isso ocorre num dia de festa celebrada especialmente na igreja cuja assistência foi solicitada, o cortejo é acrescido solenemente da banda de música de negros, estacionada fora do pórtico e que se transforma então numa vanguarda composta de duas clarinetas, um triângulo, uma trombeta, um tambor e um bumbo. Nesse caso, o destacamento militar fecha a marcha. Sigamos agora o cortejo. É difícil, confesso, ter uma ideia da horrível algazarra produzida pela música estridente e desafinada desses seis negros 9 Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, 1980, pag. 417 citado por J. B. de Camargo, Bandas de. “Música Civis nas Comunidades Interioranas (1873-1974)”. São Paulo. Dissertação de Mestrado. ECA_USP_1987. 28 executando com entusiasmo valsas, alamandas, lundus, gavotas, recordações de baile, militarmente entrecortados pela trombeta da retaguarda que domina tudo com uma marcha cadenciada. A esse conjuto revoltante de melodias e ritmos contrários, junta-se ainda o movimento mais lento de um coro de vozes esganiçadas e fanhosas de uns trinta negros devotos entoando as litanias intermináveis da Virgem (DEBRET, 1972)10. Desde muitos anos antes já eram contratados mestres de capela que se dedicaram ao ensino musical, principalmente de menores carentes. O mestre de capela André de Moura, nascido em Santos, aprendeu música com os padres jesuítas no colégio São Miguel, aperfeiçoando, sozinho, a difícil arte: “Foi, durante anos a fio, responsável pela vida cultural da cidade, como professor de música, diretor de bandas e mestre da Matriz. Tinha oito filhos e três deles foram solistas do conjunto orquestral da igreja”.11 O padre José Pedroso de Morais, nascido em 1746, mestre de capela de Santana de Parnaíba, desde 1755, é outro exemplo significativo. Por volta de 1799, foi professor de Manoel José Gomes, pai de Carlos Gomes. Manoel José Gomes, o Maneco Músico, também se tornou mestre de capela da vila de São Carlos (Campinas), em 1820, e posteriormente mestre da Banda e da Orquestra Campineira.12 José Antônio Pereira nos informa que Graças aos estudos de Francisco Curt Lange, são conhecidos os acontecimentos relacionados à banda de música do século XVIII, em Minas Gerais. As primeiras Bandeiras vieram do Estado de São Paulo (1680-1705) e da Bahia e as autoridades locais admitiam no povoado, além de pessoas ligadas à extração, a presença de músicos e a realização de atividades musicais relacionadas ao serviço religioso, provavelmente nas primeiras igrejas mineiras surgidas a partir de 1716. Hermes de Andrade informa que, em 1717, havia uma banda de música na vila de São João Del Rey, um dos três centros mineradores. Em Campinas, no período de 1840 até 1900, havia cerca de trinta e três bandas; a mais antiga, a Banda Marcial, dirigida por Manoel José Gomes, pai de Carlos Gomes, em 1847, passaria a ser a Banda Campineira. Na década de 1860, surgiram cinco bandas: Amadores Philorfênicas, Romana, Santa Cruz, Sant’Anna Gomes e Euterpe 10 Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. p. 164-5. Carlos Penteado de Rezende, 1954: “Fragmentos para a história da música em São Paulo de 1500 a 1800” p. 21. 12 Lenita Waldive Mendes Nogueira, Maneco Músico, Pai e Mestre de Carlos Gomes. Dissertação de Mestrado, ECA-USP, 1989,p. 9. 11 29 Infantil. Na década de 1870, tivemos quatorze bandas, sendo cinco de fazendas (PEREIRA, 1999, p. 24-5)13. De qualquer sorte, Jean Baptiste Debret quando aqui chegou com a Missão Artística de 1816, a convite de D. João VI, ao descrever as procissões a essa altura já tradicionais da cidade do Rio de Janeiro, faz referência a duas bandas de música, religiosa e militar, na procissão de São Sebastião, a primeira do ano : A imagem erguida num andor, ricamente enfeitado, é carregada pelos membros do conselho municipal; vem, em seguida, todo o clero das igrejas do Rio de Janeiro, precedendo, com o da Capela imperial e os músicos da mesma, o pálio sob o qual caminha o bispo do Rio de Janeiro, na qualidade de capelão-mor; seguem-se alguns dignatários, ministros, presidentes de câmera e outros; finalmente fecha a marcha um imponente destacamento de infantaria de linha com sua banda (DEBRET [1839], 1972, p. 22). A música das bandas em si permanece nessa condição de vínculo com os movimentos militares e as ocasiões religiosas. A mais significativa elaboração nacional, o dobrado, deve surgir como consequência da marcha militar de dobrado. No inventário das obras do arquivo musical de Florêncio, feito em 1821, constava entre as “Grades pr. Florencio J.e Ferr.”– possivelmente composições de sua autoria – duas entradas de marchas: uma indicada apenas como Marcha, outra como 35 Marchas Militares. Essas marchas não deveriam ser muito diferentes da que hoje está preservada no Museu da Inconfidência, até o momento, a mais antiga obra brasileira de música para banda que se conhece. Mary Angela Biason publicou uma transcrição da obra, situando-a no final do século XVIII. (A peça está gravada em: Colegium Musicum de Minas. A origem. [Belo Horizonte]: Sonhos e Sons, [2000]. 1 CD.) A autoria foi atribuída a Francisco Gomes da Rocha pois, além dele ter sido músico militar, a caligrafia no manuscrito seria sua. A instrumentação da Marcha utiliza duas flautas, duas trompas e baixo instrumental, possivelmente executado por um fagote, o que caracterizar-la-ia o conjunto como banda de harmonia (BINDER 2008, p. 34). A referência a ser feita a Anacleto de Medeiros em capítulo à parte deve-se – e depois ocorre o mesmo em relação ao norteamericano Jim Europe – por romper essa dependência com a marcha europeia e adotar os primeiros ritmos sincopados em 13 José Antonio Pereira, “A Banda de Música, Retratos sonoros Brasileiros”. Orientadora: profa. Dra. Maria Helena M. Gios. Dissertação de Mestrado. S. Paulo, 1999. 30 composições novas, grafadas em partituras. Em sua época, isso corresponde à ação composicional de Ernesto Nazareth, na literatura para piano, Chiquinha Gonzaga do mesmo modo e estendendo às orquestras de teatro e Pixinginha, em relação aos primeiros grupos de choro, que em tudo se assemelhavam a bandas de música. A grande contribuição da Bahia na construção da música de banda nacional, com todas as suas nuances étnicas e regionais – conservando uma estranha unidade e fidelidade ao seu modelo europeu – espero que tenha sido adequadamente tratada no primeiro capítulo desta tese, com o subtítulo de A música de filarmônica em quatro áreas: Recôncavo, Sertão, Lavras e Fronteira de Sergipe, onde floresce a música dos ferroviários. Todas essas corporações são muito sérias e organizadas, formada por gente simples, operários, como é o caso da Sociedade Muzical 5 Rios, criada em 1927 no canavial de Maracangalha, por operários da sua memorável usina. Figura 2 - Carimbo da Sociedade Muzical 5 Rios de Maracangalha, 1927 Com a consolidação das sociedades filarmônicas organizadas, surgem também as famosas rivalidades entre instituições, que se davam no campo musical – com os desafios, concursos e furto de obras através de espiões que copiavam de ouvido o que a banda rival ensaiava – quanto no conflito aberto entre seus integrantes. O poeta, escritor e juiz de direito Raymundo Pinto, em sua Pequena História de Feira de Santana, registrou que Os feirenses tiveram o prazer de ver fundada, no ano de 1868, a sua primeira filarmônica, que se chamou 25 de Março, por ter se efetivado o ato de sua criação naquele dia. [...] as sedes dessas sociedades funcionavam também como clubes sociais. As maiores festas da alta sociedade eram realizadas em seus salões, bastante amplos para a época, e que sempre ostentavam cuidadosa e rica ornamentação. [...] 31 em 1897 uma ocorrência lamentável marcou o auge da rivalidade entre as filarmônicas. Naquele ano, em uma das costumeiras brigas que os partidários das bandas travaram nas ruas, o incidente assumiu proporções maiores. Alguns mais exaltados puxam armas e houve tiroteio. Morreu baleado um pobre homem chamado Julião, que nem participava do conflito (PINTO, 1971, p. 114 e 136). 1.1.2.1 Banda de barbeiros As bandas de barbeiros eram grupos musicais formados com instrumentos de sopros e percussão, que seguiam o modelo das sociedades filarmônicas, mas tocando de ouvido e com instrumental disponível. No Brasil colonial, esses tipos de banda eram bastante aguardados, sobretudo nas festas de largo que acompanham o calendário religioso católico, pois sua música aproximava-se mais do modelo de charanga popular atual, onde os elementos-pilares da filarmônica, canto-contracanto-centro-marcação, são pouco observados. Nesses conjuntos o canto prevalece, duplicado por vários timbres e oitavas, o que lhes dá particular colorido. Jean Baptiste Debret na sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil observa: No Rio de Janeiro, como em Lisboa, as lojas de barbeiros, copiadas das espanholas, apresentam naturalmente o mesmo arranjo interior e o mesmo aspecto exterior com a única diferença de que o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre negro ou pelo menos mulato. [...] dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda, como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito. Saindo do baile e colocando-se a serviço de alguma irmandade religiosa na época de uma festa, vemo-lo sentado, com cinco ou seis camaradas, num banco colocado fora da porta da igreja, executar o mesmo repertório, mas desta feita para estimular a fé dos fiéis que são esperados no templo onde se acha preparada uma orquestra mais adequada ao culto divino (DEBRET, 1834-39, ver, 1972 p. 151)14. Na banda de barbeiros, o contracanto iniciativa individual. São preenchimentos dos repousos melódicos por frases ora aguardadas (no tom de Dó maior, por exemplo, o fragmento “Sol-Dó-Si-Síb” é um desses clichês, para anunciar que a melodia se dirige ao grau Subdominante) ora inusitadas, a cargo de algum músico mais criativo ou afoito. 14 Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Volume I São Paulo: Livraria Martins – editora da Universidade de São Paulo. 1972. 32 O centro, quando há, é por graça de algum tocador de banjo ou sanfona que se agrega ao grupo, tocando de ouvido. Já a marcação, por presença de tubistas espirituosos, é o setor onde os acompanhamentos foram se abrasileirando, salientando um novo jeito de tocar o repertório europeu, que foi aos poucos se tornando o maxixe, o choro e, no caso dos dobrados de filarmônica, o acompanhamento tangado. Na cidade de Irará, o testemunho de primeira mão do músico José Aristeu de Araújo dá notícias de grupos de barbeiros como inspiradores ao surgimento de sociedades filarmônicas. Uma música vinda da zona rural do município.15 Alcançado o povoado relativo crescimento, em fevereiro de 1842 foi criada a freguesia da Purificação, sendo desmembrada a capela da freguesia de São José das Itapororocas. Nesse ano, em 27 de maio, foi criado o Município da Vila da Purificação, que já tinha a festa da Padroeira como a mais importante para seu povo, que vinha se caracterizando através das suas manifestações culturais. Para a referida festa, eram contratados grupos de Barbeiros (bandas que tocavam de ouvido) que permaneciam aqui durante o período festivo, abrilhantando-o. Foram esses grupos leigos os principais influenciadores para a criação das Filarmônicas Civis em nosso estado, principalmente nas cidades do Recôncavo e a ele próximas. Em nosso município, foram criados dois desses grupos: o do mestre Massu, que prosseguiu com seu filho Pedro, e o do mestre Panta, que permaneceu ativo até os primeiros anos da década de 50 do século passado com seu filho Antônio de Panta. Foi inspirado nesses grupos que surgiu a nossa primeira filarmônica, a Sociedade 19 de Junho (ARAÚJO 2004, p. 11-2). Um exemplo de dobrado tocado por barbeiros foi preservado pela sociedade Lítero Musical 25 de Dezembro, da cidade de Irará, ao gravar em disco LP, produzido pelo lendário Dr. Deraldo Campos Portela, seu presidente, e adaptada por José Gomes de Assis (1922-1990), o mestre Zequinha, com o nome dobrado João e Iris, gravado no LP Tocata, (Salvador, Estúdios WR, 1982). 15 José Aristeu de Araújo, Sociedade Lítero Musical 25 de Dezembro, Jubileu de ouro. Irará, Bahia: Edição do autor, 2004. 33 Exemplo Musical 2 - Dobrado dos barbeiros de Irará Na Cidade do Salvador há notícias de que bandas de barbeiros eram ligadas à devoção ao Sr. do Bonfim. As bandas de barbeiros tiveram por muito tempo lugar nas festas religiosas de Salvador, sempre à porta das igrejas em dias de novena ou festa. Segundo Marieta Alves Entre os mestres de barbeiros citados nos recibos das ordens religiosas da cidade, figuram cinco mestres, músicos barbeiros, com o sobrenome d’Etre: José Antônio d´Etre (1782), Manoel José d’Etre, e Floripes d’Etre, irmãos talvez. O arquivo da Ordem 3ª de são Francisco acrescenta mais dois – Olavo José d’Etre e Leocádio Francisco d’Etre, perfazendo um total de cinco. De quatro deles podemos provar que sabiam ler e escrever (ALVES, 1967). Marieta Alves transcreve trecho do artigo de Dr. José Eduardo Freire de Carvalho Filho, “A devoção do Senhor J. do Bom-Fim e sua história”, 1923. Havia na porta da capella, nas noites de novena e nos dias da festa, tocada pela música dos barbeiros do mestre Manoel Francisco Nunes de Moraes, depois pela do mestre Custódio Francisco Nunes ou pela do José Antônio Etra [...] Mais tarde, vindo da Feira de Sant’Anna para a capital, entre 1865 a 1866 a chamada Chapadista, D. Raymunda Porcina de Jesus, mulher abastada, trouxe uma bem organizada banda de música composta por escravos seus. Essa banda tinha bom mestre, que dizem também fora escravo, era numerosa, dispunha de bom instrumental, grande e variado repertório. Com tamanho competidor, as bandas ou músicos dos barbeiros foram se dissolvendo e em pouco tempo tinham desaparecido, ficando só a da Chapadista.16 O músico mais conhecido advindo das bandas de barbeiro é o flautista e compositor Pattapio Silva (1880-1907), um genial talento precocemente encerrado, 16 Marieta Alves, “Música de Barbeiros”. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Folclore, n. 17, janeiroabril 1967) revista Brasileira de Folclore, 1967. 34 sobre o qual nos fala Maria José Carrasqueira, no encarte de um sério trabalho de registro fonográfico realizado pelo flautista Antônio Carrasqueira: Pattapio Silva nasceu aos 22 de outubro de 1880 no município de Itacoara, estado do Rio de Janeiro, fiho do Sr. Bruno José da Silva e Sra. Amélia Medina Silva. Ainda criança foi morar em Cataguazes, MG, onde passou a sua infância. Seu pai era barbeiro e Pattápio foi iniciado nessa profissão. [...] cabe aqui mencionar que o barbeiro dessa época, na maioria das vezes, era literalmente um “factótum”, dominando tanto um pincel e uma navalha como um bisturi e um boticão, além de ser um músico multi-instrumentista. Como músicosinstrumentistas, os barbeiros organizavam-se em grupos que eram convidados para animarem as festas da comunidade. Esses grupos que apresentavam as chamadas “músicas dos barbeiros” vão anteceder, de certa maneira, os ternos de choro que aparecerão posteriormente. Nesse ambiente cresceu Pattápio, ajudando seu pai e tocando uma flauta de frandles para o deleite de seus clientes. Aos 12 anos passa a estudar música com o prof. João Batista de Assis e aos 16 entra para a Banda de Cataguazes; a partir de então, dedica-se cada vez mais à sua grande paixão: o estudo da flauta. Talentoso, simpático, autoconfiante, alegre e extrovertido, Pattápio toca, compõe e empenha-se em divulgar seu trabalho junto às bandas com as quais toca, tornandose o melhor flautista da região. Aos 20 anos, decide ir morar no Rio de Janeiro (CARRASQUEIRA, 2000, p. 8)17. Pattapio em curto tempo nos legou uma série de belas composições para seu instrumento, a flauta, que além da influência da música europeia tem em si toda a força popular certamente advinda da sua formação de músico barbeiro18. Exemplo Musical 3 - Zinha, de Pattapio Silva 17 Maria José Carrasqueira, O livro de Pattapio Silva, obra completa para flauta e piano. São Paulo, Vitale, 2000. 18 Disponível em www.google.com.pattapiosilva+partituras; e Marcelo Leite [email protected]. 35 1.1.2.2 Jazz da Filarmônica Os grupos que passaram a ser chamados de Jazz (pronuncia-se “jaze”) existiam e atuavam de forma independente, mas em geral eram formados dentro das filarmônicas, como complemento extra, de música dançante, para festas onde tocavam. Mestre tradicional de banda filarmônica, o cachoeirano Tranquillino Bastos não tinha bons ouvidos para essa música dançante, profana diante das suas convicções que unem banda e filosofia. O mestre João Sacramento Neto, da banda 21 de abril, tinha um Jazz, que nunca atuou em seu período de Urandi, o Jazz Victória. A banda de Caetité tornava-se jazz quando realizava um baile improvisado, na casa do encarregado da festa. Mas o grupo mais estruturado para a música dançante que já presenciei, muito criança ainda, foi o Jazz de Louro Mineiro, proveniente da cidade mineira de Espinosa, que alcancei fazendo concorridas festas de salão no Café Cruzeiro, de Dona Rosalina. Guardei de ouvido uma das cativantes melodias, que vim saber depois se chamar African Beat: 36 Exemplo Musical 4 - Afrikaan Beat, de Bert Kaempfert Filarmônicas hoje centenárias, como a 13 de Junho de Paratinga, tinham seu jazz em alta conta, como um prolongamento à altura do serviço musical oferecido pela corporação. A Sociedade participava de outros atos populares como no carnaval de 1934, quando na noite do 1º dia “no edifício da 13 de Junho realizouse o grande baile à phantasia ao som do bem afinado Jazz, debaixo da maior animação, enthusiasmo, e na melhor ordem e decência prolongando-se as danças até a madrugada do dia seguinte (A BARRA, fev. 1934) [...] Em outras manifestações públicas como na Semana Nacional da Educação, de 7 a 12 de outubro de 1935, “A Philarmônica 13 de Junho abrilhantou diariamente as reuniões ao som de sua maviosa música. Após o encerramento da semana, seguiu-se uma animada soirée dansante, que se prolongou até alta madrugada, ao som do mavioso Jazz 13 de Junho” (A BARRA, 14 out. 1935, in MAGALHÃES 2006, p. 152)19. Durante as viagens de pesquisa para o projeto Bahia Singular e Plural (IRDEB BA) tive oportunidade de gravar na cidade de Paratinga os atuais componentes desse grupo de jazz ligado à Centenária Filarmônica 13 de Junho, que toca um repertório original, como esse baião intitulado Saltitando: 19 Estas referências ao jazz da Filarmônica, e também a orquestras de cordas, pode ser encontrado no excelente e gigantesco trabalho de Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães, Sociedade Philarmônica 13 de Junho, 100 anos de tradição e cultura, Paratinga, Rio são Francisco, Bahia (Goiânia: Ed. Vieira, 2006), o mais completo e bem ilustrado levantamento sobre a memória de uma filarmônica já realizado na Bahia. 37 Exemplo Musical 5 - Saltitando O músico mais próximo de todos nós da Escola de Música da UFBA a ter tocado e mesmo liderado um jazz de filarmônica foi Lindembergue Cardoso (1939-1989). Lindembergue iniciou-se na filarmônica 2 de Julho, na cidade de Livramento, Bahia, com o mestre Manoel Conceição Castro, conhecido como Né de Otaviano, com o instrumento trompa, passando depois ao saxofone alto, com o qual passou a liderar o Jazz Ubirajara, que animava bailes e formaturas em toda a região Sudoeste. O jazz não era exatamente o estilo de música dessas formações, embora ocasionalmente tocassem também o gênero, conforme explica o compositor Jamary Oliveira que seria colega de Beg (sic) anos mais tarde nos Seminários de Música, em Salvador. “Chamava-se jazz porque tinha uma bateria tipicamente americana e a formação lembrava uma big-band, mas o repertório era mais de bolero e samba canção” (BASTOS, 2010, p.44). Ainda segundo o jornalista Eduardo Bastos, com o jazz Ubirajara o jovem músico Lindembergue pôde expandir seu repertório do dobrado e do choro, próprio do mundo da filarmônica, para uma diversidade de gêneros que o mundo dos bailes leva o músico a aprender: valsa, marchinha de carnaval, baião, e depois a influência do México e de Cuba – mambo, cha-cha-cha – da Inglaterra e Estados Unidos – Beatles e Elvis Presley – e claro, da música nova que passou a se fazer no Brasil, a bossa nova. “Begue” pegava tudo no rádio e fazia arranjos e orquestrações. O médico e poeta Marcoles Cotrim (1955-1999) recordou na sua Caetité natal o grupo de jazz da filarmônica tocar algumas peças conhecidas do repertório jazzístico como Summertime (G. Gerswin), Owtum leaves (Ed Seeran) e Love-me or leave-me, 38 (Walter Donaldson-Gus Kahn), nesta última, referindo-se à Hollyday, observou que “no início dos anos 60 essas músicas também tocavam no rádio”. O que se pode resumir sobre o assunto é que, até o início dos anos 1950, as bandas filarmônicas resolviam a questão do repertório para se dançar com a parte que chamamos música ligeira do seu repertório, executada por todo o conjunto. Com a difusão das orquestras dançantes de jazz através do rádio, elas praticamente foram obrigadas, em suas comunidades, a gerar um grupo menor, executando músicas da moda. Em cidades isoladas como Paratinga, às margens do rio São Francisco e com forte influência da cultura anônima popular, o jazz da filarmônica teve a felicidade de trabalhar sobre composições próprias. Em cidades como Caetité, de ampla comunicação com o mundo, tocou-se músicas divulgadas pelo rádio, mas de muito bom gosto. Com o surgimento dos Beatles e no Brasil da Jovem Guarda e suas guitarras, não houve a mínima piedade para com o que havia antes. Notáveis músicos de jazz foram subitamente esquecidos e não mais acharam trabalho. Não se pode comparar – e isso eu vivi quando criança – o domínio técnico e a imitação de exemplos notáveis praticada pelos músicos de sopro do jazz com as notas repetitivas e distorcidas dos músicos de sopro do Yê yê yê. Assistindo ao filme sobre a vida de Ray Charles, numa cena sobre o desemprego dos músicos de jazz na época do Rythm and Blues, se tem uma ideia do aperto no coração que eu sentia, aos nove anos de idade, ao admirar a guitarra (com aquela chave de glissando) e seus orgulhosos artistas, mas vendo sumir de cena os melhores músicos, músicos de verdade, que eu conheci e admirei. Eu também queria ser um Tony de Milton na guitarra, mas foi mais forte me tornar uma espécie de Tengo trombonista20. 1.1.3 Experiências inovadoras com a música de banda A presente sessão pretende discutir possíveis contribuições à composição voltada para a banda de música que podem trazer a história de dois mestres de bandas pelos quais 20 Tengo trombonista foi minha primeira referência com o instrumento. Tony de Milton, sanfoneiro em sua infância na cidade de Guanambi, com o advento da jovem guarda se tornou exímio guitarrista e executante de órgão elétrico. Alourado, cara-de-mau, camisa colorida, calça boca-de-sino, cinto tremendão, era um exemplo muito mais crível – mais próximo do modelo beat norte-americano – que os almofadinhas Yê yê yê oferecidos pela mídia de então. Tengo trombonista é responsável por certa interpretação de Amapola (José Maria Lacalle), num jazz dançante no salão de dona Rosalina Carvalho em Urandi, audição que me convenceu a tocar trombone e tirar de tempo essa ideia de ser “artista”, e desejar um dia ser músico mesmo, como tenho sido. 39 demonstro profundo respeito: Anacleto de Medeiros (1866-1907) e James Reese Europe (1880?-1919). Anacleto desde sempre voltou seu talento à composição religiosa católica, criando vasto repertório de música vocal, enquanto Europe desde sua ida a Nova Iorque ganhou fama de maestro de orquestra-espetáculo, mas a contribuição que mais nos interessa – a composição para banda de música – inicia-se quando eles, cada um a seu tempo e lugar, foram convocados a formar grupamentos especiais, tendo como suporte a instrumentação e a logística da banda militar. A composição voltada à formação instrumental e funções da música militarvê-se nesses dois casos obrigatoriamente analisada à luz da música negra em sua diáspora. O povo negro, do qual fazem parte Europe e Medeiros, originou uma música poderosa em todos os lugares onde foi obrigado a se instalar, na condição de cativo. Anacleto, músico de choro no ambiente noturno do Rio de Janeiro, vendo-se à frente de uma banda militar, mas com autonomia para contratar os melhores músicos possíveis, ajudou a fixar uma noção de repertório nacional para banda. Jim Europe, ao transferir seu talento revolucionário dos palcos de Nova Iorque para a regência de uma banda militar em missão por uma Europa conflagrada pela I Guerra Mundial, acabou por ajudar a “criar” o jazz – ou jass como se grafava – com o suporte instrumental da banda de música. Entretanto o presente capítulo retorna ao ambiente da banda de música um debate que, no Brasil, remete ao papel de pianistas como Chiquinha Gonzaga (18471935) e Ernesto Nazareth (1863-1934) e, no caso norte-americano, aos tocadores de New Orleans: o surgimento do choro e do jazz e as primeiras experiências de fixar em partitura os ritmos sincopados. Quando falamos dos “barbeiros” brasileiros, entendemos que um traço recorrente da sua musicalidade sempre foi a interpretação livre de peças musicais originalmente ouvidas de músicos de estante. Se pega de ouvido e interpreta-se como o instinto e a aprovação pública recomendam. Isso ocorreu espontaneamente com as schotiss (escocesas) que, de tanto serem interpretadas ao modo local, acabaram por originar as partituras assumidamente sincopadas, que passaram a ser conhecidas como “tango brasileiro”. Daí a gerar o estilo “choro” foi apenas questão de prática. Um dos nossos trabalhos aqui é localizar Anacleto de Medeiros, além de um competente educador e compositor de banda, como elemento fundamental para o surgimento do 40 choro, no momento em que, à frente a uma banda militar, passa a compor ou arranjar peças onde a síncope aparece grafada e na condição de motivo. A respeito dos músicos de banda afro-americanos, entendemos que um dos primeiros traços de estilo foi interpretar os hinos e canções europeias de modo sincopado, sendo esse o modus operandi que gerou o Ragtime e iniciou a grande escola evolutiva do jazz. Nosso trabalho aqui é localizar James Reese Europe – na estreita fronteira entre ser fox trot inovador ou proto-jazz – como elemento fundamental para o surgimento do jazz, no momento em que, à frente a uma banda militar, passa a compor ou arranjar peças cujo estilo ele mesmo nominava como “música sincopada”. 1.1.3.1 Anacleto de Medeiros e a Banda do Corpo de Bombeiros Nosso interesse por Anacleto justifica-se, desde já, por ele ter se iniciado em uma banda de música no local onde nasceu, ingressando com apenas 9 anos para tocar flautim na Banda do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Anacleto Augusto de Medeiros nasceu na Ilha de Paquetá, a 13 de julho de 1866, local onde faleceu a 14 de agosto de 1907. Filho de uma escrava liberta, aos 18 anos foi trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional e, ao mesmo tempo, matriculou-se no Imperial Conservatório de Música. Seu principal instrumento era o saxofone, mas a essa altura tocava quase todos os instrumentos de banda. Fundou o Clube Musical Gutemberg, com os colegas da tipografia, dando início à sua liderança na organização de grupos musicais. Figura 3 - Anacleto de Medeiros 41 Formou-se no Imperial Conservatório de Música em 1886, época em que fundou a Sociedade Recreio Musical Paquetaense, em Paquetá, onde nasceu, e começou a compor, inicialmente música sacra. Suas composições em seguida tomaram formas mais populares, como as polcas, schotisch, dobrados, marchas e valsas.21 David Pereira de Souza, em um trabalho sobre as gravações realizadas por Anacleto à frente da sua Banda do Corpo de Bombeiros, avalia o sucesso que une interpretação e criação: Como regente, o rigor rítmico, a afinação primorosa e a maciez de interpretação em conjunto foram os elementos de destaque no cenário fonográfico. E, como compositor, a expressividade e a singeleza melódicas formaram o tempero do timbre melancólico de suas valsas, enquanto que o ritmo sincopado e buliçoso foi o ingrediente principal de suas polcas amaxixadas22. Souza nos revela um compositor coerente e técnico, no tratamento do material temático como, por exemplo, quando quis homenagear a corporação com o seu dobrado Jubileu: O caráter marcial das marchas não aparece em seus dobrados, nos quais sobressai a transparência dos contracantos, o jogo diversificado dos timbres instrumentais e o estilo contrapontístico. Por exemplo, o dobrado Jubileu, composto em 1906, para homenagear os cinquenta anos de aniversário do Corpo de Bombeiros, emprega a técnica contrapontística em todo seu desenvolvimento. Assim, o tema principal, que é o próprio toque característico dessa corporação militar, ecoa por todo o dobrado, de maneira que o ouvinte pode percebê-lo em momentos diferentes. Por exemplo, na última parte é tocado, ao fundo, pelos trompetes, enquanto duas melodias diferentes e independentes são executadas, simultaneamente, por outros naipes da banda. 23 Para uma tese em que o foco está no processo composicional, nosso interesse por Anacleto é o fato de ter exercitado uma linguagem “nacional” onde a síncope é registrada em partitura musical, pois até então (como também no Jass norteamericano) 21 As figuras 3 e 4 foram conseguidas na página “Anacleto de Medeiros” da Wikipédia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Anacleto_de_Medeiros, consultada em 11 de maio de 2014. 22 David Pereira de Souza, “As gravações históricas da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (1902-1927) valsas, polcas e dobrados”. Rio de Janeiro, Tese Doutorado. Orientação Dra. Martha Tupinambá Ulhôa. Rio de Janeiro: UNIRIO 2009. 23 Souza, 2009, pag. 21. O toque característico do Corpo de Bombeiros, utilizado por Anacleto, é: 42 o “sincopado” era “uma maneira de interpretar” as colcheias. E isso foi amplamente aceito, pois suas músicas passaram a ser tocadas por bandas de música de todo o país, na medida em que aumentava sua fama como compositor. Catulo da Paixão Cearense musicou algumas de suas músicas, como o famoso schotischIara, editado em 1912 com o nome Rasga o coração sendo motivo utilizado por Villa Lobos nos Choros n. 10. Outras composições que ficaram conhecidas foram Santinha, Três Estrelinhas e Não Me Olhes Assim. Exemplo Musical 6 - Os bohêmios, de Anacleto Figura 4 - Banda do Corpo de Bombeiros, com Anacleto de Medeiros, em 1896 Anacleto foi fundador, diretor e maestro de muitas bandas de música, tendo contribuído de maneira fundamental para a fixação dessa formação no Brasil. A tradição de bandas se reflete até hoje, por exemplo, no desenvolvimento de uma sólida escola de sopros. A banda do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, criada por Anacleto, gravou alguns dos discos pioneiros produzidos no Brasil, nos primeiros anos do século 43 XX. Uma nova formação da mesma banda realizou depois o famoso LP intituladoDobrados, onde estão gravações antológicas de dobrados clássicos como Baptista de Mello, Barão do Rio Branco e Avante Camarada. 1.1.3.2 James Reese Europe e os Hellfighters Nosso interesse por Jim Europe justifica-se, desde já, por ele ter se iniciado numa cidade do interior, provavelmente em uma banda de música, partindo em busca de melhores condições de trabalho na metrópole, uma trajetória comum a muitos músicos de filarmônica. Europe nasceu em Mobile, Alabama. Sua família mudou-se para Washington, DC quando ele tinha 10 anos. Ele se mudou para Nova York em 1904.24 Figura 5 - Músicos de banda na I Guerra e seus instrumentos danificados em campanha Bem que poderia com esse mote justificar uma admiração espontânea surgida logo que descobri Jim Europe, sua personalidade admirável e as consequências do seu trabalho. A sua contribuição individual para o estabelecimento do jazz enquanto estilo 24 O sítio oficial do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, num artigo assinado por Rudi Williams assim se refere sobre a sua origem: “The son of a former slave father and a "free" mother, Europe was born in Mobile, Ala., on Feb. 22, 1881. Lorraine and Henry Europe were both musicians and encouraged their children's talents. When he was about 10, the family moved to Washington and lived a few houses from Marine Corps bandmaster John Philip Sousa. He and his sister, Mary, took violin and piano lessons from the Marine band's assistant director, Enrico Hurlei. Europe won second place in a music composition contest at age 14. Mary captured first place. Europe moved to New York City in 1903 to pursue a musical career. Work as a violinist was scarce, so he turned to the piano and found work in several cabarets. He helped found an African American fraternity known as "the Frogs," and, in 1910, established the Clef Club, the first African American music union and booking agency” (Defense Link set. 2012). 44 deveria ser melhor reconhecida pelas associações ligadas ao estudo e continuidade desse sistema de tocar e compor. Para o mundo das bandas filarmônicas ele representa o espírito mais puro do nosso trabalho, que tem muito de John Phillip Souza, é verdade, mas falta reconhecer e colocar na ordem do dia os Hellfighters, a banda americana que vai ao front, animando as tropas em combate com a marcha militar, e ao final das batalhas toca o ritmo sincopado afro-americano, onde alguns músicos fazem, com seus coturnos, o sapateado.25 É que Jim Europe possuía uma visão política muito firme em relação ao papel do negro na sociedade norteamericana onde, em equilíbrio com sua atuação profissional e institucional, defendia com firmeza os “ritmos sincopados” e a identidade da música que pouco depois seria conhecida internacionalmente como Jazz. Em 1910, organizou o Cleft’s Club, uma sociedade de afroamericanos na indústria da música. Em 1912, o clube fez história quando realizou um concerto no Carnegie Hall para uma instituição beneficente. O Clube de Orquestra Clef, enquanto não foi propriamente uma jazz-band, foi a primeira banda a tocar proto-jazz no Carnegie Hall.26 Jim Europe era conhecido por sua personalidade sincera e pouca disposição a se dobrar às convenções musicais da sua época, insistindo em tocar seu próprio estilo de música. No início do Século XX, a produção artística negra nos Estados Unidos voltava-se, principalmente, ao entretenimento. Se para o público branco a música sincopada e seus artistas de sapateado tinham algo de emocionante, para os artistas negros isso representava um mercado de trabalho florescente. Diferente dos que se beneficiavam da moda, Jim Europe levava a sério tudo o que fazia. Criticado por se manter inflexível diante de solicitações da moda, respondeu: Nós desenvolvemos um tipo de música sinfônica que, não importa o que você pensa, é diferente e distinto, e que se presta à reprodução das composições peculiares da nossa raça [... Meu sucesso veio ... ] a partir de uma realização das vantagens de se manter a música do meu povo. [...] Nós negros temos a nossa própria música que faz parte de nós. “É o produto de nossas 25 “Uma função semelhante à da Mehter, a banda militar turca, e a outros modelos de banda militar existentes no mundo”, segundo Ângela Lhüning, em observação da Banca do Exame Qualificativo, 2014. 26 Samuel Charters e Leonard Kunstadt, A história do Jazz nos palcos de Nova York . Rio de Janeiro: Lidador, 1962. Os autores comentam: “Não é exagero afirmar a importância desse evento na história do jazz nos Estados Unidos – foi 12 anos antes do concerto de Paul Whiteman e Gershwin George no Salão Aeolian e 26 anos antes do famoso show de Benny Goodman no Carnegie Hall”. 45 almas, que tem sido criado pelos sofrimentos e misérias de nossa raça”27. Sua orquestra se tornou nacionalmente famosa em 1912, acompanhando os bailarinos Vernon e Irene Castle. Os Castles introduziram e popularizaram o foxtrot – “A América aprendeu a dançar a partir da cintura para baixo”. Em 1913 e 1914, ele fez uma série de discos de vinil para a Victor Talking Machine Company. Essas gravações são alguns dos melhores exemplos do estilo ragtime pré-jazz dos anos 1910. É instrutivo ler um comentário de uma revisão de música no New York Times de 12 de março de 1914: “... o programa é composto principalmente de melodias de plantações e Espirituais ... [dispostas de forma a mostrar que] ... estes compositores estão começando a desenvolver uma arte própria com base em seu material popular ...”. Figura 6 - Jim Europe 27 Rudi Williams, Defense Link, 2012. 46 Quando os Estados Unidos entraram em guerra, Jim Europe alistou-se no regimento negro de Nova York, o 15º de Infantaria, sob o comando do coronel William Haywood. Europe recebeu um posto e foi designado para uma companhia de metralhadoras como oficial combatente. Quando o 15º estava-se preparando para a campanha, o coronel Haywood chamou Europe a seu escritório e lhe perguntou se poderia organizar uma banda marcial do regimento. Europe respondeu que não seria difícil. O coronel olhou-o bem. – “Sinto que o regimento deve ter uma boa banda”. Europe perguntou: “Até que ponto?” O coronel debruçou-se sobre a mesa. “Tenente Europe, eu quero que você organize a melhor banda do Exército Americano.” [...] Os Helfighters eram muito mais do que uma brilhante banda de música. Europe havia incluído entre o pessoal, músicos que cantavam, dançavam, representavam e faziam quase tudo em matéria de diversão. [...] Não só o resto do exército como também o resto da França desejavam ouvir a banda de Europe. A maior parte da sensação que a banda fazia era devido aos seus números de jazz. Deixaram tão boa impressão na França que houve logo uma procura de músicos negros de jazz em Paris e a França criou um gosto pelo jazz que até hoje é enorme28. Em fevereiro e março de 1918, Europe e sua banda militar viajaram mais de 2.000 quilômetros pela França, realizando concertos para soldados britânicos, franceses e americanos, e para civis franceses. Na França, os Hellfighters também fizeram suas primeiras gravações, para os irmãos Pathé. O primeiro show incluiu uma marcha francesa, a marcha Stars and Stripes Forever e números sincopados, como The Blues Memphis que, de acordo com uma descrição mais tarde do concerto, "deu origem ao gosto pelo ragtimis na França”. 28 Samuel Charters e Leonard Kunstadt, 1962, p. 113. 47 Figura 7 - Edição de Castles in Europe, de Jim Europe Após seu retorno para casa, em fevereiro de 1919, Jim Europe declarou: "Eu vim de França mais firmemente convencido do que nunca que negros devem escrever música negra. Temos o nosso próprio sentimento racial e, se tentarmos copiar os brancos, vamos fazer cópias ruins [...] ganhamos a França por tocar música que era nossa e não uma imitação pálida dos outros e, se formos nos desenvolver nos Estados Unidos, devemos fazer isso ao longo de nossas próprias linhas”. Exemplo Musical 7 - Síncopes em Castles in Europe A síncope expressa na grafia musical faz com que o trecho acima, extraído do “Fox inovador“, o proto-jazz Castles in Europe (homenagem à dupla de dançarinos John e Irene) assemelhe-se ao estilo do colega Anacleto, no Brasil, dez anos antes: não somente “tocar de maneira sincopada” os hinos religiosos e canções escocesas muito populares em todo o mundo àquela época, mas passar a escrever no pentagrama o ritmo sincopado. 48 Figura 8 - Funeral de James Reese Europe No momento da sua morte, James Reese Europe era o mais conhecido bandleader afroamericano nos Estados Unidos. Ele está sepultado no Cemitério Nacional de Arlington29. 1.1.4 Repertório Significativo para Banda de Música O presente tópico objetiva apontar um repertório amplamente difundido e aceito pelo universo das bandas filarmônicas brasileiras, onde o dobrado tem posição de destaque. Apesar de não existir um programa consistente de difusão e estudo dessas composições, elas sobrevivem nos programas não só das bandas militares como principalmente nas cidades do interior do Brasil. Muito recentemente, durante o Cortejo do dia 2 de Julho 29 Badger, F. Reid (1995) Uma Vida em Ragtime: Uma biografia de James Reese Europe.Oxford University Press.ISBN0-19-506044-X .Oxford University Press.ISBN0-19-506044-X . Badger, F. Reid (Spring, 1989)."James Reese Europe and the Prehistory of Jazz". American Music (American Music, Vol. 7, No. 1)7 (1): 48–67. doi : 10.2307/3052049 . ISSN0734-4392 .JSTOR3052049 ."James Reese Europe e a Pré-História do Jazz" American Music (American Music, Vol. 7, No. 1.)7 (1):. 48-67. doi : 10.2307/3052049 . ISSN0734-4392.JSTOR3052049. . Logan, Rayford W. e Michael R. Winston (1983)."Europe, James Reese". Dictionary of American Negro Biography ."Europe, James Reese" Dicionário.Of American Biography Negro.WW Norton & Company. ISBN0-393-01513-0 .WW Norton & Company. ISBN0-393-01513-0. 49 de 201330 em Salvador, as várias filarmônicas, algumas recém-criadas, tocavam dobrados clássicos com músicos muito jovens. Ainda que nosso foco não seja a chamada banda sinfônica, a banda que não desfila e utiliza instrumentos orquestrais como as palhetas duplas e a percussão fixa, é interessante fazer referência ao trabalho apresentado pelo mestre de bandas norteamericano Mathew George durante o simpósio intitulado Coreto Paulista, promovido pelo Conservatório de Tatuí, São Paulo, em 2010. George, não se prendendo a laços com significados regionais, sociais ou até virtuosos, procura estabelecer um elenco de obras significativas criadas especificamente para a formação sopros-percussão. Acreditei na sua proposta inicialmente por já ter tocado, enquanto músico, parte das obras do período inicial, e de ter contato com biografias de alguns compositores elencados, e constatar, após ouvir algumas delas, que em alguns casos se criou música para banda, em outros, para orquestra de sopros e percussão31. Chama nossa atenção a presença, nesta listagem, de nomes ligados à música de concerto do século XX. Então passamos à audição das citadas obras de Hindemit, Holst, Milhaud e Schoenberg. Hammersmith, de Gustav Holst, pode ser considerada uma peça de orquestra, por conter momentos prolongados de pianíssimo e instrumentação rarefeita, somente possíveis em uma situação de concerto, diante de uma plateia atenta. Aqui estão ausentes os elementos de breque (interrupção) marcados pela percusão e de canto corrido confiados a um grupo de instrumentos por grande número de compassos. A sinfonia em si bemol 30 Independência da Bahia, comemorada na data de entrada do Exército Libertador em Salvador,a 2 de julho de 1823, consolidando assim a independência do Brasil. 31 Sessão I - Obras iniciais (1900 – 1930): Percy Aldridge Grainger –Hill-Song n.2 – 1907. Gustav Holst – First Suite in Eb – 1900 e – Second Suite in F – 1911.Igor Stravinsky – Sinphonies of Wind Instruments – 1920-1947. Ernst Toch – Speil fur Blasorchester -1926. Gustav Holst – Hammersmith (Prelude e Scherzo) – 1930.Sessão II - Trabalhos principais (1931 – 1951): Percy Aldridge Grainger – Lincolnshire Posy – 1939. Arnold Schoenberg – Theme and Variations, Op. 43 a – 1943.Darius Milhaud – Suite Francaise – 1945. Percy Aldridge Grainger – Power of Rome and the Christian Heart – 1947. Paul Hindemith – Synphony in Bb – 1951. Sessão III – A voz americana (1952-1968): Morton Gould – Synphony for Band – 1952.VicentPersichetti– Synphony for Band – 1955. William Schuman – Chester from New England Triptych – 1957. IngolfDahl – Sinfonietta – 1961. Norman Dello Joio – Variants on a Medieval Tune – 1963. Aaron Coopland – Emblems – 1964. Sessão IV – Character Shift (1969 – 1989): Karel Husa – Music for Prague, 1968 – 1969. Ron Nelson – Rocky Point Holiday – 1969. Fisher Tull – Sketches on Tudor Psalm – 1973.Joseph Schwantner - ... and the montains rising nowere – 1977.Leslie Basset – Colors and Contours – 1978. David Maslanka – A Child´s Garden of Dreams – 1982. David Gillingham – Heroes Lost and Fallen – 1989. Sessão V – Já no Novo Milênio (1990 – Presente): Yashude Ito – Glorioso – 1990. Ron Nelson – Passacaglia – 1992. Martin Ellerby – Paris Sketches – 1994. Dan Welcher – Zion – 1994. Nigel Clarke – Samurai – 1955 ver. 2007. Frank Ticheli – Blue Shades – 1996. Adam Gorb – Yiddish Dances – 1997. Donald Grantham – southern Harmony – 1998. Frank Ticheli – Synphony N. 2 – 2003. 50 de Hindemith, do mesmo modo, trata os dobramentos e possibilidades instrumentais bem próximos ao tipificado pelas bandas, mas os contrapontos intrincados – quando se dispensa a percussão – a caracteriza como uma sinfonia aplicada aos sopros, que em nenhum momento lembra uma banda de música. Os dois outros casos são de conhecidos compositores que geraram música para banda, sinfônica sim, mas antes de tudo banda, e seus chavões. A Suíte francesa, de Darius Milhaud, sugere ter sido feita de encomenda, provavelmente por algum setor ligado à promoção da música regional francesa – sobretudo do sul do país, onde as bandas com modelos semelhantes ao nosso são muito numerosas. O que a audição da Suíte nos revela é uma coleção de músicas folclóricas, onde cada movimento tem o nome de uma região. Ile de France, por exemplo, é representada por uma canção infantil (Na mão direita tem uma roseira...) bastante conhecida no Brasil. Todo o tratamento se dá em torno das funções de canto, contracanto, centro e marcação, como deve ser nas bandas que marcham. A peça Tema e variações op. 41 de Schenberg é muito interessante. O compositor esclareceu certa vez que a peça foi criada para atender a um grupo de amigos, todos ligados às fortes corporações de bandas de músicas populares da Alemanha. A peça então reúne soluções harmônicas do fim do século XIX, que lembram Wagner, com interrupções e convenções de música militar. Podemos dizer que Schoenberg foi artisticamente sincero ao aplicar uma linguagem harmônica que, afinal, dominava – e não facilitou essa linguagem, assim como podemos dizer que ele atendeu aos seus amigos mestres de banda ao criar parâmetros, referências à música militar convencional. As peças de harmonia criadas pelos mestres de banda em geral visam suprir uma demanda de “harmonias” originais, muito apreciadas no final do século XIX, reduções de repertório europeu. Dois mestres da Bahia, Antonio Mariano Sobral e Santa Isabel, tornaram-se conhecidos por fazer esse trabalho. Espantou-me encontrar uma transcrição da marcha trunfal de Ainda, de Verdi, no acervo com carimbo da Sociedade Muzical 5 Rios,de Maracangalha. O pesquisador Antônio Bispo afirma que: Ocorrem, é verdade, nomes famosos de compositores europeus na prática musical de muitas de nossas filarmônicas. Trata-se, geralmente, de autores de óperas. Esse fato ocorre em maiores proporções nas cidades de grandes possibilidades de intercâmbio com as capitais. É o caso das bandas de várias cidades do Estado do Rio de Janeiro, como a extraordinária "Sociedade Musical Nova Aurora" de Macaé, possuidora de um rico acervo de obras de Cimarosa, Rossini, 51 Verdi, mas também de valsas de J. Strauss e até mesmo de obras de F. Mendelssohn-Bartholdy. Também encontramos muitas obras "clássicas" nas bandas ao redor de Salvador, como nos arquivos da "25 de março" de Feira de Santana e das filarmônicas de Cachoeira de São Félix e Santo Amaro da Purificação. Às vezes, porém, os músicos não conhecem os autores dessas músicas "clássicas" que executam. Classificam-nas em geral com o nome genérico de "músicas de harmonia" (BISPO, 1973 p. 3). Nosso repertório significativo reune músicas executadas por bandas em todo o território nacional, divulgadas por um sistema informal e eficaz de distribuição que passam por bandas militares e correspondência entre os mestres. A nossa lista deve ser dividida em uma parte de dobrados e outra com algumas peças de concerto ou dança. A - Dobrados de significação nacional: Baptista de Mello (Manuel Alves) – é talvez o dobrado mais conhecido no Brasil, o exemplo mais evocado quando se quer ensinar o significado do termo “contracanto”. Barão do Rio Branco (Francisco Braga) – “Chico dos Hinos” nos deixou esta excelente peça musical, um exemplo de dobrado, mas com uma grande novidade: uma modulação inesperada para o III grau. Cisne Branco (Antonino Manoel do Espírito Santo) – um dobrado militar composto por um expert em dobrado militares. Ao que tudo indica, foi composto como dobrado 115, depois adotado pela Arma. Dever do mestre (Ceciliano de Carvalho) – um dobrado clássico, convencional, composto por um professor de música residente no Sertão da Bahia, que alcançou reconhecimento nacional. Dois Corações (Pedro Salgado) – é um dobrado que se identifica com qualquer banda de música do interior do Brasil, uma das melodias mais reconhecidas. Jubileu (Anacleto de Medeiros) – obra que faz juz ao papel desempenhado por Anacleto no mundo das bandas. Foi um dos primeiros dobrados gravados, em 78 RPM, em 1912. Mão de Luva (Joaquim Naegele) – Naegele é um talento reconhecido internacionalmente quando se fala em bandas de música no Brasil. O dobrado Mão de Luva tornou-se tão popular que tem recebido vários outros títulos, mantendo-se, porém, a autoria. 52 O bombardeio da Bahia (Antonino Manoel do Espírito Santo) – além do autor ser um reconhecido compositor de dobrados significativos, este representa um documento musical, um testemunho de um episódio ocorrido em 1912, o bombardeamento de Salvador pelo Exército. Ouro Negro (Joaquim Naegele) – Naegele foi um abnegado em defesa das bandas de música no formato que ora estudamos, diferentemente das bandas sinfônicas que se tornaram moda depois. Saudade de minha terra (Evaristo da Veiga, alferes) – um dobrado composto no campo de batalha da Revolução Federalista no Sul do país, que se tornou preferido das festas do interior. Silvino Rodrigues (anônimo) – gravado pela primeira vez em 1908, no Rio de Janeiro, em 1945 recebe a autoria do famoso acordeonista de origem italiana Mário Zan. Eu toquei esse dobrado na banda 21 de Abril. Tusca (Estevam Moura) – dobrado ousado, rebuscado, conhecido em todo o Brasil. Verde e Branco (Estevam Moura) – composto em homenagem ao Movimento Integralista Brasileiro, um forte e bem composto dobrado conhecido internacionalmente. B – Peças de harmonia executadas nacionalmente: Protofonia de Il Guarany (Carlos Gomes) – movimento concertante que faz parte do repertório Senior de qualquer banda brasileira de bom nível. Royal Cinema, valsa (Tonheca Dantas) – uma música composta por um humilde e talentoso compositor do Vale do Seridó (RN), iniciador de uma família de músicos que vem mantendo viva a chama da banda filarmônica até os dias atuais. Esta valsa se tornou um hino potiguar. Saudades de Ouro Preto, valsa. Consta do folclore da cidade que sua partitura foi deixada numa cela do xadrez local, por um fugitivo. Suite Nordestina, de José Ursisino, o Duda. Sua versão para banda sinfônica é muito executada em concursos no sul do país. Pelo nordeste circula livremente a versão escrita para banda marchante. 53 Como resultado da memória do meu trabalho, acabei por acrescentar a essa lista de peças de harmonia, consagrada Brasil afora, algumas peças muito significativas que tive a oportunidade de revelar, transcrevendo e executando os manuscritos do autor: As Ninphas do Amor, fantasia (Mathias Alves de Almeida) – uma peça de concerto em vários movimentos, repertório obrigatório das bandas de música do Recôncavo baiano. Maria Almeida, polaca (Tertuliano Santos). Considero a maior peça de concerto já escrita para banda filarmônica. O tratamento do grupo acompanhante e seu entrosamento com o solista é impecável. A parte do trompete só mesmo poderia ser escrita por quem tocava realmente o instrumento e conhecia todas as suas possibildades dentro do estilo. Annita Garcia, polaca (Isaias Gonçalves Amy). Foi escrita originalmente para bombardino, sendo depois transcrita pelo próprio autor para saxofone alto, instrumento com o qual gravei em 1999. É uma peça de fina cepa, de difícil execução para o solista onde, sempre em tranquila sucessão, todos os fatos composicionais de uma polaca são realizados. C – Músicas ligeiras: Carinhoso, maxixe (Pedro Salgado) – um peça ligeira editada pela Vitale Musical que se tornou muito conhecida no Brasil inteiro. Chora meu baixo, maxixe (Pedro Salgado) – uma rara peça para tuba solo e banda. Os Bohêmios (Anacleto de Medeiros) – tango brasileiro onde o ritmo sincopado é pioneiramente fixado em partitura, sendo trabalhado de várias maneiras, regiões e dinâmicas. Jura (Sinhô) – arranjo para banda de música do samba-maxixado, um estilo que foi gerado na banda de música. Abertura na levada – um samba reggae composto nos anos 1990 para a Oficina de Frevos e Dobrados, mas que foi oferecido para a Banda Maestro Wanderley, da Polícia Militar da Bahia, como uma das músicas do CD comemorativo dos 240 anos da instituição. Tornou-se muito conhecido das bandas da Bahia. 54 1.2 PRÁTICA DO COMPOR, FORMA E FUNÇÃO INSTRUMENTAL No universo composicional das bandas de música, ou você acredita no seu conteúdoverdade ou não incorpora a “ideia” de banda. É esse conflito que gerou muitas instituições ao que chamei “rendição” ao repertório sinfônico. Acreditar significa reconhecer a validade da composição soprada pelos encantados no toré indígena; que o Orixá mandou um novo canto do Candomblé;no novo samba que “pintou de repente” na roda do violeiro; que os insights de Mozart eram tão válidos quanto os numerosos rascunhos de Beethoven até chegar a uma definitiva versão. Perhaps more important of all, analysis “has to do with the surplus [das Mehr] in art, this surplus being the “truth content” of a work in so far as it goes beyond the more facts. “No analysis, Adorno writes, “is of any value if it does not terminate in the truth content of the work, and this, for its part, is mediated through the work’s “technical estructure”. (AGAWU, Kofi. Analyzing music under new musicological regime.The Online Journal of the Society for Music Theory, August 2011).32 Quem crê na composição específica para banda filarmônica, ao passo que, na composição de música militar, obedecemos à teoria musical adotada no Ocidente, vai necessitar de quatro funções instrumentais: Baixo: estabelecendo um campo harmônico e um padrão de ritmo; Centro: consolidando o encadeamento rítmico e completando o campo harmônico; Contracanto: comentando ou completando a linha melódica principal; Canto ou Linha melódica: para as pessoas, a música em si. É sempre bom lembrar que do ponto de vista técnico precisamos do mesmo idioma, do mesmo sistema de símbolos, que uma orquestra sinfônica ou um coral misto precisam – figura musical, dinâmica, sinais de expressão – mas nossas particularidades advêm tanto da instrumentação utilizada, da relação das notas musicais, quanto da relação da música que se faz, com as pessoas, lugares ou circunstâncias. Então, voltando à estrutura da música, vamos falar mais amiúde sobre cada uma dessas quatro funções da polifonia em banda. 32 Uma tradução livre poderia ser: “talvez, mais importante de tudo – a análise tem que ver o principal em arte, esse principal sendo a essência de uma obra, sendo isso o âmago de uma obra até onde ela vai além de muitos fatos. Nenhuma análise, Adorno disse, pode ter valor se ela não souber determinar a essência desse trabalho, e de como isso dialoga com a sua estrutura técnica.” 55 1.2.1 Canto O canto é a linha melódica principal, a primeira voz. Na banda e na música de sopro em geral, é apresentado pelas flautas, pela clarineta, pelo trompete, pelo sax alto, enfim, dos instrumentos assim chamados “de canto”, assim como o trombone pode ser “de canto” se a ele são confiadas algumas melodias. Mas na música de banda por tradição há um momento, chamado de “o forte”, em que o canto é apresentado não por aqueles instrumentos agudos, mas pelos graves, tuba inclusive. Enquanto isso, os instrumentos de canto fazem o centro ou uma espécie de contracanto. Há uma maneira de escrever dobrado nas Lavras Diamantinas baianas, que acredito ter sido influência de Minas Gerais, que em certo momento usa duas linhas melódicas contínuas em contraponto. Não um canto e um contracanto, mas duas melodias que, isoladamente, têm sentido e continuidade, dois cantos, portanto. O canto de um dobrado deve ter uma melodia com frases bem definidas em seu contorno melódico e rítmico. Observemos as linhas das primeiras partes dos seguintes dobrados: 220, de A. Espírito Santo, Dois Corações e Saudades de Minha Terra, três dobrados clássicos. Frases lapidares, onde os contornos “interrogativos”, ou de frase que espera outra seguinte, são satisfeitos por completo. Exemplo Musical 8 - Canto do dobrado 220, de A. M. do Espírito Santo O canto de uma polaca deve trazer, em contraste, passagens virtuosísticas, sutilezas e raciocínios mais prolongados, pois é confiado a um solista, de quem se espera música mais longa, à maneira de um concerto. O canto de um samba, independentemente do centro e da marcação, evitando os tempos fortes através de ligaduras e mais ligaduras e abusando da síncope, vai induzir à dança. O canto de uma marcha religiosa é construído de maneira a induzir ao caminhar solene e reflexão mística. As melhores marchas são músicas instrumentais belíssimas, onde o canto se 56 constrói piedoso. O canto do trio da marcha solene Phase de Noivado, de Estevam Moura é um dos mais pertinentes exemplos de construção melódica: Exemplo Musical 9 - Phase de noivado, de Estevam Moura E por aí vai. 1.2.2 Contracanto O contracanto trabalha quando o canto descansa, e descansa quando o canto trabalha. Faz notas brancas ou simplesmente silencia, à espera que a melodia encontre um repouso, para surgir matreiro e definitivo. Contracanto não deve ser confundido com Contraponto, uma ciência da música, uma disciplina. Mas todo contracanto é um contraponto, no sentido de combinar notas musicais, ou melhor, linhas musicais, independentes. Mas contra-o-canto, no nosso caso se interpreta do mesmo modo que contramestre, aquele que apoia, que dialoga, que substitui. Contracanto em filarmônica cheira a bombardino, modernamente sax tenor também, e a função de confiança do mestre ao seu discípulo ou músico de confiança. Um bombardino em mãos de um aluno ruim é um crime. Em mãos de um aluno apenas regular, uma generosidade que nada acrescenta ao conjunto; mas, em mãos do melhor músico, é simplesmente o certo, o triunfo da música, e um elemento decisivo para a contagem de pontos dos festivais. E o mestre, ao compor o contracanto, deve conhecer bem a possibilidade do instrumento. Saber o que um bombardino pode fazer, e daí produzir um contracanto sempre difícil, mas plenamente possível, onde o músico pode se empenhar tranquilo que o resultado vai ser bom. O contrário disso é transportar simplesmente uma frase dessas para o sax tenor, ignorando se lá, com as chaves, não surja alguma engrizilha. E ainda 57 bem que os contracantos clássicos são pensados primeiro para o grave de bocal e, depois, levados ao sax tenor. Se fosse o contrário, seria ainda mais difícil. Um dos exemplos clássicos de equilíbrio entre canto e contracanto está no célebre dobrado Baptista de Mello: Exemplo Musical 10 - Dobrado Baptista de Mello, de José Alves Mas o que chamamos contracanto não é privilegio do uso que se faz dos graves nesses momentos. As trompetadas, ao modo de cornetas, quando feitas na exposição dos dobrados (o estilo preferido, entre muitos outros, Brasil afora, do mestre Vado Santana, de Muritiba) são contracantos. Não são quando feitas em separado, naquelas preparações ad militari. Contracantos também são aquelas frases geralmente rápidas feitas pelas clarinetas, nas segundas exposições das melodias de dobrados, quando o canto passa a ser feito pelos metais, trompetes e trombones. 1.2.3 Centro Centro pode ser definido como acompanhamento rítmico-harmônico. Ou seja, acompanha a melodia, fornecendo a harmonia de uma maneira não estática, em movimento. O centro é o recheio do bolo. Podemos de certo ângulo dizer que ele é a música enquanto identidade tonal, porque é ali que se decide o destino harmônico, com a combinação de três ou quatro notas diferentes que vão nos dizer que estamos na tônica, na dominante ou se já migramos para alguma modulação. É a música enquanto identidade rítmica porque, dependendo do modo em que se movimentam as trompas, dizemos dizer, sem ouvir o canto, se determinada música seriaum dobrado, um maxixe ou uma marcha-frevo, mesmo estando dentro do mesmo compasso dois-por-quatro, se 58 independente do andamento seria é uma valsa ou uma polaca, estando em ternário, ou se é uma marcha solene ou religiosa, estando em quaternário. Exemplo Musical 11 - Modelos de centro 1.2.4 Marcação Finalmente chegamos à marcação, ou baixo, que é o alicerce da composição. Nossa exposição das funções estaria também corretase começássemos pela marcação, depois pelo canto, depois pelo contracanto e centro, porque partiríamos do alicerce, da raiz. Junto com o centro, a marcação define a tonalidade e o estilo do ritmo. Naturalmente confiada aos instrumentos graves, a marcação é mais contínua nas músicas para marchar e dançar, e mais estratégica, conclusiva, nas músicas de concerto. Isso equivale a dizer que nos dobrados de marcha vemos uma marcação plana, coincidindo com o passo do pelotão. Na marcha popular ou no frevo, do mesmo modo, a marcação coincide com a pisada da dança. E na música de concerto, após algum período de cadência, ou fermata, a marcação é decisiva para concluir o momento. Dentro do compasso binário, do mesmo modo que o centro, podemos ver como o comportamento da marcação pode ser um elemento de identidade: 59 Exemplo Musical 12 - Modelos de marcação Nas situações de concerto, a marcação oscila mais, varia mais, acompanha a evolução da melodia e, após as situações de pausa, tem sempre uma frase de ligação com o momento seguinte. Essa frase de ligação há de merecer um estudo à parte. Ela pode introduzir a uma nova tonalidade, por exemplo. Então vejamos: acabado de encerrar um período em dó maior e ponto, eis que a marcação lança um sib – la – sol ... o que virá depois? Claro que é uma nota Fá e o estabelecimento de uma nova tônica, no tom de Fá Maior. É na marcação que os compositores do Recôncavo baiano estabeleceram o estilo tangado, tão caro enquanto identidade. Pois se em uma melodia plana, como a de um trio de dobrado comum, um contracanto com as “firulas” habituais, o centro discreto, às vezes colado na tuba (fazendo o mesmo ritmo, o que não é muito comum), quem determina o tangado é mesmo a linha da marcação, fazendo as síncopes que definem esse estilo. Vejamos, por exemplo, o trio do dobrado Filoca Santana, de Heráclio Guerreiro. A aplicação dessas funções no conjunto de instrumentos que compõem a banda de música vai depender muito da tradição, do que se costuma fazer na nossa cultura musical, e um pouco da capacidade e ousadia do compositor. No dobrado Pepezinho por exemplo – ouçamos o CD Oficina de Frevos e Dobrados 15 Anos (Selo Sons da Bahia, 2001) – enquanto compositor, preferi linhas melódicas estranhas e harmonias modais e atonais. Mas lá estão, bem definidos, o que é canto, contracanto, centro e marcação. 1.2.5 Exemplo de distribuições das funções A exemplificação que se segue é uma aplicação hipotética, com base na estatística, das quatro funções instrumentais no estilo mais recorrente das bandas filarmônicas, que é o 60 dobrado. As partes sobre as quais vamos distribuir as funções são: introdução, 1ª parte, 2ª parte, ponte e trio, e a consequente distribuição dessas funções pelo instrumental disponível. As atividades dos instrumentos de percussão não entram nesse quadro, desde que consideremos “centro” o que faz a caixa-clara e “marcação” a atividade dos pratos manuais e bombo. Na escrita tradicional, o sax barítono sempre vai acompanhar a atuação da tuba. Introdução: A introdução de um dobrado é uma parte curta por definição, de não mais que 16 compassos, pois pretende impor um elemento de identidade musical que sirva de abertura a um discurso maior, que é a primeira parte da peça. Geralmente é feita em forte, e sua construção do ponto de vista de funções pode ser: a) Canto: flautas (fl) trompetes (trp) trombones (trb), bombardino (bom) sax tenor (ten), barítono si b (bar); b) Contracanto: não se fazem contracantos no espaço geralmente curto da introdução; c) Centro: requinta (req), clarinetas (cl), sax alto (sax) e trompa (cor); d) Marcação: tuba (tb). 1ª parte: A primeira parte de um dobrado é o canto em si, é a melodia que geralmente se fixa na memória das pessoas. Nos dobrados convencionais, esta melodia se faz com um mínimo de 32 compassos repetidos por rittornello. A dinâmica se dá o tempo inteiro, em meio-forte, ou há uma divisão, com um primeiro período em piano, com solo de palhetas, e um segundo período em forte, com solo dos metais. Uma possibilidade de distribuição das funções é: a) canto: flautim, requinta, clarineta, saxofone alto, trompete, trombone; b) Contracanto: bombardino e sax tenor. Pode haver contracanto agudo de flautim e requinta; c) Centro: trompa, trombone (reforçando a trompa), caixa; d) Marcação: tubas. 61 2ª parte: “o forte” A segunda parte de um dobrado é conhecida como “o forte”, pois nela a dinâmica geralmente é fortíssimo, com a particularidade do canto ser confiado aos graves, enquanto todos os agudos fazem o centro. Também é repetida por rittornello, existindo aqui praticamente duas funções, o canto e o centro. a) canto: sax tenor, trombone, bombardino, tuba; b) Contracanto: geralmente não há contracanto nessa 2ª parte; c) Centro: flautim, requinta, clarineta, sax alto, trompete e trompa; d) Marcação: como todos os graves estão no canto, o efeito de marcação permanece somente com a percussão. Ponte: Em todos os estilos musicais, uma ponte deve ser entendida como uma parte de transição, uma preparação para o que virá, sendo, portanto, de curta duração. A dinâmica depende do efeito a se buscar. Uma distribuição possível é: a) canto: trompete e trombone combinados ou solo de palhetas; b) contracanto: não há tempo para melodias em resposta; c) centro: feito pelas palhetas ou pelos metais, a depender de quem faz o canto; d) marcação: tuba, bombardino. Trio: O trio é a parte mais delicada de um dobrado, podendo ter uma duração maior que a 1ª parte, sendo do mesmo modo repetido por rittornello. No trio, o contracanto geralmente tem uma partitura ainda mais rebuscada que o canto. a) canto: flautim, requinta, clarinetas e saxofones; b) contracanto: tenor e bombardino; c) centro: trompas com ou sem reforço dos trombones; d) marcação: tubas. Esse esquema de distribuição das funções não é um postulado, mas uma tentativa de teorização com base na estatística da maioria dos dobrados brasileiros. No 62 caminho vamos encontrar algum dobrado com longa introdução, dobrado onde não existe o forte com solo de graves e outros onde o trio não tem o tal contracanto inspirado, mas a nossa tarefa aqui é trabalhar sobre o consenso. 1.3 ESTILOS DE MÚSICA PARA BANDA NO BRASIL Estilo de música para banda filarmônica associa estratégias composicionais em função da utilização da música: se a banda foi escalada para um desfile solene, para uma apresentação em palco ou para uma algazarra festiva. Nesse repertório que definimos como “música de banda”, destaca-se, soberano, o dobrado, uma peça de movimentação derivada da lusitana “marcha militar de passodobrado”. Uma música que na Europa é chamada “marcha militar”, que nos Estados Unidos adquiriu identidade própria, sendo designada com o termo Military March, na França “Pas redoublé” e na Espanha “Pasodoble”, contando ainda com derivados no mundo oriental, que não obstante a incorporação de instrumentos regionais mantém estrutura musical correlata com a necessidade universal de caserna: peças de movimentação que podem tornar-se concertantes em solenidades. Outras formas frequentes são: Marcha de Procissão – em quaternário e andamento lento. Exemplo: Marcha Fra Terenzio, de autor desconhecido, repertório do mestre João Sacramento Neto, de Condeúba, Bahia. Marcha solene – em quaternário e andamento rápido. Marcha Phase de Noivado, de Estevam Moura, Feira de Santana, Bahia. Valsa- em tudo semelhante ao modelo de Strauss. Royal Cinema de Tonheca Dantas, Carnaúba dos Dantas, Rio Grande do Norte. Polaca – peça para solista e banda, em compasso ternário, mas subdividido de tal forma que não parece uma valsa nem inspira à dança. Polaca Annita Garcia, de Isaias Gonçalves Amy, Juazeiro ou Alagoinhas. Fantasia – peça com vários compassos e andamentos, incluindo trechos de solo. Fantasia 7 Palavras, de Isaias Gonçalves Amy, Alagoinhas ou Juazeiro. Marcha-frevo – peça curta de andamento acelerado, mais que a marchinha, menos que o frevo, com linhas melódicas menos obrigatoriamente responsoriais (metais 63 versus madeiras) que no frevo. Marcha frevo n. 9 de Isaias Gonçalves Amy, Alagoinhas. Poloneza – que, apesar da semelhança com a polaca, não se destina a um instrumento solista específico, mas revezando os tutti com diversos solistas. Poloneza O canto da serra. Polca – espécie de marcha muito acelerada em compasso binário. Polca Morrense, Joazino Ribeiro Abertura – peça de harmonia, como as chamavam, sendo muitas vezes reduções advindas da música sinfônica. Abertura Hillarian. Maxixe ou tango brasileiro – uma espécie de samba matricial que fez muito sucesso no início do século XX. Maxixe Chora meu baixo, de Pedro Salgado. Há de fato uma espécie de unidade estilística e um estado de espírito comum em filarmônicas do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Compositores como Pedro Salgado, Anacleto de Medeiros e Naegele são referências nacionais, ao lado de baianos como Heráclio Guerreiro e Estevam Moura. Na Bahia, as cidades do Recôncavo foram naturalmente berço das principais sociedades musicais mais atuantes, porém não houve cidade forte como Caetité, Juazeiro ou Lençóis que não possuísse uma ou duas bandas. 1.3.1 Dobrado, a marcha brasileira Entre as formas musicais aplicadas à banda de música, a principal delas é a marcha militar ternária (no sentido “três partes”) com introdução, ponte e coda. Essa forma originou o dobrado, conforme estudado no item anterior: introdução, primeira parte expositiva, segunda parte forte (com solo dos graves ou não), uma volta à 1ª parte via sinal de S, e com um sinal de O, chega-se a uma ponte, conduzindo a um trio de dinâmica mansa: Exemplo Musical 13 - Forma do dobrado 64 A Marcha militaré uma composição de média duração (de 5 a 8 minutos de música) escrita para bandade música (em alguns casos também chamada banda militar) e se destina a musicalizar uma movimentação de infantaria. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, a Military March tornou-se um estilo bastante trabalhado, incorporando diversas soluções harmônicas e momentos de transição, como pontes e preparações, contudo sem interromper o fluxo rítmico sem o qual não poderiam ser usadas em paradas e movimentações estudantis. A marcha militar tem como seu maior expoente, na Inglaterra, Kenneth Alford, autor da famosíssima marcha Colonel Bogey, enquanto nos Estados Unidos a figura de John Phillip Souza levou a marcha militar ao patamar de patrimônio cultural nacional. Na França, a marcha militar gerou o estilo nacional pás redoublée enquanto na Espanha originou o pasodoble, um estilo nacional poderoso, também desdobrado em modalidades concertantes, de marcha e dança também. Dobrado é a maneira brasileira de dizer “marcha militar de passo dobrado”, ou seja, uma composição com a estrutura e instrumentação da marcha militar, que não é tão lenta quanto a marcha solene, em compasso quaternário, tampouco rápida quanto as marchas de ataque. E mais que isso, guardados esses parâmetros, no Brasil, o dobrado passou a musicalizar muito mais as praças e quermesses que os exercícios de caserna. As interrupções, volatas, cadências e, sobretudo, a invenção do tangado, pelos baianos, quase divorciaram os dobrados da sua função de caserna. Na verdade, restam não mais que uns doze dobrados que são usados nas paradas militares, em todo o país. Os outros exemplos tocados pelas bandas militares são considerados dobrados concertantes, podendo servir a solenidades, mas não a deslocamentos. Dobrado é uma música via de regra dedicada a datas, fatos e pessoas. É muito fácil em qualquer arquivo depararmos com títulos como dobrado 2 de Julho, dobrado Bombardeio da Bahia ou dobrado Horácio de Mattos. O primeiro faz referência ao ciclo do 2 de Julho, data em que se efetiva a Independência da Bahia, que consolida, ao lado das guerras de Fidié no Piauí e Maranhão, a libertação completa do território brasileiro da administração portuguesa. O segundo se refere a um fato, ocorrido no dia 10 de janeiro de 1912, quando tropas federais bombardearam Salvador a partir do Forte do Barbalho e de canhoneiras ao largo da Baía de Todos os Santos. E o terceiro caso, Horácio, o dobrado homenageia uma pessoa de expressão popular e de vida notável, que 65 é o coronel das Lavras Diamantinas de maior liderança política, genialidade guerreira e sensatez admirável. Essas características fazem do dobrado uma música associada a políticos e solenidades oficiais, o que é verdadeiro, mas também, a depender da época e local, o dobrado pode ser expressão de afeto, protesto ou ironia. Ou, sobretudo, uma crônica musical do que se passa na sociedade. Tusca é o nome de um dos dobrados da fase madura de Estevam Moura, uma peça difícil, cujo título surgiu quando o seu filho Ernani, apelidado “Tusca”, brincava às suas pernas, enquanto ele compunha. O cara suja é título de dobrado de Júlio Cézar Souza. Vamos considerar como exemplo o dobrado Os músicos, atribuído por mim ao mestre de bandas João Sacramento Neto, mas lembro-me de tê-lo ouvido dizer que seria uma melodia muito mais antiga, tocada pela banda da sua cidade natal, Condeúba. Foi a terceira música a ser posta na estante, em 1972, na jovem banda 21 de abril, onde me iniciei. Sendo um dobrado, implica que tenha compasso dois por quatro, uma introdução, uma primeira parte cantante, uma segunda parte a que chamamos “o forte” onde solam os instrumentos graves e, depois de uma visita à primeira parte, pula-se para um trio, de singela melodia. O tom principal é sol-menor, tendo o trio modulado para o relativo maior, si bemol. Foi a peça escolhida por mim para dar início à Oficina de Frevos e Dobrados que a adotou como um espécie de hino. Difundido por cursos e oficinas que coordenei e pelo CD Oficina de Frevos e Dobrados 15 anos, o dobrado Os Músicos tornou-se conhecido e tocado em todo o interior da Bahia e em diversas partes do Brasil. Dentro da tradição europeia, o dobrado tem forma ternária, ou seja, possui três partes distintas. A Introdução tem muito de decisivo, de definitivo, afinal, diferente de uma peça de concerto que pode se iniciar misteriosa, por assim dizer, a música de marcha tem que se identificar logo, mostrar a que veio e que condução aponta. Nós já acompanhamos a aplicação das funções instrumentais à forma do dobrado; vamos experimentar agora falar sobre essas mesmas partes do ponto de vista do estilo: A Primeira parte é a música, por assim dizer. É a melodia que define, é o Hino Nacional que se ensina ao Sofrê (pásssaro currupião). Costuma-se, à moda europeia, se usar melodias em frase e períodos, derivados ou ampliados de 4-8-16 ou 32 compassos. O contracanto é discreto e funcional, não tendo ainda o destaque que terá no Trio. O 66 centro é comedido, dando chances à melodia de transparecer. A marcação é normativa, também. Segunda parte: é o chamado Forte do dobrado, onde tubas têm seu momento de solo, junto com os demais graves. Outra maneira é usar trombones e trompetes no canto e manter a tuba na marcação. Há diversos fortes assim, mas vamos preferir esse modelo, pelo inusitado da tuba solar. Também desaparece o contracanto, exceto nos dobrados onde aparecem os trompetes à guisa de clarins, ou “trompetadas”, como disse. São referências militares, que se mantêm. A ponte é o momento onde essas referências militares mais são evocadas nos trompetes. No dobrado Bombardeio da Bahia, então, se tornam emblemáticas, por pontearem um feito militar que ocorreu de fato, em 1922. Pode ser uma ponte no estilo tangado, como em Tusca, de Estevam Moura. Se considerarmos o que faz a caixa, rufos, baque ou dobrando o ritmo com os trompetes, pode se dizer se há centro ou não na Ponte. Não há marcação nem contracanto. A função da ponte, como diz o nome, é ligar e conduzir a uma nova situação. Essa nova situação pode ser uma volta à Primeira parte, via sinal de S (segno), pode ser uma nova segunda parte (nos dobrados de Estevam são várias segundas partes. Pode ser então o Trio em seguida. A ponte pode ser, nesse caso, o estabelecimento de uma nova tonalidade). O Trio é um universo. O mais simples é uma variante da melodia da primeira parte, somente feita pelas palhetas, com centro de trompas e marcação, com dinâmica pianíssimo, como nos dobrados de João Sacramento Neto no sudoeste. O estilo clássico de Manoel do Espírito Santo é o trio em duas partes, a primeira,piano, só com palhetas, a segunda forte, com a entrada dos trompetes. Os trios de dobrado que imortalizou Heráclio Guerreiro, de Maragogipe, seu discípulo Amando Nobre e finalmente carimbaram e identificaram o dobrado Baiano do Recôncavo é um trio com melodia com frases em notas longas, uma marcação firme das tubas no estilo tangado, centro bem discreto nas trompas e um complicado, rebuscado contracanto de bombardino, melhor ainda se feito sem o tenor chateando. Como se conclui um dobrado? Na maioria das vezes, após o trio, volta-se à Primeira Parte e pula-se, via sinal de O, para uma cauda, que pode ser somente um compasso de arremate. Ou então fazer uma longa cauda onde as energias que ainda não puderam ser liberadas surgem triunfais (vê-se isso com mais propriedade nas aberturas e 67 fantasias que nos dobrados), ou então terminar como Estevam encerra Tusca, ou seja, de jeito nenhum. 1.3.2 Peça de harmonia As Peças de Harmonia são músicas para serem ouvidas por uma plateia fixa. Compreendamos: dobrados e passeiatas são músicas ouvidas enquanto se desfila por algum motivo. Maxixes e marchas-frevo são peças ouvidas enquanto se dança. As harmonias são feitas para se ouvir. Uma peça de harmonia tanto pode ser uma música de concerto original quanto frequentemente reduções de peças consagradas de orquestra. Nesse momento, surge tanto a Polaca (peça para solista e banda em compasso ternário dedicada a um instrumento solista), quanto a fantasia (peça com vários andamentos e compassos, onde diferentes trechos podem surgir com diferentes instrumentos solistas). Entre as peças de harmonia de cunho nacional, a que mais se destaca é a Polaca, peça para solista, com acompanhamento de banda, em compasso ternário, mas em tempo bastante diferente da valsa, além de ser composta para audição, nunca para dança. A tradição das bandas nos legou, com a polaca, momentos preciosos da escrita musical. Por alguma razão, é uma forma musical geralmente dedicada em título a mulheres. 68 Figura 9 - Poloneza O canto da serra, de José Propheta Silveira, o Zeca Laranjeiras Como se deduz a partir do que foi confiado ao bombardino solista na polonesa “O canto da Serra”, a literatura dessa espécie de composição de concerto para bandas que marcham é muito rebuscada. Em andamento de semínima igual a 100, somente um músico excelente pode tocar a melodia da figura 9. Há de se notar, também, as mudanças de andamento que aproximam esta forma “poloneza” com a fantasia, diferente da polaca, onde não há mudança de andamento nem de compasso. O compositor, José Propheta Silveira, era ferroviário da Leste, nascido na cidade sergipana de Laranjeiras, falecendo em Alagoinhas, onde regeu a Lyra Ceciliana e a Euterpe Alagoinhense. Seu filho, conhecido como Netinho da clarineta, fez carreira no Rio de Janeiro, onde chegou a gravar discos LPs dançantes com o título Netinho e sua Orquestra. Figura 10 - Dedicatória ao filho 69 A polaca Maria Almeida foi-me repassada pelo professor Fernando Santos, memorável instrutor de várias gerações de percussionistas que passaram pela Escola de Música da UFBA. Fernando é filho do compositor Tertuliano Ferreira Santos. Foi composta na fase áurea das bandas de música no interior da Bahia. Nesse contexto, a forma polaca significa uma composição para solista e banda de música, em compasso ternário, onde geralmente se tem uma introdução, uma primeira parte com solo, uma segunda parte em tutti, retornando à primeira parte, pulando para um “forte” (parte onde solam os graves), vindo em seguida o trio, onde se desafia a habilidade do solista. O tom é Fa maior, durante toda a peça, surgindo uma modulação para o 40 Grau no trio, que fica então na tonalidade de si bemol maior. Em sua página inicial, manuscrita, o compositor Tertuliano Ferreira Santosdeitou a seguinte dedicatória: “dedico esta pállida composição à senhorinha Maria Almeida. Feira de Santana, 15 de janeiro de 1925”. Tertuliano era um exímio trompetista e mestre de bandas, daí explorar com conforto as possibilidades do instrumento. 1.3.3 Música Ligeira Música ligeira significa a banda de música tocar o que está “no gosto do povo” em sua época. Tranquillino tocou polcas (música europeia da moda) e maxixes (música brasileira em moda na Europa). A Oficina de Frevos e Dobrados tocou “Liga da justiça” (samba estilo Pagode em moda na Bahia atual). A Airosa Passeiata foi recolhida por mim no grande acervo de partituras manuscritas de Manuel Tranquillino Bastos sob a guarda do setor de Obras Raras da Biblioteca Central dos Barris. Eu tinha 23 anos essa época e estava procurando peças que pudessem ser tocadas na solenidade de entrega das batutas em ouro e prata, ganhas pelo mestre em concursos internacionais de composição para banda de música, que a família passava para a guarda do estado. Soube depois que foi esta composição estreada em uma data há muito aguardada pelo compositor, homem negro devotado à causa abolicionista: a 13 de maio de 1888, divulgada a notícia da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, extinguindo a Escravidão do Brasil, Tranquillino reuniu a sua Lyra Ceciliana e desfilou pelas ruas da cidade de Cachoeira, tocando insistentemente a Airosa Passeiata. É uma composição muito bem elaborada, figurando aqui, na falta de 70 exemplo mais significativo, como “composição ligeira”. São apenas 5 compassos de introdução, seguindo uma primeira parte. Depois vem uma segunda parte modulante, seguindo de uma terceira parte, onde o tema da primeira aparece de forma contraída, ou seja, o que era semínima se torna colcheia, mantendo-se o material melódico. Isaias Gonçalves Amy transitava com facilidade entre esses três estilos, essas três funções sociais da música de banda. Autor de diversos dobrados tocados até hoje por diversas bandas de música da Bahia, compositor da nacionalmente conhecida polaca Annita Garcia, o mestre ferroviário Isaias é criador de um conjunto notável de marchafrevos, e essa adorável peça, a Tuada no Sertão: Figura 11 - Tuada no Sertão, de Isaias Gonçalves Amy 1.4 NUANCES NA ESCRITA E INTERPRETAÇÃO Examinando os arquivos musicais originados nas sociedades musicais da Bahia, principalmente um lote, sob minha guarda, de 279 composições arranjadas para banda reunidas sob o nome Arquivo Deraldo Portela, notamos que do início até o final do século XX houve uma simplificação na escrita para os instrumentos de sopro e percussão, onde peças com diversos sinais de expressão, dinâmica e andamentos vão diminuindo de ocorrência até se chegar a um repertório de escrita bastante simplificada, 71 onde no máximo se mantém sinais de dinâmica e uma ou outra acentuação33. Observamos que as músicas do início do século XX, como a poloneza O canto da serra, de José Propheta Silveira e a fantasia A palavra, de Osório de Oliveira, são muito rebuscadas, com detalhamento de articulação, dinâmica e andamentos. À medida que caminhamos no tempo, vamos ver o repertório simplificando, como de certa forma nos dobrados clássicos dos anos 50 até que, chegando aos anos 1960, se limitar a uns poucos sinais complementares, além das figuras musicais em si, como ocorrem na Marcha do Lomanto ou no hino Pra frente Brasil. 1.4.1 A simplificação da escrita musical Diante desse quadro de diminuição progressiva da complexidade musical nas bandas de música, ocorreram-me três questões, ligadas a diversos sentidos da vida musical em um meio social, que se refletem no uso da técnica instrumental e das nuances interpretativas em cada instrumento da banda. O que teria causado essa simplificação na linguagem musical? Primeiramente, devemos colocar que as bandas de música eram, a certa altura, um referencial artístico e social dentro de uma comunidade. Estavam presentes em todas as ocasiões importantes, e isso vem pelo menos desde o Reino Unido, passando pela Independência até o Segundo Império, como podemos ver na inauguração da primeira ferrovia do Brasil, com presença do imperador D. Pedro II. No dia 30 de abril de 1854, pouco mais de um mês de acesos os lampiões (da primeira iluminação pública a gás no Brasil), boa parte das embarcações disponíveis no Rio de Janeiro foi tomada por gente bem vestida, logo no início da manhã. Todos queriam chegar cedo ao porto de Estrela, a fim de assistir ao desembarque dos convidados mais importantes. A agitação tomou conta do lugarejo: bandas de música, coro de meninos, foguetes, bandeirolas coloridas [...] (CALDEIRA, 1995. p. 291)34. Muitas vezes, devido ao seu papel de instituição, ela mesma criava a sua situação importante, como vemos no relato sobre uma filarmônica na cidade baiana de Serrinha. Aqui existe uma relação entre a grande mobilização social e como isso se 33 Lote de partituras acumulado pelo mestre Pedro Cardoso da Silva, ferroviário da cidade de Alagoinhas, que o doou ao médico Deraldo Campos Portela, que o repassou para mim. 34 Jorge Caldeira. Mauá, o empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 72 reflete no repertório, que inclui uma abertura de ópera de execução de certa forma complicada. De maneira organizada, a música ganhou nova dimensão a partir da criação da Sociedade Philarmônica 30 de Junho, fundada em 19 de abril de 1896, por um grupo de jovens interessados nas culturas (sic) musical, teatral e de belas artes. O nome é homenagem à data de elevação da vila em cidade. Depois, passou a se chamar Sociedade Recreativa e Cultural 30 de Junho. “[...] na estação da [ferrovia] Leste uma ‘composição’ do trem ornamentado esperava os músicos. A multidão aguardava a hora da partida. E houve muita emoção com discursos, acenos de lenços brancos, lágrimas e foguetes. A comitiva era presidida por Aurélio Dionísio de Almeida, vestido em terno branco engomado. Durante o percurso, foram saudados em todas as gares, agradecendo as ovações com dobrados e marchas. Em Queimadas e Itiúba foram recepcionados pelas filarmônicas locais, chegando a Bonfim à tardinha. Às 20 horas [Filarmônica] “30” deu concerto público executando vários dobrados, encerrando com a Sinfonia d´O Guarani. Os músicos foram aplaudidos de pé.” (FRANCO 1996, p. 227 e 228-9)35. A realização em banda de música dos detalhes de execução depende essencialmente do mestre que está à frente. Sobre isso vamos observar com atenção as palavras do que é considerado “o mestre dos mestres” entre os líderes da tradição filarmônica baiana: A magia da batuta: Em música a batuta encanta-se em instrumento de funções mágicas de efeito extraordinário, porquanto, sendo muda, fala, canta e entusiasma os sentidos de quantos executores a ela se submetem. Mas para isso nada vale a batuta que bate simplesmente com mais ou menos uniformidade as partes de cada tempo. É efetivamente a que interpreta com maestria os andamentos característicos de cada período ou peça musical. É ela que revela os sinais de realce com os coloridos que embelezam as composições sob seus cuidados (Tranquillino Bastos, in RAMOS, 2011)36. O fato político mais importante para marcar o declínio da influência das sociedades musicais é o final da II Guerra Mundial e a disseminação da cultura dos Estados Unidos por toda a parte do planeta. Claro que essa cultura envolvia bandas de música, mas ela se deu, sobretudo, através das orquestras de jazz do período chamado Swing, cuja música dançante e harmonicamente ousada, voltada para o entretenimento, 35 Tasso Franco, Serrinha, a colonização portuguesa numa cidade do sertão da Bahia. Salvador: EGBAAssembleia Legislativa do Estado da Bahia, 1996. 36 Manuel Tranquillino Bastos, “Minhas percepções”. Artigo publicado em O pequeno jornal, de Cachoeira (crônicas publicadas entre 1920 a 1935). In Jorge Ramos. O semeador de orquestras. Salvador: Solisluna editora, 2011, p. 201. 73 nos salões, suplantou nas cidades os concertos de bandas de música nas praças. A transferência de tecnologia a que me refiro diz respeito principalmente ao instrumental utilizado, pois além dos instrumentos de sopro em comum, como a família de saxofones, os trompetes e os trombones, a orquestra avança em direção ao uso da bateria conjugada, que em tese substitui os três músicos de caixa, pratos e bombo da filarmônica; o uso do contrabaixo de cordas em substituição à tuba e do piano (depois teclado elétrico) ao trabalho de acompanhamento harmônico confiado às trompas nas bandas de música. O advento do rádio como meio avançado de comunicação de massas, por si, não era o problema, já que essas mesmas radiodifusões, até pouco antes da Guerra, eram usadas para difundir a música de banda, sendo, inclusive, a Banda de Música da Polícia Militar da Bahia a primeira a gravar em um estúdio, da Casa Edison no Rio de Janeiro. Ocorre que a Alemanha destinava a toda a América Latina (no caso da Bahia pela Rádio Sociedade da Bahia) programas diários com bandas de música, mesmo que tocando música clássica37. Os americanos adotaram a orquestra de swing como um próprio símbolo nacional, tendo inclusive a famosa Orquestra de Glenn Miller desaparecida em um vôo, quando se dirigia ao front para mais uma apresentação para soldados. A perda de uma clientela mais exigente destinou às bandas um mercado significativo apenas nas cidades do interior de forte tradição, onde as bandas continuaram a abrilhantar solenidades, eventos religiosos e de festa popular. Nos centros maiores, sua atuação se restringia a desfiles cívicos ou religiosos e funções menores, todas ligadas à movimentação. Com o fim dos concertos, o material de escrita rebuscada tende a desaparecer. Do mesmo modo, foram deixando de existir os mestres de banda capazes de compor músicas de fôlego maior e os próprios compositores foram simplificando a sua escrita. Isaias Gonçalves Amy (1888-1960), por exemplo, aparece em arquivos com peças bastante longas e trabalhadas, na escrita mais antiga em papel igualmente antigo. Em sua escrita mais recente, o mesmo Isaias criou uma série de composições curtas e de fácil execução, como arranjos de Fox e marchas-frevo para o Carnaval. Ainda falando da filarmônica que tocava Il Guarani no início do século XX: A partir dos anos 1960, iniciou um processo de decadência em virtude de questões de natureza política, falta de apoio da municipalidade e, sobretudo, diante da evolução da música popular brasileira, com a 37 Perfilino Neto, Memória do rádio. Salvador: EGBA, 2012, encarte com reproduções de jornais de 1935. 74 difusão da música aliada a recursos elétricos e eletrônicos e ao uso mais intenso no rádio e na televisão. Se o jovem dos anos 20 aprendia instrumentos metálicos, a geração a partir dos anos 60 iniciou-se nos instrumentos eletrônicos, embora essa não seja uma justificativa única para a decadência da entidade. Nessa fase recebeu o depreciativo apelido de “a furiosa” (FRANCO, 1996, p. 232). A essa altura, como nos coloca a situação acima, valeu o controle dos meios de comunicação. Eles podem tanto retardar, sufocar movimentos revolucionários na música quanto podem tomar para si os novos estilos, principalmente se dão retorno comercial. A ausência de referenciais no rádio, nos jornais e mais tarde, na televisão, tem o efeito de desmobilizar os adeptos de estilos considerados ultrapassados, negandolhes a divulgação de pontos de reunião e apreciação, dando a impressão que esse público não existe. Como coloca o padre Miguel Ramon, coordenador do Projeto Conexão Vida, que atende a mais de oito mil crianças na Bahia, inclusive as da nossa Filarmônica Ambiental os meios de comunicação impõem uma maneira de ver a realidade conforme os interesses dos seus donos. Especialmente o rádio, a televisão e as redes sociais modernas são utilizados para promover um estilo de vida baseado no consumo. A publicidade, veiculada por esses meios, está sob controle de pessoas e grupos cujos interesses econômicos visam o aumento da produção que, por sua vez, somente é rentável numa sociedade onde viver é sinônimo de possuir (RAMON, 2014). Nesse panorama, enquanto o consumidor desfruta dos espaços climatizados, higienizados e vigiados do shopping center, o cidadão convive com a degradação do espaço público. A banda de música precisa da praça pública e do seu coreto com livre circulação de pessoas e opiniões. O espaço público, tão bem cuidado nas fotografias antigas, viu-se de repente ao abandono no chamado “milagre brasileiro”, enquanto aumentava-se o investimento no espaço comercial privado, que veio resultar na institucionalização do Shopping Center como parâmetro de vida social nas cidades38. 38 Diversos autores, não-músicos, podem contribuir e embasar esse estado de coisas. A opção pelo agronegócio desfigurou a agricultura familiar e empurrou as pessoas do campo para as cidades. A desestruturação das hierarquias políticas, religiosas e familiares levou a um vale-tudo comportamental. A exibição diária pela televisão de bens de consumo e prazeres materiais como razão de viver levou a um endividamento crônico das famílias. As novas religiões se baseiam no sucesso material e imediato. 75 1.4.2 Detalhamento na escrita musical A segunda questão que apresento neste ponto do nosso trabalho trata dos tipos de indicações musicais, além da escrita com figuras, notas, compassos e claves, usadas pelos mestres-compositores das bandas de música. Tomando como exemplo a fantasia 7 Palavras(o autor se refere certamente às últimas pronunciadas por Jesus Cristo: “Pai em Tuas mãos entrego a minha alma”) do compositor Isaias Gonçalves Amy, encontramos: Andamentos: moderato, andante, allegro moderato, largo, marcial e allegro vivo. Além de rallentando. Dinâmica: além dos sinais ff, f, p e mf, o autor usa sinais de crescendo. Outras indicações: notas com acentuação, ligaduras de frase, ligaduras de expressão e fermatas, inclusive suspensões sobre pausas39. O exemplo 1, transcrito por mim mesmo de um original manuscrito do autor, mostra um corte no discurso musical com mudança de andamento e tonalidade. Entre parênteses está o andamento em que vinha, até que, após uma suspensão, inaugura-se brevemente um Largo que culmina em crescendo e movimento melódico ascendente, com três fermatas. Exemplo Musical 14 - Fantasia “7 Palavras”, de Isaias Gonçalves Amy Em outro trecho com andamento indicado na partitura como “marcial e piano”, aparecem ligaduras de articulação, novamente uma suspensão para, nos compassos 81 e 82, surgir um gesto muito bem elaborado: em apenas dois compassos aparecem 5 notas e 5 indicativos de expressão: ligadura de frase, crescendo, fermata, rallentando e forte. 39 Isaias Gonçalves Amy, “Fantasia 7 Palavras”. Arquivo Deraldo Portela, n. 9. Sociedade Musical Oficina de Frevos e Dobrados. 76 Exemplo Musical 15 - Fantasia “7 Palavras”, de Isaias Gonçalves Amy O significado dessas situações suspensivas de tempo é colocar a banda filarmônica em situação de concerto, executando peças destinadas ao concerto diante de uma plateia atenta. Aqui a música existe por si, não como suporte, como o dobrado na banda marchando perfilada e o maxixe com pessoas se deslocando em festa. Muito notável é o fato de na partitura constar o carimbo “Sociedade Muzical 5 Rios – Maracangalha – Ba, fundada em 1927”. Em pleno canavial, na sede de uma usina de açúcar, encontramos operários, músicos amadores, interpretando: Andamentos: Andante, allargando, acell, all non trope (sic), meno, largo e all justo. Dinâmica: além dos sinais de mf, p e f, encontramos sinais de diminuendo e crescendo. Outras indicações: indicação de solo, notas acentuadas, notas em stacatto, ligaduras de expressão, vibrados e trinos, fermatas curtas e fermata final. Ilustramos com a fantasia A Cruz de Honra, um discurso característico da marcha militar, muito comum no repertório das bandas de música, aqui, na Bahia do início do sec. XX 40 . Nas partituras mais recentes, na era dos dobrados considerados clássicos, entre os anos 1930-50, trechos como esse são habitualmente encontrados sem os acentos e sem as pontuações. No início do século, esse gesto vem previsto em seus mínimos detalhes, seja na dinâmica, como nas acentuações e depois enfatizando quais notas se quer realmente stacatto. Exemplo Musical 16 - Fantasia “Cruz de Honra”, de autor não mencionado 40 Anônimo: Abertura A Cruz de Honra (em algumas partes cavadas, Overture Croix Honneur) Arquivo Deraldo Portela, organizado por Fred Dantas, música n. 13. 77 Nessa fantasia, em outro trecho, o autor detalha uma articulação pouco habitual. No ambiente das filarmônicas acabou-se consagrando uma articulação que passou a ser considerada praxe nos instrumentos de palheta: o uso de duas notas ligadas seguidas de outras duas, em stacatto, como podemos ver no dobrado Tusca 41. Exemplo Musical 17 - Dobrado Tusca, de Estevam Moura Na abertura A Cruz de honra se inverte essa lógica, como podemos observar no exemplo 5, fazendo uso de uma articulação que podemos considerar atípica para os instrumentos de sopro na literatura de banda: Exemplo Musical 18 - Abertura A Cruz de Honra Apenas para que se mencione, não é objetivo do presente artigo analisar outro tipo de nuance interpretativo, as firulas não escritas, não constantes em partitura, que dependem da cultura de época e região, mas também remetem à questão do empobrecimento da linguagem. Para se ter ideia disso, observemos um homem maduro assobiar, uma melodia qualquer, e vamos encontrar apojaturas, rubatos, bordaduras e alterações das notas em si. O método de se executar dobrados é decorar para tocar sem papel. Entre os músicos de banda mais antigos, feito isso, é comum que melodias como as do Dobrado Os Músicos42. 41 Estevam Moura,Dobrado Tusca. Manuscrito do bombardinista Antônio Milindre Oliveira, digitado e revisado por Fred Dantas, em 2008. 42 João Sacramento Neto, Dobrado Os Músicos. Gravado no CD Oficina de Frevos e Dobrados 15 Anos (Sons da Bahia, Secretaria de Cultura e Turismo, 1999). 78 Exemplo Musical 19 - Dobrado Os Músicos, de João Sacramento Neto ... acabem sendo de fato executadas assim: Exemplo Musical 20 - Dobrado Os Músicos, com bordaduras feitas de ouvido Então, fazer espontaneamente portamentos, apojaturas e vibratos, seja na voz, assobio ou instrumento é cultura de época e traço de estilo, mas de certa forma se relaciona a um declínio de toda uma arte de embelezar e detalhar a música causada por pouca solicitação social, por falta de acesso aos meios de comunicação, que desmobiliza o público que a quer. 1.4.3 Prejuízos e possibilidades Um terceiro questionamento seria que tipo de prejuízo a simplificação da linguagem teria causado às bandas filarmônicas e, caso seja necessário, que tipo de ações teria lugar para que se recuperem essas capacidades? Num primeiro momento seguido ao surgimento do rádio, as bandas de música se beneficiaram, pois estavam na ordem do dia do gosto popular. Após o final da Segunda Guerra, quem ocupa o proscênio é a Orquestra de Swing, colocando a banda numa posição associada ao anacronismo e, no caso brasileiro, a um militarismo integralista subitamente colocado na clandestinidade. Passados os anos, foi a própria orquestra quem experimentou ser banida dos meios de comunicação a favor dos grupos de Rythm and blues e mais tarde dos cantores cabeludos. E a banda de música? No mundo, maior parte delas desapareceu; nos Estados Unidos, se tornou parte do currículo escolar e se engessou nos repertórios divididos por níveis de execução. Em nosso país, a partir da Ditadura (1964-1980), a banda de música se tornou então parte das ações ligadas às 79 secretarias de desportos (FALEIROS, 2009)43, e na mídia, símbolo de um anacronismo ‘jeca”. O primeiro prejuízo foi a associação da imagem da banda a situações de certa forma caricatas, onde aparecia sempre animando comícios em cidades do interior, desfilando por ruas em dias de festa, algo que parecia engraçado ou saudosista, mas que em nada ajudava à dignidade da música que faziam. A simplificação do repertório funcional e o abandono das peças concertantes fizeram com que os músicos das bandas fossem perdendo o interesse e capacidades técnicas. Em muitos casos a própria partitura como “instituição” foi sendo deixada de lado, surgindo ocasiões onde os músicos tocavam de ouvido o que outrora se tinha aprendido por partitura. Esse foi o caso da banda de música que mais me influenciou, a Banda de Caetité, que eu escutava na infância. A caligrafia musical caminhou das peças em que cada papel de música era uma obra de arte plástica, realizada com grossos papéis de pentagrama, sobre os quais se “deitavam” as notas com canetas de bico de pena, que eram molhadas em tinta, até uma escrita de certa forma grosseira feita com caneta esferográfica. As possibilidades que surgem são como água em solo fértil. A filarmônica é a manga da terra, que não precisa de adubos, proteções, inseticidas. Basta um pouco de ação, de recursos e elas ressurgem exuberantes e cheias de meninos e meninas. Algumas ações no sentido do que poderia ser feito têm como exemplos a postura que tinha o comediante Mazzaropi, no cinema, que sempre associava o som das bandas de música às suas estrepolias, mas tocando algo de exigente e belo, ainda que engraçado, onde certamente tinha no bom gosto de Charles Chaplin uma inspiração. Heitor Villa-lobos, com sua visão de artista comprometido pelo amor à cultura brasileira, destinou às bandas de música um repertório bem elaborado, que vai desde canções folclóricas para bandas de iniciantes até dobrados de escrita madura. Um exemplo de ação eficaz é o Festival de Filarmônicas do Recôncavo, realizado no Centro Cultural Dannemann, por doze edições, e que ressurgiu no final de 2013, em sua 13ª edição, no Centro Cultural Américo Simas em São Félix. O festival incentiva, pelo regulamento, as peças tradicionais de bom gosto, de onde muitas vezes sobressai algum solista, pois voltam a ser tocadas as peças de harmonia. Em suas 43 Ronaldo Faleiros, fundador e presidente da Federação Brasileira de Bandas e Fanfarras, descreve bem como, no redefinir de coisas após 1964, foi desprezado o aspecto cultural, musical enfim, das bandas filarmônicas, e enaltecido seu aspecto marcial. 80 penúltimas edições, o Festival criou um concurso de composição, que tem revelado novos talentos em uma escrita originalmente voltada para banda de música. Encontro de bandas de música em Morro do Chapéu, Festival de Bandas Filarmônicas em Pé de Serra, Festival em Canavieiras, jornadas de qualificação promovidas pelo Governo do Estado, onde lecionei composição em três núcleos (Bom Jesus da Lapa, Canavieiras e Jacobina). Todos são sinais que a reestruturação física das filarmônicas, as escolinhas de música lotadas, a interação com a sociedade local apontam para a necessidade da renovação composicional, para que a filarmônica, em diálogo com a modernidade, continue a criar música relacionada a datas, fatos e pessoas. 2 CONHECENDO, REPENSANDO E RECRIANDO A BANDA A designação “banda filarmônica” define, com a palavra “banda” (band, bande), um modelo de conjunto de sopros e percussão capaz de executar tanto músicas de movimentação quanto de concerto; o termo “filarmônica”, por sua vez, oscila entre ser substantivo ou adjetivo. De fato, no primeiro caso significa “o povo da música”, reunido numa formação instrumental; filarmônica aqui é uma banda de sopros e percussão. O termo “filarmônico” enquanto adjetivo qualifica qualquer sociedade civil, banda ou orquestra sem fins lucrativos, com estatutos e registro oficial, voltada para o ensino e prática da música. Meu trabalho se inicia reconstruindo a memória do meu relacionamento com as filarmônicas buscando, à luz dessa experiência de vida, acentuar o seu papel catalisador em termos sociais e históricos. Começo com a influência da Banda de Caetité, passando pela iniciação musical na Banda 21 de Abril, em Urandi, a pesquisa sobre bandas, mestres e cidades e, em Salvador, a Oficina de Frevos e Dobrados e suas consequências. Isso vai nos permitir analisar aspectos composicionais/contextuais dos repertórios tradicionais visando valorizar uma prática transformadora; e finalmente o ato de compor novos repertórios para filarmônicas, incentivando esses grupos na direção dos desafios da criação. 2.1 BANDA DE CAETITÉ A primeira imagem de uma banda de música que me lembro foi a da “Banda do Véi Macedo”, que vinha da cidade de Espinosa (MG) tendo o mestre clarinetista, um homem branco de óculos, à frente.44 Em seguida vem uma experiência muito mais consistente, que marcou minha escolha pela música de filarmônica desde então: a Banda de Caetité, tendo à frente o mestre Álvaro Villares Neves, tocando flautim. Caetité é uma cidade muito especial. Sede da primeira Escola Normal do Brasil, inaugurada por D. Pedro II, terra do educador Anísio Teixeira e cidade merecedora de um relato diferenciado, um momento de elogio nas constatações sobre a maneira de viver das populações que o engenheiro Theodoro Sampaio encontrou na sua desbravadora 44 viagem feita até as nascentes do rio São Francisco. Seu neto, Deomídio Macedo, é um ator em franca atividade e residente em Salvador, aprendiz de clarineta, tem também procurado recuperar dados sobre sua memória e atuação. 82 Caetité apresenta ao viajante um aspecto de côrte do sertão. Há aqui uma boa e culta sociedade, muita urbanidade e delicadeza na gente do logar. As Festas de Reis, muito animadas, deram-nos ensejo para bem julgar das maneiras, dos hábitos hospitaleiros deste povo tão amável e tão cheio de delicadas attenções (SAMPAIO, 1905, p.113)45. Ainda hoje posso reconstruir de memória o semblante e comportamento de cada um dos integrantes da Banda de Caetité. Conheci e não largava o pé dessa banda quando por alguns anos ela se fazia presente nas duas principais festas religiosas da cidade de Urandi. Chegavam à cidade apertados num automóvel modelo Rural, com seus equipamentos amarrados no teto. Os primeiros acordes podiam ser ouvidos na alvorada, da festa de Santo Antônio ou na de Nossa Senhora. Depois à noite, no leilão, quando tocavam trechos de música popular. E quando no dia seguinte e próprio da festa religiosa, tocavam na procissão para depois fazerem um momento dançante em forma de “jaze”. Cada um desses músicos correspondia ao perfil do seu instrumento, pelo que se encontraria na vida daí por diante: é interessante estender o estereótipo de cada um deles para o papel social do músico em uma comunidade. Atualmente, em bandas filarmônicas com o perfil de projeto de inclusão social, essas caracterizações estão bastante diluídas, sobretudo pela pouca idade dos músicos e pela transformação do ambiente onde vivemos. Mas no caso da banda de Caetité, cada músico vale a história do seu instrumento e o perfil do executante, além da sua inserção na sociedade interiorana. Primeiro vale ressaltar que somente o mestre Álvaro era músico de carreira, assalariado para formar e reger bandas, os demais eram funcionários e artesãos, que tocavam. O repertório foi aprendido por partituras, que depois foram abandonadas e perdidas. 45 Theodoro Sampaio, Viagem às nascentes do rio São Francisco e Chapada Diamantina 1905. 83 Figura 12 - Banda de Caetité tocando em Urandi (foto: João Décio Gomes) A figura 12 reúne esses músicos virtuosos, dos quais pretendo falar mais detalhadamente, atribuindo a cada um deles a qualidade de ícone dos seus iguais, músicos de banda e de baile no interior do Brasil. Mais coisas podemos ver. Ao fundo está a famosa porta da igreja, local de reunião popular da cidade. Aquela casa grande é a casa da minha infância. No jardim bem cuidado da praça, a banda posa tocando para a foto, acompanhada de adultos e crianças, entre as quais eu, já a ponto de me tornar músico. Sobre cada um dos músicos da banda de Caetité: O mestre Álvaro com seu flautim: sempre trajando paletó escuro e chapéu, exímio executante de bandolim e autor de várias obras para banda de música. Tinha sabedoria vinda de uma educação musical com métodos franceses nas Lavras Diamantinas. Capaz de tocar de cor vários chorinhos de Pixinguinha e outros de sua própria autoria. Tinha temperamento tímido e recatado, e se expressava em um português rebuscado. Assim o defini na apostila Curso Mestres. Álvaro Villares Neves (Rio de Contas, 1886 - Caetité, 1986) – O mestre Álvaro foi um legítimo representante da elite intelectual da Chapada Diamantina à época dos diamantes, e não foi à toa que se 84 mudou para Caetité, cidade da mais fina tradição cultural do interior da Bahia. Fez parte da 23 de Dezembro, em Mucugê, onde foi amigo de Júlio Cézar Souza, que lhe dedicou uma polaca – solo de flautim. Estudou em métodos franceses, língua que lia fluentemente. Era uma pessoa de uma serenidade e delicadeza que impressionavam. Tocava flautim e bandolim, tendo regido bandas em Espinosa, MG e em Caetité, onde era líder da pequena e valente Lira Caetiteense. Mestre Álvaro é autor de O Galhofeiro, famoso samba-maxixe gravado pelo grupo Raposa Velha (O Golpe, 1988), por Fred Dantas (Verde, 1991) e mais recentemente pelo grupo Janela Brasileira, que, com essa faixa, venceu o prêmio Itaú de música de 2000.46 Exemplo Musical 21 - Samba Galhofeiro, de Álvaro Villares Neves Figura 13 - Álvaro Villares Neves (foto: Fred Dantas) 46 Fred Dantas, apostila do Curso Mestres, Oficina de Frevos e Dobrados –Fundo de Cultura do Estado da Bahia, 2008. 85 Álvaro foi um modelo de músico, compositor e líder. Quando houve condições de compor, criou dobrados e valsas de grande beleza. Quando foi possível reger, conduziu filarmônica; quando liderava o grupo acima, de uns poucos músicos experientes, dava as entradas acenando com a cabeça e ia ao lado, tocando seu flautim. Em seus últimos tempos dedicava-se a dedilhar com presteza um bandolim. O clarinetista José Costa, com bigodinho aparado, cabelo penteado para trás, barriga saliente e calças com suspensórios, tocando com ar sério, sem nunca sorrir ou se distrair. Por temperamento, é o modelo de clarinetista tradicional de banda. Não me lembro de ter ouvido a sua voz. Participava da parte popular e dançante do repertório na filarmônica, sendo figura indispensável sempre convidado a tocar nos eventos sociais da cidade, acompanhado de violão elétrico e acordeon, na estrutura chamada jazz (pronuncia-se jaze), um pequeno combo com função de tocar música dançante. O trompetista Zé Carlos, negro de bigodinho, magro, com postura de jazzman de New Orleans, gosto pela bebida e capaz de tocar muita música popular além dos dobrados. Também é o biótipo do trompetista, seja ele de que estilo for: mais extrovertido, improvisador, sorriso fácil. Zé Carlos encontra correspondente no tipo carismático de Neco Piston, músico da Lyra Popular de Lençóis e jagunço de Horácio de Mattos: Neco Pistão (Manoel dos Santos), oriundo da comunidade de Capão Grande, município de Vila Bela das Palmeiras, chegara a Lençóis para tentar vida melhor. Insinuando-se nas rodas dos aprendizes da Lira Popular, tornou-se em pouco tempo um dos seus melhores elementos. Era, ademais, um boêmio inveterado. Fazia serenatas encantadoras com o instrumento magnífico. Ninguém poderia imaginá-lo também bravo e ardiloso, vestindo os jagunços com as fardas da filarmônica e fazendo, como fez, a investida decisiva. Durante o sítio à cidade de Lençóis (1925) pela Polícia da Bahia, à certa altura do combate, às portas de Lençóis, eis que os sitiantes ouvem o sons alvissareiros de um clarim à retaguarda a renovar, de pronto, as esperanças da vitória que almejam. É, por certo, o reforço do governo que está chegando... Todos exultam, sentindo a alegria da ajuda providencial! Tal não é, porém, a surpresa infeliz, quando vêem desembocar pelas gargantas, pulando como felinos e confundindo-se com a tropa da polícia, um troço de jagunços horacistas, fardados com a farda cáqui. A confusão é terrível. E a fuga, do meio do Mundo, pavorosa. Os sitiantes se 86 evadem, deixando o cartuchame e o armamento, que são apreendidos e contribuem para o reforço da defesa. Dias depois, a imprensa baiana glosa o episódio e conta ao país o golpe sensacional e decisivo da “Filarmônica da Morte” (MORAES, 1991, p. 143-7)47. O trombonista Tengo, atuante até quase sua morte em 2012, cego de um olho, homem branco do sertão, também especialista em mambos (“Amapola” me causou enorme impressão), depois proprietário de uma pizzaria e líder da nova filarmônica que se formou a duras penas em Caetité. Tengo era o que podia se esperar de um músico de banda no interior do Brasil. Quando foi possível ler, obedeceu à partitura. Quando se tornou necessário, aprendeu de cor os arranjos abandonando a leitura do papel. Quando foi preciso tocar para dançar, soube executar melodias e improvisar sobre elas. Quando chegou o tempo de recriar a banda, Tengo saiu convocando as crianças e lutando para adquirir instrumentos. O tubista Frederico, um solista que fazia as partes obrigatórias (o forte) sozinho, com grande sonoridade, uma marcação firme nos dobrados. Coerente com o perfil do executante de tuba de filarmônica, era socialmente mais humilde e pouco letrado. Tinha o biótipo do homem das lavras diamantinas, do jagunço negro e honrado, com certo humor que permanecia na face mesmo estando sério. Também não participava do jazz. Frederico era um músico admirável. Nos fortes (parte onde os graves geralmente solam) dos dobrados ele não deixava o trombonista Tengo dobrar com ele o canto, como está na partitura. Sempre quis solar sozinho esse momento, com o resto da pequena banda toda no centro. Era um momento de muita beleza, que eu menino pude desfrutar, ver o som daquele souzafone, superafinado e cheio, ecoar nas serras que circulam o pequeno centro da cidade. O tubista gostava de tomar umas cachaças após as tocatas e com isso ficava um pouco pela noite, com a sua tuba ao lado. A esposa dele também bebia, só que em casa, e quando ele chegava, ela aborrecida com o atraso ficava falando aborrecidamente. Frederico respondia com a tuba. A cada período de 47 Walfrido Moraes, Jagunços e Heróis, Salvador, EGBA. – Ipac, 1991, 4ª ed. Leitura indispensável para se compreender o Ciclo dos Diamantes na Chapada Diamantina. 87 reclamação da esposa ele devolvia com um solo anárquico na tuba, e assim prosseguia a discussão até que se acalmassem48. Frederico representa o tubista modelo de banda de música. Extraía do seu souzafone notas precisas ritmicamente, levando em seu andamento toda a banda. Com aquela sonoridade algo rouquenha, própria do instrumento, conduzia com notas afinadas as ambiências tonais das melodias dos dobrados, dando suporte às melodias dos instrumentos agudos, ao contracanto do trombone e ao centro do acordeon. Luis Bicudo, tocador de pratos. Um homem negro do sertão, que marcava o contratempo com gesticulação nos lábios. É o atual tubista da banda de música, mesmo sendo mais velho entre os meninos. Também correspondendo ao perfil do percussionista de banda, era homem simples em maneiras e essência, de um humor quase infantil. Luis era e é o modelo de pratileiro que todo mestre de banda quer ter. Primeiro porque para tocar pratos o músico precisa amar os pratos manuais. O músico de Caculé, avô do meu amigo Rônalde Afonso, se orgulhava de “tirar a escala de dó maior nos pratos”. Procurando calculadas posições, ele realmente dava a impressão de criar uma escala. O pratileiro deve ter resistência física para que o andamento e com ele o que hoje chamamos “suingue”, ou ginga, não se perca. Bié. Ou “cara de diabo”, como eu o chamava, tocando seu bombo com extrema atenção e semblante muito sério. De demoníaco só tinha a aparência. Homem duro, honrado e discreto, que também não participava do repertório dançante, dedicouse a seu bombo e à filarmônica até o fim da sua vida. Tudo o que foi dito sobre Luis Bicudo e a profissão de pratileiro deve ser aplicado a Bié e a profissão de bumbista. Quando foi necessário ler, executou os dobrados, obedecendo à parte chamada “bateria”, que reúne em uma só partitura o bombo e os pratos, como é o costume. Depois, quando o papel foi abandonado, continuou a fazer de cor as obrigações do bombo. 48 Fred Dantas, apostila doCurso Mestres,Oficina de Frevos e Dobrados – Fundo de Cultura do Estado da Bahia, 2008. 88 Completando o pequeno grupo, vinha o acordeonista João de Deus, sempre de óculos escuros, homem de classe média, cuja presença na filarmônica devese à falta de trompas, tornando-se solução viável fazer as harmonizações de centro com a sanfona. João de Deus é, ainda hoje, o acordeonista social de Caetité, participando de ternos de Reis, Saraus e Quadrilhas. Embora falando do mesmo instrumento, o acordeão de 80 baixos, há uma diferença enorme entre o perfil do sanfoneiro ligado ao repertório típico do Nordeste e o chamado acordeonista, representado por João de Deus. O sanfoneiro gerou expoentes como Dominguinhos e Sivuca. O acordeonista tem como paradigma Mário Zan, a quem foi atribuída a autoria do dobrado Silvino Rodrigues, um modelo de músico extremamente maleável e ligado aos humores musicais das comunidades urbanas, sejam capitais ou urbes interioranas. Essa pequena banda, sem fardamento, sem bombardino, mas que executava com esmero, afinação impecável, os dobrados mais sólidos que conheço, como Saudades de minha terra (Evaristo da Veiga), Dois corações (Pedro Salgado) e 220 (Antonino do Espírito Santo), causou-me profunda impressão. A responsabilidade de cada um, a singularidade do repertório, a beleza do semblante de cada um daqueles veteranos, tudo foi decisivo para a minha vontade de tocar. Tengo me conduziu ao trombone, à região tenor da banda e à arte do contracanto. Do que posso lembrar acerca dessa banda, tocava um repertório de dobrados clássicos, bastante conhecidos no universo nacional das bandas de música, como o Saudades de minha terra, composto pelo alferes Evaristo da Veiga durante a Revolução Federalista. Exemplo Musical 22 - Dobrado Saudades de minha terra O dobrado Dois Corações, do pernambucano Pedro Salgado, que é um símbolo das festas de interior e de um repertório conhecido no Brasil inteiro, tocado por bandas civis e militares desde a Amazônia até os Pampas. 89 Exemplo Musical 23 - Dobrado Dois Corações Não havia na banda de Caetité concessão a maxixes, marchinhas, à parte “ligeira” do repertório bandístico. Tocavam um repertório considerado clássico de filarmônica e pequenas marchas como a que, ao voltar a Caetité já adulto e procurando recuperar a memória dessa banda, o mestre Álvaro chamou de “uma melodia singela”, mas não se recordou do nome: Exemplo Musical 24 - “Uma melodia singela” Além das razões afetivas e pessoais envolvendo a minha experiência de criança, a Banda de Caetité tem uma importância emblemática devido à sua função participativa no calendário festivo do sudoeste da Bahia entre os anos 1950 e 1970. Nela encontramos o modelo dos tipos profissionais correspondentes a cada instrumento, e devido à presença desses músicos maduros e excelentes, uma exemplificação de músico enquanto indivíduo voluntarioso que foi estrutural para a criação da escola jazzística norte-americana e também do chamado “jaze” da filarmônica. 2.2 BANDA 21 DE ABRIL Por um estranho ajuste do calendário político brasileiro, em 1971, no auge do período de autoritarismo militar, elegeram-se prefeitos em todo o Brasil para uma gestão de apenas dois anos. Vivia-se há muitíssimos anos um estado de letargia geral no município, onde administrar era apenas uma figura de linguagem. De repente elege-se um comerciante sem nenhuma tradição política, apesar de ser descendente direto de 90 uma das famílias portuguesas que povoaram o município. Chega o tempo do prefeito Diógenes Baleeiro, onde em ritmo célere tocou-se obras públicas e, beneficiando-se de um clima geral de revolução à direita, renovou-se o clima geral de como o próprio habitante de Urandi se enxergava. No bojo dessas mudanças, estava a disposição para criar uma banda de música em Urandi, sendo logo adquirido o instrumental inicial da marca Weril que era a única opção oferecida no mercado, e mandando vir da cidade de Condeúba, um grande criador de bandas de música chamado João Sacramento Neto, conhecido como Mestre João. A ele me referi da seguinte forma: João Sacramento Neto (Condeúba, 1933–2010) – Incansável fabricante de músicos, replicante da arte do possível, mestre João reside entre as cidades do Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais, formando bandas, que são continuadas ou destruídas, a depender da oscilação das políticas municipais. As bandas no Sudoeste da Bahia são de existência fugaz. Oscilam de acordo com a prefeitura, da qual são excessivamente dependentes, ao contrário das sólidas sociedades do litoral. No sertão, a distinção do estilo encontra exemplo em João Sacramento, de dobrados de melodia simples e clara, como em Os Músicos ou Dobrado n. 26. Sua beleza está na melodia, muito mais que em convenções ou embelezamentos. Mas aí surge a produção antiga, tão velha quanto os sobrados de Condeúba ou as pedras de Guirapá, edificações cristãs sobre aldeias. Fra Terenzio, de autor desconhecido, herdada por João Sacramento, é um exemplo de marcha religiosa de escrita muito fina, piedosa, e bela (DANTAS, 2004, p. 54). A turma inicial foi de jovens na faixa dos 15 anos, mas essa turma, onde estava o meu irmão George, não foi à frente, pois esses adolescentes já viviam outra realidade social – já eram fãs da Jovem Guarda e de certa forma praticavam o novo estilo de vida disseminado mundialmente pela enorme influência dos Beatles. Esses primeiros candidatos a músicos já não tinham mais a cabeça “mole” e descomprometida da infância. Nenhum deles permaneceu. Abriu-se caminho para a minha turma, de meninos na faixa de 10-11 anos e foi essa, com pouquíssimas desistências, quem formou a turma inicial da Banda 21 de Abril. Há notícias de uma banda de música em Urandi, por volta dos anos 30 ou 40, mas nada restou dessa banda, a não ser alguns músicos bem idosos, como Joaquim Bode Preto e o carpinteiro Alfredo Araújo. Encontramos duas marchas religiosas de um mestre, José Teixeira, mas já compostas na cidade de Monte Santo, um centro de peregrinação. A 21 de abril de 1972 estreava a jovem banda da cidade, com 13 91 componentes e apenas três músicas: Dobrado n. 1e Dobrado Os Músicos, do mestre João Sacramento e o Hino Nacional Brasileiro. Nosso Hino Nacional, uma peça de razoável dificuldade mesmo para músicos feitos, envolvendo cromatismos e apojaturas, era a encomenda e desafio principal para a data da Independência e saiu do nosso jeito, pelo menos sendo reconhecido pela população. Nesse mesmo ano, por obra e graça de um disco compacto recebido pela prefeitura, fomos compelidos a tocar o Hino do Sesquicentenário da Independência. Estávamos em pleno Regime Militar (1964-1982), e pelo menos fomos poupados de tocar Pra Frente Brasil e Esse é um país que vai pra frente, outras canções da mesma cepa, utilizadas para promoção política. No seu seguimento, a banda acrescentou ao repertório o Dobrado Consórcio, do mestre João, o dobrado Silvino Rodrigues, a valsa Branca, o maxixe Carinhoso e mais tarde o dobrado 13 Listras, de nível um pouco mais avançado. Então, ao que me recordo em sua curta fase clássica, a Banda 21 de Abril possuiu o seguinte repertório: Hino Nacional Brasileiro – F. M. da Silva e O. Duque Estrada Hino Sesquicentenário da Independência – Luis Gustavo, adap. J. Sacramento Neto Dobrado n. 1 – João Sacramento Neto Dobrado Os músicos – João Sacramento Neto Dobrado Consórcio – João Sacramento Neto Dobrado n. 26 – João Sacramento Neto Dobrado Silvino Rodrigues – atribuído a Mário Zan Dobrado Treze Listras – Pedro Salgado Dobrado Victória – Fred Dantas Marcha religiosa Fra Terenzio – anônimo Marcha religiosa A Grande Marcha – adaptada por J. Sacramento Neto Valsa Branca – Zequinha de Abreu 92 Maxixe Carinhoso – Pedro Salgado Bolerin de Fred – música americana arranjada por Fred Dantas Querida – Waldick Soriano, arranjo de J. Sacramento Neto. Desse repertório, dentro do que poderia classificar como peça concertante, aparece com destaque a marcha religiosa Fra Terenzio, que o mestre nos apresentou em partituras muito antigas, feitas em pena molhada, com sua introdução em acompanhamento cromático. Exemplo Musical 25 - Marcha religiosa Fra Terenzio E, dentro do que poderíamos chamar de repertório “ligeiro”, o agradável maxixe Carinhoso, de Pedro Salgado, que nos chegou em edições quase artesanais, em cor azul, distribuídas pela Vitale Musical, de São Paulo: Exemplo Musical 26- Maxixe Carinhoso A minha memória enquanto compositor se inicia aos 13 anos com o dobrado que intitulei Victória, o mesmo nome do “Jazz Victoria”, um conjunto que jamais ouvi tocando, mas que alcancei ver a bateria, com o nome gravado, podendo também conhecer pessoalmente a dona cujo nome foi homenageado, a sogra do mestre, dona Victória. 93 Exemplo Musical 27- Dobrado Victória Este meu primeiro dobrado foi colocado na estante sem maiores problemas. A forma correspondia ao que se espera de um dobrado: uma pequena introdução, a linha melódica simples confiada aos instrumentos de canto na primeira parte, em seguida “o forte” com solo ainda mais simples dos graves e todo o resto fazendo “centro”, ou seja, o acompanhamento e uma terceira parte, o Trio, com modulação para a subdominante. Na mesma fase, iniciei caminho com os arranjos populares, ao adaptar uma conhecida música americana para a banda, que por falta de um nome melhor, ficou conhecido como “o bolerin de Fred”: Exemplo Musical 28 - “O bolerin de Fred” Nesse momento surgiram dois problemas, um de fácil resolução e outro que ficou sem solução: os quatro últimos compassos da melodia acima são ocupados por uma nota longa demais para a realidade da execução por uma banda de sopros. Não seria o caso de um trio de dobrado, onde nesse espaço colocaria, como de praxe, um lindo contracanto de bombardino. Optei por enriquecer a melodia, da seguinte forma: Exemplo Musical 29 - “Bolerin” com melodia corrigida 94 Com isso, resolvi a questão da nota longa, mas havia outra: ao colocar a “segunda voz”, terça acima, o mestre não concordou com o fá sustenido (dominante-dadominante, Ré maior) mesmo eu argumentando que escutava assim no rádio: Exemplo Musical 30 - Terça maior na segunda voz Argumentei que ouvia assim no duo de flautas quando da gravação original e mesmo quando entra o canto está em solo, o tal fá # está na harmonia, mas o mestre não concordou mesmo. Tive de, contrariado, retirar o sustenido, para evitar, nos meus 13 anos de idade enfrentar um mestre que idolatrava – evitei uma crise de autoridade 49 . Mas pensava sempre: “entretanto se move”. A Banda 21 de Abril funcionou de 1971 a 1974 com a regência do mestre. Quando ele foi criar uma nova banda na cidade de Porteirinha, MG, com apenas 14 anos fiquei interinamente no comando. Em um ano à frente da banda consegui manter funcionando uma escolinha e os ensaios noturnos. Conseguir “fazer” três novos músicos leitores de partitura: os trombonistas Pia (Jesuíno Araújo) e Nestor Monteiro e o clarinetista Silvano, que toca até hoje. Coloquei algumas músicas novas no repertório e além das tocatas na cidade realizei pelo menos uma viagem com a banda 21 de Abril, para a cidade vizinha de Licínio de Almeida. 49 Como, aliás, aconteceu pra valer entre o jovem Estevam Moura, com 14 anos, e o mestre França, em Santo Estevão. Não se sabe a divergência, mas criou-se uma polêmica pública que foi levada a uma comissão de maestros, que deu razão ao menino. O mestre abandonou a banda, mudando-se da cidade. 95 Figura 14 - Banda 21 de Abril50 Esta tocata contratada pelo festeiro de nome José Nenas (na figura 14 de paletó branco, com a esposa), envolveu aluguel de carro de praça, uma rural vermelha e branca, hospedagem, alimentação e a apresentação. Eu tinha 14 anos e estive à frente na resolução disso tudo, tendo inclusive assinado um contrato. Partimos exaustos de volta a Urandi e na travessia da serra do Saco da Onça, a grande altitude com estrada pedregosa serpenteando por paredões rochosos e grotões dos quais não se enxerga o fundo, paramos numa venda. Ali se realizou então um estranho baile de improviso, onde a cerveja, por falta de energia elétrica, era gelada num buraco de cimento cheio de água. Depois da minha vinda para Salvador, a banda parou. Lembro que fui achar a campânula da tuba na casa do então prefeito, servindo de ninho para uma galinha choca. Uma nova gestão chamou de volta o mestre João e ele chegou a formar uma novíssima turma que se apresentou diversas vezes, fardada e com instrumental renovado. Novamente, por questões salariais, o mestre retornou para Minas, enquanto a banda procurava se manter, com o nome Filarmônica João Sacramento Neto, dado pelos seus discípulos tendo à frente João de Bitoni. 50 Paulo Lopes, pratos. Leobino Monteiro, bombo. João Gomes Bitoni, caixa. Robson Públio, trompa; Milton Santos Costa, sax alto; Sidnei Santana, trompa. Francisco Eduardo Públio, clarineta. Antônio Ricardo, clarineta, Gabriel Rizério Lopes, bombardino; Fred Dantas, trombone. Pontaria, tuba e Mário Públio Filho, trompete. A foto da Banda 21 de Abril, sob minha liderança, ainda sem os novatos, foi retirada de um monóculo de João Décio Gomes,tratado pelo fotógrafo e trompetista Sérgio Benutti. 96 Novamente por ação de um prefeito também empreendedor, o jovem Geraldo Santana, o mestre João foi convocado para criar uma nova filarmônica em Urandi. Havia uma diferença entre essa nova corporação e a banda à qual pertenci: a minha banda tinha sido fundada durante o Regime Militar, para funções bem definidas e ligadas à prefeitura. A contratação do mestre João foi circunstancial, ligada à necessidade de alguém que soubesse ensinar. A nova banda de Urandi foi criada com um olhar cultural, já embasada na minha história como filho da terra que se tornou profissional em Salvador e à reputação consolidada do mestre João do sudoeste da Bahia ao norte de Minas Gerais, como professor de música, compositor e líder de várias bandas de música. Mais uma vez devido à política, não houve interesse por parte da prefeitura em renovar a permanência do mestre, que aceitou convite para Porteirinha, no vizinho estado de Minas Gerais, onde fundou e manteve em funcionamento uma nova filarmônica, com seus filhos músicos Jair e Samuel, surgindo ainda uma neta musicista chamada Adriana Aguiar. Em Minas, Samuel vem sendo o seu continuador, enquanto Urandi assistiu ao fim da sua banda. Além das razões afetivas e pessoais envolvendo a minha experiência de adolescente, a Banda 21 de Abril tem importância emblemática não só devido à sua efêmera e vibrante função participativa no calendário festivo, oficial e religioso da sua cidade e vizinhanças entre os anos 1971 e 1977. Sua importância maior está em se implantar, em solo inculto, a semente da iniciação musical por meio de leitura musical, execução de instrumento, divisão de vozes e funções e pertencimento em relação a uma instituição, a criação de novo repertório. O mestre João Sacramento uma vez me perguntou por que eu sempre atribuía a ele uma importância, a seu ver, excessiva, já que havia me graduado e pós-graduado em música por uma universidade. Eu respondi que ele havia me tornado músico. A Universidade me especializou e acolheu. 2.3 A MÚSICA DE BANDA E SEUS MESTRES EM QUATRO ÁREAS DA BAHIA A ideia que as bandas de música mereceriam atenção do estado em diversos momentos se fez presente desde o final da Segunda Guerra Mundial. Antes disso não havia necessidade de programa algum, pois elas naturalmente participavam da vida social dos 97 países, não só do Brasil. Vieram as orquestras de Jazz e a música popular via rádio e gravações. Aí se tornou necessário incluir as bandas em algum programa de apoio. Villa-Lobos, que no início da sua carreira compôs alguns dobrados patrióticos, em suas idealizações cívicas sempre incluiu as bandas de música, sejam em situação original, quanto associada ao Canto Orfeônico. Durante o Regime Militar (1964-1985) as bandas de música acabaram sendo incluídas nas atribuições da Secretaria de Desportos, não de Cultura. Assim, proliferaram programas de apoio, mas nenhuma atenção ao trabalho pedagógico, biografia e partituras dos mestres de música. Quanto à difusão de partituras, quem de certa forma fazia esse papel, através de arranjos impressos em tinta azul, foi a Casa Irmãos Vitale, de São Paulo. Partituras chegavam, de forma admirável, a todos os lugares, e eram adquiridas pelo sistema de reembolso postal. Na Bahia, a Secretaria do Trabalho acabou herdando o contato junto às bandas de música, e se valeu disso para criar laços políticos com as cidades, afastando as bandas de música do seu caráter independente, crítico, conspirador e inovador que têm em suas raízes. Assim, nunca havia sido feita uma pesquisa, sistemática ou não, sobre os mestres-compositores. Ao venerar meus mestres acabei dando partida a esse trabalho, que foi sendo feito na medida em que chegava às minhas mãos material procedente das cidades e de arquivos de bandas de Salvador mesmo, como a Sociedade Filarmônica Carlos Gomes, da Ribeira. Para dar vazão aos resultados, criei, nas oportunidades que tive de conseguir pauta na Reitoria da UFBA, uma série de concertos em homenagem a esses mestres com fotos e dados biográficos. Esse trabalho teve seguimento no Festival de Filarmônicas do Recôncavo. Minha grande sorte foi, em 1983, ser convidado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia a executar obras de Tranquillino Bastos, na ocasião em que a família doava ao Estado as famosas batutas de prata e ouro que o maestro tinha ganhado em concursos de composição internacionais51. Entre os primeiros que mereceram seus concertos estava o meu mestre João Sacramento Neto, Manuel Tranquillino Bastos, pelo convite da Fundação Cultural, e o mestre Álvaro Villares Neves, pela influência que a mim causou à frente da Banda de Caetité. Depois vieram Júlio Cézar Souza, pelo contato com suas partituras que a mim 51 As partituras estavam salvas quando foram adquiridas pelo governo, e abrigadas no setor de obras raras da Biblioteca Central do Estado, depois de serem examinadas e validadas por intelectuais como o professor Manuel Vicente Veiga Júnior e o maestro Francisco Mignone (1897-1986). 98 foram doadas pelo clarinetista João Flores de Andrade, de Livramento e Isaías Gonçalves Amy, que surgiu entre as partituras trazidas pelo médico Deraldo Portela. Depois, nas várias edições do Festival de Filarmônicas do Recôncavo, fomos homenageando compositores e com isso recuperamos parte da memória e música de Estevam Moura, Amando Nobre, Heráclio Guerreiro, Francisco Teixeira, Almiro Adeodato Oliveira e, finalmente, o mestre Vado de Muritiba. Ao voltar nossa atenção à produção musical em si, mais que as vidas pessoais e interações desses personagens em suas cidades, encontramos quatro regiões no estado da Bahia em que o estilo de música se particulariza, em tratamento dos temas e complexidade do contraponto, mantendo os pilares de forma e instrumentação, que não mudam. 2.3.1 Música de Filarmônica no Recôncavo O Recôncavo Baiano é a região onde a música encontrou seu maior desenvolvimento, e isso vale até hoje para o estado da Bahia. Aqui, pela proximidade física entre as cidades, como pode se observar, essa distância se alarga cada vez mais à medida que adentramos para longe do litoral, enquanto aqui encontramos cidades divididas por um rio, como São Félix e Cachoeira, terra de Tranquillino Bastos, considerado o mestre dos mestres. As mais antigas instalações ligadas ao comércio, à administração e à vida religiosa determinaram que a vida musical do Recôncavo encontrasse especial desenvolvimento, incluídas aí as bandas filarmônicas, entre as mais antigas da Bahia, mantidas por sociedades civis fortalecidas e mais ou menos independentes do poder político. A escrita musical acompanha essa solidez, gerando obras de concerto destinadas a bandas completas com instrumental de ótima qualidade, importado da Inglaterra ou da França. As funções instrumentais estão enfatizadas e especializadas na escrita de banda do Recôncavo Baiano, como a invenção do “tangado” 52 e dos trios de dobrados com virtuosismo do bombardino. Os instrumentos solo mereceram, no Recôncavo, boas páginas que demonstram o conhecimento organológico do compositor. Entre regentes, professores, ideólogos e, sobretudo compositores que se destacaram, tomamos como 52 Tangado, sinônimo de “sambado” ou sincopado, era como se chamava a prática composicional envolvendo o uso das síncopes na marcação e centro, enquanto a melodia e contracanto permaneciam com linha melódica convencional, ou seja, ao modo europeu. 99 exemplo Tranquillino Bastos (Cachoeira, 1850-1935), Heráclio Guerreiro (Maragogipe, 1877-1950) e Amando Nobre (Maragogipe, 1903-1970). Manoel Tranquillino Bastos foi o principal compositor das filarmônicas da Bahia no final do século XIX. Fundador de filarmônicas, exímio compositor, adaptador de peças alemãs e francesas, Tranquillino é exemplo para todos os mestres em relação à sociedade do seu tempo, ativo defensor da libertação dos escravos, de línguas e religião negras, vegetariano, homeopata e espírita. Era também escritor e poeta. Soube estar à frente do seu tempo e ao mesmo tempo presente em todos os fatos ao redor. Suas composições foram premiadas na Europa, onde nunca pisou o pé, ganhando batutas de ouro e prata. Sua escritacaracteriza-se no uso de cromatismos e polifonia onde poucos instrumentos tinham vozes iguais. Figura 15 - Tranquillino, o mestre dos mestres de filarmônica Em 1983, algumas obras de Manuel Tranquillino Bastos, como Navio Negreiro, Airosa Passeiata e a marcha A Cruz do Monte foram adaptadas por mim e tocadas pela Oficina de Frevos e Dobrados, por conta de uma homenagem organizada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. No ano de 2000, ano do sesquicentenário de nascimento de Tranquillino, professores da Escola de Música da UFBA realizaram excelente trabalho de pesquisa e recuperação, sobretudo da sua obra para conjuntos de câmera. 100 Exemplo Musical 31 - Dobrado n. 155, “O navio negreiro” No dobrado Navio Negreiro, o tom de Fá menor se junta ao uso de glissandos descendentes na construção de um caráter sóbrio, compatível com o tema inspirador. Não é comum na obra de Tranquillino, tampouco no ambiente geral dos dobrados, o uso do compasso binário composto: não seria estranho que tenha relação com o Candomblé, em que um dos padrões mais frequentes pode ser representado com o compasso 6 por 8, cuja liberdade religiosa o mestre, mesmo sendo kardecista, defendia abertamente em seus artigos publicados na imprensa local. Heráclio Paraguassu Guerreiro é um orgulho da cidade baiana de Maragogipe, onde nasceu e viveu. Na sua filarmônica, a Terpsícore Popular, toca um bisneto seu, com o mesmo instrumento, a caixa. Esse percussionista escreveu cerca de 500 músicas, sempre lindas e eficazes: não há música mais simples, ou menos bonita, de Guerreiro, dono de um estilo vigoroso e severo, que não lhe impediu de ser um dos que estabeleceram a marcação em tangado (marcação com uso de síncopes). Depois de introduções fortes e cantos com divisão bem definidas entre palhetas e metais, normalmente surgem, nos dobrados de Heráclio Guerreiro, os trios (parte final do dobrado) mais belos da música baiana, nos quais há um equilíbrio místico entre o canto, com as clarinetas, o contracanto de um bombardino solista e a marcação obstinada da tuba e do sax barítono. Entre suas composições mais conhecidas estão os pasodobles (marcha militar espanhola que tem diversos elementos em comum com o dobrado) América 1 e 2, o dobrado Rabi da Galiléia, o dobrado Filoca Santana, o dobrado Victor Grimaldi e diversas partituras religiosas para a novena de São Bartolomeu. Amando Nobre, além de compositor e regente, era um escritor, um homem de idéias e entusiasta pela transformação da sociedade. Presença constante na ativa imprensa escrita do seu tempo, Nobre escreveu, entre centenas de outras peças, o Grito 101 dos Pretos, peça de grande repercussão à sua época. Junto com Estevam Moura e Waldemar da Paixão, forma a vanguarda do Recôncavo, a geração seguinte a Tranquilino e Guerreiro, que levou o estilo a melodias mais leves, acréscimo de novas partes nos dobrados e convenções bastante estendidas, além de ter dado continuidade ao tangado, modelo de acompanhamento para dobrados, feito nas tubas, de forte influência negra. No exemplo musical 32, podemos visualizar uma linha de acompanhamento em tangado para uma melodia relativamente simples, uma progressão em tom menor. Esta parte do que seria o acompanhamento apresenta-se com maior número de notas e de significantes rítmicos que a melodia. Foi a escrita musical em tangado que distanciou o estilo desenvolvido no Recôncavo da Bahia em relação ao dobrado de uso militar. Exemplo Musical 32 - Dobrado Dioclécio Ferreira, de Amando Nobre As músicas de Amando Nobre são muito difundidas por toda a Bahia, onde exista banda, e entre suas obras se destacam as polacas, para solo de bombardino e trombone. 2.3.2 Música de Filarmônica no Sertão A música das bandas filarmônicas do Sertão não têm, em geral, a complexidade do repertório do Recôncavo. Uma escrita mais exigente pode ser encontrada nas marchas religiosas, de estilo rebuscado e severo. Nos dobrados predominam as linhas simples, as estruturas sem grandes interrupções, em uma atitude compositiva muito semelhante a outras regiões humildes onde, entretanto, a arte filarmônica floresce como, por exemplo, no Rio Grande do Norte, o árido Vale do Seridó, onde visceja a música de Tonheca Dantas, Felinto Lúcio Dantas e seus descendentes. 102 Nesse caso, de obras simples mas bem estruturadas, enquadra-se o dobrado Dever do mestre, editado pela Funarte dentro da série Repertório de Ouro das bandas de música, composto por Ceciliano de Carvalho (Senhor do Bonfim, 1882-1950), um compositor sertanejo que pode, sem dúvida, ser chamado de erudito, por sua grande cultura geral, pela excelência de suas obras e pela posição em sua cidade. Em Bonfim, Ceciliano tinha status de autoridade, frequentando os palanques e tribunas de honra junto ao prefeito, o juiz etc. Dava aulas de piano às senhoras da sociedade. Certa vez quebrou uma batuta na cabeça de uma delas. Mesmo sob súplicas da própria agredida, jamais voltou a lecionar depois desse episódio. Foi mestre de Isaias Amy, mestre Mocó e outros regentes sertanejos. Um compositor nascido em uma região de sertão, próximo a Feira de Santana, mas que em sua formação e produção está bastante próximo ao estilo do Recôncavo, inclusive no desenvolvimento do estilo tangado, é Estevam Moura (Santo Estevão, 1907-1951). Estevam foi um revolucionário em seu tempo, pois levou o dobrado a ter inúmeras partes, pontes, momentos de parada e acompanhamentos inusitados. Seus dobrados Verde e Branco, Magnata, Tusca etc. são hoje patrimônios nacionais, executados em todo país, divulgados pela comunicação silenciosa de músicos e regentes. Foi, ao lado de Amando Nobre e Waldemar da Paixão, um dos pilares de um momento em que as bandas atingiram uma espécie de classicismo, mantendo as conquistas dos mestres do Recôncavo e acrescentando novas e engenhosas soluções. Estevam foi pioneiro em adotar percussão alternativa, tendo mesmo chegado a construir um par de tímpanos, com troncos escavados de mulungu. Homem negro, vindo da pequena cidade de Santo Estevam, seu caminhar de terno branco pelas ruas de Feira de Santana, à frente da 25 de Março, era uma cena de causar admiração. Esses três compositores após Tranquilino, Estevam, Amando e Waldemar, estabeleceram as bases do dobrado baiano, com o uso do tangado. De fato, é o uso da síncope, a inclusão da herança negra que transforma e dá identidade ao dobrado. Seu filho de criação, Hamilton Lima, tornou-se regente de coral da Bahia, tendo estabelecido o saudável costume de criar corais de funcionários em empresas públicas e privadas. No exemplo 33 podemos avaliar como, nas normas do dobrado, Estevam sempre foi pontual, como nessa linha de contracanto das palhetas agudas, quando os metais fazem o solo: 103 Exemplo Musical 33- Dobrado Verde e Branco, de Estevam Moura Todo o discurso em relação à simplicidade da escrita de banda no sertão não se aplica a uma jóia rara, a polaca Maria Almeida, de Tertuliano Santos (Feira de Santana, 1898-1968) Logo nos primeiros compassos, a polaca faz uso de progressões frasais e harmônicas, para surgir uma melodia só possível por alguém que conheça profundamente o trompete. Diálogos entre solo e contracanto, como no exemplo 34, são exemplares. Foi discípulo de Santa Isabel, o adaptador de óperas e trompetista virtuoso. Seu filho, o professor Fernando Santos, foi executante de percussão sinfônica e sua interpretação da caixa no Bolero de Ravel foi muito aplaudido na Alemanha, onde se especializou. Tertuliano causou polêmica no seu tempo ao trocar a Filarmônica Vitória pela 25 de Março, provocando divisão na Feira de Santana dos anos 40. Exemplo Musical 34- Polaca Maria Almeida, de Tertuliano Santos 104 No exemplo 34, um diálogo sofisticado entre o trompete solista e o naipe de clarinetas em uníssono pode-se observar o aproveitamento de um mesmo motivo através de sequências, a exploração das possibilidades técnicas da clarineta e o aproveitamento estreito do tempo musical, da perfeita junção entre a pergunta e resposta. 2.3.3 Música de Filarmônica nas Lavras Diamantinas A música ganha interesse nessa bela e inóspita região da Bahia no momento em que a descoberta de grandes quantidades de diamantes atrai o interesse de garimpeiros profissionais de Minas Gerais. Os mineiros, que já vinham de regiões onde a fortuna tinha feito edificar grandes obras em cal e pedra e gerado compositores como Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805)53 imprimiram toda uma poética na cultura das Lavras Diamantinas, onde entre os reisados e sambas floresce vigorosa a música grafada em partitura das suas filarmônicas. Como traço de estilo, está o sistema de dupla melodia, em paralelo, em alguma parte do dobrado. Não se trata de contracanto, no sentido de “trabalha enquanto o canto descansa”, mas linha em duplicidade, encontrada nos dobrados de Esaú Pinto: Esaú Pinto – Orgulho da Lira dos Artistas, de Rio de Contas, Esaú Pinto é representante de um estilo diferenciado de compor, encontrado na Chapada Diamantina. Em boleros em ternário como Sonhos de Primavera ou em dobrados como Paulo e Júnior, encontramos a noção de “dupla melodia” substituindo o contracanto. Suas músicas representam com os sons o apogeu do bom gosto que determinou a arquitetura de Rio de Contas, no topo de uma montanha, onde havia pianos, métodos franceses, saraus sociais promovidos pela Lira dos Artistas e o crescimento de compositores criativos e prolíficos como Esaú Pinto (DANTAS, 2004, p. 56). Compositores da Chapada Diamantina, mantidas as constantes do estilo de compor para banda, a forma do dobrado, as polacas etc, são diferentes dos seus colegas 53 Patrocinado pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, Curt Lange (1903-1997) pesquisou os arquivos eclesiásticos das cidades auríferas (Ouro Preto, Diamantina, São João del Rei, Tiradentes e Mariana) tendo em mente uma tese que até então não tinha ocorrido a nenhum brasileiro: a riqueza do ouro, as esplêndidas igrejas, a literatura dos árcades e a arte de um Aleijadinho – são uma riqueza cultural que certamente teria uma expressão musical. Com efeito, as irmandades do século XVIII ainda existiam e conservavam fabulosos acervos de partituras antigas. Curt Lange consultouconsiderável documentação, que o levou a escrever uma história completamente desconhecida da música do ciclo do ouro. Disponível em Paulo Castagna in http://historiadamusicabrasileira.wordpress.com/o-blog/. 105 do Recôncavo. Suas peças são mais simples, com instrumentação menos rebuscada. Aqui vemos uma forte influência das bandas de Minas Gerais e uma tendência ao contraponto não ser um “contracanto”, mas de fato uma segunda melodia, tocada em paralelo, Isso se vê nas primeiras partes e trios dos dobrados de Júlio Cézar Souza (Mucugê, 1889-1983). Exemplo Musical 35- Dobrado O bode preto, de Júlio Cezar Souza Nas polacas e boleros para solista, em ternário, trabalha a forma tema-variação. Garimpeiro, negociante de diamantes, músico autodidata, Júlio Cézar Souza compunha vivenciando sua cidade e sua filarmônica, a 23 de Dezembro, tendo dado às suas músicas títulos curiosos: O Cara Suja, O Bode Preto, Ser bom não é bom, valsa Riso do Mal, Flor da Serra etc. Américo Chagas, médico atuante no município de Wagner, nas lavras diamantinas, narra um combate entre forças do governo da Bahia e o líder garimpeiro Horácio de Matos. Com a cidade de Lençóis sitiada e quase sem munição, o líder saltou pessoalmente sobre as trincheiras inimigas, eliminando vários adversários a punhal, “com o paletó rendido de balas e, para admiração geral, saiu incólume da refrega”. No local onde tombaram os soldados mortos, alguém se lembrou de riscar numa pedra, em algarismos romanos, a data do combate (XVIIII-XXV), inscrição que até hoje não foi apagada pelo tempo. Foi tal o delírio da multidão que os músicos da filarmônica “Lira Popular” fizeram passeatas pelas ruas, indiferentes às balas que vinham do outro lado do rio São José. [...] Na volta encontrou Horácio de Matos uma grande multidão que, de tão entusiasmada, fez questão de carregá-lo. E assim, entrou ele em Lençóis nos braços do povo que o aplaudia, delirante, em altos brados: “Viva Horácio!” mas que ele respondia: “Viva Deus, que é quem nos protege” (CHAGAS, 1996). 106 2.3.4 Filarmônica e ferrovia na fronteira com Sergipe Entrei em contato com a música dos ferroviários nos anos 1990, porque o mestre Pedro Cardoso, da filarmônica Euterpe Alagoinhense, queria botar fogo no arquivo que tinha em mãos, originário de várias bandas, como a São Brás de Plataforma, a 5 Rios e a Euterpe Alagoinhense, além, de certo, da Recreio Operário de Aramari. Esse ato destrutivo tinha a ver com a decepção com o estado das bandas de música em sua cidade. O Dr Deraldo Portela, à época presidente da Sociedade Lítero-musical 25 de Dezembro, da cidade de Irará, surpreendendo o velho mestre com o fósforo na mão, impediu o ato, e trouxe esse material para mim. Foram pelo menos três grandes lotes, e entre as partituras lembro-me ter encontrado três pequenos ratos mortos. Desde então, estive envolvido na organização de um arquivo de partituras manuscritas, ao qual com justiça dei o nome Arquivo Deraldo Portela, que reúne originais manuscritos de partituras de várias filarmônicas da Bahia, todas elas ligadas à rede ferroviária. Fui à cidade de Alagoinhas várias vezes, conheci a viúva do mestre Pedro, entrevistei a família do compositor Isaias Gonçalves Amy, chefe de depósito da Leste, ao qual realizei concerto de homenagem na Reitoria da UFBA. Conheci e entrevistei músicos como Pedro e Benigno Aquino, formadores da orquestra Os Turunas, um dos orgulhos musicais da terra. Isaias Gonçalves Amy (Queimadas, 1888-1960) foi exemplo de mestre sertanejo dessa região ligada pela linha do trem, que segue desde Queimadas até quase Salvador. Com a profissão de ferroviário, chefe de depósito da Rede Ferroviária Leste Brasileiro, Amy regeu bandas em sua cidade, Queimadas, regeu a Apolo em Juazeiro, a União dos Ferroviários Bonfinenses, em Senhor do Bomfim e a Euterpe Alagoinhense, em Alagoinhas. Escrevia de acordo com a excelência dos músicos e também segundo o público que ouviria sua produção. Assim, compôs desde rebuscadas polacas, como Annita Garcia, para solo de sax alto e a Ária a Trombone, até o baião Tuada no Sertão, que é o rosto do Nordeste baiano, por onde andou Lampião. Ainda na linha popular, compôs uma série de marchas-frevo, de número 1 a 18, para o carnaval de Alagoinhas. 107 Exemplo Musical 36- Marcha-frevo n. 9, de Isaias Gonçalves Amy Parte desse material vem sendo recopiado ou editado em computador, tendo a Oficina de Frevos e Dobrados executado e realizado gravação de algumas dessas peças. Dentro do possível, realizei levantamento de biografias e imagens ligadas ao contexto onde essas músicas foram produzidas. Vale ressaltar que o que fiz foi por conta própria, sem qualquer financiamento externo. Nesse conjunto vemos como as peças de rebuscamento, do início do século XX, pesadas peças de concerto e reduções de aberturas de ópera, vão cedendo lugar aos dobrados clássicos de meados desse século, valsas, até chegar em músicas ligeiras e até mesmo mal escritas. E a um estilo híbrido, só existente nessa parte entre a Bahia e Sergipe: a marcha-frevo, mistura da marchinha carnavalesca com o frevo pernambucano, como aqui se encontrasse, como as águas do rio Grande e do São Francisco, o carnaval de clube do sul do país com o carnaval de rua nordestino. Aqui estão presentes dois tipos de mestres de música. O primeiro grupo é de profissionais da composição e da regência, à frente de diversas corporações na Bahia, e que nela deixaram discípulos e obras. Outro grupo é dos mestres de banda ferroviários da Leste, que enquanto serviam à Rede como maquinistas e administradores, semearam bandas de música por onde houvesse estação. Tranquillino Bastos, Estevam Moura, Heráclio Guerreiro, Amando Nobre e o português Souza Moraes pertencem ao primeiro grupo, de mestres de música profissionais. Entre os mestres ferroviários estão o baiano Isaias Gonçalves Amy e dois maquinistas do trem nascidos no vizinho estado de Sergipe que se tornaram notáveis mestres de música também na Bahia: Abelardo Enéas 108 Campos, nascido em Simão Dias e José Propheta Silveira, conhecido como Zeca Laranjeiras, adotando o nome da sua cidade. Figura 16 - Filarmônica Recreio Operário, de Aramari Abelardo Enéas Campos (Simão Dias, SE) ajudou a estabelecer um curto período “clássico” na Sociedade Muzical 5 Rios, de Maracangalha, Bahia, fundada em 1927, tendo à sua frente o mestre Delmiro Góes. Sendo a localidade cortada pela linha do trem da leste, não deve ter sido difícil para Enéas, como era conhecido, reger e ensinar não só em Maracangalha, mas também na filamônica Recreio Operário, de Aramari e da Euterpe alagoinhense, da cidade de Alagoinhas, todas elas basicamente integradas por ferroviários. Em 1935, Enéas compôs uma obra tão bela quanto rara no mundo das filarmônicas: uma Ave-Maria para voz soprano e banda de música, para a inauguração da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, em Maracangalha. 109 Exemplo Musical 37 - Ave Maria, de Abelardo Enéas Campos Estive na cidade de Aramari, onde encontrei e me tornei amigo do mestre Zinho (Manoel Francisco de Souza, 1918-2010),que conhecia meu pai, o médico Dr. Dorivaldo Dantas, desde quando trabalhava na rede ferroviária, na cidade de Urandi. Mestre Zinho acabaria dando início, juntamente comigo e o compositor Moraes Moreira, ao Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho. Sobre ele, foi publicado: Um dos notáveis mestres que ligam as bandas filarmônicas à ferrovia é o mestre Zinho, nascido Manoel Francisco de Souza, em 10 de outubro de 1918, líder da Sociedade Filarmônica Recreio Operário de Aramari, cidade onde nasceu e reside. A Rede Ferroviária, do final do século XIX até meados do século XX, modificou bastante, e para melhor, a rotina das cidades onde passava. Com os trens de passageiros, apelidados Rápido, Mochila, Pirulito e com o Misto (passageiros e carga), incrementou-se a circulação de gentes e mercadorias e dinamizou o comércio. Uma das principais consequências foi o gosto do ferroviário pela banda de música, que incentivou filarmônicas como a São Bráz de Plataforma, 5 Rios de Maracangalha, Euterpe Alagoinhense, União dos Ferroviários Bonfinenses e a Recreio Operário de Aramari. Discípulo de Abelardo Enéas Campos, mestre ferroviário sergipano, Mestre Zinho, excelente tubista, tornou-se referência musical ao manter viva e atuante, praticamente só, a sua filarmônica. Junto com o maestro Fred Dantas e o cantor Moraes Moreira, foi fundador, em 1991, do encontro de Filarmônicas no 2 de Julho. Iniciador de dezenas de jovens músicos, Mestre Zinho chega aos 92 anos. A Recreio Operário, mesmo sem sua didática direta, continua a receber crianças e adolescentes que queiram acesso à leitura e execução de um instrumento(FUNCEB, Agenda Cultural set. 2010)54. Procurei, nos limites das minhas possibilidades, lançar nova luz sobre a filarmônica e sua relação com as corporações de trabalhadores, tomando como principal fonte o arquivo de partituras de conteúdo surpreendente: o Arquivo Deraldo Portela. 54 Fred Dantas, autoria não citada, “Mestres da cultura: Zinho de Aramari” , pequena biografia solicitada para aAgenda cultural setembro 2010. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia. 110 Esse lote de partituras manuscritas carece ainda de um projeto para ajudar a preservá-lo, e abri-lo à pesquisa. O objetivo seguinte é divulgar o conteúdo do Arquivo Deraldo Portela de forma física, em CDs e papéis editados, e por meio digital tudo que possa ser duplicado em qualquer lugar do planeta, possibilitando a qualquer banda atual acessar memória de bandas de música entre 1910 e 1970, com contribuições das filarmônicas: Euterpe Alagoinhense, Lira Ceciliana de Alagoinhas, Recreio Operário de Aramari, Filarmônica São Braz de Plataforma, Sociedade Muzical 5 Rios de Maracangalha e outras. O universo musical construído pelas bandas de música do Nordeste da Bahia próximo a Sergipe é original e interessante: em sua parte “de concerto” encontramos diversas peças de harmonia de autoria desses mestres ferroviários e outras – aberturas de ópera principalmente – copiadas a mão. Ópera de Verdi em pleno canavial de massapé. Aqui vemos como a ferrovia, ao longo das estações, não semeava somente mercadorias e gentes, mas também muita música de qualidade lida em partituras onde estão todos os elementos cognitivos das músicas europeias, entretanto realizadas aqui mesmo, por mestres de música nativos e visitantes trazidos pela Rede Ferroviária. Ainda em relação à música ferroviária do nordeste da Bahia, aqui se cunhou a chamada “marcha-frevo”, que une a instrumentação convencional da banda filarmônica às linhas melódicas sincopadas ao estilo do frevo pernambucano. 2.4 A OFICINA DE FREVOS E DOBRADOS Qual o significado da Oficina de Frevos e Dobrados nesses 32 anos, para ser mais exato? Em primeiro lugar, a Oficina colocou em foco, nos anos 80, a filarmônica, que até então não era suficientemente conhecida e valorizada pelo meio acadêmico, inclusive dentro da universidade. Depois retificou a noção de que banda era atividade de músicos idosos, ao surgir no cenário com uma trupe de jovens idealistas, inclusive mulheres, associando aos dobrados uma imagem construtiva e renovada. Congregou em torno do conjunto músicos veteranos e alguns mestres compositores. Em seguida, iniciou um trabalho social com crianças e jovens. Passou a interferir na política pública para as bandas de música e contribuiu para o surgimento de novos grupos musicais semelhantes. 111 2.4.1 História da Oficina e seus personagens A Oficina de Frevos e Dobrados originou-se de um grupo organizado para tocar no II Festival de Música Instrumental da Bahia, homenageando o mestre João Sacramento Neto, que fundou a Banda 21 de Abril em Urandi, onde me iniciei musicalmente. A formação original contou com Tuzé de Abreu, flauta; Rafael dos Santos (Ratinho), sax alto; Ery Oliveira, saxofone tenor; Juracy Bemol, trompete; Gerson Barbosa, trombone e Antônio Oliveira, tuba. A manutenção da idéia e o discurso se deram por circunstâncias bem práticas: a Fundação Cultural nos convidou para interpretar músicas de Manoel Tranquillino Bastos, num concerto na Reitoria, em 1983. Tive então acesso ao enorme arquivo felizmente preservado na Biblioteca dos Barris, e dediquei-me a adaptar peças como o dobrado Navio Negreiro, a Airosa Passeiata, a polka Bebé, a polaca A teimosa e a marcha religiosa A cruz do Monte. Figura 17 - 2ª Turma da Oficina de Frevos e Dobrados em 1983, na EMAC-UFBA A segunda turma da Oficina de Frevos e Dobrados, que passou a ensaiar no Salão de Orquestra da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, foi registrada na foto 12, onde vemos: Geová do Nascimento, Pedro Robatto, José Guimarães e Raul Bermudez, clarinetas; Luis Paranhos, bombardino; Rowney Scott, sax alto; Fred Dantas, 112 tuba; Antonio Carlos e Dinaldo Borba, trompetes; Ery Oliveira, sax tenor; Glória Ledezma, Regina Cajazeira, Bernadete Araujo e Luis Codis, flautas; Hivaldo Patriarca e Ivan Huol, percussão. Depois recebi uma doação do clarinetista João Flores de Andrade, na cidade de Livramento, quando lá estive com o Madrigal da UFBA, sob regência de Lindembergue Cardoso. Eram partituras manuscritas de Júlio Cezar Souza, garimpeiro, aventureiro, compositor ao qual já nos referimos. Em seguida, fiz algumas viagens à bela cidade de Caetité, onde recolhi material musical de Álvaro Villares Neves, o mestre da antiga banda de Caetité, que graças a esse resgate pode ser conhecido como autor do samba Galhofeiro, sucesso nas gafieiras de Paris, cidade de onde vinham os métodos com os quais estudou e à qual retornou simbolicamente, em sua música. Com o surgimento do arquivo coletado por Dr. Deraldo Portela, de onde entre outras emerge a obra de Isaias Gonçalves Amy, ferroviário da Leste, natural de Queimadas, morador de Alagoinhas, consolida-se nossa responsabilidade para com a pesquisa histórica. Tranquillino Bastos, Álvaro Villares Neves, Júlio Cézar Souza e Isaias Amy tiveram concertos-homenagem na Reitoria, contatos com parentes e recuperação de originais manuscritos. A face provocativa da Oficina foi a formação de um novo repertório para banda, fortemente influenciado, é claro, pelo conceito de Música Contemporânea dos Seminários de Música da UFBA. Surgiu aí o Dobrado Novo, o Dobrado Pepezinho e a Marcha Santo Antônio, envolvendo improvisação e declamador. Depois vieram Davul Zurná, com motivos de ciganos da Turquia, e o Dobrado 2 de Julho, sobre atonalismo e experimentalismo em banda. Quando aluguei o imóvel onde instalei a Casa Santa Cecília, no Tororó, casarão histórico que pertenceu ao arquiteto Manoel Fiandres55, comecei a aceitar músicos iniciantes, configurando nossa tripla tarefa: pesquisa, execução e iniciação musical. Em vez de sobre filarmônicas, nos tornamos uma filarmônica de fato, com estatutos e diretoria. Nos anos 90, o mestre Almiro Adeodato Oliveira esteve à frente da Oficina, compondo seu derradeiro repertório e recebemos jovens, vindos de filarmônicas do interior. 55 Homem negro de origem Malê, ministro da Irmandade do Rosário dos Pretos, com sede na igreja situada na Ladeira do Pelourinho em Salvador. Segundo indicações do historiador Cid Teixeira, conhecedor da vida de Fiandres, identificamos diversos arabescos camuflados na decoração do referido templo. 113 Torna-se necessário fazer uma garimpagem de nomes que fizeram viva e deram sua contribuição para que a Oficina de Frevos e Dobrados chegasse ao limiar de 30 anos de trabalhos ininterruptos. Essas pessoas foram dando aspecto diferenciado ao corpo musical: os músicos experientes da partida, os entusiasmados universitários do início na UFBA, os músicos multifacetados, com diversas origens na fase do Tororó. Ou estudiosos como o saxofonista, capoeirista, professor, filósofo Cloves Costa, que mantiveram a Oficina viva, dentro da minha casa no Barbalho. A fase do Pelourinho, onde a banda se encheu de rostos adolescentes e evangélicos; as fases em que, ao servir de abrigo a músicos de filarmônica migrados para Salvador, a Oficina pouco se diferenciava, na aparência humana, a qualquer banda do interior. A palavra “ininterruptos” é tão preciosa para nós quanto para a Lyra Ceciliana de Cachoeira em relação a Erato Nazarena, de Nazaré das Farinhas: a Erato é mais antiga, mas parou por várias fases, enquanto a Lyra abre religiosamente suas portas abolicionistas há 164 anos. A Oficina sempre esteve abrindo uma porta, seja em uma residência, ou em uma escola organizada, como na Sede da Rua do Passo, ou mesmo em um salão emprestado, como no momento. Desde novembro de 1982 até o momento, os músicos que ajudaram a manter viva a Oficina de Frevos e Dobrados integram a listagem que se segue, onde evidentemente não estão todos os que participaram, apenas os que assinaram documentos ou tiveram seus nomes impressos em programas de concerto ao longo desses 33 anos: Flauta: Andréa Bandeira, Ane Morgana da França Moreno, André Machado, Antônio Wanderley Maia, Bernadete Araújo, Bernadete Pinho, Camila Carvalho dos Santos, Carmem Lima, Dóris Leandra, Elisa Goridzki, Elizane Priscila Santana, Fernanda Bittencourt, Francisco Queiroz, Glória Ledezma, Gutenberg Silva Campos, Hebert Javan, Ian Freire,Ingrid Rose Steinhagen, Laira Lorena Lima Yamamura, Léo Couto Ferreira, Lídia Fidelina dos Santos, Lucas Santanna, Luis Henrique de Codes, Luisa Pereira, Maicon, Mariane do Carmo, Marivone Santos Santana, Nailane Oliveira, Rafael dos Santos (fundador) Rainer Krupe, Regina Cajazeira, Rita Cavalcanti, Rodrigo Sestrem Costa, Tuzé de Abreu. Clarineta: Adil Fernandes, Alan Alisson da França Moreno, André Oliveira de Souza, Antônio Dácleo,Antônio Jorge Freitas (Contramestre de 1990 a 2001, mestre até 2009), Carlos “Canibal” Ozéias, Clóvis Rodrigues, Daniel da Silva Medeiros, Daniel 114 Santos de Santana, Daniela Nátali, Daniela Santos de Santana, Denivaldo Lopes Bonfim, Esther Verena Guimarães França, Flávio Luis da Conceição, Genivaldo Bonfim, Gilvan do Nascimento Santana, Givaldo de Cidra (Contramestre de 2010 a 2011), Hebert Albert, Hebert Pereira Bastos, Henrique Melo, Indira Dourado Monteiro da Costa, Ivis Lima dos Santos, João Paulo Ribeiro dos Santos,José da Silva Souza, José Guimarães Costa, Juvino Alves Filho, Larissa Bruna dos Santos, Levi de Souza, Lucas, Marcelo Sarmento, Mariana da Cruz Sales, Pedro Robatto, Rafaela de Barros Santos, Reinaldo “Raposão” Silva, Renata, Valmir Luis da Conceição, Vanessa da Silva Melo, Virgínia Velame, William Alexandria, Zenaide “Menina-velha” Bonifácio. Saxofone alto: Adelson Ferreira dos Santos, Adriano da Silva, Álvaro “Veléu” Cerqueira, André Becker, Antonio Carlos “Dulce”, Bruno, Cayo Brito Vieira, Daiana Pimentel dos Santo, Eri Oliveira, Felipe Chileno, Franciane Dunda, Geová do Nascimento, Gerson de Carvalho, Igor Rocha, Marcel Jaques Haj Lima, Márcio Antonio Fonseca Coelho, Márcio Tobias, Mário Celso Sartorello, Rafael dos Santos, Rafael Oliveira, Reinaldo “Raposão” Gonçalves, Rowney Scott, Sonia Maria de Oliveira, Tácio Santana, Uílson Rocha Souza, Vinícius Melo. Saxofone tenor: Adriano da Silva, Adriano Bonfim, Bráz Carneiro, Cloves Raimundo Costa (contramestre), Edcarlos Coelho, Fabrício Paixão, Nildes Fonseca, Rafael Uzeda, Reinan Ribeiro dos Santos, Ricardo Antônio Alves da Silva, Sinvaldo Luis, Sonia Maria de Oliveira (contramestre) Tiago de Almeida Quadros, Will Figueiredo, Zenivaldo Lisboa Lopes Jr. Trompa: Celso José Benedito, Davi de Souza Brito, Fernando Antonio Rocha da Silva, Geanderson Brito, Ivo Santosde Souza, Jeremias Ferreira, Luis Magalhães, Marcelo Silva Santos, Neide, Silmária Lopes das Neves, Thiago Daniel Meireles. Trompete: Adão Rodrigues dos Santos, Antônio “Miles Davis” da Silva, Cézar Ramos de Souza, Darlan Cavalcante, Davi Brito, Davi Santana, Dinaldo Borba, Gilberto “Languenzo”, Gleidson Souza, Guilherme Scott, Hamilton Fernando dos Santos, Itamar Santos, Javan Pacífico, Joatan Nascimento, José “Sequinho” Ferreira, Joseni dos Santos, Juliano Magno Paiva Silva, Karen Ramos, Leonidas de Jesus, Lucas, Marcelo Medina, Marcos “Dó 7” de Jesus Oliveira, Marcos Buda, Mário Douglas Oliveira dos Santos (contrameste atual), Osmário S. de Almeida, Petrúcio Ramos de Souza, Ruan Barbosa, Sérgio Benutti, Tiago Santos, Tiago Ferreira,Valdir Sales Martins, Waldeck “Pixinguinha”, Zildemar Félix. 115 Trombone: Abrahão Evangelista, Adaílson Rodrigues, Ailton de Jesus, André Luis Macedo do Nascimento, Aníbal Alves Costa, Bruno Mery, Danilo Martinez, Deocleciano Magno, Fernando Lima Barreto, Gabriel Moreira, Gerson Barbosa (fundador), George Souza, Hebert Pereira, Ismael Santos de Souza, Jaquisson Oliveira do Amparo, Jonas Santos Mota, José Carlos Santiago, Pedro Degaut da Silva, Roberta Santos da Silva, Sérgio Luis Oliveira Sampaio, Sílvio Costa Júnior, Sílvio, Toni Jonitã Santos Nascimento Freaza, Valmir dos Santos. Bombardino: Antonio Carlos Coutinho da Silva Pinto, Antonio Conde, Antônio Roque, Diego dos Santos Rosa, Fernando Antonio Rocha da Silva, Fred Dantas Gênesis Lopes, Ícaro Rocha, Jônatas Moura, Pedro Degaut Pereira de Souza, Ricardo Sena. Tuba: Antônio “Milindre” Oliveira (fundador), Carlos Eduardo Alves da Conceição Filho, Everaldino do Rosário Rosa. Jacinto dos Anjos Castro, Josué Evangelista, Kleiton Alves, Maikon Douglas, Renato Costa Pinto, Roque Félix, Sérgio Luis Oliveira Sampaio. Percussão: Antônio “Buíca” de Jesus, Arielson Hermes Gomes do Carmo, Armando de Melo Basto, Artur Mascarenhas Fernandes, Bruno Souza, Daniel José de Assis Santos, Denivaldo Coutinho Fiais, Ênio Persá, Estevam Dantas, Hivaldo Patriarca, Isac Pereira Gomes, Ivan Huol, Jean Gomes dos Santos, Jefté Souza, Jorge “Onça” Starteri, Jorge “Baguinha” Sacramento, Lindeval Fiais, Lucas Ferreira, Lucas Paulo Matos, Luis Carlos da Conceição, Moisés Silva,Mou Brasil, Nádia Ferrão de Oliveira, Paulo Leite Costa, Pedro Dantas, Raílda Suarez, Ricardo Ribeiro dos Santos, Robson Paixão, Sandro Rillo. Cantores e declamadores: Aloísio Trindade, Andréa Daltro, Dorival Caymmi, Moraes Moreira, Inaldo Santana, Irma Dantas. Mestres convidados: Almiro Adeodato Oliveira, Celso Benedito, Eguinaldo Paixão, Host Schwebel, Mike Fansler, Paulo Moura, Psistrato Amorim. 2.4.2 Filarmônica e mestre Em 1982, ano em que surgiu a Oficina de Frevos e Dobrados, palavras como “filarmônica” e “mestre” estavam em pleno desuso. A maioria das bandas de música dos estados brasileiros, tendo São Paulo à frente, já tinha renunciado a ser definida por esses termos, adotando banda civil ou banda musical no lugar do termo “gente da 116 música” que tanto orgulhava seus ancestrais. Do mesmo modo, mestre era uma autoridade arcaica, associada a outros líderes difusores de conhecimento profissional de origem popular, como os mestres de obras e de embarcação. Maestro passou a ser a palavra mais usada. Ocorre que a escola de música, no seu sentido mais amplo, da filarmônica sempre foi uma escola muito rígida no sentido de métodos, etapas e disciplina. O pesquisador Jorge Ramos, além de publicar uma excelente biografia de Tranquillino Bastos, com precioso estudo sobre a época em que ele viveu, num singular lapso de tempo na história de Cachoeira, nos oferece grande contribuição ao trazer à luz textos do próprio mestre de música. Nesses escritos vincula-se a prática da música a uma sequência de valores morais e sociais. Não vamos exigir que todos os grandes compositores de filarmônica da Bahia fossem homeopatas, espíritas, vegetarianos e que condenassem abertamente a república, o militarismo e a corrupção associada à política. Mas tudo o que conhecemos sobre esses homens associa o estudo rigoroso da música encarada como ciência à conduta geral do indivíduo. O final da II Guerra Mundial veio acompanhado de uma séria revolução de costumes, no mundo inteiro. A humanidade foi praticamente dividida em dois grandes blocos, o socialista e o capitalista. Nós brasileiros acabamos sob influência do segundo, e assim, receptivos aos valores culturais emanados dos Estados Unidos, o grande vencedor daquela Guerra. Nesse país, o sistema de bandas foi disciplinado e adaptado ao currículo escolar. Foi uma maneira sábia de se evitar a simples extinção de uma arte elevada a símbolo nacional – onde se destaca a contribuição individual de Jim Europe. Nesse momento, as cidades do interior passam não só a valorizar mais as bandas de baile que seus conjuntos tradicionais, como também passam a contratar músicos militares aposentados para reger as filarmônicas. Muitas vezes esses músicos eram oriundos da própria filarmônica, como é o caso do mestre Vado. Nesse caso, trata-se de alguém com ímpeto reformista, mas que conhece história e repertório da sua centenária corporação. Na maioria, os novos regentes eram apenas músicos fascinados pelo repertório de big band, que não se sentiam atraídos pelos grandes arquivos de partituras e nem se sentiam à vontade sendo chamados de mestres porque não o eram. Em contraste, o mestre de banda é cortês e integrado, compondo muito rápido. 117 Figura 18- Dedicatória do mestre Antônio Matheus de França Quando junto com a Oficina de Frevos e Dobrados surge a palavra “mestre” de volta ao cenário, ainda foi possível apresentar uma exemplificação viva sobre que tipo de profissional estávamos a falar. Além do jovem líder apregoando aos quatro ventos que era discípulo “do mestre João Sacramento Neto”, formando novas bandas na própria Urandi (BA), em Espinosa e Porteirinha (MG) existia em Irará o “Maestro Xaxá”, que era um verdadeiro mestre, professor, arranjador, líder moral. Em Maragogipe atuava Antônio Félix, o Tõezin, notável fazedor de músicos. Em Nazaré das Farinhas ensinava Lourival, o mestre de bandas que fez “1000 músicos”. Em Aramari, atuava Mestre Zinho, o músico ferroviário, à frente da filarmônica Recreio Operário. E em Salvador residiam os mestres Almiro Oliveira, Psistrato Amorim e Ovydio Santa Fé Aquino, um dos maiores compositores baianos, orgulho da cidade de Belmonte; e deles passamos a executar músicas e convidar para reger a Oficina. Nessa valorização do mestre, passa a acompanhar mais de perto a atividade da Oficina o mestre Almiro Oliveira, não só criando-nos várias músicas novas como também regendo de fato a banda, inclusive em viagens. Uma das primeiras virtudes da 118 Oficina de Frevos e Dobrados foi se colocar disponível, e assim atraímos adeptos valiosos também. Psistrato Amorim, aos 90 anos, acompanhou-nos a vários lugares, tocando músicas do seu pai Pedro Custódio. Dr. José Guimarães Costa, clarinetista e dentista, trouxe os manuscritos e viu renascer a obra de Gumercindo Soares de Menezes, seu irmão. As famílias de Esaú Pinto, Isaías Gonçalves Amy, Álvaro Villares Neves e Júlio Cézar Souza apareceram nos respectivos concertos-homenagem aos mestres, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia. E como tudo isso era divulgado nas mídias disponíveis, um bocado de gente passou a falar de uma nova filarmônica enquanto nela ressurge, cercada de todos os orgulhos e merecimentos possíveis, a palavra “mestre” com exemplificação ao vivo de alguns dos seus dignos representantes. 2.4.3 A ação social e formação de músicos No momento em que foi criada, a Oficina de Frevos e Dobrados era uma atitude intelectual de um grupo de músicos, estudantes universitários. A ação social se inicia ao congregar esses jovens profissionais em torno de uma atitude cultural de cunho nacionalista, com ensaios na residência do maestro Vivaldo Conceição, na Rua Parque Suiço (atual Rua Mestre Pastinha), na Federação, em Salvador. Todos eram executantes já encaixados no mercado de trabalho, ainda que depois passassem a ser mais reconhecidos, como é o caso de Tuzé de Abreu, Juracy Bemol ou Gerson Barbosa, com o auxílio luxuoso de Antonio Oliveira, conhecido como Milindre, o executante de bombardino mais fiel a Estevam Moura e copista de muitas das suas obras. A próxima etapa se deu na Escola de Música da UFBA, cooptando parte dos jovens talentosos da Banda Sinfônica criada e regida por Host Schwebel, onde também tive oportunidade de disciplinar meu sopro e conhecer muito do repertório internacional destinado ou adaptado para os sopros. Houve um rompimento a certa altura, causado por um incidente banal entre mim e o recém-chegado dos Estados Unidos, prof. Manuel Veiga: ele solicitou a sala para um evento científico, nós cedemos de bom grado e fomos ensaiar na escola ao lado. Não percebemos que ainda assim o som chegava forte ao evento, e Veiga tomou isso como proposital. Depois, com a criação da Casa Santa Cecília, no bairro do Tororó, passamos a aceitar alunos novos, e aí se amplia o trabalho, equiparando-nos a uma filarmônica de 119 fato, não um grupo de estudos. Constituímos sede e estatutos. Desse lugar, com aluguel pago por mim, migramos para a casa n0 29 da Rua do Passo, no Carmo. Havíamos feito um pedido ao governo do estado, para que lá fundássemos a Casa das Filarmônicas, onde o andar de cima seria a minha escola, o de baixo, um posto de atendimento da Secretaria de Ação Social, e no pavimento de baixo, a tradicional oficina de lutheria de Carlo Grimaldi e seus irmãos, Basílio e Rolando, filhos do luthier ítalo-paulistano Victor Grimaldi. A casa demorava de sair, chegaram a pedir que nós pagássemos aluguel, de forma que migramos tocando, com a imagem de santa Cecília à frente, do Tororó ao Pelourinho, onde invadimos a casa. Permanecemos lá por mais de 15 anos, desenvolvendo inicialmente os ensaios da banda e disponibilizando nossos arquivos a quem quisesse reproduzir, via fotocópia, qualquer música. Demos início, e isso durou 12 anos, ao Ciclo das Quintas, um curso de musicalização para adultos, principalmente músicos que já tocavam de ouvido. Durante os seis últimos anos, o curso foi ministrado pelo meu talentoso filho Estevam Dantas que, com apenas 15 anos de idade, já sabia ensinar e manter vivo o interesse de uma classe de pessoas maduras. Promovemos os Encontros com Músicos Notáveis, uma série de entrevistas em mesa com convidados, de vultos como Riachão, Batatinha, Tuzé de Abreu, Cacau do Pandeiro, entre outros. Nesse momento da vida cultural baiana, a chamada Axé Music chamava os melhores músicos disponíveis, o sucesso internacional traduzia-se em elogios e dinheiro, enquanto os intelectuais fechavam-se em suas trincheiras acadêmicas. Hoje já é comum, mas na época inovamos ao chamar ao debate, com estrutura de academia, o samba e o chorinho, além da memória musical popular da cidade. Isso era revolucionário e o fizemos. Com apoio do UNICEF, pudemos iniciar finalmente a Filarmônica de Crianças do Centro Histórico. Sobre esse longo período naquela casa, escrevi em um artigo: Fomos ocupar um imóvel restaurado no Pelô, esperando implantar, com apoio do Governo, uma Casa das Filarmônicas, que acabou surgindo de outra maneira. Mas ficamos na tal casa, dividida com a Oficina Grimaldi. Passamos a atuar no Carnaval e recuperamos em arranjos bem cuidados o repertório de marchinhas, como Zé Pereira, Colombina, Cubanchero, Alalaô e outras. Fundando o Carnaval do Pelourinho, passamos a fazer aparições temáticas: reggae, samba do Recôncavo, música de índios, música do Carnaval de Ouro, na Bolívia, cada ano a Oficina sai de um jeito, produzindo sempre novos arranjos em partitura mesclados a uma percussão baiana bem 120 temperada. Tudo isso mantido por pequenas contribuições, percentuais das tocatas, doações. Sobrevivemos depois com um convênio de 3 anos com o UNICEF e depois, por mais 2 anos, com o Fundo de Cultura da Bahia. Nesse período acredito que criamos ou aperfeiçoamos, afora as desistências, pelo menos uns 500 músicos. Os rapazes e moças de hoje pouco têm a ver com os semblantes universitários do início. São oriundos de bairros os mais diversos, fanfarras de colégio e sei lá mais de onde, que recebem aqui aulas de teoria musical, instrumento e convivência com seus semelhantes.56 Esse texto foi declamado quando a Oficina de Frevos e Dobrados comemorou 25 anos no dia 20 de dezembro de 2007, com um concerto no teatro do Sesc-Senac Pelourinho, às 20 horas, onde se apresentaram também outras filarmônicas ligadas a mim: Lira de Maracangalha, Filarmônica Ambiental e Filarmônica Jovem do Centro Histórico. Praticamente todos os jovens músicos que participaram desse concerto foram iniciados pela própria Oficina ou, no caso de Maracangalha, por conhecimentos, mestre e monitores originados na Oficina. 2.4.4 Ação para surgimento, retomada ou transformação de bandas de música Este trecho pretende tomar como exemplificação cinco ações partidas da Oficina de Frevos e Dobrados no sentido de criação ou retomada de bandas filarmônicas na Bahia: Filarmônica Ambiental, Lira de Maracangalha, Banda de Música Maestro Wanderley, Lyra 8 de Setembro e Lira Santamarense. As duas primeiras ações correspondem à criação da Filarmônica Ambiental e da Lira de Maracangalha. As três últimas são reafirmações, que resultaram em esforços próprios para a retomada de instituições centenárias. São exemplificações diretas, das quais participei efetivamente. Não podemos avaliar o significado da Oficina de Frevos e Dobrados na influência (até por incitar à rivalidade ou competição) de diversas ações na Bahia e no Brasil. 56 Fred Dantas, “Oficina de Frevos e Dobrados, 25 anos”. Comunicação, em 12 de novembro de 2007, divulgada via internet. 121 2.4.4.1 A Filarmônica Ambiental e a Lira de Maracangalha A primeira ação de criar uma banda de música depois da Oficina de Frevos e Dobrados e usando da experiência adquirida foi a Filarmônica Ambiental, logo depois de ter fundado a Escola Ambiental, em Barra do Pojuca, Camaçari, Bahia. Em 1998 recebemos um lote de 18 instrumentos por parte da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviços) para dar início à Filarmônica Ambiental, com os meninos e meninas que já vinham recebendo aulas teóricas de música. Aos poucos, fomos adquirindo ou recebendo por doação mais instrumentos que nos permitiram chegar a uma formação aceitável para os modelos de banda de música. Em uma região conhecida pelo seu rico folclore, mas nenhuma tradição de música escrita, demos início a um conjunto que tem se apresentado em desfiles cívicos, como o 7 de Setembro e 2 de Julho e atividades do sistema oficial de ensino do município, e também se apresentado em praças e teatros de Salvador. A Filarmônica Ambiental já participou da gravação de dois CDs muito importantes: um do Projeto Ágata Esmeralda, outro comemorativo dos Trinta Anos do Cese. Além de 32 componentes que já podem ser considerados músicos, a filarmônica tem mais 45 alunos matriculados em sua escola de iniciação. No evento intitulado “Natal anjo de Luz”, em 2011, tive o prazer de ver a Filarmônica Ambiental tocando, do seu jeito, totalmente renovada, cheia de crianças, com o mestre Givaldo de Cidra todo orgulhoso dos seus pupilos. A criação da Lira de Maracangalha junto com minha discípula, a mestra Sônia de Oliveira, foi uma resposta positiva da minha parte no sentido de revitalizar o distrito famoso através do samba de Dorival Caymmi. A Oficina de Frevos e Dobrados já tinha uma experiência anterior, referente à localização de uma banda de música e realização de um filme. A jovem Oficina de Frevos e Dobrados, à época ensaiando no Salão de Orquestra da Escola de Música da UFBA, percorreu as ruas vazias do lugar tocando músicas do seu pertencimento, músicas que um dia já tinham sido tocadas naquelas mesmas ruas, mas de uma forma estranha: as pessoas do lugar foram varridas de cena por capricho de um cineasta, e eu concordei com isso, por falta de experiência, falta de ação de um jovem de 25 anos em defesa do que acreditava! Nesse tempo a usina ainda funcionava, e esse filme se torna precioso por captar isso, aquelas pessoas trabalhando e 122 aquela unidade produtiva, histórica, em pleno ato de transformar uma carga de cana em fardos ensacados de açúcar branco. Anos depois, numa ação de emergência, fundei a filarmônica, mesmo sem os instrumentos. E foram meses em que eu e a futura maestrina Sônia de Oliveira, gastamos em infindáveis aulas de teoria, sem que os instrumentos aparecessem. Até que li, num jornal, que um instituto de Minas Gerais abria inscrições para projeto e ganhei, entre dezenas de outros projetos. Figura 19- Lira de Maracangalha O Cônsul do Japão e nativo de Maracangalha, Emilton Rosa, nos doou uma casa, onde funcionava a devoção de Cosme e Damião do senhor Martinho. Organizei de novo a tal “Sementinha Musical” em forma de apostilas, onde na capa estavam os dois santos ibejis, Cosme e Damião, como uma forma de informar que a casa, de outra maneira, continuaria a servir a muitos erês (crianças). Organizei o repertório para ser usado na nova e especial filarmônica: Hino a Cosme e Damião, Hino a Nossa Senhora da Guia (padroeira de Maracangalha), Dobrado Lira de Maracangalha, Dobrado Júnia Rabelo (nome do instituto que financiou os instrumentos), dobrado Maracangalha, entre outros. 123 2.4.4.2 Festival de Filarmônicas no Recôncavo Idealizado pelo sociólogo Pedro Archanjo, que me convidou para dar início e dividir com ele a sua organização, o Festival de Filarmônicas do Recôncavo foi a iniciativa mais ousada, consequente e duradoura já realizada na área das bandas de música na Bahia. Ao rejeitar desde o início os arranjos de efeitos fáceis e favorecendo as escritas originais para banda, o Festival incentivou o reexame dos centenários arquivos das bandas de música do Recôncavo e suas peças de escrita cheia de nuances interpretativas. Mais tarde, o Festival criou um concurso de composição, que revelou novos talentos e o esquecido ofício de criar, uma característica da banda de música57. Deixemos o legado do que escrevi nas cartas aos mestres e em alguns encartes de CDs lançados com os resultados do Festival que falam por si. Então, eis a carta aos mestres participantes do Festfir no ano 1993: Caro colega mestre-de-banda: Estamos encaminhando o dobrado Deraldo Portela como peça de confronto para o X Festival de Filarmônicas do Recôncavo, promovido pelo Centro Cultural Dannemann. Primeiramente gostaria de louvar a existência deste Festival: independente, comprometido com a cultura e realizado num lugar lindo. O presente dobrado foi composto pelo mestre Almiro Oliveira, ele mesmo homenageado pelo Festfir. Desta vez optamos por escolher não um mestre-compositor, como fizemos por 9 anos, mas duas pessoas que se destacaram na defesa da cultura das filarmônicas, o médico Deraldo Portela, presidente eterno da Sociedade Lítero-musical 25 de Dezembro de Irará e o radialista Luis Ayala, que por 25 anos manteve programas dominicais dedicados a bandas de música. O dobrado Deraldo Portela foi composto nos anos 1980, estreado pela Oficina de Frevos e Dobrados. Por circunstâncias que todos conhecem, quando fui procurá-lo, só restavam as partes de alguns instrumentos, daí a necessidade de reconstruí-lo, aproveitando o ensejo para criar alguns “momentos” para serem melhor avaliados pelos jurados do Festfir. Os jurados julgam três itens: execução (onde estão a afinação, articulação e dinâmica), repertório (onde se avalia o bom gosto na escolha das peças, sendo que não é segredo que, por princípios, rejeitamos música comercial ou de rádio) e a peça de confronto. Nessa última, chamamos a atenção para o seguinte: a) leva vantagem quem tem bons trompetistas, visto que o professor Almiro destinou a esse naipe diversos momentos de solo; b) do mesmo modo, existe o solo das tubas (e bombardino) no trio; c) o dobrado exige uma 57 A interrupção do Festival de Filarmônicas do Recôncavo se deu no momento em que desfrutava de uma reputação estabelecida entre as bandas tradicionais e passava a atrair participações de grupos do sertão, do Extremo sul e até de outros estados. Uma infeliz decisão da empresa patrocinadora, a indústria Dannemann de charutos, quase destruiu de hora para outra um prestígio construído por muitos anos de atuação. O FESTFIR foi retomado em novembro de 2013, com patrocínio do Fundo de Cultura da Bahia e da Prefeitura Municipal de São Félix. 124 execução atenciosa das madeiras (flautim, clarineta, sax alto) o tempo inteiro, com frases em semicolcheias. d) no final, forçamos um pouco a dinâmica, para ver como as bandas decrescem do fortíssimo ao pianíssimo. De qualquer forma, toda a teoria musical existe para se colocar a serviço do bom gosto. Nada deve ser exagerado, nem deve oprimir o músico. A banda deve procurar uma execução agradável, tranquila. Isso vai contar muito. O Festfir existe para valorizar a cultura das filarmônicas da Bahia. Só em participar a sua banda deve se considerar vencedora, na luta pelo que é nosso e nos faz bem. Atenciosamente No encarte do CD resultante dessa edição do Festfir, no ano seguinte, escrevi, com várias licenças poéticas: Novamente as águas do Paraguassu se vêem abrilhantadas de luz e música. No ar, o cheiro de finos charutos e o espocar de foguetes, enquanto o povo torce pelo que lhe é grato. O Festfir existe para valorizar a cultura das filarmônicas da Bahia. Só em participar uma banda deve se considerar vencedora, na luta pelo que é nosso e nos faz bem. Nesses dias de sadia disputa, entendemos de homenagear os grandes mestres-compositores, enquanto uma ou duas de suas músicas tornam-se peças de confronto, portanto tocadas várias vezes a cada noite e, melhor ainda, na final. Foi assim com Tranquillino Bastos, Estevam Moura, Amando Nobre, Heráclio Guerreiro, Isaias Gonçalves Amy, Almiro Oliveira e Francisco Teixeira. Desta vez optamos por escolher não um mestre-compositor, mas duas pessoas que se destacaram na defesa da cultura das filarmônicas, o médico Deraldo Portela, presidente eterno da Sociedade Lítero-musical 25 de Dezembro de Irará e o radialista Luis Ayala, que por 25 anos manteve programas dominicais dedicados a bandas de música, sendo mais famoso o Aí vem a banda, na Rádio Excelsior. Ao doutor Deraldo, garimpamos a página musical escrita pelo grande amigo Almiro Oliveira, que adaptamos às finalidades do confronto. Para o saudoso Luis Ayala rabisquei essas notas, onde tento resumir a Espanha natal e a Bahia de adoção, o pasodoble e o samba. A todas as bandas envolvidas, luz e bem. A você, amigo da música, desejamos uma boa audição, junto a um convite a visitar o Centro Dannemann em São Félix, no próximo Festival de Filarmônicas do Recôncavo.58 A audição do CD, coroando uma campanha nossa, insistente, de premiar a valorização dos arquivos, as bandas apresentam aí jóias esquecidas, composições não conhecidas de Tranquillino, de Tertuliano, Heráclio, Amando, ou seja, a nata do pensamento musical sofisticado do Recôncavo. Filarmônica Terpsícore: Fantasia Ibotirama, País das Flores (Tertuliano F. Santos) e Passo Sinfônico Rabbi da Galileia (Heráclio Paraguaçu Guerreiro). Lyra dos Artistas: Dobrado Miguel Lima (Antenor Bastos) e Marcha Triunfo dos Baixos (Manuel Tranquillino Bastos). Filarmônica Filhos 58 Fred Dantas, encarte do CD FESTFIR, São Félix: Centro Cultural Dannemann, 2004. 125 de Apolo: Bolero Raul Lago (Estevam Moura, 1935) e Sonho de Artista (Antonio Braga, 1945). Filarmônica Dois de Julho: Dobrado Genitor (Djalma Reis Caldas) e Bolero Zezinho do Ponto (Amando Nobre). Alguns títulos sugerem terem sido colocados em substituição a algum anterior ou inexistente: Antenor Bastos nunca poderia ter conhecido o mestre de música santamarense Miguel Lima. E duvido que o detalhista Amando Nobre tenha composto algo dedicado a certo Zezinho do Ponto. Pelo menos na tradição filarmônica troca-se muitas vezes o título, mas se mantêm o autor. Figura 20- Festival de Filarmônicas do Recôncavo (foto: Werner Rudhart) Outros pontos de interesse ao se examinar o debate envolvendo música em si e até uma pré-análise das peças musicais envolvidas estão nas cartas dirigidas aos mestres, para facilitar a realização do hino ao 2 de julho, arranjo e dobrado 2 de Julho, composição, peças de confronto dos grupos B e A do Festival de Filarmônicas: Sobre o Hino ao 2 de Julho - Prezado colega mestre-de-música: Peço mais uma vez licença para colocar como peça de confronto um arranjo de minha autoria. Nesse ano, além do argumento de que posso assim colocar situações onde o jurado pode encontrar pontos de comparação, ou seja, criar um “arranjo de festival”, ainda existe a questão da temática. O Dois de Julho e a Independência da Bahia são o nosso assunto e nos pareceu conveniente criar coisas novas sobre esse episódio crucial na vida da nação, e que permanece pouco conhecido pelo restante do Brasil. Para facilitar o trabalho da regência, 126 pensei chamar a atenção para os seguintes pontos: Existem duas tonalidades tradicionalmente usadas nos arranjos para o hino: Fá maior e Dó maior. Ficamos com esse último, e com o conhecido arranjo preservado na parte A. As partes B e C são novas instrumentações que acrescentamos. Na parte B o que se vê é principalmente a troca de funções, existindo pelo menos dois trechos em que os graves solam, passando os agudos para o acompanhamento. Os jogos de dinâmica (fortes, pianos, crescendoetc) são parte da estrutura do arranjo, mas devem ser feitos sem exagero, para não oprimir o músico e quebrar a naturalidade da execução. Na parte C existem trechos em que a melodia e acompanhamento aparecem “picotados”, ou seja, distribuídos por naipes diferentes. Do mesmo modo esses trechos devem ser feitos com naturalidade, seguindo o andamento normal do hino original. Bom trabalho! Salvador, Bahia, 11 de julho de 2005. Figura 21- São Félix durante o Festival de Filarmônicas (foto: Werner Rudhart) No encarte do CD do Festfir, em 2005, aparecem os primeiros resultados do concurso de composição instituído dentro do próprio festival e as gravações das duas músicas relacionadas ao 2 de Julho: É com muita satisfação que o Festival da Dannemann traz ao público este novo registro. Como já coloquei em outras ocasiões, o Festival por si já é um ganho considerável para o Recôncavo, para a Bahia e para a cultura de filarmônicas de um modo geral. Depois o significado de colocar mais uma audição disponível no mundo das bandas de 127 música. Na presente coletânea temos, como resultado do concurso de composição, a alegria de ouvir o dobrado que o jovem de 14 anos a quem chamamos Seu Nilton dedicou ao mestre da Ceciliana. E sentir que valeu a pena a insistência em valorizar a tradição, ao ver as filarmônicas se tornando pesquisadoras de si mesmas, onde a Terpsícore revela a Fantasia Ibotirama, país das flores, do mestre Tertuliano Santos, de Feira de Santana e o derradeiro trabalho do maragogipano Heráclio Guerreiro, o Passo Sinfônico Rabbi da Galileiia. A Lyra dos Artistas comparece com o dobrado Miguel Lima, de Antenor Bastos e traz à luz o Triunfo dos Baixos, pérola do mestre-dos-mestres cachoeirano Tranquilino Bastos. Nessa mesma linha vai a Apolo, que resgata o Bolero Raul Lago, composto pelo genial Estevam Moura em 1935 e o Sonho de Artista, de Antonio Braga. A 2 de Julho comparece, além do Dobrado Genitor, de Djalma Reis Caldas, com um hoje inédito Bolero Zezinho do Ponto, do conterrâneo Amando Nobre. As peças de confronto visam dar uma modernizada sem abandonar os trilhos da sincera composição para sopros e percussão: já que costumamos tocar três vezes o Hino ao 2 de Julho, que sejam duas as variações. E o Dobrado 2 de Julho representa a própria Guerra da Independência, onde no trio evocamos a entrada do Exército Libertador, com seus heróis de pés descalços, em uma Salvador saqueada e exausta.59 Sempre somando a minha influência musical com a coordenação de produção de Pedro Archanjo, o Festival tem sido uma referência há muitos anos. Sua interrupção foi um passo em falso da empresa que o fez nascer, pois naquele momento na Bahia foi dado início ao sistema de orquestras sinfônicas juvenis, e precisávamos do festival como reafirmação do trabalho das bandas filarmônicas. O Festival de Filarmônicas do Recôncavo foi retomado e apoiado pela prefeitura da cidade de São Félix, com recursos do Fundo de Cultura. O homenageado dessa mais recente edição foi Anacleto de Medeiros, pela primeira vez um personagem não baiano, que nós incluímos na presente tese como exemplo de iniciativa composicional renovadora. 2.4.4.3 Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho A organização de um encontro não-competitivo surge em 1991, quando o compositor Moraes Moreira desenvolvia, associado à filarmônica do maestro Fred Dantas, diversas ações na Bahia, visando o fortalecimento das bandas de música do interior, incluindo gravações de discos, videoclipes e aparições na mídia nacional ao lado de filarmônicas. Nasceu assim o Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho. 59 Fred Dantas, Encarte do CD FESTFIR de 2005. Cinco anos depois, o Hino ao 2 de Julho se tornaria o Hino do Estado da Bahia, gravado com arranjo nosso pela Orquestra Neojiba e o cantor Tatau do Araketu. 128 Durante esse tempo, anualmente, dezenas de grupos das mais distintas regiões da Bahia se apresentaram. Bandas premiadas no Recôncavo, como as corporações de Irará, Cachoeira, Santo Amaro, Maragogipe, mas também bandas de crianças, como a filarmônica infantil de Senhor do Bonfim, que colocou no mesmo palco um clarinetista de 9 anos com um pratileiro de 79! Vimos, nesse tempo, organização de novas bandas, como a Lira de Maracangalha e o renascimento de organizações importantíssimas, como a filarmônica 1° de Maio, do Nordeste de Amaralina, em Salvador. Projetos juvenis como o Rio do Ouro e, fazendo a abertura, a Orquestra Sinfônica Juvenil de Salvador, com sede no bairro de Novos Alagados. O Cortejo comemorativo à Independência da Bahia surgiu já no ano seguinte à vitória, e desde mais de um século atraía a participação de bandas de música. A criação de um encontro de filarmônicas representa um ajuste na importância desta relação. Sabíamos ou acreditávamos que as bandas de música abrilhantavam a caminhada, mas a sua reunião em um palco fixo, com iluminação e sonorização, significava manter o povo na praça, após as cerimônias oficiais e, para as bandas, oportunidade de apresentar um repertório concertante, para uma plateia atenta. Recebi, em setembro de 2011, a Medalha 2 de Julho, das mãos do prefeito João Henrique de Barradas Carneiro, principalmente como reconhecimento pela obstinação em criar e manter esse festival. O encontro de 2009 registrou a presença das bandas de música Lira de Maracangalha (São Sebastião); Filarmônica 2 de Janeiro (Jacobina); Filarmônica 23 de Dezembro (Mucugê); Filarmônica 30 de Março (S. Francisco do Conde), Erato Narazena (Nazaré das Farinhas) e Oficina de Frevos e Dobrados (Salvador). A presença da música no episódio 2 de Julho se faz presente desde os primeiros movimentos pela Independência da Bahia. A primeira vítima, ao que consta, foi um executante de tambor militar, abatido quando a corveta portuguesa abriu fogo contra a Câmara de Cachoeira. 129 Figura 22- Músicos e caboclo em São Félix (foto de Werner Rudhart) A participação das bandas escolares e fanfarras marciais no cortejo do 2 de Julho somou a essas formas musicais, que se pretendiam com andamento militar, uma certa ginga ao tocar que teria originado, por evolução, as bandas de tambores dos blocos afro que redefiniram a música negra baiana. Com o fortalecimento das sociedades filarmônicas, torna-se parte constante da imagem do cortejo as campânulas brilhantes das tubas sobressaindo por sobre a multidão, como podemos ver em diversas fotos realizadas por Sílvio Robatto. Em 2009 abrilhantou o nosso encontro, por exemplo, a mais antiga sociedade musical em atividade na Bahia, a Erato Nazarena, com 163 anos de fundada. Essa mesma ideia de ordem unida à alegria encontrada na Banda de Música teve seu momento crucial nas guerras de libertação que culminaram na entrada do Exército Libertador pela estrada da Liberdade no dia 2 de Julho de 1823. Uma noção muito forte de cidadania plena, mas com esta espontaneidade que nos caracteriza. Para vencer a Guerra da Independência tivemos de usar da criatividade: João das Botas organizou uma armada de canoas, os voluntários de Pedrão combatiam vestidos como vaqueiros, os de Cachoeira lutavam camuflados com folhagens e, na Ilha de Itaparica, até surra de cansanção foi usada como arma por Maria Felipa. A banda de música baiana uniu a disciplina e teoria musical trazidas pela Banda da Armada Real de 130 1808, quando aqui desembarcou com D. João VI, com a criatividade cabocla das bandas de Barbeiros que animavam nossa cidade. Transformamos a marcha militar portuguesa no popular dobrado, a forma musical que caracteriza as melhores lembranças do interior do Brasil. Assim, no próximo dia 2 de Julho, as filarmônicas do interior e da capital voltam a ser reunir no Campo Grande, associando a organização de palco, a beleza dos uniformes, com a brasilidade dos dobrados, maxixes e marchinhas. Quando as pessoas começarem a se juntar frente ao local, para assistir a música de cidades de regiões tão diversas como o Recôncavo, a Chapada Diamantina e o Piemonte de Jacobina, tocando bem diante do casal dos Caboclos, o que certamente vai emanar do ambiente é justamente esta noção: pertencimento, tudo o que nos diz respeito. O Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho chegou em 2011 aos 20 anos de realização ininterrupta, como uma das mais felizes iniciativas de dar prolongamento à participação popular, dando seguimento ao Cortejo e à chegada do fogo simbólico ao seu local de exposição. Nessa ocasião, as pessoas costumam naturalmente se reunir junto aos Caboclos em seus carros, para aplaudir às bandas filarmônicas, que se identificam com os eventos do 2 de julho por serem também forma de organização que une vocação militar com traços culturais típicos da nossa gente. Esse ano foram convidadas as seguintes filarmônicas: Sociedade Filarmônica Minerva Cachoeirana – banda centenária cuja história se confunde com a própria história de Cachoeira, cidade que recebeu o título de A Heróica, por ter sido lá onde se iniciaram, a 25 de junho de 1823, os primeiros combates entre brasileiros e tropas portuguesas. Filarmônica Euterpe Alagoinhense – Filarmônica Recreio Operário de Aramari– Duas importantes instituições musicais ligadas à atividade ferroviária se unem para homenagear o mestre Zinho de Aramari, falecido em 2010, pioneiro do Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho. A musicalidade ferroviária une traços de estilo entre a Bahia e Sergipe. Banda de Música da Guarda Municipal de Salvador– A nossa convidada especial é a mais nova banda de música da Bahia, que vem desempenhando com sucesso o papel de cartão postal da Guarda Municipal da Cidade do Salvador, sendo sempre muito aplaudida onde tem se apresentado. Sociedade Filarmônica 2 de Janeiro de Itiúba – A banda de música que mais se destacou na Bahia na formação de jovens músicos no ano passado, retorna como convidada para o Encontro de Filarmônicas devido à sua iniciativa de criar novas músicas e novos 131 arranjos dirigidos à banda filarmônica, ou seja, retoma com sucesso uma das características principais da banda do interior, que é fazer música dedicada a fatos, datas e pessoas. Sociedade Musical Oficina de Frevos e Dobrados – a banda anfitriã, que completou, em 2010, 27 anos de atividades ininterruptas, se apresenta com integrantes todos eles iniciados em música pela própria corporação, para apresentar o trabalho “Oficina toca Fred Dantas”, onde executa uma coleção de músicas compostas exclusivamente para banda de música, e regida pelo fundador da Oficina. 2.4.4.4 A Oficina e as políticas oficiais para com as bandas Pela convivência com o meu pai, o considerado lendário Dr. Dantas, médico do interior até os 91 anos de idade, desenvolvi um distanciamento cauteloso da chamada classe política. Cordialidade, boa recepção na nossa casa, mas nunca se soube em quem ele votava a cada pleito. O atrelamento direto do trabalho musical a pessoa ou partido político nunca deu bons resultados, no que já se observa no testemunho de Tranquillino Bastos, considerado o mestre dos mestres de banda da Bahia, sobre a política e a filarmônica: Senhores professores de filarmônicas: 50 e tantos anos de experiência ensinaram-me a vos aconselhar que não confieis em absoluto na intervenção política com suas tradicionais promessas de magistério em vosso labor; são elas as mentiras de estações, como são as sementes espargidas na terra árida; germinam no inverno, enquanto chove; morrem no estio e pulverizam-se no verão. Por outra: são mentiras que dissonam o coração como dissona o ouvido a 7ª sensível do acorde musical, quando percebidos simultâneamente os seus quatro sons, na 3ª inversão de sua constituição. 60 (BASTOS, 1922-35 apud RAMOS, 2011, p. 202). Então não se fala em políticos, mas não se exime de lutar por políticas, afinal sendo a filarmônica instituição que ensina e acolhe de graça, merecerá um programa de apoio que as ajude em sua manutenção e aquisição de instrumentos. 60 Tranquillino reuniu seus artigos, publicados entre 1922 e 1935 em O pequeno jornal, na cidade de Cachoeira e pretendia publicá-los com o título de “Minhas percepções”. Eles foram ordenados e publicados por Jorge Ramos em O semeador de orquestras, história de um maestro abolicionista. Salvador: Solisluna Editora, 2011. 132 A posição de voz solitária que encarnei durante muitos anos não nos traz nenhum orgulho, nem é uma situação politicamente justa. O mundo das filarmônicas presta um serviço valioso e avalizado pelos resultados, entretanto seus líderes não são chegados a projetos nem têm pessoas espertas junto aos centros de onde emanam as verbas. E parece claro que o apoio através de dinheiro público não se mede pelo valor absoluto, pela importância real da ação, mas pela capacidade de instalar políticas. Organizações de cunho afrorracial antes eram colocadas à margem dos patrocínios e hoje são as que mais recebem recursos governamentais no Brasil. A música sinfônica já foi considerada um gueto elitista e hoje é o principal projeto envolvendo verbas oficiais para música na Bahia. Atentos a isso, em outros estados onde as filarmônicas também desempenham o seu papel de principais formadoras de músicos, os mestres de banda se mobilizam, como é o exemplo do Rio Grande do Norte: Não podemos concordar com o percentual de 5% destinado às bandas pelo Fundo Estadual de Cultura – FEC. São 115 bandas atuantes e muitos municípios requerem a necessidade de uma banda nas suas cidades. O setor de Bandas de Música supre a ineficiência do estado no ensino musical e na formação dos músicos do RN, com mais de 10.000 músicos envolvidos diretamente. Temos uma demanda histórica, que podemos a partir dos recursos do FEC, reverter em benefícios importantíssimos para o desenvolvimento musical do estado. Podemos promover eventos culturais e a cultura musical instrumental, fomentar o movimento de formação técnica e inclusão social, promover e difundir nossos valores criativos e pedagógicos, adequação e melhorias dosespaços, desenvolver programas de BOLSAS, apoio a registros audiovisuais fonográficos, literários etc. Vamos nos mobilizar. Todos os e-mails devem dizer “15% para o Sistema Estadual de Bandas de Música – SEBAM/RN”. Colegas, isso é sério, não custa nada, vamos entupir a caixa de e-mails dos deputados, vamos mostrar nossa força e poder de mobilização. Comecem agora. Mandem os alunos fazerem isso, vereadores, se possível ligue para seu deputado (a) ou fale com seu prefeito (a) para fazer pressão, é assim que os políticos trabalham, na base da pressão, salvo exceções. Então, o que estamos esperando? – Mãos à obra! (H.C.DANTAS, 2011).61 Enquanto na Bahia as bandas de música só agora tentam se organizar em uma federação estadual, com intenção de influenciar em uma política estadual que não lhes dá o credito devido, a Secretaria de Cultura do Ceará organizou um site na internet onde disponibiliza dezenas de partituras editadas. Em Sergipe, as bandas de música 61 Humberto Carlos Dantas, “15% do Fundo Estadual de Cultura para o Sistema Estadual de Bandas”, manifesto dirigido aos mestres de bandas. Cruzeta, RN, 10-12-2011. 133 continuam a prestar relevante serviço de educação musical e leitura de partituras em diversas cidades, a julgar pelo convite divulgado na internet com as bandas que concorrem ao festival da cidade de Estância, já em sétima versão 62: Lira Carlos Gomes (Estância); Lira Nossa Senhora da Conceição (Itabaianinha); Lira Popular (Lagarto); Lira União Paulistana (Frei Paulo); Lira Nossa Senhora da Conceição (Arauá); Lira Senhora Santana (Boquim); Lira Divino Espírito Santo (Indiaroba); Lira Nossa Sra. da Boa Hora (Campo do Brito); Lira Imperatriz dos Campos (Tobias Barreto); Lira Nossa Senhora do Rosário (Rosário do Catete); Lira Nossa Senhora da Conceição (Itabaiana); Lira Nossa Senhora do Amparo (Riachão do Dantas); Lira Jacinto Figueiredo Martins (Malhador); Banda Musical de Marcha de Carmópolis (Carmópolis); Banda Marcial Imperatriz Cristina (Cristinápolis). Pela pluralidade de bandas e cidades, podemos ter ideia de como as bandas de música continuam a ser o principal meio de profissionalização de músicos de sopro, pois dessas pequenas corporações advêm a maioria destes músicos a serviço de bandas militares, orquestras sinfônicas e grupos de música de mercado no país inteiro. Ainda pela listagem aos nomes das bandas de Sergipe, notamos que enquanto na Bahia elas são chamadas “sociedades musicais”, no estado vizinho recebem o nome “lira”; e notamos um novo dado que deve ser mencionado: a ligação das sociedades filarmônicas com motivações católicas. Associadas ao modelo de colonização portuguesa, sempre associando o poder político e cultural com a religião dominante, nos arquivos dessas sociedades, em todo o Brasil, surgem numerosas e belas músicas religiosas, principalmente marchas de procissão, já que a banda presta o serviço “de fora”, ou seja, ao ar livre. Mas na Bahia não são tão comuns os casos de bandas consagradas a Nossa Senhora desde o nome da própria entidade. Voltando à política em relação às filarmônicas na Bahia, através da visibilidade adquirida nas apresentações públicas da Oficina de Frevos e Dobrados, em entrevistas passei a reivindicar mudanças na política assistencialista, combinada entre a FUNARTE, órgão federal, e Secretaria Estadual do Trabalho resumida à organização de festivais e distribuição de pacotes de instrumentos de marca nacional, sem levar em conta a realidade dos conjuntos. A melhor iniciativa nesse sentido, nos anos 1970, foi 62 7º Encontro de Bandas Filarmônicas de Estância, a ser realizado a 1º de Junho 2014, noCoreto da Praça Barão do Rio Branco, em Estância, SE, com organização do radialista Magno Jesus. 134 um curso de aperfeiçoamento dirigido aos mestres de banda, envolvendo professores dos Seminários de Música da UFBA e o maestro Norberto de Aquino, o mestre Xaxá. No curto período de dois anos em que as esquerdas chegaram ao governo estadual, tendo como governador Waldir Pires, fui convidado a aplicar um programa de apoio às filarmônicas, pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Elaboramos, fizemos ou forçamos acontecer programas de apoio às filarmônicas, com muito mais consequência que as distribuições esporádicas de instrumentos, que continuaram a acontecer, mas desta vez atendendo a solicitações discriminando que instrumentos precisavam. Pela primeira vez se distribuiu partituras novas e recuperações de originais antigos, feitas a nanquim. Uma das ações foi a publicação de uma cartilha intitulada Banda de música, uma boa ideia. Com a retomada do poder estadual pelas tendências políticas conservadoras, o assunto banda retorna aos burocratas da Secretaria do Trabalho, ligada a ações da área de desportos. Houve então uma nova tentativa, envolvendo Moraes Moreira, cantor e compositor com fortes raízes no sudoeste da Bahia, responsável por grande contribuição na mudança de feição do carnaval da Bahia, ao se aliar à família Macedo, tornado-se o primeiro cantor de trio elétrico, junto ao trio Dodô e Osmar. Reivindicando influências das filarmônicas Lyra e Jandira, da sua cidade natal Ituaçu, Moraes me convidou para campanha pela revitalização das bandas de música, onde a Oficina de Frevos e Dobrados realizou gravações, filmagens de videoclips, viagens e concertos. Em uma reunião onde estava o conhecido mestre ferroviário Zinho de Aramari, decidimos criar um Encontro de Filarmônicas no dia 2 de Julho, que mantenho até hoje, com apoio da fundação Gregório de Mattos, da Prefeitura Municipal do Salvador63. A Casa das Filarmônicas foi título de um projeto que fomos levar, eu e Pedro Archanjo, coordenador do Festival de Filarmônicas do Recôncavo, ao secretário de ação social do governo, Heraldo Rocha. O projeto tinha a minha assinatura e previa uma casa onde convergiriam as ações do governo para as entidades, como distribuição de equipamentos, com as ações culturais próprias da Oficina de Frevos e Dobrados, como um arquivo geral de partituras, uma escola de iniciação com base na didática dos mestres-compositores, um centro de reparo de instrumentos musicais e até um alojamento para abrigar grupos musicais a se apresentar em Salvador. 63 O que me levou a um cargo de coordenador no Departamento de Música da Fundação Cultural do Estado da Bahia, por curto período. 135 O projeto Casa das Filarmônicas foi redigitado omitindo a minha autoria, a mando do secretário Rocha, e assinado pelo violonista Josmar Assis, veterano coordenador da área de bandas por aquela secretaria de governo. Claro que esperneei, ameaçando “colocar a boca no trombone” no sentido figurado. Anos depois, convidado pelo produtor cultural Roberto Santanna, participei da elaboração de um plano para devolver o assunto banda ao setor cultural do governo, retirando da SETRAS o projeto Casa das Filarmônicas. E vi a coisa acontecer, mas de forma muito diferente do que eu imaginava. Como se sabe, a Casa das Filarmônicas foi viabilizada como uma Organização não-Governamental (ONG) ligada ao governo, mas sem a minha participação. Num sistema hegemônico no topo do qual estava um líder inconteste, como era o tempo de Antônio Carlos Magalhães, que as pessoas se digladiavam, conspiravam, recompunham, mas não se podia expor fratura política alguma. E lá estava eu, regendo 750 músicos de diversas entidades da Bahia, a convite do governo, no dia de Santa Cecília, 22 de novembro de 2007, no Parque Costa Azul. No ano seguinte, no próximo encontro de bandas, no bairro do Santo Antônio, não fui convidado e soube que a banda que falasse meu nome nos discursos seria retaliada. Mesmo assim consegui, pelo selo editorial daquela casa, quando mudou sua administração, publicar dois livros: Teoria e leitura de música para filarmônica (2007) e Exercícios diários com o instrumento (2009). Com a mudança de política, a Casa das Filarmônicas encerrou suas atividades. Ainda nesse mesmo governo, a Oficina de Frevos e Dobrados conseguiu financiamento do Fundo de Cultura do Estado da Bahia que nos permitiu criar a Filarmônica Jovem do Centro Histórico, com professores de teoria e instrumentos, fardamento e lanches para os alunos. Foram muitos os músicos que criamos nesse período, estando vários deles em orquestras e bandas militares. O Partido dos Trabalhadores (PT) venceu a eleição de 2004 no primeiro turno. Nesse governo consegui programar, com apoio do Fundo de Cultura, um Curso de Capacitação para Mestres e músicos líderes de filarmônicas. Acredito que esta tenha sido a mais importante investida na Bahia em conhecimentos específicos sobre bandas de música e formação de líderes. O Curso Mestres, como o chamávamos, rendeu duas publicações, quatro CDs, apostilas, muitos arranjos e composições novas e foi poderosa fonte para elaboração da tese de doutorado de um dos professores, Celso José Benedito. 136 Vivemos, desde então, um tempo sem propostas às bandas filarmônicas. As diversas vozes da sociedade que se juntaram para por fim ao período apelidado de “carlismo” agora reivindicavam suas parcelas e passaram a ter visibilidade e financiamento organizações ligadas à questão afrorracial, grupos de gênero (surgindo pela primeira vez o curioso conceito de “música homossexual”, tendo uma hora diária de programação da Rádio Educadora da Bahia) e cooperativas de música eletrodançante. Quanto às bandas filarmônicas, pela primeira vez desde muitos governos, não havia política alguma. E forte como uma “entrada” civilizatória, veio a implantação do sistema de orquestras juvenis como alternativa de mobilização social por meio da música, com direito a declarações que o sistema “irá levar a música (sic) a todos os municípios da Bahia”64. Ora, para quem conhece o processo diário de inclusão pela música realizado pelas bandas filarmônicas, o sistema de orquestras representou uma substituição cultural muito agressiva. Ainda mais que as bandas nunca receberam apoio algum desde que tomou posse o atual governo. Quando se comemorava 510 anos do descobrimento do Brasil, tive oportunidade de conversar com diversos músicos integrantes das bandas militares, insatisfeitos com a situação das sociedades de onde tinham vindo, e fui compelido a redigir a Carta de Porto Seguro, na qual em determinado trecho afirmo que A princípio se poderia imaginar que a falta de ação para o setor das bandas de música se devesse a uma distração, alguma incompetência ou falta de identificação dos gestores da cultura com grupos musicais tradicionais. Mas agora se percebe (como chegou a ser anunciado na Agenda Cultural), que as bandas que quisessem apoio deveriam procurar o núcleo de orquestras, que o sistema dirige-se ao aparelho físico e humano das bandas de música para a sua pretendida expansão rumo ao interior. Arranha a nossa imaginação que o abandono das bandas pelo estado tenha sido proposital, para que as bandas de música anêmicas, desmoralizadas pela falta de recursos e desmotivadas por uma intensa propaganda em torno das tais orquestras, sejam pressionadas a ceder seus espaços e seus alunos. Não estarei sendo sectário nem intransigente ao declarar que uma negociação entre bandas e orquestras nesse momento é a priori injusta, visto que um lado não tem recursos e ao outro aparentemente não faltam recursos. O que poderia ocorrer seria o enfraquecimento de duas centenas de instituições independentes, cada qual com seus estatutos e dirigentes eleitos democraticamente, e sua substituição por 64 Declaração do pianista e maestro Ricardo Castro ao jornal A Tarde, Salvador, 13/05/2007. 137 uma estrutura piramidal, onde no topo está um líder único e um sistema pedagógico que não agrega as experiências locais.65 Essa discussão não se encerra aqui, onde se aventa a influência da Oficina de Frevos e Dobrados nas políticas sobre banda. Nacionalmente, a nossa influência pode ser considerada conservadora: por mais que o CD Oficina de Frevos e Dobrados 15 anos trouxesse o Dobrado Pepezinho como música estranhamente legítima, ficamos conhecidos por defender os dobrados, as polacas, as palavras filarmônica e mestre, num ambiente onde as bandas civis do sul do país se tornaram afinados grupos transculturais, e que as bandas militares executam em concerto por influência, segundo um músico militar, “das esposas dos coronéis”, um repertório de orquestra de entretenimento. 2.4.4.5 A Banda de Música Maestro Wanderley No início da Oficina de Frevos e Dobrados recebemos valiosa colaboração de músicos da Polícia Militar, que se identificavam com a juventude e ao mesmo tempo tradicionalismo presentes em nossa iniciativa. Jacinto dos Anjos Castro, tubista, depois mestre de música, foi quem mais personificou essa relação. No final dos anos 80 um número considerável de jovens integrantes da Oficina foi aprovado em concurso, iniciando uma fase de renovação na música da Polícia: Rainer Krupe, Antonio Jorge Freitas, Antonio Roque, Magno, Walter José, são alguns desses nomes. Entre eles se destaca o jovem Sargento Moraes, que se tornou maior compilador da documentação existente sobre a banda da polícia militar e meu indispensável colaborador no presente capítulo. Enquanto progrediam na caserna, estudavam na universidade, no que representou uma mudança muito benéfica de mentalidade na instituição. Não temos uma documentação fotográfica sobre a banda da polícia no início do século XX, mas a sua congênere do corpo de bombeiros, cujo nome homenegeia o filho do maestro Wanderley, nos dá ideia pela figura 23: 65 Fred Dantas. “Carta das filarmônicas em Porto Seguro”, Porto Seguro, BA, 22 de abril de 2010. Divulgada via redes sociais, essa carta teve como reação o repasse, pelo governo do Estado,de 3,5 milhões a uma centena de bandas filarmônicas que tinham sua situação legal regularizada. Mas foi só, desde então. Quanto ao repertório, Villa-Lobos, Lindembergue e Wellington Gomes já surgiram no repertório do “sistema” e canções naturais do Brasil foram incorporadas na sua educação infantil. 138 Figura 23- Banda de Música Claudionor Wanderley, do Corpo de Bombeiros Nos 180 anos da criação da Polícia Militar, fui convidado a reger a Banda de Música Maestro Wanderley em cima de um trio elétrico, no Farol da Barra, na companhia do cantor Ricardo Chaves, que àquela altura gozava do maior sucesso com a canção É o bicho. Foi uma empreitada e tanto, que rendeu visibilidade para a banda. Os arranjos coincidiam com a vanguarda iniciada pela Oficina de Frevos e Dobrados, de mesclar material tradicional com temas novíssimos da então robusta Axé-music, a música moderna afrobaiana. A Banda de música Maestro Wanderley, entre altos e baixos, seguiu sua rota, inclusive com seu problema crônico: quando se tornam oficiais, os mais experientes músicos deixam de tocar ao lado dos seus colegas de patente inferior. Até que no início deste século, um decreto de reformulação extinguiu a classe de músico especialista, ou seja, daí por diante todos eram soldados, sujeito a ser convocados para patrulhamento ou situações de risco. Ora, duas razões para prejudicar a música aí se apresentaram: a primeira é a própria falta de prática no uso de uma arma, em situação real de combate ao crime, para aquele de quem se espera ler e executar partituras com um instrumento musical. A outra é que, com o decreto, cessou o ingresso de novos músicos, diminuindo a banda na medida em que os mais velhos fossem se afastando da estante. Dava-se como certa a extinção da Banda de Música Maestro Wanderley. 139 O projeto de lei nº 11.179-97 – de 8 de julho de 1997 – determinou a extinção das especialidades, entre as quais médicos, mecânicos etc, o que determinou a virtual extinção do quadro de músicos da PM. Todos passaram de QPMP-4 para QPPM, ou seja, combatentes. Como nas duas ocasiões no passado, oficiais e praças que já faziam parte da banda mantiveram-na viva e atuante. Foram extintas as bandas militares em Itaberaba, Itabuna e Teixeira de Freitas. O efeito dessas extinções sobre as filarmônicas dessas cidades foi catastrófico, pois se tornar um músico profissional militar historicamente tem sido a aspiração dos jovens que entram numa filarmônica para aprender teoria musical e tocar um instrumento. Sem esse sonho de futuro, muitos preferiram migrar da sua cidade natal e da própria arte de tocar, e as bandas foram se esvaziando. Por solicitação de um grupo de sargentos, dessa geração, iniciei uma luta discreta, porém continuada, por uma solução favorável à música. Nesse sentido, fui convidado a discursar na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, pedindo providências a favor da música militar, seus arquivos e sua importância no dia a dia da Polícia da Bahia. Fazendo jus ao diploma de Amigo da Banda Maestro Wanderley, que orgulhosamente recebi em 1998, não pude recusar o convite feito para me pronunciar na Assembleia Legislativa na ocasião do aniversário da banda de música. Criada em 17 de setembro de 1849 pela Lei provincial nº 352, com 28 músicos, tendo como primeiro regente o professor Laurêncio José Aragão, no momento atual, a banda de música da Polícia Militar contava com 64 sargentos e 21 soldados, sendo 85 praças e 3 oficiais (2 tenentes e 1 capitão do antigo quadro de oficial-músico). Entre os integrantes, alguns policiais com curso superior na área de música. Possuo um arquivo de músicas com 1.000 composições, começando do mais complexo para o mais simples, ou seja, de composições muito rebuscadas, do final do século XIX, entre os quais trechos de conhecidas óperas italianas, alemãs e francesas, passando pelo período considerado clássico da arte brasileira de filarmônica, representado pelos compositores baianos Antonino Manoel do Espírito Santo (autor do Cisne Branco), Hino Oficial da Marinha de Guerra do Brasil, e do dobrado Capitão Caçulo (A Canção do Soldado), Heráclio Guerreiro, Amando Nobre e Estevam Moura, chegando finalmente a arranjos de músicas de orquestra de dança e canções de rádio, certamente para atender a compromissos de momento. No discurso afirmei que 140 [...]o que mais poderia eu acrescentar sob o que é óbvio no desejo de que não se extinga a música na polícia? Desfilar com músicos contratados na vida civil, ou a inimaginável solução do carro de som? Perder esses diplomatas musicais, que em cada aparição pública falam melhor da vida da PM que cem campanhas publicitárias e out-doors, pois se trata da linguagem da música, ao vivo, que atinge o ser humano na alma. Ao prevalecer o bom senso, peço aos colegas oficiais músicos militares que, mesmo que tenham eventualmente de atender a solicitações de música popular, de música de dança, que façam isso através de uma orquestra organizada entre os músicos da banda, mas nunca, em hipótese nenhuma, renunciem as músicas criadas para a instituição banda de música, para a formação sopropercussão. Respeitando e seguindo a linhagem de Laurêncio José Aragão, maestro Joaquim Pedro, Maestro Wanderley e Waldemar da Paixão, quando tive oportunidade ofereci a esta banda hoje aniversariante duas composições de inspiração popular sim, um baião e um samba-reggae, mas ambas instrumentais e concebidas desde o início para serem tocadas por esse modelo de conjunto musical. A transposição pura e simples de música popular para a filarmônica me parece nesse momento muito semelhante a uma outra transposição, a do Rio São Francisco, pois seriam ambas soluções que podem agradar no primeiro momento mas que depois podem levar à morte o alvo da intervenção. 66 A Banda Maestro Wanderley é a 3ª banda de música mais antiga em atividade no Brasil, e 1ª banda mais antiga em atividade na Bahia. No passado houve pelo menos duas outras tentativas de extingui-la. A Profa. Angelina Nobre Rolim Garcez – autora da Biografia do maestro João Antonio Wanderley, publicada em 1976, informa que foram apontados “gastos excessivos e desnecessários” para justificar a tal extinção, em 25 de maio de 1863. Mas a banda, mantida viva pela contribuição dos oficiais e praças, vai acompanhar o 10° Corpo de Voluntários da Pátria para a Guerra do Paraguai, em 23 de janeiro de 1865. Novamente por decreto, a 22 de agosto de 1874, a banda volta a ser extinta, para ser readmitida no ano seguinte com 30 músicos, devido à grande abnegação dos seus integrantes. De 1886 a 1889, com a regência do maestro Joaquim Pedro, a banda experimenta um dos seus períodos de grande sucesso, dando continuidade aos eventos de 1895 – quando foi regida pelo maestro Carlos Gomes, no teatro Politeama, a 18 de agosto de 1895. Em 1891, aos 15 anos, ingressou na corporação, como aprendiz de músico, o maestro João Antonio Wanderlei (1876-1927). Com a liderança desse músico notável, a 66 Fred Dantas,“a importância da Banda de Música Maestro Wanderley”. Discurso na Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, em 2008. 141 banda realizou uma histórica viagem ao Rio de Janeiro, em 31 de agosto de 1917, atendendo a convite para participar do dia da Independência do Brasil. As apresentações, ainda no desembarque, outras no Campo de Santana, na av. Rio Branco e no Teatro Lírico, fizeram o crítico do Jornal do Commércio – Oscar Guanabarino, comentar: “Com pesar confessamos que atualmente não existe aqui ou noutra capital nenhuma banda de música que se possa comparar à baiana”. Aproveitando a viagem ao Rio, tornou-se a primeira banda de música a realizar gravações fonográficas – valsas, dobrados tangos e marchas para Casa Edison. Em 1922, teve seu efetivo aumentado para 150 figuras e instrumental novo comprado na França. Em 1924, acompanha o 4º batalhão da PM ao teatro de operações no Rio Grande do Sul. Em 1926, Wanderley estava prestes a obter seu êxito maior: ir à cidade de Assis, na Itália, para participar das comemorações do 7º centenário da morte de S. Francisco. Nas vésperas da viagem, a banda recebe a negativa do embarque pelo então governador Francisco de Góes Calmon. Doente da alma, o maestro Wanderlei morreu nove meses depois, com apenas 51 anos. O filho do primeiro maestro Wanderlei também se tornou notável compositor e líder à frente da Banda do Corpo de Bombeiros da Bahia, atual Banda de Música Maestro Claudionor Wanderley. Foi este o maestro com sobrenome Wanderley que faleceu enquanto socorria vítimas da chamada Tragédia do Beco do Frazão, em Salvador67. Insisto em mais um nome, por ser ligado à musica militar e ao mesmo tempo ao que havia de mais moderno a sua época, o rádio. Compositor e regente ligado à música da Polícia Militar, que teve importância semelhante ao próprio maestro Wanderley. Waldemar da Paixão representou, em sua primeira fase, a geração de reformadores-continuadores que levaram a filarmônica baiana a um tempo clássico, no final dos anos 40. Regeu também a Filarmônica Carlos Gomes, do bairro da Ribeira, onde deixou um bom material manuscrito, sendo o grosso da sua obra encontrada na Banda de Música maestro Wanderley, da Polícia Militar da Bahia. Esta corporação gravou, em 1998, a fantasia Ave Libertas, uma peça muito bem estruturada, tendo como base citações dos hinos nacionais de diversos países democráticos. No exemplo musical 38, podemos ver um trecho onde o material temático da Marselhesa foi utilizado: 67 Segundo Menelaide Barbosa, em histriadabahiaiii2010imyblog.wordpress.com/ “Deslizamento de terra que soterrou 11 homens do Corpo de Bombeiros e levou a morte de 08 bravos milicianos no bairro do Taboão”, tomando como referência o Jornal A Tarde do dia 3 de maio de 1935. 142 Exemplo Musical 38 - Ave Libertas, de Waldemar da Paixão Nos anos 50, no apogeu do rádio no Brasil, foi contratado pela Rádio Sociedade, regendo uma orquestra que, com arranjos exclusivos, acompanhou, muitas vezes em programas de calouro, todos os cantores que vieram a representar a música popular em nossa capital, como Batatinha, Riachão, Claudete Macedo, Bob Laô e muitos outros. Voltando ao ano de 2002, eu próprio encaminhei carta ao Secretário de Cultura Paulo Gaudenzi e ao Coronel Jorge, na época Comandante Geral da Polícia Militar, onde advertia o grande lapso para a cultura baiana a extinção da banda de música da polícia. Argumentei que, além das obrigações de caserna, ela era o cartão postal da corporação, seu elo com os momentos mais significativos da vida social. O conselheiro Tuzé de Abreu apresentou moção ao Conselho de Cultura do Estado da Bahia, pedindo pela reestruturação da Banda de Música Maestro Wanderley. Em 2010, finalmente, a Banda de Música Maestro Wanderley deixou as instalações que ocupava e foi alojar-se nas dependências da Academia de Polícia Militar, recebendo um fardamento azul, próprio da respeitada escola militar. Recebeu ainda vários novos músicos, que foram engajados como combatentes, para logo depois serem lotados na banda. Na solenidade que efetivou essas providências, diante de vários ex-regentes da Banda de Música e um desfile militar, recebi estatueta e diploma por relevantes serviços prestados na restauração da Banda de Música Maestro Wanderley. 2.4.4.6 Os 100 anos da Lira 8 de setembro Então pensei: o que estou a fazer nessa estrada, numa tarde de sábado, sozinho, dirigindo meu carro entre caminhões enormes e outros carros apressados, procurando chegar a uma cidade chamada Riachão do Jacuípe? Quando me desloco geralmente é a trabalho, ou por objetivos culturais específicos, razões de família ou simplesmente lazer. Não via nesse momento nada muito claro naquele convite da senhora Dona Branca (Maria do Rosário Carneiro da Silva, filha de uma diretora da sociedade, que participou das comemorações dos 50 anos 143 da Lira e agora tomou a frente dos 100 anos), quer dizer, eu entendi a importância dos 100 anos da filarmônica Lira 8 de setembro, só não entendia era como eu acabei topando e estava agora ali, dirigindo em uma estrada que não conhecia, eventualmente refrescando a garganta com pequenos goles d’água e consolando a alma com cigarros. E lá estava eu naquele hotel, aguardando. Quando, finalmente, o Sr. Fernando Almeida, velho conhecido e ex-presidente veio me buscar, já estava uma banda tocando, na praça ao ar livre, com muita gente escutando. A banda de Ibipeba com o maestro Gerry Armando, de gesticulação correta, paletó, uma banda de adolescentes bem fardada, bem equipada, tocando um repertório onde estava uma redução do 1° movimento da 5ª de Beethoven, um sucesso de Andréa Boccelli, mas também algum dobrado conhecido como o Mão de Luva, de Naegele. A segunda banda foi a de Pé de Serra. A banda dos Funga (louros, galegos do sertão)e a tradição que remonta à descrição de uma apresentação desses músicos para D. Pedro II e as citações de ópera advindas do Corso de Salvador. A Sociedade Filarmônica 6 de Agosto, da cidade de Pé de Serra, ou melhor, os Barbeiros de Pé de Serra, como ficaram celebrizados esses músicos, ou seus ascendentes, que tocaram para D. Pedro II em uma estação ferroviária, na célebre viagem que o levou a Santo Amaro da Purificação. Pois esses músicos ainda hoje tocam durante o carnaval da sua cidade pequenos trechos de ópera (identifiquei Aida e Ernani, ambas de Verdi) entre uma música e outra do seu repertório. Aprendidas de ouvido, provavelmente derivadas do “Corso” de Salvador. Iniciou sua apresentação com um dobrado, mas quando executou um maxixe, segundo o jovem maestro, “da nossa tradição”, a plateia se animou e aplaudiu muito. O mestre Rildo é filho de Antônio Funga, que toca bravamente o seu sax alto, líder da família que mantém o grupo há dois séculos. Em seguida, ocupou o espaço a Filarmônica 2 de Janeiro de Jacobina. Uma banda filarmônica completa, bem fardada, com instrumental novo incluindo saxofone barítono e naipe de percussão ampliado com bateria conjugada, com um mestre competente, que participou do Curso de Capacitação para Mestres e Músicos-líderes de Filarmônicas (promovido em 2008 pela Oficina de Frevos e Dobrados – Fundo de Cultura da Bahia). Nesse momento houve o único, mas preciosamente significativo gesto em direção ao que considero o principal assunto da minha tese, a renovação da linguagem;Um chorinho desconcertante, do líder de orquestra Severino Araújo. Obra 144 provavelmente de um Severino maduro, de linguagem rebuscada, escrita dificílima para a clarineta solista. Tudo que Severino escreveu é significativo e bem trabalhado. Apenas nessa obra, que eu não conhecia e que foi tocada justamente nessa noite decisiva de exemplificação do dilema das filarmônicas, Severino adota uma linguagem bastante avançada, apontando legitimamente para um futuro desejável, e esse futuro não implica necessariamente que seja feito com obras minhas, ou de outro compositor que acompanha nossa luta pelas sociedades musicais. Vale a pena comentar um pouco o repertório apresentado pela 2 de Janeiro: 1 - Dobrado Evaldo Camposde Antônio França– É um dobrado do período clássico dos dobrados baianos, da década de 1930. O compositor é Antônio Matheus de França, que regeu diversas bandas no Recôncavo. 2 -Bolero Eterna Melodia de Pachequinho – Arranjo conforme interpretação de Ivanildo Sax de Ouro; é uma típica composição comercial instrumental dos anos 50-60, adaptada para banda de música. Essas peças serviam, e ainda servem para quebrar a rigidez dos dobrados em um programa popular. 3 -Dobrado Major Deiró de Armando Nobre – Trata-se de um dobrado de fase posterior, coisa dos anos 40, quando Amando Nobre, e outros da sua época, incorporou o tangado como recurso compositivo, levando o dobrado a perder, pelo menos em sua definição, a característica de “música para marchar”. Porque o tangado é samba, síncope e, além disso, sempre vem acompanhado, nos dobrados dessa fase, de interrupções no discurso musical como breques e convenções. Esses dobrados são verdadeiras pérolas em criação de melodias, em integridade e coerência, em lindas linhas de marcação. 4 - O Bêbado e a Equilibrista de João Bosco e Adir Blanc – Arranjado conforme a célebre interpretação de Elis Regina; uma música popular de rádio, emblemática da reação ao ambiente criado pela Ditadura Militar. 5 -Bolero Alvorada em Brasíliade Mestre Armindo de Oliveira – Armindo é irmão do mestre Almiro Adeodado Oliveira, que regeu por alguns anos, como convidado, a nossa Oficina de Frevos e Dobrados, até falecer bastante idoso. O próprio Almiro considerava o irmão “melhor músico do que ele”, porquanto Almiro, embora autor de vários dobrados, sempre preferiu música popular, choro, música de salão, Armindo manteve-se 145 sempre fiel à banda filarmônica. Vale ressaltar que bolero aqui define uma música em compasso ternário sempre com solista, algo muito parecido com a chamada Polaca, também em ternário e com solista. Pelo título, foi composto nos anos 60. 6 - Um Chorinho Desconcertantede Severino de Araújo (1917-2012)– Esta é uma peça cuja presença representa um caminho para a modernização da linguagem. O que temos aqui: harmonia com bastante sextas, sétimas maiores e nonas. Um discurso solista, na clarineta, que beira ao atonal, além de ser realmente uma execução difícil. Vamos analisar em audição, aqui na sala de aulas, para que os colegas possam avaliar como esse choro, como o título já aponta, é muito diferente da dificuldade convencional de Espinha de Bacalhau da beleza tonal de Um chorinho delicioso, peças bastante conhecidas do genial compositor e líder da Orquestra Tabajaras. A filarmônica 2 de janeiro de Jacobina encerrou sua apresentação com o tradicional Parabéns pra você, em homenagem aos 100 anos da Lira 8 de setembro. Finalmente, apresenta-se a 8 de Setembro, que tornou-se a mais nova filarmônica centenária da Bahia, num clube onde ocupam 10 outras entidades, sendo a Erato Nazarena, da cidade de Nazaré das Farinhas, a mais antiga em fundação (147 anos) e a Lyra Ceciliana de Cachoeira (164 anos) a mais antiga em atividade ininterrupta. A lira 8 de setembro conserva até hoje uma forte ligação com a igreja católica, certamente por ter sido fundada, em 1910, pelo cônego Henrique Américo Freitas. Seu repertório mantém-se na linha do clássico para banda na Bahia, tocando dobrados de Amando Nobre, com muito pertencimento, pois vi locutor naturalmente balbuciando a convenção da caixa-clara. Numa demonstração muito boa de coesão social em torno da sociedade musical, a Lira homenageou pelo menos 4 expresidentes, antes que eu entregasse a taça ao atual presidente João Oliveira Lima, músico de muitos anos de estante (DANTAS, 2012, p. 46). Para apresentar especificamente a banda aniversariante, convidaram o Sr. Rogério Oliveira Silva (irmão do mestre Roberto Oliveira Silva), um locutor que se mostrou equivocado quanto ao significado de uma sinfônica em relação a uma banda filarmônica, suas diferenças na origem e objetivos. Numa cidade onde existe o Baile Pastoril e alguns grupos de Samba Rural, não é de todo estranho que a solenidade ao final configurasse uma festa na rua, onde se celebrou uma espécie de samba de brancos (alguns grupos de samba rural preferem a denominação “samba brasileiro” para diferenciar do samba propriamente dito, negro enfim). Como filarmônica em geral é boa de partitura e não tão boa em samba, a 146 iniciativa partiu dos Barbeiros de Pé de Serra, que nesse momento demonstraram sua natural aptidão para tocar de ouvido e animar as pessoas, como faziam seus ancestrais. 2.4.4.7 Os 90 anos da Lira Santamarense Então mais uma vez eu pensei: o que estou a fazer no mar, numa tarde de sábado, desta vez com a minha filhinha Helena, agora com 4 anos, a bordo da lancha da travessia da Baía de Todos os Santos – na companhia do professor Celso Benedito, três músicos da Oficina de Frevos e Dobrados e mais um monte de veranistas – procurando chegar à Vila de Jiribatuba, município de Vera Cruz, na ilha de Itaparica? Penso novamente: quando me desloco geralmente é a trabalho, por objetivos culturais específicos, razões de família ou simplesmente a lazer. A princípio gostei do convite do mestre Josias Monteiro, presidente da Lira Santamarense, de 74 anos de fundação. Entendi a importância do projeto e seus 230 alunos, só não entendia era como acabei topando e estava agora ali, com minha filha, numa lancha, eventualmente refrescando a garganta com pequenos goles d’água. Quando chegamos a Jiribatuba, alguns senhores disseram: “Até que enfim o senhor retornou, nós estávamos à frente da Banda naquela época”. Dei-me conta que já havia visitado, regido, apoiado, essa filarmônica há uns 25 anos... Assim, enquanto Celso Benedito foi convidado por ter se tornado figura do universo das bandas (professor do Curso para Mestres, fundador da Banda Filarmônica da UFBA), enquanto os músicos da Oficina de Frevos e Dobrados foram contratados para reforçar a banda local, eu estava simplesmente retornando. Josias Monteiro foi aluno de Lourival dos Santos, o mestre que teria feito cerca de “mil músicos” nas diversas cidades que regeu. Josias assumiu a regência e depois a presidência da Lira Santamarense. Aí veio a sua melhor ideia: desenvolver núcleos de musicalização nas diversas Vilas da Ilha de Itaparica: Cacha Pregos, Mar Grande... contando com a ajuda voluntária de líderes locais, pois na Ilha existem várias pessoas de bem e capacitadas, que por aposentadoria ou opção de vida resolveram residir lá. Estive na residência de um aposentado, músico amador, que montou um pequeno ambiente de prática musical, com dois saxofones, trompete, clarineta, um teclado e é o principal colaborador de Josias. É bom frisar que isso tudo tem sido feito 147 sem dinheiro, na base da colaboração. Só agora surgiram concretamente oportunidades de convênios e projetos. Então a banda foi perfilada, e à sua frente o grupo de 230 alunos, vindos dos diversos núcleos, todos corretamente fardados, desfilando por um pequeno trecho da vila, com os diretores, eu e minha filha, à frente, como é o costume. Antes de chegarmos à nova sede, deparamo-nos com um automóvel com caixas de som muito altas e algumas jovens de biquíni dançando em torno dele, tocando o estilo pagode baiano atuali68, mas isso logo foi contornado e o cortejo seguiu seu curso até a nova sede. Lá foi montada, em frente ao prédio, uma mesa, para a qual foram convidados o prefeito do município vizinho de Itaparica, o viceprefeito de Vera Cruz, eu e o professor Celso Benedito. Foi então executado o Hino Nacional Brasileiro, com um coral de 230 vozes de alunos e acompanhamento da banda de música, sob a regência de Josias Monteiro. Depois, somente com a banda, foi tocado um dobrado com regência de Celso e o dobrado dos Barbeiros de Irará, sob minha regência. Recebi então uma placa, um diploma de sócio benemérito da filarmônica. Enfim, ostentando o certificado do Curso de Capacitação para Mestres e Músicos Líderes de Filarmônicas, declarei: “Josias, eu te diplomo mestre de filarmônica!” As pessoas aplaudiram muito. Em seguida, em seu discurso, Josias anunciou um convênio com a prefeitura, para levar musica às escolas. O prefeito de Itaparica, entusiasmado, anunciou que na segunda-feira seguinte já tomaria providências para criação de uma banda filarmônica em sua cidade, com coordenação do próprio Josias (DANTAS, 2012, p. 48). Foi anunciado, também, um novo fardamento, conseguido com a ajuda de um candidato a deputado. O novo uniforme, apresentado por um aluno fardado, inclui calça e paletó social, com galões e cordão, além de quepe estilo militar, como tem se fardado as bandas filarmônicas há dois séculos. Josias então frisou o modo como as coisas têm sido feitas por ele: por puro voluntariado, dele e dos colaboradores de cada vila envolvida, e emocionado agradeceu a colaboração dos músicos, pois (isso parece incrível) somente com a renda das apresentações da banda, com os músicos renunciando a qualquer remuneração, conseguiu fazer a reforma da sede, ao ponto de ser inaugurada naquele momento. A casa com biblioteca, livros infantis conseguidos por doação, pequena sala de estudos, cozinha, copa e sanitários. Nas paredes, diversos painéis com 68 Composições como Mexe o rabinho cachorra, toma negona na boca e na bochecha, quero ver as cachorra no chão... de grupos como Guigguetto, Psirico, Saiddbamba, Blackstile etc. 148 fotos das várias fases da banda. Em um deles, o mestre Lourival à frente do conjunto. Na parte superior, um amplo salão de ensaios, com cadeiras novas e estantes de música. Figura 24 - Giriba tubas (foto: Fred Dantas) O evento de Jiribatuba revela vários aspectos do que pretendemos incentivar e desenvolver nas sociedades filarmônicas: - O fato de o mestre Josias ter dado prosseguimento à obra do mestre Lourival significa o trunfo da didática das filarmônicas. Entre muitos alunos, alguns se tornam de fato músicos. Entre muitos músicos, uns poucos se tornam discípulos. Entre raros discípulos, algum porventura se torna mestre e assume o trabalho. - Josias Monteiro ter se matriculado e concluído o Curso Mestres revela um desejo de renovação com continuidade, que é o que pretendemos em nossa tese. - O convite pessoalmente feito a mim (trazido à minha porta pelas mãos do mestre Josias), a Celso Benedito e ao professor Joel Barbosa – e a ausência de autoridades do Governo e da Secretaria de Cultura – revela que o descaso da atual administração estadual às bandas filarmônicas não passou despercebida, assim quem fez alguma coisa na área foi reconhecido pela banda de Jiribatuba. - A presença de 230 crianças e adolescentes fardadas, limpas, penteadas e bem comportadas em um evento de voluntariado tendo como eixo principal a música das 149 bandas filarmônicas aponta para que discurso e propaganda do núcleo de orquestras juvenis tem que ser revisado. Se a questão é “encaminhar a juventude através da música”, exemplos como esse tem que ser considerados e apoiados pelas mesmas fontes que financiam a expansão das orquestras. A não ser que a questão central seja a difusão da música de concerto de origem europeia como alternativa desse encaminhamento. Pois o que aqui vemos é a música criada pelos mestres de banda da Bahia sendo usada, com sucesso, como base de um trabalho social, gerando, por conseguinte, um vínculo poderoso com os músicos maduros e idosos, pais e avós dos matriculados. Concluo o presente capítulo com uma referência ao mestre que gerou, entre seus mil alunos, o atual líder da Lyra Santamarense de Jiribatuba: Lourival. Faleceu recentemente o mestre de banda Lourival dos Santos, nascido em Aratuípe. O homem a quem se atribui ter “feito” cerca de 1.500 músicos! Isso sem contar os músicos que encontrou “prontos”, que regeu nas filarmônicas que ele não iniciou. Lourival regeu em Nazaré das Farinhas, e foi lá que o conheci, as filarmônicas Erato Nazarena e Aprendizado Clemente Caldas. Regeu na vila de Jiribatuba, na Ilha de Itaparica, município de Vera Cruz, a conhecida Lira Santamarense, que participou este ano do 2 de Julho em Salvador, e conta com 250 alunos! Regeu a Lira Jaguaripense, em Jaguaripe. Regeu em Aratuípe, sua cidade natal e em Valença, a 24 de Outubro. Na mesma cidade, regeu a dissidência dessa banda já em 2007! Regeu em Jacobina a filarmônica 2 de Janeiro. Regeu a Lira Conceição de Maragogipinho. Consta que em cada uma dessas cidades constituiu família, gerando uma infinidade de filhos, todos registrados e reconhecidos. Lourival me tirou da maior encrenca, no final de um Festival de Filarmônicas do Recôncavo, em São Félix. A briga era generalizada e ninguém me tocou, pois estava com ele. O que pouco se sabe é que Lourival, caixista de filarmônica, antes foi baterista e tocou saxofone, nos anos 40 e 50, em diversas orquestras na Bahia. Acompanhou Marilda Costa e foi seu braço direito durante muitos anos em que atuou em Salvador, até hoje a única orquestra regida e mantida por uma mulher em nossa cidade. Lourival guardava com carinho uma foto autografada de uma vedete Argentina que se apaixonou por ele numa temporada no Tabaris (Fred Dantas “Comunicação pessoal” distribuída via redes sociais, 2010). Como caixista da banda de Música Claudionor Wanderley, do Corpo de Bombeiros da Bahia, embora sendo torcedor do Vitória, gravou o Hino do Esporte Clube Bahia, composto por Adroaldo Ribeiro Costa, uma gravação tão bem sucedida que continua sendo a principal versão executada até hoje. 150 2.5 À GUISA DE CONCLUSÃO DESTE CAPÍTULO Acredito na banda de música brasileira como realidade artística, social e pedagógica. Acredito na música, acredito na música europeia e nas músicas dos povos do mundo, acredito também nas diversas formas de organização onde predominam instrumentos de sopro de vários modelos e regiões, dando a isso tudo o nome banda. Respeito a importância da banda sinfônica, enfim. Como músico de trombone e bombardino, pude experimentar momentos de verdadeiro ímpeto musical na execução do seu repertório abalizado, editado, experimentado em diversas latitudes. Mas creio, sobretudo, que o modelo de bandas de música desenvolvido no Brasil, derivado tanto da banda militar quanto das sociedades filarmônicas portuguesas, merece melhor atenção. Foi na banda de música que me iniciei e continuo atuante. A banda de Caetité, pequeno grupo de músicos experientes, tocando sem fardamento nem partituras, guarda em si todo o élan – entre a animação e a disciplina – de uma banda filarmônica, e nesse grupo pude contemplar a ação musical desses virtuosos, de como tocavam atentos, mas despreocupados. A influência desse primeiro contato vivo com a banda ensinou-me a nunca deixar de lado o caráter de celebração em cada dobrado. Uma banda de música juvenil, quando fundada por um prefeito ou por uma sociedade civil, torna-se um caminho válido para quem quer aprender a ler música e tocar um instrumento. Além disso, a banda de música pode concorrer para a formação da personalidade, do conhecimento do mundo fora da casa e da escola, do que significa respeitar um mestre, pertencer a um grupo e usar uma farda. Acredito que a banda pode ser um excelente conjunto para alguém experimentar arranjos ou suas primeiras peças. Ao trabalhar com o assunto banda filarmônica, tendo viajado por praticamente todo o estado da Bahia, comecei a acreditar que a música aqui realizada influenciou bandas de música em todo o Brasil. Com base nessa vivência, e tocando sempre os instrumentos trombone e bombardino, acabei por dividir os repertórios em quatro áreas: a música de filarmônica no Recôncavo, onde estão as peças mais longas e rebuscadas; a música de filarmônica no Sertão, onde predomina uma arte mais simples, porém eficaz ao criar melodias vigorosas que permanecem na memória das pessoas; a música nas Lavras Diamantinas, sua influência de Minas Gerais e o envolvimento diário com o panorama social, político e econômico. Finalmente a quarta área é a fronteira com Sergipe e seus mestres ferroviários, cuja música reúne de tudo um pouco. 151 Um fato significativo foi convidar o meu mestre de música para ser homenageado em Salvador, em um festival de música instrumental que eu idealizei e participava da organização. Nasceu aí a Oficina de Frevos e Dobrados e suas consequências. A história da Oficina e seus personagens começa com a reinvenção das palavras filarmônica e mestre. Depois parte para a ação social e formação de músicos. Em seguida, começa a instigar o surgimento, retomada ou transformação de outras bandas de música. Exemplos dessas novas bandas são a Filarmônica Ambiental, a Filarmônica de Crianças do Centro Histórico e a Lira de Maracangalha. Convidado a criar um Festival de Filarmônicas no Recôncavo, pude contribuir para o surgimento de um polo poderoso de difusão do repertório tradicional e da retomada dos arquivos manuscritos das instituições. Enfim, o festival incentivou a criação de novas músicas para filarmônica. O Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho, que ocorre há 21 anos no Campo Grande, em Salvador, é outro evento significativo para a revelação ou elaboração de novas grades musicais. A ação da Oficina acabou por interferir na política estadual e federal para com as bandas, a exemplo da luta pela banda de música da Polícia da Bahia, onde está um arquivo manuscrito com cerca de mil obras, contendo vinte a quarenta partes cavadas cada. Eventos como os 100 anos da Lyra 8 de Setembro e os 90 anos da Lira Santamarense são de interesse acadêmico, e devem ser descritos e analisados, por suas consequências musicais e sociais, por sua capacitação de gente lendo e tocando e pela reafirmação do repertório. Qualquer tentativa que tenha dado certo – da nossa parte – as provocações nos arranjos, as composições não convencionais e também o comportamento de uma banda de vanguarda vingaram porque reverenciavam esses pilares e, no fundo, pretende continuá-los, de forma mais nova e vivencial em relação ao nosso tempo. 3 CATEGORIAS DA DIMENSÃO DO COMPOR Este terceiro capítulo trata de categorias que influenciam o ato de compor, aplicada à banda filarmônica. Se os dois primeiros capítulos tratavam da vivência, a partir desse ponto vamos nos preocupar com a continuidade da prática de criar. Entre os mestres tradicionais compor era uma praxe, embora não só o mestre possa criar nova música dentro de uma filarmônica. Ao sabermos que essa música é criada dentro dos mesmos pilares da música européia, podendo ser plenamente realizada por partituras formais, podemos dizer que o que particulariza a escrita do mestre de banda é a apropriação e transformação desses elementos técnicos em função do contexto. Nosso assunto e nossa tarefa é conhecer e contribuir para que a prática do compor não se interrompa, e que, assim como os compositores de outrora se sentiam antenados com seu tempo, também seja nova esta música composta para banda. Não se pode falar da prática do compor sem discutir a ocupação sonora do espaço público. A orquestra sinfônica não é uma concorrente nesse sentido, pois ainda que toque eventualmente ao ar livre, sua vocação natural é a sala de concerto. Nas praças públicas, até a primeira metade do século XX, não havia concorrência para os terços, as charamelas, a múzica ou como quer que se chamem às bandas de música. A apresentação da banda necessita da praça pública, e esta se encontra ocupada pelo som mecânico. Atualmente um automóvel com um potente aparelho sonoro pode inviabilizar a apresentação de uma banda em espaço público. O volume do que se escuta costuma ser inversamente proporcional à qualidade da música. Não é nosso foco discutir o aspecto pedagógico das letras, nem a pobreza das soluções musicais, mas suscitar uma discussão política de cidadania, pois, ao se compor para banda, deve-se ter o direito de tocar em praça pública, sem ser inviabilizado pelo som dos bares e automóveis. No Encontro de Filarmônicas de Pé de Serra, a 29 de junho de 2012, diante de cinco bandas filarmônicas em coloridos fardamentos, seus respectivos maestros e umas duas mil pessoas, reunidas em praça pública entre duas impressionantes elevações montanhosas, o jovem mestre de banda Rildo Oliveira Rios discursou, emocionado: “Todos os dias somos bombardeados, em nossas próprias casas, por um tipo de música 153 agressiva e estranha a nós e, entretanto, estamos agora aqui, fazendo nossa música como nossos parentes fazem há duzentos anos”69. A longevidade da banda deve-se, entre outros fatores, à capacidade de compor algo novo, ou adaptar estímulos externos. Se há cem anos a música ocidental gerou novos sistemas de composição, o ensino dessa nova composição não pode se restringir ao ambiente universitário. Entretanto, há de se observar que compositores ligados à música de concerto, muitas vezes habituados a criar ao piano ou diretamente pensando na orquestra sinfônica, em geral não conseguem bons resultados ao compor para banda, onde a instrumentação de cada naipe, assim como a forma, estão presentes desde o primeiro fragmento da ideia. Não há uma fronteira exata entre criar e instrumentar. Insisto que a banda deve arriscar na composição nova. A pura volta aos dobrados tradicionais – a menos que se declare estar resgatando a história – nos perpetuaria como anacrônicos; arranjo sobre repertório sinfônico nos torna cópia imperfeita; executar versões instrumentadas de canções da moda esvazia nosso repertório. Pela grande quantidade de músicas existentes nos arquivos das sociedades filarmônicas da Bahia, constatamos que a praxe composicional é um fato. Decidimos, no presente capítulo, investir na motivação, entender quais os elementos que impulsionam a criação dessas músicas, tomando como exemplificação a minha própria produção, ao longo de três décadas compondo para banda, para finalmente apresentar, no próximo capítulo, as três peças de conclusão, que vão resumir e incorporar tudo. Está na criação própria o motor para que as bandas continuem a ser o principal caminho, nas cidades do interior, para que crianças e jovens aprendam a ler partitura, tocar um instrumento, conviver com pessoas de diferentes origens, aprender a ter uma responsabilidade definida em determinado grupo, ajudar ao colega menos capacitado, enfim, incentivar os laços de coesão fraterna através da música. Na busca de cumprir esses objetivos, propus a iniciativa do Curso de Capacitação para Mestres e Músicos Líderes de Filarmônicas, ou simplesmente Curso Mestres, e por um ano e meio ensinei 69 Rildo e sua filarmônica, formada quase toda por familiares e amigos, são os herdeiros dos famosos Barbeiros de Pé de Serra, que tocaram numa estação ferroviária para D. Pedro II, em sua passagem pela Bahia. Ainda hoje tocam no carnaval, de ouvido, trechos de Aida e outras óperas, sem terem ideia exata da origem.Essas aberturas de ópera (Ernani, Aida) eram sucesso em 1888, ano do primeiro carnaval na Bahia. No Carnaval 2014 da cidade de Rios de Contas, onde estive com a Orquestra Fred Dantas, lá estava Rildo, com outros “fungas”, fazendo suas marchinhas de carnaval. 154 a arranjar e compor, em três núcleos: Salvador, São Félix e Sr. do Bonfim70. Em novembro de 2013, integrei a jornada de Capacitação Musical, do Programa de Apoio às Filarmônicas do Governo estadual, onde ensinei a compor, realizei o ritual compositivo diante de uma câmara, por três dias, visando criar uma vídeo-aula e, finalmente, estreei o resultado do meu curso, dois dobrados feitos pelos alunos, regendo eu próprio a banda modelo de integrantes da jornada71. O resultado dessas duas iniciativas – por considerá-lo pertinente à presente tese, serão apresentados como anexo ao presente capítulo. Enfim, a renovação do compor para banda leva em conta a prática diária de fazer música nacional, popular e finamente elaborada, embasada em princípios de nação e cidadania, princípios esses que se concretizam junto ao fazer musical das bandas, conquanto não se eternize no Brasil uma sociedade dividida entre uma gente pobre e marginalizada e pessoas ricas enclausuradas em condomínios habitacionais guarnecidos. 3.1 PRESERVAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA TRADIÇÃO A primeira categoria da dimensão do compor que me veio à mente é a preservação da tradição por meio da sua transformação, no que vai resultar em três peças de conclusão: uma peça de movimentação ordenada, uma peça de concerto e uma música ligeira. Antes de me lançar a uma tarefa de compor música nova, verificamos que há estatisticamente um precedente composicional, uma praxe de criação de novas obras nesse modelo de conjunto. Vamos observar se a existência dessas peças justifica, em importância, se referir a “uma tradição composicional na Bahia” e se esta provável tradição nos fornece pilares de significação que possam ser tomados como base para uma música transformadora. Nesse caso, iremos verificar se o contato com essa tradição irá gerar a necessidade de algo como uma “permissão histórica” para continuar a criar para a banda filarmônica, então necessitaremos conhecer os pilares transformáveis que a tradição das bandas de sopro e percussão no mundo, no Brasil e na 70 Além de outros professores de regência e instrumento desse Curso de Capacitação realizado pela Oficina de Frevos e Dobrados, com apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, um trabalho pioneiro, bastante descrito em suas didáticas e resultados na tese de doutorado de Celso Benedito, professor do referido curso (ver BENEDITO 2011). 71 Jornada de Capacitação Musical para Filarmônicas, realizada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, com apoio financeiro da Caixa Econômica Federal. 155 Bahia, nos fornece. Ainda cabe saber se, em suas épocas, essas peças hoje tradicionais eram consideradas vanguarda ou conservadoras. 3.1.1 Licença histórica para a minha experiência A presente categoria veio da constatação de que só pude compor depois de aprovado pelo tradicional e permitido pelo que nos caracteriza. Consta na história da música ocidental que o período romântico corresponde ao surgimento de certo perfil de compositor independente, tendo Beethoven como exemplo. Mas até o final do romantismo só se criava escudado em formas pré-anunciadas, sinfonias, sonatas, etc. A música do século XX precisou da ideia de rompimento; na vanguarda representada pela Escola da Bahia, a orfandade gerada pelo abandono das formas da música européia de concerto levou à procura de motivos locais: coco (Widmer), procissão (Lindembergue), alujá (Paulo Lima). No caso da banda filarmônica não há necessidade de estranhamento ao pedir licença à sua própria história para o exercício de compor atual. O que não posso é simplesmente chegar à frente da banda com uma peça chamada, em um título hipotético, “impressões cibernéticas” que começa com gente tocando e termina idem, sem anunciar uma forma, um comportamento funcional nem uma utilidade social. No Carnaval de 2015 em Salvador, Bahia, como já se tornou costume no trabalho da Oficina de Frevos e Dobrados ao longo de 25 anos, coloquei arranjos de músicas de sucesso do momento, como as atuais Gordinho Gostoso, vida mais ou menos e duas sofrências (ou “Arrocha”, músicas derivadas do bolero originalmente com letras ligadas ao desencanto amoroso) do cantor Pablo. Como esses arranjos foram feitos com a técnica correta, prevendo trazer o canto, o contracanto com base no que faz a gravação original (atividades dos teclados, violões, etc.), o centro com base no original e a marcação idem, é claro que funcionaram e agradaram ao grande público. Mas no momento em que retornávamos à marchinha carnavalesca, eu, toda a banda e também o público experimentávamos certa sensação de conforto, de retorno ao lar. Até aí se explica pelo evidente parentesco marchinha-banda, mas ocorria também outra coisa: nas adaptações de músicas afro, do Olodum,do Ilê Aiyê, e ainda músicas minhas como Abertura na Levada, tínhamos a mesma sensação de conforto. Então me permito supor que assim como as marchinhas estavam no pertencimento do dobrado, os axés atuais têm licença histórica do maxixe. 156 Quando me dediquei a compor músicas que classifiquei como “nova música tradicional” (música tonal que incorpora alguns avanços em relação à música de banda) eu já havia criado, no início da Oficina e fortemente influenciado por meus professores de composição na EMUS-UFBA (na época, Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA), dobrados atonais, ou seja, que embora em certos momentos soem aparentemente tonais ou façam uso de citações, não têm compromisso com tonalidade nem relações hierárquicas tonais. O retorno ao tom, propondo inclusive avanços harmônicos e compilação de estereótipos equivale a um formal pedido de licença para avançar. Algo como se eu dissesse: “prezados mestres e povo de banda, eu tenho um projeto artístico em parte identificado com o ambiente universitário onde convivo, mas olhem, com essas músicas ofereço algo possível de ser tocado a qualquer momento, com novas idéias, mas que provam a minha capacidade de agir previsivelmente, antes de dar um grande salto rumo ao desconhecido”. O Dobrado Luis Ayala foi composto em homenagem ao radialista que por mais de 30 anos manteve um programa, inicialmente na Rádio Sociedade da Bahia, depois na Rádio Excelsior da Bahia, sobre bandas de música. O dobrado foi peça de confronto no Festival de Filarmônicas do Recôncavo do ano 2005, sendo na ocasião executado por 22 bandas de música. Aqui procurei dar seguimento à prática do tangado, a síncope, tão característica dos compositores baianos da primeira metade do século XX, usando esse motivo rítmico em toda a peça. Embora sem fugir em momento algum da tonalidade, usei cromatismos, retardos e modulações com uma liberdade não pensada nos antigos dobrados, ainda assim conseguindo manter todos os seus traços de identidade. Audição 1 - Dobrado Luis Ayala, (1999) com Fred Dantas, 2012 O exemplo 39 mostra como alcancei cromaticamente a tonalidade de Lá menor do trio a partir do Fá menor da peça até então, combinando a elevação gradativa da tonalidade com elevação da dinâmica e da região dos instrumentos. O trecho de transição se inicia já em um Sol bemol menor, com um motivo em ritmo tangado, em piano, a cargo dos instrumentos tenores. No quinto compasso da transição, o motivo se repete meio tom acima, em meio piano e com instrumentos no registro contralto; mais quatro compassos depois, o mesmo motivo mais meio tom acima, em meio forte, com os instrumentos agudos, para no último compasso antes do trio alcançar a dominante da 157 tonalidade deste, com uma única nota em dinâmica forte nos agudos e com o tangado refletido pelos instrumentos graves. Exemplo Musical 39 - Dobrado Luis Ayala Na música composta para banda sinfônica, quenão desempenha o mesmo papel social das bandas de música que represento no presente trabalho, os avanços harmônicos e até mesmo exercícios atonais foram praticados, mas nas “marching bands” na Bahia, no Brasil e no mundo, predomina um ambiente conservador que a minha atitude composicional pretende contradizer, ao mesmo tempo em que procura estabelecer um paralelo com a vanguarda do passado em nossa formação. 158 Figura 25 - Luis Ayala grava a Oficina Depois do Dobrado Novo, do dobrado Pepezinho e da Marcha Santo Antônio, levei um bom tempo sem compor música nova para banda. Quando voltei à carga, com o Dobrado 2 de julho, me sentia plenamente ungido, autorizado pelos espíritos ancestrais, a interagir com os mestres-compositores da Escola da Bahia na direção de propor soluções ousadas, que permitem manter a banda de música no seu lugar de vanguarda, de casa de criação e cultura e ainda centro de instigação de ideias. Tanto que o coloquei o Dobrado 2 de Julho como peça de confronto no Festival de Filarmônicas do Recôncavo. Ocupo há 25 anos a estante de 2º trombone na OSUFBA, e desse ponto de observação e prática, tenho oportunidade de vivenciar a diversidade de estilos e períodos da música européia de modo diferente que através das audições e da literatura. Recentemente, ensaiando a 2ª sinfonia de Brahms, com regência de José Maurício, ocorreu-me que nenhuma obra jamais feita para banda filarmônica no Brasil alcançou, em termos musicais absolutos, tamanho fôlego e sofisticação. Só isso justificaria uma rendição incondicional à música sinfônica européia, e relegaria nossas obras-primas 159 aarte secundária, mas não é por aí: a sensação primordial de Lindembergue diante da marcha fúnebre em Livramento 72 é a mesma do presente trombonista diante de Brahms: De repente o som da matraca quebrou o silêncio. Saía da igreja o caixão do Senhor Morto coberto com o pálio e sustentado por quaro pessoas. Devo confessar ter sido essa, a maior emoção da minha vida de músico. Todos atacamos sem falhas a Marcha Fúnebre n. 10, de autor omitido (CARDOSO, 1994). [...]impossível deixar de reconhecer que a partir desse momento estávamos mais perto da concepção e elaboração da Procissão das Carpideiras, obra que projetaria Lindembergue no cenário nacional, no Festival da Guanabara. Os processos de sensibilização deixam marcas duradouras, e são de amplo espectro, podem vir de experiências muito distintas (LIMA, 2014, p. 51). Valho-me do relativismo cultural para não comparar coisas que não podem ser comparadas. O que importa é a sensação de verdade de quem compõe. Da minha estante, enquanto conto meus compassos, imagino que além da pungente variação sobre uma canção de ninar, no primeiro movimento Brahms colecionou as melhores soluções orquestrais de Beethoven e deu seguimento histórico a elas; no segundo movimento refez os grandes fôlegos melódicos dos românticos russos; no quarto incorporou a alegria das óperas cômicas italianas... Em meio a um ambiente sinfônico romântico, claramente conhecedor do velho gênio, há solos isolados de um modesto segundo trombone (enquanto o 1º trombone conta pausas) que Beethoven não obsequiaria. E não são movimentos independentes resultantes de dobramentos de vozes do coro, como ocorre nas missas de Mozart. Pirâmides envolvendo tuba, 3º , 2º e 1º trombones, em entradas independentes. Capitalizando, incorporando avanços, a instrumentação é mais generosa em relação ao todo da orquestra, ou seja, Brahms tem avanços aprovados pelo que veio antes, exatamente como ocorre na minha filarmônica idealizada. 3.1.2 Pilares transformáveis O uso tradicional aponta para o que pode ser modificado: funções, forma, instrumentação. As tais funções (canto-contracanto-centro-marcação) pedem novo canto, novo contracanto... esses pilares que chamo de funções instrumentais na 72 Paulo Costa Lima, em Teoria e prática do compor II, re-lê nesse depoimento de Lindembergue algo que podemos relacionar com a permissão histórica, vinculando a execução de uma marcha fúnebre na sua filarmônica natal à composição da Procissão das Carpideiras. 160 filarmônica existem na maioria dos estilos de música ocidental. Na orquestração sinfônica eles estão dispersos em uma instrumentação muito variada. No coral a 4 vozes estão distribuídas nessas vozes. Num conjunto de chorinho, no jogo entre violões, bandolins e solista. O que ocorre na banda é que – para fazer soar um conjunto de sopros com certa graça e movimento – a distribuição precisa dessas atividades se torna referência para a composição. Vamos pensar, à guisa de exercício, o que representa numa banda a ausência delas. Basta ir a uma igreja luterana e escutar uma banda sacra executar corais originais, como realmente o fazem: é uma banda com todo o instrumental da filarmônica, exceto a percussão, mas ela não “gruva”, não anda, não balança (nem se pretende que se faça isso na Congregação Cristã do Brasil. Quando as outras igrejas decidiram por uma música dançante, foram criar conjuntos com guitarras e bateria, inspirados no pop-romântico norte-americano). Ocorre que, para uma composição que se pretenda renovada, nova, para banda, se não forem adotados novos pilares ela também não se move modernamente. No meu entender, e no que apliquei nas minhas músicas estranhas, há um canto, não-tonal. Há um contra-fato o contracanto, para ele; há um centro provendo um balanço não-regular e uma marcação, se não aleatória, pelo menos não binariamente regular. Os pilares estão lá, me possibilitando transformá-los para que me ajudem a fazer uma composição bandística que se pareça moderna e legítima. Do mesmo modo que colocamos quando falamos da forma, da importância da forma para afirmação da música de filarmônica, vamos arrolar como pilares transformáveis essas palavras que para a renovação da música européia perderam a importância, mas que para nós permanece como elemento de afirmação, para que não nos percamos no vanguardismo e se mantenha a ordem. Então no dobrado Anysio Teixeira estão lá bem audíveis a introdução, curta e forte. A primeira parte bem discursiva, dividida em duas sub-partes, em seguida um forte bem forte mesmo, uma volta ao início, uma ponte e um trio, tranquilo, subdividido em pianíssimo e meio-forte. Outro pilar transformável é a instrumentação. Nas três peças de conclusão usei flautim, flauta, requinta, clarineta, sax alto e tenor, trompa, trompete, trombone, bombardino, tuba, caixa, bombo e pratos, com algum efeito eventual. Coloquei voz feminina porque alguém já o fez, na música de banda tradicional, mas evitamos o oboé, fagote, tímpanos, instrumental que pode expandir o timbre, mas limita nossa mobilidade. A transformação das bandas militares em bandas sinfônicas custou muito 161 caro às corporações civis, principalmente no sul do país, e às bandas das Forças Armadas, em geral: em linguagem figurada, perderam os testículos. Ao se ousar mantendo a instrumentação da banda de marcha, da banda militar, estou transformando, com liberdade e pertencimento, o pilar da nossa identidade, e garantindo a existência do nosso trabalho por mais cem anos. 3.1.3 Antiga e nova vanguarda Os velhos mestres eram a vanguarda do seu tempo: devemos ser a vanguarda do nosso. Examinando o repertório clássico das bandas filarmônicas e mesmo os dobrados militares vamos ver traços de contemporaneidade em relação à sua época. Para um conjunto que se pretende sério a única proposta possível para um compositor atual é criar nova música séria. Por música séria entendo evitar um retorno triunfalista ao passado (aqueles climas das suítes cinematográficas que os americanos vendem aos montes para bandas sinfônicas de todo o mundo, como Stars Wars, A bela e a fera, etc) e a música humorística. No caso norte-americano, miremos no exemplo da musica patriótica de Souza versus a invenção do jazz por Jim Europe, tratada no capítulo 2. A música de Souza é muito bem feita, mas anacrônica. A música de Europe quer ser o mais moderno possível e ainda se referir ao problema da representatividade do povo negro. Os exemplos mais antigos de música composta para banda filarmônica na Bahia se encontram nas corporações do Recôncavo, como a Minerva Cachoeirana e a Terpsícore de Maragogipe. São dobrados com excelente encaminhamento harmônico e melodias de fôlego. Vez por outra encontramos modulações inesperadas, e no caso de Tranquillino, experimentalismos mesmo. Tudo feito com muita seriedade e coerente com a música da Europa no final do séc. XIX. Mesmo que, até os anos 194073, possa existir certa defasagem em relação às conquistas da música sinfônica, as músicas de banda estiveram sempre um passo à frente da música popular até a Segunda Guerra. Essa imagem de bandinha engraçadinha tocando marchinha nunca passou pela cabeça dos severos, antenados, coerentes Amando Nobre e Estevam Moura. Amando era 73 Por que anos 1940? por dois motivos, primeiro as bandas se tornaram militarizadas, atreladas ao totalitarismo que assolava o mundo; depois porque perderam a guerra, cedendo lugar à influência da orquestra de jazz. 162 jornalista e Estevam se correspondia com Villa-Lobos. Nos arquivos as transcrições referenciais são aberturas de óperas de Verdi, como Simão Bocannegra, Ernani e Aida. Essas três composições, o Dobrado Novo, o Dobrado Pepezinho e a Marcha Santo Antônio, fecham um ciclo, um período experimental e provocativo da Oficina de Frevos e Dobrados. Da segunda metade dos anos 80 por longos anos, a banda consolidou um repertório com base na pesquisa, enquanto eu – recuando um pouco na vanguarda – passei a criar de forma mais associada ao papel da banda no mercado de trabalho da época. Surgiram aí os arranjos afrobaianos, os hinos e dobrados pontuais (Luis Ayala, Lira de Maracangalha, 100 Anos da Filarmônica Apolo etc.), a antiga e nova banda de pesquisa se torna uma filarmônica de fato e seu jovem mestre, entre ser provocativo ou pontual, continua a fazer música ligada a datas, fatos e pessoas. Entre os anos 1983 e 1984, eu era aluno de Lindembergue Cardoso, na Universidade, e acabara de entrar em contato com Ernst Widmer, Agnaldo Ribeiro, estudava improvisação com Walter Smetak e a Oficina de Frevos e Dobrados se iniciava com sucesso, cheia de gente jovem, resgatando a arte da filarmônica, já tendo realizado o Seminário Estudantil de Pesquisa (UFBA 1983) e o resgate de obras de Tranquillino Bastos (Funceb 1983), dois momentos decisivos. O que houve foi pensar: “mantendo-se a forma e a instrumentação que caracterizam a banda, poderei avançar à vontade com a melodia e harmonia, ficando assim fiel, ao mesmo tempo, às minhas origens musicais e aos meus novos orientadores”. Sobre a questão permanência e mudança – aplicada aos dobrados novos, vamos encontrar referência na respeitável voz de um dos mais criativos compositores brasileiros (os grifos são do texto original): A continuidade histórica dos elementos de uma arte, pela permanência ou repetição de algum fator, leva à cristalização de modelos, quer no nível dos meios (técnicas), quer no nível dos fins artísticos. Sendo impossível pensar o ato artístico, como qualquer ação, sem permanência ou repetição de algum elemento, a criação artística, devido à sua insaciável sede de renovação, realiza-se como um eterno paradoxo: a arte tradicional faz a repetição funcionar como contraste; a moderna tenta renovar o contraste sem a repetição; a pós-moderna, pior ainda, pretende um acordo entre a extrema repetição 163 (redundância) e o extremo contraste (originalidade) (CERQUEIRA, 1991)74. E, ao final do mesmo trabalho, Fernando Cerqueira conclui que Finalmente, se quisermos ser generosos ou justos com os "rótulos", cada compositor, mesmo consciente, deverá, sem pudores ou conflitos, ser merecedor do seu. Assim, somos obrigados a admitir, como característica da nossa geração "pós"-moderna e da sua arte fimde-século, uma fusão barroca onde convivem sem grandes dilemas, às vezes numa mesma obra, recursos da velha tradição, mixados aos métodos rigorosos ou à improvisação e espontaneísmo libertário da nova tradição, os modernistas do séc. XX, nossos legítimos precursores. Compete ao artista-compositor, e à sua consciência, transformar esta (con)fusão num "carnaval" conciliador ou numa fusão crítica. Pois, a obra artística, como um todo, será sempre uma metalinguagem denunciadora de "algo" diverso, maior (ou menor) do que a soma das suas partes (CERQUEIRA, 1991). E assim tem sido. Houvesse eu insistido mais, divulgado mais entre as bandas de música essa conjunção talvez os concursos e festivais do gênero estivessem mais interessantes. Mas tudo ao seu tempo. O que ocorre então é o declínio da solicitação do serviço da banda de música, enquanto cresce na mesma proporção a popularidade das jazz-band e – um fenômeno admirável sob qualquer ponto de vista – sua incorporação das dissonâncias via arranjadores judeus de N. York, que foram digeridas pelos arranjadores negros, até que esse processo culmina no Free-jazz espontâneo de Ornette Coleman e na atonalidade cerebral de John Coltrane em sua última fase ou na orquestração de Gil Evans. Tudo isso foi conseguido com quatro ou cinco décadas de atraso em relação à música de concerto, nos anos 1950-70, quer dizer, ainda há tempo para inventarmos a free-banda. 3.2 MOVIMENTO Esta categoria da dimensão do compor resulta de que não se pode pensar em banda sem prever pessoas se movendo e uma música que incite a isso. Na etapa da busca por um conhecimento de processos composicionais na banda de música pretendia ver se o movimento das pessoas no seu serviço musical em marchas, passeatas, procissões e 74 Simpósio Brasileiro de Música. Sub-área Composição. Tema: a década de 80: abandono, reação e continuidade.Tópico: Técnicas composicionais. Salvador, agosto de 1991. 164 festas públicas, podia ser induzido por processos de composição e orquestração. Se haveria uma coleção de fórmulas de acompanhamento que induzam ao movimento. Se haveria migração do movimento gerado na execução de instrumentos populares tocados de ouvido, como o violão e a sanfona, para a execução em partitura com instrumentos de sopro; se a alternância de ritmos sincopados e regulares auxilia nessa movimentação; se existem fórmulas de marcação grave e acompanhamento rítmico em registro médio que atuam combinadas; e finalmente se além das fórmulas de acompanhamento e tipificações de ritmo, o contorno melódico também pode induzir as pessoas a se movimentarem. 3.2.1 Re-texturização Chamemos de re-texturização o conjunto de soluções escritas para trazer aos instrumentos de sopro a movimentação dos instrumentos populares. A movimentação interna de qualquer música se deve à capacidade de fazer mover as melodias principais, melodias secundárias e formas de apoio a essas melodias. A boa manipulação desses elementos nos dá excelentes quartetos de cordas, quintetos de sopro e obras para coro misto. Quando se trata de fazer mover as pessoas, os antigos terços ou ternos(madeiras, metais, percussão) medievais, nossos avós, acrescentaram aos sopros pessoas rufando tambores e instrumentos metálicos. A junção desses dois conjuntos, a parte melódica a quatro vozes e o acompanhamento da percussão, gera a banda de música. Parece que a música para marchar foi mais ou menos bem resolvida com os acompanhamentos centro-marcação do dobrado e da marcha solene. Musicalidades populares como o schotis, a marcha rancho e o frevo sem dúvida nasceram na banda e foram imitadas pelas cordas e sanfonas populares. A criação em partitura de algo que dê uma idéia de mobilidade é um problema composicional que vem sendo resolvido pelos mestres-compositores há muito tempo, a depender da sua necessidade. Para os tempos solenes e para o dobrado, se tratava de prover o enchimento que nós simplesmente chamamos centro, que foi definido academicamente como “acompanhamento rítmico-hamônico”75. Faltou-lhe citar os padrões que se usa em cada caso. 75 RicardoTacuchian, II Congresso de Etnomusicologia, UFBA, 1994, apresentação pessoal. 165 Na prática das bandas de música da Bahia, para as músicas lentas, nos exemplos mais antigos, se usa os padrões que podemos resumir como: Exemplo Musical 40 - Padrões de centro e marcação Esses parecem ser padrões que foram sistematizados na banda e eventualmente acabam reproduzidos em alguma formação popular. Em via contrária, para a execução em banda dos ritmos originalmente populares, um problema se instala, pois nos violões e na sanfona se fazem de forma espontânea, pequenos sons complementares sugeridos pela organologia do instrumento: a execução “negativa” do violão provoca uma falsa execução que induz ao movimento, algo que combina som e ruído. Na sanfona do mesmo modo, a repetição do acorde positivo com o movimento contrário produz um som menos intenso, mas com enorme poder de balanço. Como transpor isso para sopros, que só produzem sons “positivos” à procura de efeitos dançáveis? A primeira solução grafada em partitura para os ritmos sincopados no Brasil, nabanda de música, veio de Anacleto de Medeiros com as semicolcheias do maxixe (Os Bohêmios é um bom exemplo), mas prosseguem na solução cêntrica da marcha-rancho. Exemplo Musical 41 - Padrões populares de centro-marcação Maxixe Marcha-rancho A Abertura na Levada pode ser considerada um exemplo recente de música ligeira para banda, composta no final dos anos 1980, quando o movimento musical axé apontava para as grandes movimentações que viriam com a música da Bahia. Eu queria 166 demonstrar que os novos padrões de condução rítmica, as vozes então novas e ao mesmo tempo antigas do povo negro, as melodias reinventadas, poderiam muito bem ter seu reflexo na arte da banda de música. E criei essa abertura, que foi gravada pela Banda de Música Maestro Wanderley, da Polícia Militar da Bahia no seu CD de 1999. A peça se divide em três momentos, seguindo um provável estilo de canção axémusic: a primeira parte é um enunciado, uma melodia estreita dentro do que se cantava na época. A segunda parte é o enredo, com notas mais longas. A terceira parte é como um refrão, onde normalmente, no ambiente popular da Bahia, se canta vocábulos tipo “ô ô – ô ô”, e podemos de fato quase ouvir isso nessa linha melódica. O acompanhamento pode ser definido como samba-reggae, estilo aperfeiçoado pelo mestre de bateria Antônio Luis Alves de Souza (1954-2009), o Neguinho do Samba. Exemplo Musical 42- Abertura na Levada Cumprindo o que se espera de uma música ligeira de filarmônica, a Abertura na Levada induz à dança e trabalha sobre motivos oriundos da música cantada pelo povo, com elementos de identidade local, apesar de ser composição instrumental e originalmente criada para a instrumentação da banda. Audição 2- Abertura na Levada (1986), com a Banda de música Maestro Wanderley da Polícia Militar da Bahia, 1999. 3.2.2 Fator rítmico na condução O presente item trata de atitudes composicionais derivadas da solução de acompanhamento envolvendo desequilíbrio - equilíbrio e relação entre centro e marcação. A primeira é a interposição de ritmos regulares entre um discurso sincopado. 167 Como vimos no item anterior, para a composição musical grafada em partitura, como é o caso da música de banda, e destinada a mover as pessoas, o compositor deve dominar técnicas que apreendam, domestiquem fórmulas populares que induzem ao movimento. Está claro que a fórmula de deslocamento do tempo forte induz à idéia de dança de origem africana. Mas ainda recorrendo à herança africana, a interposição de um curto período de regularidade acaba por enfatizar esse balanço, ao invés de contradizê-lo. Na matriz africana a interposição de tempo binário com um período maior ternário, que aqui representamos em compasso seis-por-oito, cria a seguinte situação: Exemplo Musical 43 - Afixerê76 Que vai se manifestar no maxixe de Pedro Salgado da seguinte forma: Exemplo Musical 44- Maxixe Carinhoso Da relação marcação – centro surge a idéia de que nada pode ser feito no acompanhamento rítmico-harmônico (centro) sem levar em conta a atividade do baixo, e vice-versa. É nesse jogo que se diferencia um samba de um maxixe, de um lundu e de um xaxado. Diferenças mínimas, expressas às vezes em uma só colcheia, definem o título de uma futura composição, ou impulsionam sua criação. Mesmo definido qual o estilo a ser criado, o comportamento do acompanhamento rítmico-harmônico está estreitamente vinculado ao baixo. Em um dobrado, por exemplo, cada marcação requer seu centro específico: 76 O Balé Folclórico da Bahia, sob direção de Walson Botelho e Vavá Ninho, na última parte da apresentação recria a dança de origem africana Afixerê, que significa exatamente “Dança da Alegria”, ou “Dança da Felicidade”. 168 Exemplo Musical 45- Modelos centro-marcação no dobrado 3.2.3 Contribuição melódica do movimento Quando falamos do movimento sendo construído a partir da relação centro-marcação, eis o caso que nos dá mais na vista. Mas há um impulso melódico que induz ao movimento, e aos diversos tipos de movimento. Parece-nos óbvio que a síncope - tratada no capítulo 2 quando trata da “mão afro brasileira” na banda – induz à dança. A síncope que por certo tempo não era escrita, mas executada. Quando passou a ser grafada, gerou o tango brasileiro, choro, maxixe. Exemplo Musical 46- Movimento melódico no maxixe O sincopado da banda nunca aceitou plenamente o samba convencional, que nunca se adaptou à escrita polifônica da banda pelo excesso de maneirismos, difíceis de ser grafados. Qual contribuição a melodia, o canto,dá para sugerir movimento ao mais conhecido e aceito estilo formal, ou seja, à marcha? No dobrado clássico, militar, que necessita marcar o tempo no chão, as frases são bem determinadas e se valem da intercalação de quiálteras, sugerindo também na melodia o tempo caracterizado pela marcação: Exemplo Musical 47- Movimento melódico no dobrado 169 Na marcha popular, assim como no dobrado interiorano, na busca por induzir ao movimento, além do deslocamento de tempo típico da marcha rancho, também se usa o breque: Exemplo Musical 48- Movimento melódico na marcha popular Também vamos encontrar bastante sugestão melódica de movimento em uma forma extinta no início do século XX, a passeiata. Uma movimentação livre, graciosa, mas não sambada: Exemplo Musical 49- Movimento melódico na passeiata Vamos creditar também ao canto, em combinação com o contracanto, a ideia de movimento pendular, acentuando o caráter severo da marcha religiosa, encarregada de conduzir a multidão em fila, levando os andores com os santos por ruas tortuosas e ladeiras íngremes, sem pressa de chegar: Exemplo Musical 50- Diálogo canto-contracanto na marcha lenta Em resposta à questão se, além dos acompanhamentos sugestivos, a melodia também se faz pensando na indução ao movimento, a resposta é positiva. 170 3.3 ÍMPETO Entendemos como ímpeto composicional na banda filarmônica o impulso imediato para criação de uma música. Na busca por dados que embasem a presente categoria da dimensão do compor vamos verificar se o ato de criar para banda de música, além de requerer conhecimento histórico e técnico, pode ser influenciada emocionalmente, por seu contato com a comunidade e outros grupos e líderes. Vamos observar até que ponto esse contato pode trazer a demanda por uma nova composição; Se essa nova música pode ser motivada pelo progresso técnico de jovens alunos de uma banda em construção ou se o mestre somente aplica, como nas bandas estadunidenses, repertório impresso com grau de dificuldade gradativo. Vamos ainda verificar se a presença de outro mestrecompositor na cidade, à frente de uma banda rival, pode acelerar no mestre-compositor a vontade de compor e criar com motivação competitiva. 3.3.1 Demanda O ímpeto composicional pela demanda é o compor motivado pela utilidade perante um evento futuro. Antes vamos nos perguntar: de onde vem o impulso de compor, de criar uma música nova entre músicos profissionais? Na história da música européia, após uma guerra, com o nascimento de um príncipe, ou por pressão de um público ávido surge um Te Deum, uma fantasia, uma nova opereta. No compositor popular, a seresta do domingo, a perspectiva da música premiada do carnaval, a novela, fazem surgir uma canção. No caso do mestre de bandas a palavra chave é utilidade. Se há solenidade, criase um dobrado. Se for uma apresentação para público – ouvinte, oportuniza-se a polaca ou a fantasia. Morreu alguém, uma marcha fúnebre. Por essa questão de se referir a fatos, datas e pessoas, em comunidades pequenas, a composição acaba por ser mais evidentemente um compromisso autor-comunidade. A primeira música não-tonal composta especialmente para banda foi o Dobrado Novo, onde num quodlib cito melodias de vários dobrados tradicionais, não sem antes ter lançado uma melodia poderosa, instigante e serial:77 77 Ao que tenho conhecimento, é a primeira composição voltada para essa formação (banda militar) que não proclama um tom, nem respeita as relações tonais. Aqui, melodias podem sugerir o tom, mas em contexto adverso. Com efeito, nem as músicas feitas por Schöenberg sob encomenda de bandas alemãs tinham esse escopo. E as citações de Charles Ives referentes à banda são todas convencionais e ilustrativas. 171 Exemplo Musical 51- Dobrado Novo Audição 3- Dobrado Novo (1983), com a Banda de música do Curso Mestres, 2008. Eu havia acabado de consolidar a ideia de oficina de frevos e dobrados não como uma apresentação, mas um projeto a conviver dentro da Escola de Música da Universidade; aqui os meus professores eram compositores de vanguarda: o ímpeto composicional fez surgir a demanda, na nova banda, de um dobrado de vanguarda. 3.3.2 Progresso Impulso composicional pelo progresso é o compor motivado pela evolução técnica do conjunto. O compositor de filarmônica não é um profissional independente. Geralmente sua criação se vincula a um conjunto criado ou mantido a duras penas dentro de uma comunidade de limitados recursos materiais. A primeira música que toquei se chamou Dobrado nº 1, do mestre João Sacramento Neto. Nada mais simples que possa ser tão eficaz. Ali estão todos os parâmetros de um dobrado: as funções, a forma, mas tudo em semínimas, colcheias e algumas ligaduras. O segundo dobrado, Consórcio, era quase igual, mas o terceiro, chamado Dobrado nº 26 e o quarto, Dobrado Os Músicos, já eram obras mais definitivas. Nesse caso a criação do mestre se vinculou ao progresso técnico do grupo, e carregou-se nas tintas para o naipe mais evoluído. Logo após criar por ímpeto da demanda por um primeiro dobrado novo, logo depois, por progresso do novo conjunto, criei o Dobrado Pepezinho, dedicado ao meu filho Pedro. Inclui esse dobrado no CD Oficina de Frevos e Dobrados 15 anos e depois tive o prazer de ouvi-lo com a banda sinfônica de Sobradinho, próximo a Brasília, sob a 172 competente regência do maestro Nascimento. Aqui, além da harmonia não tonal, faço brincadeiras, no trio, com superposição das musiquetas preferidas da criança sobre um gracioso balanço de alternar compassos e registros, como vemos no exemplo: Exemplo Musical 52 - Dobrado Pepezinho Audição 4- Dobrado Pepezinho (1983), com a Oficina de Frevos e Dobrados 1999. 3.3.3 Competição Compor motivado pelo progresso do outro gerando um esforço cerebral competitivo. A competição está no DNA da banda de música e graças a ela muita música de boa qualidade foi criada nas cidades do Brasil. Isso inclui além da competição por criar uma nova música melhor que a adversária, tirar dessa banda adversária e seu mestre o gozo composicional subtraindo-lhe uma música prometida à comunidade. Uma banda de música só é feliz se existir outra, na mesma cidade ou na região,para ela competir e ganhar 78; o Festival de Filarmônicas do Recôncavo, em suas 78 Foi assim que aplaudi e estimulei a criação de uma banda filarmônica na Escola de Música da UFBA. Pelas histórias que colecionamos, roubar um dobrado não é plágio, nem incompetência, é tirar do compositor adversário o gozo da estréia. Já que o prof. Celso não compõe, espero que Alfredo Moura crie algo que vale a pena ser roubado, para eu furtivamente, tomando um suco na cantina, transcreva tudo e estréie antes, de preferência no mesmo evento em que ele pretendia estreá-la. 173 muitas edições, foi vendo as bandas melhorarem pelo estímulo de vencer, além de representar sua cidade diante de outra da mesma região. Como o festival não estimula efeitos fáceis nem repertório comercial (temas de novelas, música de rádio, etc.) as bandas foram buscar nos seus arquivos fantasias, polacas, peças de difícil execução, e então podemos ver, por diversos anos, exibições de contracantos ou cadenzas serem aplaudidos pelas respectivas torcidas, momentos inusitados que jamais fugirão da minha memória. O Dobrado 2 de Julho, que dá prosseguimento à ideia de música não tonal para banda, foi uma atitude tomada muito tempo depois. Uma provocação. Primeiro elaborei, à guisa de estudo, uma versão do Hino ao 2 de julho (Santos Títara – Santos Barreto), onde dou identidade própria às três vezes em que a melodia é repetida, no original por simples ritornello. Em seguida, crio o dobrado, uma música nova sobre o hino, e assim pude colocar no computador a partitura do hino e recriá-la das diversas maneiras: por inversão, retrógada e espelho, observando nisso os movimentos de canto, contracanto e acompanhamento. Exemplo Musical 53 - Dobrado 2 de Julho Audição 5 - Dobrado 2 de Julho (1998), com a Filarmônica Terpsícore Popular de Maragogipe, 2010. 174 O trio é uma peça à parte, um ostinato representando a entrada do exército libertador pela estrada da Lapinha, a Estrada da Liberdade, onde hoje é o bairro do Ylê Aiyê. Essa ideia de ostinato, não tonal, mas ao mesmo tempo finalizando em terças, foi inspirada nas atmosferas sonoras do compositor norte-americano Charles Ives. Consta que, por ser filho de um mestre de bandas, e ter se iniciado em uma banda de música, Ives tenha sido particularmente feliz no trato com os sopros e na reconstrução, usandoapenas os sons, de toda uma ambiência da vida americana do seu tempo. Exemplo Musical 54 - Trio do Dobrado 2 de Julho Foi muito revolucionário ouvir 22 bandas de música – algumas com mais de cem anos de existência – tocar essa nova música, já que todas eram obrigadas a fazer isso se quisessem ganhar o festival. Imagino que aos ouvidos habituados à música nova na Reitoria da UFBA, ou em algum outro espaço acadêmico, seria no mínimo curioso ouvir essas dissonâncias partindo de um conjunto amador, cheio de adolescentes, em um espaço de solene popularidade. 3.4 PROPEDÊUTICA Todo mestre de bandas discursa nos ensaios, e isso vai formando a cabeça do músico, que não será somente um leitor-tocador de partitura. Buscando chegar à presente Categoria da dimensão do compor procuramos investigar se o discurso habitual dos mestres à frente do seu conjunto traz informações sobre composição ou algo que induza à composição. Se o discurso do mestre sobre música pode motivar ou gerar elementos de compor; se seu discurso ético, sobre o que significa fazer parte de uma banda, pode do mesmo modo gerar uma música ética; se seu discurso histórico pode nos motivar a dar continuidade a essa história criando peças musicais que incorporem os conhecimentos tradicionais, seja tão consequente quanto as peças clássicas e crie situações que conduzam a composição bandística à contemporaneidade. Cito como exemplo a Marcha Santo Antônio, que é o reflexo atual da Marcha Fra Terenzio, que o 175 mestre João Sacramento citava como exemplo de beleza musical piedosa, religiosa, na sua infância na cidade de Condeúba; eu toquei a Fra Terênzio inúmeras vezes nas procissões do interior, naquela época já ficava admirado com o perfeito jogo entre canto, centro, marcação e uma segunda linha melódica, muito mais longa que um contracanto. E quando pude a recriei, em uma nova marcha religiosa, usando clusters, células de improvisação dirigida, tudo o que aprendi com Lindembergue Cardoso, meu professor de composição à época. 3.4.1 Discurso sobre musica O discurso do mestre também pode gerar um ímpeto composicional, motivado pela história. O meu trabalho tem sido compor e ensinar a compor, para dar continuidade ao fato que em banda – além dos grandes dobrados encontrados em todo o Brasil 79- se cria repertório, não se compra repertório. Composições são objetos – que se tornam frágeis, casos de uma cidade só – ou ícones que migram pelo país inteiro de uma forma admirável. Sem mídia, sem acordos prévios, sem jabaculê, dobrados de autores baianos são tocados do Amazonas ao RS. Deve-se dar continuidade à essa prática saudável. Do ponto de vista composicional, a mais simples música, criada por um aluno, é mais importante que uma peça mandada buscar impressa. No caso da banda, há um profundo respeito em relação às conhecidas obras “clássicas” que caracterizam o conjunto, que são conseguidas em cópias manuscritas e modernamente através de arquivos de internet, como o excelente banco de partituras disponibilizado pela Universidade Federal do Ceará. Mas a principal motivação para se compor algo novo é a relação com a comunidade: inaugurações, nascimentos, eventos locais. O meu próprio e continuado discurso sobre as três demandas principais para a música de filarmônica, marcha, concerto e folia, motivou a composição da Suíte Maragogipe, que em três movimentos distintos, alterna compassos e tonalidades diferentes e admite momentos de solo. Foi composta como homenagem ao fotógrafo e artista plástico Pedro Archanjo, natural da cidade baiana de Maragogipe e criador, junto comigo, do Festival de Filarmônicas do Recôncavo 80. Em três movimentos, procuro fixar a musicalidade de diferentes momentos da vida sócio-musical daquela cidade. 79 Ver a lista de dobrados clássicos citados no capitulo 2 da presente tese. Por felicidade, um bom número deles é de autores baianos. 80 Ver item 2.4.4.2, páginas 122 - 126 do segundo capítulo desta tese. 176 No primeiro movimento, o dobrado reconstrói o estilo do compositor maragogipano Heráclio Guerreiro (1877-1950): bem estruturado, com uma base sólida de marcação, a presença do contracanto, a linha melódica iniciada com as palhetas e repetida pelos metais 16 compassos depois, um trio exemplar com a presença do ritmo tangado na marcação. A modulação do Mi menor de até então para o Dó maior do trio se faz por nota comum, o Mi, um recurso não usual no dobrado tradicional, como vemos no exemplo 40. Exemplo Musical 55- Suite Maragogipe O segundo movimento desta suíte é uma marcha de procissão, de um estilo que também corresponde aos hinos locais, executados em cortejo quando certo dia a cidade se reveste de vermelho para reverenciar São Bartolomeu, o mártir padroeiro. No segundo movimento da Suite Maragogipe, depois de quatro notas repetidas dos graves, surge a piedosa melodia feita pelo flautim, sombreada três oitavas abaixo por um saxofone barítono ou, na falta deste, por um bombardino. Depois vêm os tutti, onde a banda em forte entoa uma melodia tão comum quanto bela. Audição 6 - Suite Maragogipe (2007) com Fred Dantas (2012) 177 3.4.2 Discurso ético A composição para uma banda pode ser resultado de uma fala motivacional, visando futura realização musical. Vamos entender o que nos é caro ver preservado e levar adiante, nos adaptando aos tempos. Todo o meu discurso sobre a preservaçãovanguarda, manutenção das funções e formas, adesão ao dodecafonismo, etc. é um discurso ético, cuja realização prática, para efeitos do presente doutorado, é a composição do dobrado Anysio Teixeira, apresentado no próximo capítulo como conclusão da nossa tese. Ainda faz parte do discurso ético a composição dirigida a datas, fatos e pessoas, a banda como extensão da comunidade, a necessidade de compor para renovar o repertório sem recorrer a arquivos externos e a formação de discípulos, no caso alunos mais capacitados, para futuramente ensinar, reger e compor. O presente item inclui músicas tonais compostas por mim, que já foram tocadas e gravadas por diferentes bandas de música. Com o adendo de “nova tradicional” quero dizer que, além das características de música de marchar, de ouvir e de se divertir, está preservado o uso de compasso, tonalidade e forma. Entretanto essas músicas criadas nos padrões tradicionais são consideradas novas, por desenvolver ou agregar novas soluções. 3.4.3 Discurso histórico Somos responsáveis por dar prosseguimento a uma arte muito antiga, que é o conjunto de sopros e percussão. No discurso histórico encontramos justificativa para que tudo que realizamos ao compor para filarmônica se refere ao passado e à responsabilidade com o futuro. Acreditamos que somos mais antigos que a orquestra sinfônica. O meu mestre João Sacramento Neto não deixava de pregar, em seus discursos para uma banda de meninos sertanejos, que éramos continuadores de Guido D´Arezzo, “que foi mestre de banda na cidade de Pamplona”Certa vez fui convidado pelo conservatório de Tatuí para um seminário – bandas de coreto – para justificar meus dobrados atonais e passei metade de meu tempo falando de Leoninus, Perontinus, Ars Nova, tudo que nos incluía antes do trunfo das cordas, do piano, da “música de dentro”. 178 A peça mais pretensiosamente ligada a esse discurso é a Marcha Santo Antônio, onde por experiência incluo clusters, células de improvisação e compassos ímpares, tudo sem perder o espírito constrito das marchas de procissão. A introdução da marcha é muito misteriosa, com notas longas e graves, encaminhando o gesto musical na direção de um breque em fortíssimo, do qual brota o canto principal, das clarinetas. A marcação, numa pulsasão cardíaca a cargo do bombo, corresponde ao próprio coração de Santo Antônio. Exemplo Musical 56 - Marcha Santo Antônio A nossa marcha impregna-se de elementos e referências próprias das características ligadas ao santo: a interferência no amor (o santo casamenteiro); o penhor da justiça (o advogado que onipresente foi em defesa do próprio pai); o soldado. O discurso musical vai refletir a estrutura das marchas de procissão tradicionais. Em verdade, alternam-se trechos bastante contrastantes, onde se usa música do século XX alternados com citações de antigas marchas de procissão. Audição 7- Marcha Santo Antônio (1983), com a Banda do Curso Mestres, 2008. 179 3.5 REPETIÇÃO Entre as Categorias da dimensão do compor que elencamos, a mais recorrente é que em bandas de música se prevê estruturalmente o uso da repetição, em suas diversas formas: reescrita, ou por ritornello, ou por pulos via sinais de S e O. Os sinais de repetição têm presença obrigatória no repertório bandístico. Ora, para movimentos repetidos, uma música que se repete. Resta ver de que forma a idéia de repetição influencia na criação, na geração de conhecimento composicional. De como a repetição pode reafirmar a forma escolhida; de como a repetição pode reafirmar um discurso característico; se repetir, além de reafirmar forma e melodia, também pode gerar uma reflexão, uma resignificação musical. Isso vale também para as intervenções verbais. Estreamos a Marcha Santo Antônio no meio da rua, no bairro do Tororó, com o ator Inaldo Santana gritando por duas vezes, por retornello, “Isso é tão importante, será que eu compreendo? Santo Antônio, e o amor, e o amor?” na peça de conclusão intituladaSedare Dolorem opus Divinum est, em homenagem ao meu pai, a soprano Irma Dantas, respondida pelos músicos, também obedece à barra dupla com pontos, e reafirma o diálogo: “doutor, o senhor salvou a vida do meu filho... – eu não salvei ninguém, eu receitei.” 3.5.1 Reafirmação da forma A repetição reafirma a forma. Desde quando uma introdução não se repete, assim como ponte e coda não se repetem, corpo e meio (primeira parte e forte) sempre se repetem, um trio se repete? Depende. No caso da primeira parte, da exposição ou canto de um dobrado, esse retorno é obrigatório, embora na própria estrutura se dê um retorno melódico, uma vez com madeiras outra com metais. Mas é necessário que essa idéia seja repetida e na primeira casa haja uma obrigação feita pela tuba, obrigação essa que não existe ou existe de forma bem diferente na segunda casa. Do mesmo modo o forte, ou segunda parte é via de regra repetida, reafirmada, ainda mais por ser uma parte menor, com menos compassos. No caso do trio, para se reafirmar a idéia musical, não é obrigatório repeti-lo por barra de rittornelo, pois o mais comum é se optar por uma melodia muito simples, “quase-nada”, enfatizando os tradicionais floreios do bombardino, para em seguida realizar essa mesma melodia em uma dinâmica maior, por exemplo, usando os instrumentos de metal, e fim. 180 Em todo caso a forma, que apontei no início do presente capítulo como um dos mais caros pilares transformáveis da música filarmônica, é estabelecida, afirmada e consagrada com o uso da repetição. O que não é repetido se torna introdução, passagem ou fim, partes a serviço de outras partes mais importantes. 3.5.2 Reafirmação do discurso musical O uso freqüente do Ritornello na música de banda significa duas vezes a verdade. O discurso musical pode ser re-afirmado por instrumentação, como ocorre nas primeiras partes e nos trios, ou por ritornellos e sinais de Segno. Ora, isso pode ser entendido como reafirmação da verdade. Em uma música para ser executado ao ar livre, com pessoas andando, muitas vezes competindo com aplausos e foguetes, o trecho musical a ser reafirmado pode o ser através de um ritornello, e ainda assim ser bem-vindo. Numa sala fechada de concerto, onde repetições literais podem ser desnecessárias para uma platéia atenta, essa mesma repetição pode ser efetivada com uma nova instrumentação, com a adição de ornamentos, até mesmo com elevação de grau. Isso torna os sinais de repetição mais comuns na música de banda que na música sinfônica. 3.5.3 Reflexão A volta ao S pode significar repensar, refletir. Pensemos em um dobrado: foi anunciado por uma introdução curta; foi exposto por uma primeira parte repetida; foi encorpado com uma segunda parte forte, realizada melodicamente pelos graves e também repetida. Em seguida o planejamento composicional prevê um trio, uma parte delicada, sutil e rebuscada. No caso específico de voltar à primeira parte através de um sinal de Segno e retornar dele através de uma ponte, significa retroagir, antes que sejamos lançados a uma nova e definitiva realidade dentro de uma obra. Dobrado: Intro–1ª parte 2 x – 2ª parte (o forte) 2 x – 1ª parte uma vez – Trio. x,Fim. 1ª parte 1 181 Afirmação – afirmação e reflexão – nova afirmação – reflexão – pura reflexão – rereflexão. Para essas repetições de partes não se tornarem tão mecânicas, usa-se pontes, ligando do fim da segunda parte para cima, e depois uma nova ponte descendo da repetição da 1ª parte em direção ao trio. A re-utililização do material temático, seja por desenvolvimento, modulação ou re-instrumentação é uma forma de reflexão, mas no caso vamos pensar a repetição como forma de reflexão. A primeira parte é a afirmação pura e curta, sempre com poucos compassos. A primeira parte guarda uma reflexão interna, quando o tema é re-exposto, e uma efetiva, por rittornelo. A segunda parte também é uma afirmação pura, e forte, não muito longa e de textura simplificada, já que a melodia comumente é feita pelas tubas. Também é reafirmada por rittornello. Voltar à primeira parte é reflexão. E o trio, por sua natureza, é uma grande e rebuscada reflexão, já que geralmente utiliza material temático da primeira parte, é feito em pianíssimo e não dispensa o grande comentário feito pelos contracantos. Uma parte dos dobrados para por aí mesmo, outros querem ainda a volta à primeira parte para só então encerrar. Um excesso de reflexão. 3.6 RELAÇÃO INDIVÍDUO-TODO Na filarmônica se joga o tempo inteiro com a personalidade do músico e a ancestralidade da instituição. Qualquer estudo sobre a gênese composicional em Bach ou em Mozart leva em conta a estrutura musical disponível na igreja ou na corte, assim como em Beethoven já se pensa em conjuntos mais estáveis. No caso da banda filarmônica, precisamos analisar em que medida não só a estrutura, o instrumental disponível que influencia na composição como também o estado de espírito do músico enquanto indivíduo; na sua relação com a parte individual, contrapontística, a ele confiada; a sua relação de pertencimento com a bandeira da instituição; com a sua identificação com o naipe ao qual pertence. Entre as Categorias da dimensão do compor, vamos pensar em quanto influenciaa relação entre músico e conjunto numa banda filarmônica. Aqui a influência da regência é muito menor que numa orquestra e o uso da partitura é praticamente abolido. Muitos mestres compositores usam um sistema de quatro pentagramas e de lá distribuem as funções. A parte individual é soberana. Mas, em respeito ao resultado do 182 todo, o mesmo músico que ao tocar chorinho se enche de contorcionismos interpretativos (antecipações, vibratos, variações melódicas ou até improvisações mesmo), aqui ao ler a partitura se limita a breves apojaturas, pequenos tremolos, no máximo. Senão seria um pandemônio. 3.6.1 Contraponto Vamos considerar o contraponto neste momento como um impulso composicional quando só se dispõe de instrumentos melódicos. A escrita para banda nunca abandonou os critérios medievais. Então, como tratamos a idéia musical se não existem violões, teclados? As harmonias são conseguidas por uniões de sopros individuais e o contraponto nasce junto com o desejo de compor. O meu retorno a Leoninus, Perontinus, Ars Nova, tudo que nos incluía (sopro-percussão) antes do triunfo das cordas, da “música de dentro” é de fato uma “saudade” de quando sopro e percussão eram tão importantes, antes do aperfeiçoamento dos instrumentos de cordas e da invenção do cravo. Daí meu recuo histórico a Schoenberg. Ao reproduzir na banda filarmônica as primeiras soluções dodecafônicas, inclusive utilizando séries originais do compositor, quero oferecer uma perspectiva histórica a nós mesmos, muito diferente da solução (rendição?) representada pela escolha do repertório da banda sinfônica. Um grupo em geral bem aparelhado, ligado a uma instituição, mas que carece de personalidade própria, permanecendo como subsidiário da orquestra sinfônica. Podemos ainda insistir que na banda sinfônica já se ousou mais, já se compôs coisas mais ambiciosas em textura, em avanços harmônicos e até mesmo em direção à música do século XX, mas não é nosso estudo de caso. A nossa banda é a que marcha, a de Souza e de Europe. Há agora em Portugal e Espanha uma tendência a confundir as coisas, com todas as bandas se tornando de certa forma bandas sinfônicas, mas estamos na Bahia, onde existem uma, duas bandas sinfônicas e 270 bandas filarmônicas. Ao inspirar nosso impulso composicional de Josquin dês Prés diretamente ao “Titio-avô dodecafônico” Schöenberg, , teremos um pulo contrapontístico, evitando a homofonia-tonalismo. O serialismo representou de certa forma o retorno à técnica contrapontística, evitando esse inter-reino homofônico, essencialmente conservador. 183 Exemplo Musical 57 - Trio do dobrado Anysio Teixeira O exemplo 57, correspondente ao trio do Dobrado Anysio Teixeira, não fosse o material temático serial, não é muito diferente do que ocorre em qualquer dobrado clássico, ou seja, quatro vozes-funções ocupando seu espaço, atuando em duplas, no mais puro contraponto. 3.6.2 Pertencimento Um samba do início do século XX dizia: “tocar na banda, pra ganhar o que? Duas mariolas e um cigarro Iolanda”. Isso nos revela que desde sempre a participação nesse tipo de conjunto envolve voluntarismo, que implica aceitar ao invés de cachê um lanche rápido e uma solução temporária para o vício muito comum à época. Vale dizer que se nada mudou quanto ao amadorismo do músico, a participação majoritária de crianças e adolescentes hoje faz dispensável o cigarro. Não estamos compondo para instrumentos, mas para pessoas. Na orquestra ou mesmo na banda norte-americana, se pensa em repertório por níveis – e cabe à banda somente aplicá-lo. Uma nova peça feita no ambiente sinfônico pensa na orquestra que a encomendou. Na banda da cidade se pensa nas pessoas que pertencem àquela banda, e o papel das clarinetas cresce na composição quando se forma uma boa equipe de clarinetistas. Agora, por exemplo, não penso em bombardino nas minhas novas músicas 184 porque não tenho quem toque esse instrumento. O obrigatório, indispensável contracanto já me ocorre automaticamente endereçado ao saxofone tenor. O melhor e mais apropriado exemplo de composição musical impulsionado por pertencimento que posso dar é a minha opção de doutoramento: uma dobrado, uma fantasia e um maxixe. Ao longo da minha vida profissional entrei em contato com diversas tradições musicais que atraíram sincera atenção: Coro misto: pelo Madrigal da UFBA e regente de coral de empresas; Orquestra sinfônica: pela formação acadêmica e trombonista da OSUFBA. Choro: com vários CDs internacionais gravados e atuação com Os Ingênuos. Jazz: pelo meu contato com o Sexteto do Beco e criação do Raposa Velha Música latina: pela participação de muitos anos com o grupo Cameleon. Samba-chula: pela história com o Samba chula Santa Cruz Música popular comercial: pela minha vida de prestador de serviços.81 Ora, para cada uma dessas tradições cheguei a compor boas coisas. Mas a minha opção continuada por compor e renovar com vistas à formação da banda de marcha revela quanto o pertencimento influencia as decisões mentais em alguém que recebeu suas primeiras noções musicais numa banda filarmônica. 81 Meu primeiro trabalho de carteira foi como tenor no Madrigal. Também sobrevivi como regente de coral de empresas. Depois valeu o concurso público e ingressei na querida Orquestra onde pretendo me aposentar, mas sem pressa. Aprendi a tocar choro desde a adolescência e chegando a Salvador me aperfeiçoei muito com Edson 7 Cordas Santos e seu grupo Os Ingênuos, uma referência no assunto. O Sexteto do Beco foi vanguarda na música instrumental na Bahia e o Raposa Velha professava o Free-jazz. Com o Cameleon, formado por músicos estrangeiros radicados na Bahia como Gini Zambelli e Klaus Jake, integrei-me ao mundo da salsa e conheci pessoalmente Tito Puente (1923-2000) e Mongo Santamaria (1917-2003). O Samba-chula Santa Cruz, formado por filhos da cidade de Santo Amaro radicados em Salvador, também foi fundamental para se retomar o samba do Recôncavo. Seus integrantes foram objeto de uma tese de mestrado do norte-americano Ralph Waddey e com eles gravei um cd antológico, que inspirou o jornalista Paolo Marconi a me convidar para iniciar o programa Bahia Singular e Plural, mapeamento musical da Bahia com o qual obtivemos o prêmio Rodrigo de Mello Franco, entregue em Brasília pelas mãos do presidente Fernando Henrique Cardoso. A música comercial pode ser representada pela gafieira que ora executo na cidade, para felicidade dos amantes da dança de salão. 185 3.6.3 Naipes Num desses encontros de bandas de música, lembro-me de ter ouvido de um músico: “sou clave de fá, metaleiro, trombonista, filarmônico, instrumentista e músico”. A frase me chamou a atenção por desfilar, em ordem inversa, uma série de pertencimentos que vai se iniciar na questão do naipe. Ele inicia se identificando como leitor da clave dos graves, de um instrumento de metal, que é o trombone, pertencente a uma filarmônica, portanto ele é um instrumentista, músico enfim. A nossa questão da motivação composicional levando em conta a consciência do naipe deve considerar que estamos criando para músicos instrumentistas de uma banda filarmônica onde confiamos certas passagens ao trombone que é um instrumento de metal que lê na clave de fá. Isso nos motiva a compor para leitores de partitura (músico), que se consideram parte de um todo de importância maior (filarmônico). Dentro desse todo, escrevendo na clave dos graves (trombonista), destinamos ao trombone tanto frases onde ele se identifica com os trompetes (metaleiro), como na segunda parte do canto, por exemplo, quanto partes onde ele se identifica com a tuba (sou clave de fá), no forte, por exemplo, e ainda confiar a ele partes de centro, originalmente destinadas às trompas, prevendo que nesses tempos bicudos onde não se acham trompistas, aquele trecho pode ficar descoberto, sem o centro. Ao se compor para banda filarmônica deve se levar em conta, finalmente, quealém do desempenho de determinadas funções existe o companheirismo do naipe. A cidade de Cachoeira tem duas bandas filarmônicas que todos os anos formam turmas de clarinetistas, de saxofonistas. A banda da cidade vizinha, Maragogipe, para cada madeira cria dez trompetistas e trombonistas. O impulso composicional leva em conta esse clima. Ser tubista é ter estado de espírito de tubista. Um exemplo de impulso composicional gerado por naipes pode ser encontrado na terceira e conclusiva parte da Suíte Maragogipe, que procura reproduzir o esquema do samba do Recôncavo feito na Lavagem da Festa da Ajuda, em Cachoeira e na Lavagem da festa de São Bartolomeu, em Maragogipe. Os metais afirmam, as madeiras respondem,algo semelhante ao que ocorre com o frevo em Pernambuco. O terceiro movimento é a folia, ou embalo como se diz por lá. Na lavagem que antecede aos ritos religiosos, é indispensável uma espécie de samba de roda ambulante, onde se toca temas originais do lugar, pelos mesmos músicos da filarmônica e muitos 186 percussionistas, sem uso de partituras. As letras são de duplo sentido e extrema picardia, que a população cultiva sem problemas. Aqui, por pura invenção, acrescento um solo de tuba que não se verifica na folia original. Exemplo Musical 58- Embalo da Suíte Maragogipe Ao final de tudo, nos oito últimos compassos, faço reverência à Inglesina, com os derradeiros compassos dessa peça admirável do mestre Tranquillino Bastos. Ele entenderia que este seu discípulo distante encerra não com o samba do terceiro movimento com o final de seu scherzo marciabile. Em verdade, evoquei Tranquillino para encerrar o todo, uma peça de concerto para banda filarmônica. No frevo, que é derivado do dobrado, a gênese composicional já surge prevendo o diálogo madeiras-metais. A melodia já surge na mente do compositor direcionada a essa orquestração: a frase dos metais é sempre mais simples a das madeiras mais complexa, em semicolcheias. No caso do frevo mais antigo, e que está se tornando uma tradição em vias de ser abandonada, existe ainda a requinta, pequena clarineta em mi bemol encarregada de intrincados contracantos, sempre audíveis em meio à massa sonora, pela sua região de atuação, mais aguda que todos. A marcação da tuba, unida ao acompanhamento feito pela percussão, se encarrega de dar uma sensação de unidade ao conjunto. 4 CONCLUSÃO: TRÊS MÚSICAS RENOVADORAS PARA BANDA FILARMÔNICA O presente trabalho pretende contribuir para renovar o panorama da música para banda filarmônica, oferecendo novo fôlego para que continue a fazer sua música, relacionada às pessoas e eventos. Para isso, então devemos criar novos exemplos de música plenamente possível de ser executada por uma banda de certo nível técnico, que reproduza de forma contemporânea as três situações vividas pelas bandas: o dobrado, a peça de concerto e a música ligeira. Assim, surge a proposta do dobrado Anísio Teixeira, da fantasia em homenagem ao meu pai e de um maxixe intitulado Bandeira do Divino. A realização dessas três peças de conclusão devem ser em termos de história da banda de música, resultante de toda a trajetória da música de sopros e percussão no mundo antigo, na Europa, da criação das primeiras sociedades filarmônicas e seus métodos de iniciação, sua aclimatação nas Américas, as experiências criativas advindas do contato com a musicalidade de origem africana. Do ponto de vista mais pessoal, refletem a minha história junto à banda de música e ao trabalho dos mestrescompositores, principalmente no interior, e o trabalho de pesquisa, registros e formação de músicos da Oficina de Frevos e Dobrados, ao longo de 33 anos. Do ângulo estritamente profissional, estas três peças de conclusão resultam da motivação composicional muito própria das bandas filarmônicas, tratadas no capítulo anterior, onde em todas elas pulsa um sincero desejo de preservação e transformação da tradição; suas frases musicais foram geradas tendo como mote a noção de movimentotípico das bandas que marcham; na procura de fazer justiça a uma ciência que me deu tudo, inclusive o sustento através do instrumento de sopro, ocorreu o ímpeto, de homenagear um fato, uma data, uma pessoa. Compor um dobrado, uma fantasia e um maxixe por si só traz junto apropedêutica, o discurso didático, continuador e catequisador, inclusive na insistência em apontar para o futuro, tendo em vista o horizonte serial projetado no século XXI. Ainda que dissolvendo as relações frasais e harmônicas, substituídas por relações e soluções na música nova, essas músicas guardam o pilar da repetição como reafirmação da sua verdade e ligação com seu 188 passado. Finalmente, as presentes páginas não estão recheadas de compassos para serem executados em um recinto fechado, cheio de ouvidos especialistas, mas buscam a relação indivíduo-todo presente nas bandas filarmônicas: seu destino é a praça pública. Os desdobramentos desses parâmetros de motivação composicional serão associados a seguir à análise das composições de conclusão, não de forma ordenada, por não ser assim que ocorre na prática, nem de forma solitária, pois num mesmo momento várias forças motivacionais podem surgir simultâneamente. Por exemplo, ao surgir a idéia de compor uma fantasia, estou querendo a licença histórica da música de concerto de banda filarmônica, para se posicionar entre os movimentados dobrado e maxixe. Usarei para sua estrutura os pilares que pretendo renovar, e a escolha do meu pai como homenageado reflete a relação de pertencimento que a música dos sopros sempre guardou com os seus. A presente leitura deve ser acompanhada da audição do Cd disponibilizado como parte da presente tese, melhor que um concerto, pois permite que se repita e se ouça em diversas situações. 4.1 DOBRADO ANYSIO TEIXEIRA Relacionando a ação atual, de criar uma música-conclusão, com o que foi definido como Categorias da dimensão do compor, pode-se afirmar que criar um dobrado depende essencialmente da licença histórica. O pressuposto nessa composição, do ponto de vista da demanda, é ser capaz de levar pessoas a uma situação de deslocamento ordenado; para um dobrado atual, vou me valer dos pilares transformáveis e fazer identificar nele uma primeira parte, um episódio em forte e uma parte suave e reflexiva, o trio, delimitando o dobrado pela reafirmação da forma. Finalmente, com base no discurso sobre musica,deve-se eleger, um fato, uma data ou uma pessoa como motivação extra-musical para que se trabalhe um motivo musical, e esse personagem é Anysio Teixeira. Em relação aos dobrados renovados que já havia criado, houve um progresso tanto na elaboração das ideias musicais quanto na motivação ideológica, na competição da banda filarmônica por um lugar ao sol na cultura contemporânea. Anísio Spínola Teixeira, nascido em Caetité, a 12 de julho de 1900 e falecido no Rio de Janeiro, a 11 de março de 1971, foi jurista, intelectual e educador. Personagem central na história da educação no Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, difundiu os pressupostos do movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a ênfase no 189 desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento, em preferência à memorização. Reformou o sistema educacional da Bahia e do Rio de Janeiro, exercendo vários cargos executivos. Foi um dos mais destacados signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932. Fundou a Universidade do Distrito Federal, em 1935.82 Anysio Teixeira fundou, em Salvador, a Escola Parque e influenciou bastante Edgard Santos na fundação da Universidade Federal da Bahia, sua opção pelos Seminários Livres de Música com orientação de vanguarda. Nossa questão aqui é: com base nos elementos identitários de um dobrado tradicional e com base na necessidade de um deslocamento ordenado de pessoas, como criar uma música nova, que não se prenda ao aspecto tonal e de duração frasal, que não se limite ao modelo de ritmo conhecido, que sugira novas realizações para o andamento “marcial” e ainda ser identificada como dobrado, com pessoas aceitando se deslocar com essa música? Essa questão já encontrou resposta, sem dúvida, no Dobrado 2 de Julho, já exemplificado. Todos os elementos formais do dobrado são ali encontrados sob outra ótica e com utilização de elementos temáticos do hino original; mas é sobretudo no trio que o ostinato se faz em linguagem moderna – mas sempre apontando para o movimento, querendo representar um deslocamento de tropa. Mas agora devemos nos afastar dessa referência direta a uma obra anterior, e criar um clima mais real em relação ao que queremos homenagear, com elemento que não sejam óbvios, nem se recorra a alterações previstas no sistema tonal. Não queremos fazer bossa-nova na filarmônica, com seus acordes de sétima e nona, queremos abolir a camisa de força tonal. Em relação ao ritmo, não queremos nos deslocar com compassos ímpares ao exemplo da cultura eslava, carregando tempos fortes de rito pagão, mas buscar novas pulsações, brasileiras enfim, onde nos afastando do corriqueiro encontremos alguma ginga, um novo tangado. Assim, fugindo do tom e de Stravinsky, partimos para a escolha do material: 82 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%ADsio_Teixeira>.Acesso em: 6 mai. 2014. 190 Exemplo Musical 59 - Séries do dobrado Anysio Teixeira A superposição da série e suas três derivadas vai nos oferecer uma série de acordes, que passarão a ser numerados e utilizados serialmente ao longo da peça: Exemplo Musical 60- Tríades do dobrado Anysio Teixeira A superposição da série e derivadas, além dos acordes, pode ser outra vez horizontalizado (todas as primeiras notas, depois todas as segundas notas...) e por sua vez origina um novo discurso, onde eventualmente podem surgir notas repetidas: Exemplo Musical 61- Discurso serial do trio no dobrado Anysio Teixeira Na introdução, o material do canto, centro e marcação foram escolhidos a partir de processos advindos da própria série inicial. 191 Exemplo Musical 62- Introdução do dobrado Anysio Teixeira Na primeira parte, canto, centro e marcação também foram originados dos processos resultantes de operações com a série original, mas já incorporando elementos do ritmo da introdução. Exemplo Musical 63- Primeira parte do Anysio Teixeira 192 As escolhas aqui não obedecem somente a este processo, mas também à perspectiva da audição. O método dodecafônico nos dá um excelente resultado harmônico e sensação de unidade, mas chega uma hora em que certas escolhas, sempre usando o mesmo material, levam em conta também a previsão do que vai ser ouvido. A pauta de funções só nos é útil como uma pré-elaboração de ideias, mas no processo composicional de fato já se planeja a divisão de vozes. Cria-se imediatamente para as 3 clarinetas, pensa-se no instrumento e sua performance. Nesse ambiente inteiramente dominado pelo dodecafonismo, o gesto cromático, de efeito previsível, pode ocorrer, quando achamos necessário, mas sempre partindo dos intervalos do “acorde” previsto pela superposição das séries. Exemplo Musical 64- Divisi e gesto cromático no Anysio Teixeira A segunda parte do dobrado, o forte, geralmente não comporta contracanto nem marcação, no uso rotineiro. Aqui está o solo dos graves, e o restante do conjunto faz o centro. O algo diferente que acrescentei foram notas longas confiadas às trompas saxhorn, apelidadas de “cachorrinhas”: além de acrescentar um “tapete” entre o duro contraponto, elas revelam o uso desse instrumento, tão próprio das bandas de marcha. Exemplo Musical 65- Parte Forte do Anysio Teixeira 193 Quanto ao trio, sempre creditamos a essa parte do dobrado um ambiente de reflexão e rebuscamento, em contraste com o forte e em acordo com a exposição representada pela primeira parte. Aqui vamos perpetuar esse comportamento do trio, quando nos dobrados tradicionais há um discurso de notas longas no canto, respondido por um contracanto bem elaborado, geralmente confiado ao bombardino. “No baixo e no centro, combinados, ocorre o também tradicional “tangado”, onde a série original é utilizada para produzir baixos e “acordes”. No aspecto rítmico, centro e marcação são inversões. O que é som em um, pausa torna-se n`outro. Exemplo Musical 66- Trio do dobrado Anysio Teixeira Seguindo um comportamento bastante comum nos trios de dobrado, depois de 16 compassos, os instrumentos de metal assumem o canto, e o contracanto passa a ser feito em bloco, pelas palhetas agudas; no nosso caso com notas da série em inversão, como fez o bombardino, mas desta vez em módulos ad libitum. O tangado do centro e marcação é mantido. Exemplo Musical 67- Trio, 2ª parte no Anysio Teixeira 194 Então, com o dobrado Anysio Teixeira, ficam mantidas a divisão das partes na forma ternária, mantidas as funções instrumentais e certa rítmica; ficam abandonadas as relações tonais, sendo o material original uma série de doze tons, e seu desenvolvimento se dá pela praxe serial, assim como ocorre com o material rítmico. Nessa composição, não se utiliza citação de material anteriormente composto ou existente. Gostaria muito de ver pessoas desfilando algum dia ao som deste dobrado, um desfile ordenado e anárquico. Audição 8 - Dobrado Anysio Teixeira (2014), gravação Fred Dantas em estúdio, 2015. 4.2 FANTASIASEDARE DOLOREM OPUS DIVINUM EST A segunda grande divisão do repertório da banda de música é a música de concerto. No nosso caso, a dimensão do compor pela antiga e nova vanguarda, vai originar uma peça em linguagem atual, que em nome do discurso ético, tenta equilibrar o pertencimento da escola composicional da filarmônica com a Escola da Bahia e seu novo discurso histórico83. Esse segundo tipo de composição deverá ser, a exemplo das tradicionais “peças de harmonia” para banda filarmônica, uma música de reflexão, para se ouvir. A banda se forma em posição de concerto, para interpretar episódios variados: nas fantasias tradicionais isso compreende momentos onde se relaxa um pouco a noção de contraponto entre os naipes para pemitir a intercalação de tutti com trechos solistas. Para a reafirmação do discurso musical tem que equilibrar a utilização do ritornello como uso de material temático em novas situações: nas fantasias tradicionais, mudança de andamento e tonalidade, na nova fantasia, citações de material externo e reelaboração da série original. Então, no nosso caso, a banda está em situação de concerto, não de marcha, e usamos elementos de variação de textura que caracterizam a forma proposta, a fantasia ou, ainda melhor, com diferentes tons e episódios, só que o que era antes conseguido por modulações e mudanças de compasso e andamento, agora utiliza sinais e soluções da música pós-tonal ou música do século XX.84 83 As publicações de Wellington Gomes sobre as estratégias composicionais do grupo de compositores da Bahia e as mais recentes reflexões de Paulo Costa Lima sobre teoria e prática do compor já consolidam um discurso histórico sobre um movimento que começou com os boletins que anunciavam que “a única regra era não ter regra nenhuma”. 84 PAZ, 1981. 195 Antes de iniciar qualquer procedimento composicional, dediquei certo tempo a conhecer – com o objetivo de adotar os mesmos mecanismos de ampliação – duas séries de Arnold Schöenberg utilizadas em obras iniciais do dodecafonismo, como ponto de partida.85 Buscando repetir o método, escolhemos uma temática que fosse ao mesmo tempo derivada de um sentimento pessoal e que refletisse um momento seminal para o início do movimento de vanguarda – o serialismo – do qual pretendo ser continuador na ambiência das bandas filarmônicas. Do mesmo modo que o mestre de bandas sergipano Abelardo Enéas Campos compôs a sua Ave Maria para voz soprano e banda filarmônica, em 1933, para a inauguração da Capela de N. Sra. da Guia, em Maracangalha, também incluí a voz feminina junto com a banda. Juan Carlos Paz – sempre coerente – diz que a vanguarda deve estar associada a uma realidade vivida, vivenciada, evitando temáticas muito distanciadas da vida real. Sedare dolorem opus Divinum est é uma obra intimamente relacionada à minha realidade: estava num adesivo colado ao carro do meu pai, Dorivaldo Dantas, médico, esta famosa frase, ora atribuída ao grego Hipócrates (460-377 a.C), o Pai da Medicina, ora a Galeno (131-200 d.C) cuja tradução é “aliviar a dor é obra divina”. A série inicial deriva da data de nascimento do meu pai: 03 12 1918, que em música ficou: Exemplo Musical 68 - Série “Dr. Dantas” Além da série “Dr. Dantas” que permeia toda a peça, em Sedare dolorem fiz uso de alguns motivos, digamos, incidentais, elementos de músicas já existentes para ilustrar momentos da vida do homenageado. Isso ocorre no movimento III, onde utilizamos elementos de: 1 – Reisado, a música tradicional do sudoeste da Bahia; 86 85 Trio de Cordas, Op. 45. “De fato, Schöenberg havia utilizado séries semelhantes em seu Terceiro Quarteto como também em duas óperas, Von heute auf morgen e Moisés e Aarão” (Leibowitz, 1981, p. 136). 86 Melodia do Reis da Lapinha do Reis do Barreiro dos Campos, zona rural da cidade de Urandi, que me foi ensinada por Maurino Oliveira. 196 2 – Citação onomatopaica do canto da ave nambu, característica da caatinga; 3 – Citação de In the Mood, de Glenn Miller, retratando a época da II Guerra Mundial, quando Dr. Dantas foi pracinha; Figura 26- Dorivaldo Dantas, pracinha 4 – Citação de I Can´t Stop Loving You, de Ray Charles, retratando uma época de idade madura, na cidade de Urandi, quando o homenageado, além de aclamado pelo povo como Dr. Dantas, era apelidado pelos jovens da cidade de “o americano”, por suas convicções democráticas e identificação com o perfil de John F. Kennedy; 5 – Citação da canção Oceano, do compositor Djavan, como referência à velhice do homenageado, quando me pedia para tocar ao violão a referida composição; 6 – citação da vinheta do Jornal Nacional, veiculado pela Rede Globo, quando o homenageado encerrava todo e qualquer diálogo. Com todas essas referências quis, no âmbito desse movimento, fazer uma delimitação cronológica e também um perfil do homenageado, através dos seus gostos. Uma visão rápida pode mostrar como as citações se iniciam no inverso, para depois tomarem forma e em seguida dissolverem-se. Toda vez que penso em meu pai sua imagem vem não como uma fotografia estática, nem como um filme ordenado: as lembranças vão e vêm; assim aparecem as citações. Através de retrogadações, as citações vão e vêm, assim como as lembranças. Na quarta parte de Sedare dolorem, faço uso do Sprechgesang, o canto-falado primeiramente experimentado por Schöenberg, em 1912, com Pierot Lunaire op.21. De todas as obras de Schöenberg, Pierrot Lunaire é a que se tornou mais célebre. 197 Naturalmente, a originalidade da sua concepção contribuiu muito para o seu grande sucesso. Trata-se de 21 melodramas para recitante, flauta, clarinete, violino, que alterna com viola, violoncelo e piano. [...] O próprio comentou, no seu prefácio da partitura: o ritmo deve ser observado estritamente, como se se tratasse de um canto, mas enquanto a melodia cantada mantém a altura do som, a melodia falada não faz senão indicá-la abandonando-a imediatamente, de maneira ascendente ou descendente. A alusão à altura do som criou numerosos equívocos, pois se imaginou que era necessário fazer-se ouvir – mesmo que só por um instante – as notas indicadas no pentagrama. [...] Essa é a razão pela qual Schöenberg encomendou a um de seus discípulos, Erwin Stein, um importante ensaio sobre a maneira de executar o Sprechgesang. Conclui que nenhuma altura determinada de som deve ser jamais produzida (LEIBOWITZ, 1981). 87 No nosso caso, continuei, por ordem prática, a fazer uso do pentagrama, mas pedindo que a soprano não tentasse entoar as notas, apenas considerasse a região das notas-sílabas na pauta e a relação de altura entre elas. Exemplo Musical 69 - Sprechgesang em Sedare dolorem Então com a fantasia Sedare Dolorem fica mantida, em relação a uma fantasia tradicional, a divisão da peça em episódios, mas no nosso caso em movimentos definidos. Mantém a formação da banda com solista, no caso o trombone no primeiro movimento, mas com inclusão de uma voz solista no segundo e quarto movimentos. Novamente o material é tratado de forma serial, e as citações de canções são desintegradas através de retrogradação, inversão e progressão cromática. Audição 9 - Sedare Dolorem opus Divinum est (2014), gravação Fred Dantas em estúdio, 2015. 87 RenêLeiboiwitz 1981, p. 90-91. 198 4.3 MAXIXEBANDEIRA DO DIVINO O terceiro grande grupo de repertórios da banda filarmônica é a música ligeira, a música animada que se toca geralmente na parte final das apresentações ou nas ocasiões de pura festa. Para dar origem a uma nova música ligeira, tenho que me valer da categoria da dimensão do compor gerada pela re-texturização do discurso musical próprio dos instrumentos populares. No presente caso o pandeiro é o rei desse discurso. A nova peça dançável – no caso a construção de um maxixe atual – vai ter como pilar renovável o fator rítmico na condução, a relação centro-marcação que vai dando nome e moda a esses ritmos, mas não só ele: o maxixe Bandeira do Divino leva em conta a contribuição melódica do movimento. E na estruturação dos diálogos que são tão caros às músicas animadas do Nordeste, a motivação composicional pela ideia de naipes. Pelo modelo consagrado por uso tradicional, aqui a filarmônica vale-se de música para animar deslocamento desordenado em festa ou manifestação. Para isso, deve se destacar um ritmo marcante e repetitivo, uma melodia sem muita complexidade e um andamento allegro. Esse modelo tradicional pode ser conferido no semi-árido da Bahia com a Tuada no Sertão, de Isaias Amy, assim como as melodias em dois grupos, metais e palhetas, do Embalo do Recôncavo. Como deflagrar a partir de uma nova composição um processo renovador na música ligeira da filarmônica, introduzindo elementos novos, recodificando, questionando ou desenvolvendo os elementos principais da música dançante, sem causar estranhamento, sem perder a capacidade de animar as pessoas? Ora, algumas pistas ainda que raras possam nos ser dadas pela cultura popular. Durante a peregrinação do projeto Bahia Singular e Plural, tive oportunidade de gravar, transcrever e exemplificar no CD resultante, tradições como o Divino Espírito Santo, na cidade de Barreiras. Essa tradição, pelo que vi em três diferentes grupos, utiliza-se de uma base rítmica muito complexa, que não parece diminuir o entusiasmo e a naturalidade dos seus músicos, cantando e batendo tambores. Exemplo Musical 70 - Ritmo do Divino Espírito Santo em Barreiras 199 Apresento, como exemplificação de nova música ligeira, a peça Bandeira do Divino. Utilizei a rítmica do Divino Espírito Santo para gerar uma peça atual, serial, mas com grande movimentação, típica da música ligeira das filarmônicas. Exemplo Musical 71- Bandeira do Divino Então com o maxixe Bandeira do Divino fica mantida, em relação à música ligeira tradicional, a rítmica cadenciada, a divisão de funções instrumentais e o compasso, mas aqui se faz uso de compassos ímpares e não há hierarquia tonal. Nessa composição, a citação limita-se à fórmula rítmica, onde não se utiliza citação de material melódico anteriormente composto ou existente. Gostaria muito de ver pessoas dançando algum dia ao som deste maxixe atonal. Audição 10 - Maxixe Bandeira do Divino (2014), gravação Fred Dantas em estúdio, 2015. 4.4 CONCLUSÃO Ao longo desta tese, a narrativa discorreu sobre as origens da banda, sua função social, a praxe composicional como um dos seus pilares, o papel da filarmônica na minha formação musical e a ação resultante disso na minha história de vida, tudo para chegar a uma composição que valorize o passado apontando direções para o futuro. Assim acredito estar tendo uma atitude renovadora que, ao mesmo tempo, aponte para um reconhecimento do trabalho dos mestres de filarmônicas dos quais me proponho a ser continuador. 200 Usei do método e da vivência para confrontar dados pesquisados e dados obtidos para montar ou remontar o que é carente de reflexão relacionado à Banda e sua prática composicional – bem como levando o ato criativo a apontar para outra extremidade musical sem perder de vista o que se entende por banda filarmônica. Nesse discurso entra a descrição da importância da forma como condição a priori e das funções instrumentais como elementos limitativos vimos como, composicionalmente, essas mesmas questões que aparentemente nos dão limite podem ser usadas para alavancar atitudes de mudança. A maior parte dessa fundamentação teórica tem sido transmitida oralmente entre mestres e discípulos e nunca havia sido descrita. Buscamos ensinamentos e serviços musicais de uma fonte mais antiga que a da orquestra com cordas e que a dos teclados, remontando ao tempo em que os sopros, acompanhados de percussão, predominaram no mundo antigo. A identidade da banda de música pode ser medida pela estranheza que causa em outros meios. Seu isolamento em relação a outros setores - junto com a noção de “música séria” que as filarmônicas cultivam, facilita nosso trabalho de propor uma continuidade longe do mundo tonal e suas repetições, que hoje só tem o sentido de agradar, e assim atrair público e patrocinadores, ao passo que nos aproxima de novas tradições de vanguarda, como a Escola Composicional da Bahia. Longe da música moderna que faz paródia com o tonal, longe do burlesco e sem nenhum sentimento de vingança estética representada pela deformação do original, buscamos a releitura da nossa música tradicional sendo ao mesmo tempo, fiel a essa arte severa. Acredito que esse mesmo sentimento foi suporte para as experiências realmente revolucionárias de Anacleto de Medeiros e Jim Europe, onde predomina a herança africana, contribuindo para o surgimento dos estilos musicais choro e jazz. Identificamos que a composição tem sido o principal motor para que as bandas de música se mantenham vivas se relacionando em suas comunidades com datas, fatos e pessoas. Avançamos na imaginação para supor quais os mecanismos de estímulo à composição estariam presentes nessa praxe e identificamos a força desses elementos como impulso composicional em diversas músicas criadas por mim antes de inscreverme no atual doutorado. Usamos dessas mesmas relações, algumas puramente técnicas, outras envolvendo o emocional e o pertencimento, para gerar três peças de conclusão, cada uma delas se relacionando com um tipo de repertório de banda, às vezes presentes na mesma ocasião: o dobrado, a fantasia e o maxixe. 201 A contribuição de Schöenberg foi tomada como ponto de partida, porque não é um estilo, é um método composicional, onde a rigidez do trato com as notas e ritmos grafados cria certa relação com a maneira de compor dos mestres de banda. Na primeira música, usando o dodecafonismo ortodoxo, um rígido dobrado homenageou Anysio Teixeira, um vulto de cuja mente criativa e prática resulta, entre muitas contribuições à cultura do Brasil, no nosso modelo de Universidade Federal. Na fantasia, onde o assunto é o meu pai, usamos o método serial para gerar e ampliar um motivo musical com a data de nascimento dele e tomando a liberdade formal e temática da fantasia, criamos diversas citações musicais e verbais para gerar uma nova música programática sobre esse homem independente e generoso. Finalmente o gingado, o batuque, a festa que caracteriza o final das apresentações das bandas filarmônicas ressurge na música ligeira, na Bandeira do Divino, no maxixe não-tonal. Estudei a composição em banda filarmônica, relembrei minha vivência, colecionei dados, propondo atitudes inovadoras para chegar a uma conclusão: a banda continua. REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS A Bíblia de Jerusalém. Traduções, introdução e notas pela Escola Bíblica de Jerusalém. Ed. bras. coord. por Gilberto da Silva Gordilho, Ivo Storniolo e Ana Anderson. São Paulo: Paulinas, 1985. ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. 3ª. Ed.Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva. AGAWU, K. 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Incentivei e realizei obras dos participantes como Luciano Silva, José Coelho Barreto, José Paranhos, José Guimarães Costa, Jorge Freitas, meu filho Estevam Dantas, Gerson de Carvalho e outros mais. A iniciativa mais ambiciosa e portanto com mais consequências composicionais foi o que idealizei com o Curso de Capacitação para Mestres e Músicos Lideres de Filarmônicas, realizado sob a bandeira da Oficina de Frevos e Dobrados com recursos do Fundo de Cultura do Estado da Bahia. Durante um ano e meio, em três núcleos na capital, sertão e recôncavo, todos os alunos foram orientados a realizar arranjos e os mais experientes, composições. Alguns anos depois, embora no curto período de três semanas, foi muito oportuno o convite da Fundação Cultural do Estado da Bahia para que ministrasse um curso de composição em três regiões distintas da Bahia, como parte de uma Jornada de Capacitação para Bandas Filarmônicas. ANEXO 1.1 CURSO DE CAPACITAÇÃO PARA MESTRES E MÚSICOS LÍDERES O Curso de Capacitação para Mestres e músicos líderes das filarmônicas, ou Curso Mestres, conseguiu aperfeiçoar uma nova geração de líderes voltados especificamente para as bandas de música, tendo boas consequências no interior da Bahia, porque muitos que fizeram o curso na capital eram oriundos de bandas do interior e para elas retornaram. Cinco anos depois, encontro com satisfação muitos desses novos mestres à 211 frente de suas corporações, em eventos diversos na capital e interior, praticando um repertório condizente com o espírito da banda filarmônica. A coordenação foi desse “mestre Fred Dantas”, também responsável pelas aulas de Composição e História da Banda. Celso Benedito cuidou da emissão, sonoridade e execução de diversos instrumentos, enquanto desenvolveu uma tese de doutorado, sobre a Pedagogia musical nas Bandas de Música. O maestro Paulo Novais de Almeida foi o responsável pela disciplina Regência e execução de arranjos. Foram criados três núcleos de ensino: Salvador, atendendo à capital e região metropolitana, Senhor do Bonfim, concentrando várias cidades do semi-árido e finalmente São Félix, onde já existe um importante festival de filarmônicas, envolvendo a fértil região do Recôncavo. O curso, voltado para as necessidades próprias da banda de música, envolveu noções de harmonia e literatura musical, história das bandas de música, didática específica nas filarmônicas, composição, arranjos da cultura popular e regência. Em cada núcleo foi escolhido entre os participantes um “mestre da banda”, formada por seus colegas de curso, músicos de diversas filarmônicas daquela região, cabendo a ele reunir os músicos, afinar o conjunto, resolver a demanda por assentos e estantes de música e eventualmente reger o conjunto até a chegada dos professores. Nossa área de concentração é a renovação do repertório das bandas filarmônicas pela via composicional. Portanto, no âmbito deste trabalho, devo conter o ímpeto de me alongar sobre os significantes pedagógicos, culturais, sociais e políticos provocados pela existência desse curso. Atenho-me ao que foi conseguido pela criação em partitura. Ainda assim, etnomusicólogo sempre, sugeri em cada núcleo que cada aluno falasse sobre sua origem, sobre o folclore musical da sua comunidade.Além das composições dos alunos mais interessados, que chegaram a compor dobrados e outras formas dentro das normas expostas durante o curso, tive sempre que propor, e até fornecer modelos e temas, motivos para que o aluno fizesse pequenos arranjos e instrumentações, tendo em vista ser executado no concerto de encerramento do curso. Assim, em cada um desses núcleos evidenciei uma cultura popular sempre em vias de desaparecer. Trabalhar sobre essa cultura vai sempre ser benéfico para as duas partes, sendo revivificado o canto da população local e ao mesmo tempo fornecendo à banda filarmônica um interagir com sua comunidade. Caminho esse que parece sem futuro quando se repete o rádio e a televisão, ou se adota a partitura importada. 212 Em Salvador surgiram as citações do candomblé, do samba de roda, da cantiga de roda infantil. Em Senhor do Bomfim, alunos citaram as tradições da Roda das Palmeiras e do Pau-de-fita, enquanto eu mesmo forneci os cantos do quilombo de Ipuaçu, onde pesquisei; e ainda em Bonfim surgem cantigas de roda, por conta da idade e residência dos participantes. Em São Félix, indiquei aos candidatos a arranjador que trabalhassem sobre o Nêgo Fugido de Acupe, a Lavagem de Irará, a Mandinga musical do futebol de Cachoeira, e a Lavagem de São Bartolomeu, em Maragogipe. Os Concertos de conclusão do Curso de Capacitação para mestres e músicos líderes de filarmônicas, curso promovido pela Sociedade Musical Oficina de Frevos e Dobrados, com patrocínio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, foram realizados em Salvador: 8 de maio, sexta, às 19 hs no teatro do Sesc-Senac Pelourinho; em Senhor do Bonfim: dia 16 de maio, sábado, às 19 hs na União dos Ferroviários Bonfinenses e em São Félix: Dia 23 de maio, sábado, às 19 hs no Centro Cultural Dannemann. Com isso, durante os trabalhos, foi gerado um material inédito: músicas novas, novos arranjos, dois livros inéditos, quatro CDs e manuais explicativos.Junto ao curso, surge todo um universo relacionado às bandas de música: história das cidades, músicos notáveis, músicas alusivas a momentos da História, rivalidades e anedotas. Figura 27 - Curso Mestres em Sr. do Bonfim (foto: Paulo Alencar) O que de mais inusitado e interessante surgiu nesse material gerado pelo curso, escutando a série de Cds, não está tanto nas novas músicas em si, que afinal acabam 213 sendo peças de cunho pedagógico seguindo uma linha classicamente estabelecida, mas os arranjos da cultura popular de cada região. Uma vez transcrito o canto, ou cantos, para fazer soar na banda filarmônica motivos musicais de tradições orais como, por exemplo, o Nego Fugido, no Recôncavo, cantos do Candomblé em Salvador ou a Marujada de Jacobina, foi necessário criar novas soluções para centro e marcação. Caso haja um interesse sincero das filarmônicas tocarem a música do povo, aí está um bom caminho. Uma série de soluções de acompanhamento para se evitar que tudo o que se toque na banda acabe convergindo para os estilos consagrados como o dobrado, marcha ou maxixe ou então, opção pior, acabe adaptado ao estilo pop. Exemplo Musical 72 - Cativeiro de Iaiá88 O que podemos encontrar no exemplo 47 que possa ser útil a futuras adaptações de música da matriz afro-baiana? Primeiramente podemos ver que o canto, no limite da grafia musical ocidental, pode ser confundido com uma marchinha, a depender do acompanhamento. Então está no centro, feito por trompas e trombones a clave africana que o canto original exige, originalmente confiada ao agogô. Com tantas notas na melodia e no centro, só resta ao contracanto fazer nota longa e contratempo, enquanto cabe à tuba uma acentuação a cada tempo forte do compasso binário. Saber lidar com os deslocamentos de tempo próprios da presença africana, moldada a elementos indígenas e portugueses parece ser mais que nunca necessário agora, em que até os conjuntos originalmente destinados a estilos próprios de samba se 88 Cativeiro de Iaiá é canto do Nego Fugido da cidade de Acupe, vizinho a Santo Amaro da Purificação. Esse pequeno arranjo foi proposto sob minha orientação ao aluno Renato Rangel, tubista conhecido como Bola, integrante da Sociedade Filarmônica Minerva Cachoeirana. 214 vêem ridiculamente executando a batida simplista e repetitiva do funk. Prover a banda brasileira de um acervo de fórmulas em que se permita compor sobre tradições populares das suas regiões é uma atitude política ao se opuser ao repertório importado e editado. Porque acredito que devemos ser felizes com nosso trabalho musical e essa felicidade só se realiza quando agimos dentro do que nos pertence, onde mesmo ousando nos sentimos naturalmente bem e em sintonia com nossos parentes. Os músicos participantes do Curso Mestres, que naquele momento, como ainda hoje, se vêem às voltas com a influência das orquestras sinfônicas juvenis e pela opção das prefeituras pelas vistosas fanfarras, voltaram às suas corporações com um olhar mais generoso para com os seus mestres e cientes das noções de pertencimento entre a filarmônica e sua comunidade. Isso ficou registrado nos concertos de conclusão e nos três CDs resultantes.89 O Concerto de Conclusão do Núcleo Salvador se realizou a 8 de maio de 2009 às 19 horas no Teatro Sesc-Senac Pelourinho. 90 Na Parte 1 - composições, tivemos: Mestra Noeme Matos – fantasia de Fred Dantas (adotada na prova final de regência); Morada do Barbalho – frevo de Gleidson Souza (primeira composição concluída durante o Curso); Soberano – dobrado de Enock Dias; Interrogação – dobrado de Diego Rosa; Os Gêmeos – dobrado de Antonio Jorge Freitas; Mestre Fred Dantas – dobrado de Moisés Santos; Giribatuba – dobrado de Josias Monteiro; Dobrado Pelourinho – Fred Dantas (composto em sala de aulas); na Parte 2, os arranjos da Cultura Popular, tivemos: Seu Boiadeiro – arranjo de Sônia Oliver; Ay gerôkò– arranjo de Pedro Degaut; Reis de Urandi – arranjo de João Paulo; Peixinho do mar – arr. Dóris Leandra; O pião entrou na roda – arr. Sirlene Aquino; Bendito da Santa Cruz – arr. Gerson de Carvalho; Na Bahia tem – arr. Gerson de Carvalho; Sai sai ô Piaba – arr. Jorge Freitas; Reis de João Augusto dos Anjos – arr. Ivis Lima; Na Bahia tem – arr. Rutiane Santana; Guabiroba – arr. Enock Dias; Ingazeiro – arr. Osmário Almeida; Samba lelê – arr. Jurandir Jesus. 89 São três concertos de conclusão, gravados e editados por Nicolau Rios, e o CD Umahistória da filarmônica, gravado no espaço Caixa cultural, em Salvador. 90 Professores: Fred Dantas, Celso Benedito e Paulo Novais de Almeida. Mestre da banda: Jorge Freitas. Flautim: Dóris Leandra. Flauta: Camila Carvalho, Fernanda Bitencourt. Requinta: William Alexandria. Clarineta: Jorge Freitas, Valmir Luis, João Paulo e Elisângela Cardoso. Sax alto: Gerson de Carvalho, Rutiane Santana, A. Agapito, Almiro João e Franciane Dunda. Sax tenor: Sônia Oliver. Trompa: Celso Benedito e Tiago Meireles. Trompete: Gleidson Souza, Osmário Almeida, Mário Douglas e Darlan Cavalcanti. Trombone: Ismael Souza, Lamarca, Hebert Almeida. Bombardino: Diego Rosa e Pedro Degaut. Tuba: Eduardo Conceição. caixa: Paulo Leite. bombo: Jairo Santos. Pratos: Nádia Ferrão. 215 O Concerto de Conclusão do Núcleo Senhor do Bonfim ocorreu em 16 de maio de 2009 às 20 horas no Colégio Modelo Luis Eduardo Magalhães, em Senhor do Bonfim.91 Na Parte 1 – composições, tivemos: Dobrado Sorvete – Fred Dantas (composto em sala de aulas); Dobrado dos mestres – Washington Cardoso Damasceno; Dobrado Santa Luz - Odilon Ferreira. Na Parte 2, arranjos da Cultura Popular, foi apresentado: Divino Espirito Santo- arranjo de J. Eduardo R. dos Santos; Roda de São Benedito - arr. de Gildinei Batista; Incelença - arr. de Vasconcelo Ventura; Seu marido é bom, muié - arr. Josiane Batista; São Rafael – arr. deWashington C. Damasceno; Abre a porta povo– arr. de Wanderson; Você gosta de mim- arr. Egnaldo Paixão; O cravo brigou com a rosa –arr. Eguinaldo Miranda; Alecrim dourado – arr. Leandro Aragão; Olha que belas laranjas, menina- arr. Tenison Santos; Três três passará - arr. Bruno Duarte; Pisa na fulô - arr. Celso Jesus; O siri ô lé - arr. Elisa Paixão; Minha sabiá, minha zabelê - arr. Ramon Macedo; Pau pereira- arr. Manoel Campos; Pau de fita- arr. Gerônimo Nascimento; Roda das Palmeiras - arr. Marcelo Batista; Marujada - arr. Marlus Muriel; Son-son do Acaru- arr. Márcia L. Batista. Finalmente, no Concerto de Conclusão do Núcleo São Félix, realizado dia 23 de maio de 2009,às 20 horas no Centro Cultural Dannemann. 92 Foram tocadas na parte 1, composições: Dobrado São Félix - Fred Dantas(composto em sala de aulas). Dobrado 91 Professores: Fred Dantas, Celso Benedito e Paulo Novais de Almeida. Mestre da banda: José Eduardo. Flauta: Elisa Gomes da Paixão; Jailton Nunes Marques; Valter Pedro Rodrigues do Nascimento, Joaquim Alves de Oliveira Neto e Márcia Lopes Batista. Requinta: Wanderson Rodrigues da Silva. Clarineta: Florisvaldo Ferreira da Silva; Thiago Silva Santos, Leandro Barbosa Aragão dos Santos; Manoel Campos Rodrigues, Danilo Alves dos Santos e Josiane da Silva Batista. Sax soprano: Robston Alencar Alves Junior. Saxofone alto: Gildinei Batista Lima, Ramon Macedo de Alencar, Fernando Souza dos Anjos, Vasconcelos Ventura da Silva e Jerônimo Azevedo Nascimento.Sax tenor: Anderson Rocha Marques;Marcelo Lopes Batista; Fredson Ferreira dos Anjos. Sax barítono: Humberto Tarcisio Trompa: Marcelo Batatinha, Marlus Muriel Almeida Andrade. Trompete: Washington Cardoso Damascen e Egnaldo Souza Paixão.Trombone: Tenison Santana dos Santos, Bruno Duarte Souza Conceição; Celso Jesus dos Santos; Edilson Gomes do Nascimento; José Eduardo Rodrigues dos Santos. Tuba: José Egnaldo Silva; Oton Cruz dos Santos. Odilon Ferreira de Jesus Filho. Prato: João Arnaldo Silva. Caixa: Celso José Benedito. Bombo: Marcos Henrique De Jesus Conceição. 92 Professores: Fred Dantas, Celso Benedito e Paulo Novais de Almeida. Mestre da banda: Jessé do Carmo Conceição.Flautim: Nilton Azevedo de CarneiroFlauta: Julio Cezar Vital Santana. Clarineta: Jorge Lucas Lima das Neves Souza, Silas Henrique Pereira dos Santos, Raul Fernandes Dias, Luiz Henrique Nascimento Fagundes, Aradson dos Santos Alves, Gabriel Lucas Barbosa da Silva, Luiz Carlos Conceição Santos e Bruno de Jesus Lago. Saxofone alto: Abimael de Oliveira Santos e Felipe Dias dos Santos. Sax tenor: Almir Lima dos Santos Junior, Jailson Rastele Borges dos Santos, Carlos Henrique.Bonbardino: Leandro Santos Almeida.Trompa: Flavio Costa da Cruz. trompete: Murilo Ramos Santiago, Lucas Fernandes Dias, Marcos Santos, Lucas Felipe Araújo Machado, Marcos Antonio da Silva, Flavio,Darlan Santos de Brito, Everaldo.Trombone:Ribamar Araújo Lima, Alan Pereira.Tuba: Mitanael de Jesus dos Santos, Renato Rangel dos Santos, Samuel de Jesus Freitas.Prato: Gilmario França.Caixa: Joilson de Jesus Santana.Bombo: Tarcisio Pereira Andrade,George dos Santos Conceição. 216 Samuel Amorim dos Santos- Abimael Santos, Marcha Militar Raimundo CerqueiraNilton Carneiro; Dobrado Roque dos Santos - Mitanael dos Santos. Na parte 2, arranjos da cultura popular, tivemos: Cativeiro de Iaiá - arr: Renato Rangel; Formiga miúda arr: Murilo Ramos; Esmola Cantada - arr: Flávio dos Santos e Santos; Seu Tibúrcio arr: Darlan de Brito; Samba do Alguidar - arr: Ezequiel; Bahianas de Irará - arr: Luis Henrique; Lavagem de Irará -arr: Lúcio; Pé dentro pé fora- arr:Jorge Lucas; Zé pó pô arr. Aradson Alves; Já Embolei - arr: Gabriel Lucas; Samba de Irará - arr. Silas Henrique; Mandinga do futebolarr: Mitanael Santos; Ô Jacurimã - arr: Marcos Antonio; Azunçum Nazaiiê,arr: Luiz Carlos; Vai, quem quiser - arr: Joílson Santana. Quando ouvimos as gravações entendemos como poderia ser melhor, caso até fôssemos a estúdio, mas o importante no curso mestres, sob a ótica da presente tese, é o exercício da composição, a contribuição para o surgimento de novos talentos criadores no seio das bandas filarmônicas e um desejo de renovação que busca motivos na cultura popular de cada região. ANEXO 1.2 JORNADA DE CAPACITAÇÃO PARA FILARMÔNICAS Desta vez, no trabalho proposto pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, sabia que o tempo seria muito curto, três dias para cada região, e elaborei adrede “fôrmas” onde se previa não só a forma em si do dobrado, da valsa, do maxixe, etc como também o comportamento tonal de cada uma das partes estabelecidas e ainda o jogo com as quatro funções instrumentais, o canto, o contracanto, centro e marcação. Jornada de qualificação em Bom Jesus da Lapa: Dobrado Pássaro de Lapa - Fred Dantas (composto em sala de aulas) Dobrado Jornada – Leonardo Neri Dobrado Felipe Gabriel – Célio Borges Jornada de qualificação em Canavieiras: Maxixe Mestre Xaxá – Anderson Gabriel. Valsa Dona Preta– Eunice Castro Bolero Canavieiras – Airlan Santos (Nanáu) Jornada de qualificação em Jacobina: Maxixe Nélson Mandela – Ubiraci Castro 217 Valsa Arte de tocar – Verônica Oliveira Polaca Serra do vento – Renato Santana Fantasia Mocambo – Celso Santos O que chama a nossa atenção nesses títulos de música é a questão do pertencimento. Uma das minhas definições preferidas para a prática de compor na filarmônica é se referir a datas, fatos e pessoas. Isso é válido hoje, desde a primeira peça composta por um aluno. Na Lapa um aluno homenageou a própria jornada pedagógica, enquanto seu colega colocou no dobrado o nome do seu filho pequeno. Em Canavieiras foram títulos e velho mestre local, com 94 anos, a mãe da compositora e a própria cidade. Em Jacobina o maxixe recebeu o título do velho Madiba, falecido naquela semana. A compositora deu à sua valsa o nome do projeto de iniciação à qual pertence. Serra do vento é a enorme montanha que domina a paisagem da cidade e finalmente Mocambo é a povoação natal do quarto compositor. Sobre essas duas últimas peças vamos concentrar nosso interesse, pois já apontam para o ideal libertário que almejamos no presente trabalho de tese. Transcrevo na integra a fórmula composicional recomendada então: Etapas na composição atual para banda filarmônica: 10 conselhos da sorte. 1 – Vamos que você decida criar uma composição atual, que reflita uma nova realidade sonora; no caso da banda filarmônica devemos ainda pensar no estilo da sua composição, que vai determinar a escolha da forma. Seja com que sonoridades você preencha seu estilo, mantenha a nossa nomenclatura: Dobrado, Polaca, Fantasia, Marcha, etc. isso é muito importante para a nossa identidade. 2 – Decidido o estilo, construa a forma, ou melhor, a fôrma: mantenha o menor modelo para cada estilo: para um dobrado, por exemplo, crie uma situação decisiva e curta, que possa ser identificada como uma introdução, depois uma 1ª parte de curta duração, repetida com ritornello, no qual você desenvolve algum tipo de discurso musical; na parte seguinte, o “forte”,crie algo onde os graves tenham destaque, repetido por ritornello, mantenha a volta ao sinal de S, o pulo do O e um Trio onde o recomendado é surgir uma textura mais delicada . 3 – Escolha um bom motivo, uma pequena série de no máximo 8 notas, e com ela construa a peça toda, ampliando-a por espelho, inversão, transposição, ampliação ou 218 diminuição de durações. Quanto mais resumido é o material original, maior a coesão, a liga da música toda. Você pode criar sessões de improvisação, fornecendo o conjunto de notas do motivo escolhido. 4 – Dê preferência a uma região cômoda para os sopros, cada um em sua natureza. Verifique as extensões das flautas, clarinetas, saxofones e dos metais. Não constranja as tubas a fazer frases muito distantes da função de marcação. Os solos de tuba na literatura tradicional são sempre compatíveis com a grande quantidade de ar que o solista necessita. 5 – Construa a grade de funções, com 4 pentagramas: canto, centro, contracanto e marcação. O canto pode ser a exposição do motivo; o contracanto, uma segunda série derivada, feita em resposta; o centro pode muito bem ser construído por notas longas, criando uma ambiência para as atividades anteriores; e a marcação, notas graves definidoras de momentos. 6 – Quando a linha de canto trabalha, a sua contraparte, o contracanto, descansa e vice versa; o contracanto responde ao canto. O centro age em combinação com a marcação. Existe um tipo de resposta de preenchimento em registro médio para cada tipo de atividade marcante grave. 7 – Procure fixar todas as suas informações nessa grade de funções; a hora de criar é essa, inclusive a definição de qual sessão improvisa ou se sobressai em cada lugar, deixando para depois somente a tarefa de distribuir as funções entre os instrumentos e adequar oitavas. 8 – Construa a grade de instrumentação e nela distribua o que você criou com a grade de funções; o instrumental padrão para a banda popular no Brasil é: flautim, 2 flautas, requinta, 3 clarinetas, 2 sax altos, 1 sax tenor, 1 barítono si b (ou 2° sax tenor), 3 trompas, 3 trompetes, 2 trombones, bombardinos, tuba si b e tuba mi b. À percussão tradicional de banda, caixa clara, bombo e pratos, poderemos acrescentar as mais diversas fontes sonoras, sempre orientadas por partitura. 219 9 – A questão com as trompas tem na composição nova para banda filarmônica uma oportunidade de ouro de reverter situações. Podemos explorar melhor a sonoridade fosca da trompa modelo saxhorn, e até compor trechos solistas para ela. 10 – Seja com que sonoridade esteja a trabalhar, tonal (obedece a uma hierarquia onde nominamos uma nota como principal) ou atonal (notas ou acordes sem relação de hierarquia), consonante (agradável, relaxadora) ou dissonante (instigante, questionadora), um trecho musical estará completo quando nele estiver, sobre a pauta: indicação de região, previsão de duração de um trecho, indicação de duração de atividade sonora, dinâmicas, sinais de articulação. No início da composição ou de trechos significativos, pode ainda existir indicação de andamento (rápido, lento) e de interpretação (doce, ríspido, reflexivo, etc.) Na polaca Serra das Almas o aluno Celso Santos foi instruído a manter o fraseado típico das polacas para bombardino, sobre o compasso ternário usual, mas a noção de tonalidade foi substituída por uma direção melódica. Exemplo Musical 73- Polaca Serra do Vento Na fantasia mocambo eu já pude vislumbra ainda melhor a renovação com pertencimento que é o principal objeto desta tese, na realização dessas novas soluções já pelos compositores do interior. 220 Exemplo Musical 74- Fantasia Mocambo Aqui vemos células de improvisação sobre notas escolhidas, divididas em quatro trechos sob coordenação de um regente e em apoio a isto, clusters sem significado tonal, em fermata. É uma composição corajosa do jovem mestre Celso de Jesus, na cidade de Jacobina, que foi plenamente executada em público. 221 ANEXO 2: UM DEBATE E CINCO EXPERIÊNCIAS O principal foco deste trabalho é abrir caminhos para um processo renovador de natureza composicional nas bandas filarmônicas. Nesse sentido idealizei um debate, hipotético, e criei um conjunto decinco experiências musicais envolvendo a formação banda de música, seu material melódico e a capacidade criativa e reativa dos seus músicos. A opção pelo serialismo é inevitável no meu caso, pois minha convicção e formação têm base no método dodecafônico de Arnold Schöenberg (1874-1951), no seu desenvolvimento por Alban Berg (1885-1935) e Anton Webern (1883-1945), na sua propagação no Brasil por Hans Joachin Koellreuter (1915-2005), no que veio gerar a Escola da Bahia, em cujo manto fui aluno de Ernst Widmer (1927-1990) e de Lindembergue Cardoso (1939-1989). Considero-me colega de Wellington Gomes,numa geração que antecede Paulo Cruz Rios e outros alunos de Paulo Costa Lima, meu orientador e influenciador. Somos a Escola da UFBA, uma instituição que se desde sempre estuda e analisa, sempre ousa, e dentro dela temos mantido uma maneira de pensar que pode ser chamar a Escola da Bahia, que trabalha a linguagem serial e póstonal,. O reaproveitamento de material de origem popular mesclado a isso faz parte do metier da Escola da Bahia. Antecedendo a realização das cinco experiências, proponho a realização de um debate intitulado “a anarquia”. Esse fantasma que assombra as bandas de música, que vez por outra assume as rédeas do grupo cada vez que o mestre vai atender uma ligação, vai ser exorcizada em sua própria prática. O mestre nesse caso é repensado como um tirano, a ser deposto por uma primavera árabe93. A banda vai ser entregue a ela mesma, sem a presença física de um regente, nem mesmo como testemunha, para não inibir as personalidades pulsantes. 1 – Experiência serial. Para o presente experimento nos interessa selecionar um fragmento de onde extrairemos uma pequena série que vai ser trabalhada. Nesse sentido colhemos da primeira melodia do dobrado Dois Corações (Pedro Salgado) a série – evitando repetição de notas:A- D- C#- E- G- Bb- C- F (9-2-1-4-7-A-0-5) 93 Ora, no momento em que idealizei o debate, era deposto Osni Mubarak no Egito, em meio a uma série de movimentos sociais, achamada primavera árabe. Em 2014 esse termo já não se aplica na imprensa internacional: de lá para cá a guerra na síria se tornou interminável,houve massacres de rua no Egito e surgiu o Estado Islâmico. 222 Exemplo Musical 75- Dobrado Dois corações O tema, a frase inicial do canto do dobrado Dois corações vai estar no âmago das cinco experiências e gera a série do exemplo musical 60, que por sua vez vai dar origem à tabela serial da experiência cinco. Exemplo Musical 76- Experiência serial 2 – Experiência temática com os ícones musicais. Como no mundo das bandas filarmônicas certas melodias podem ser consideradas “universais”, a experiência será a superposição e tratamento consecutivo dessas melodias consagradas, verdadeiros ícones musicais, representados nos dobrados brasileiros de circulação e conhecimento nacional, como o: 220, Dois corações, Saudades de minha terra. 223 Exemplo Musical 77- Experiência temática 3 – Experiência com o timbre. Este item envolve explorar a diversidade dos naipes instrumentais da banda em diversas combinações. No modelo conhecido internacionalmente como marching band ou banda militar, temos um naipe de percussão (caixa, bombo, pratos), o timbre macio e grave do eufônio, as tubas modelo souzafone, os trombones e trompetes, trompas, saxofones e clarinetas, além do recurso timbrístico da clarineta em mi bemol, ou requinta, e ainda flautas e flautim. Exemplo Musical 78- Experiência com timbres 224 4 – Experiência com improvisação dirigida. Sob o comando de um mestre, que seria no caso um vetor de comunicação entre os grupos, os diversos naipes da banda começariam a criar, de dois modos: módulos de improvisação sobre notas estabelecidas ou a improvisação sem tema, ao modo de Walter Smetak, mas tendo o mestre como um mediador que também sugestiona. Exemplo Musical 79- Experiência com improvisação 5 – Realização da tabela serial, sem uso da partitura musical. Figura 28 - Tabela serial A D D G C# F# E A G C Bb Eb C F F Bb C# E G Bb C F F# A C Eb F Bb E# G# B D E A G# B D F G C B D F Ab Bb Eb D F Ab Cb Db Gb E G Bb Db Eb Eb A C Eb Gb Ab Db 225 9 2 1 4 7 A 0 5 2 7 6 9 0 3 5 A 1 6 5 8 B 2 4 9 4 9 8 B 2 5 7 0 7 0 B 2 5 8 A 3 A 3 2 5 7 B 1 7 0 5 4 7 B 1 3 8 5 B 9 0 3 6 7 1 Fonte:8 notas iniciais do canto do dobrado Dois Corações (Pedro Salgado) Problema: O debate e as cinco propostas acima parecem perfeitas para qualquer grupo que envolva a formação instrumental de sopro e percussão. Entretanto a música de banda se caracteriza pela forma enquanto paradigma composicional e pela função instrumental (canto, contracanto, centro e marcação) como elemento de estrutura. No primeiro caso a ideia de introdução, primeira parte, uma segunda parte com solo nos graves e a ideia de um trio em pianíssimo parecem fazer parte da própria gênese do material musical. Como se referir à forma mesmo para excluí-la? O segundo caso é que canto, contracanto, centro e marcação parecem na filarmônica serem mais que técnicas de instrumentação, assumindo contornos de elementos quase religiosos. Como definir o momento e o modo de atuação dos bravos defensores dessas posições, em um teatro de operações em constante mutação? Resultados das cinco experiências com música de banda: “A anarquia”, debate que antecede a realização das experiências, exige certos recursos cênicos do participante. É uma reflexão sobre a autoridade, sobre os impulsos pessoais dentro de uma comunidade, sob a tentativa de controle via autoridade invasiva e do próprio risco de extinção que toda sociedade está sujeita. Em resposta às duas questões surgidas: 226 A – a noção forma-estilo foi mantida. Declara-se a forma, adota-se o rittornelo mesmo para improvisações e cria-se noções como introdução, 1ª parte, trio e coda. B – mantêm-se as quatro linhas, de canto, contracanto, centro e marcação. As proto-partituras foram elaboradas numa grade de quatro funções. C – na experiência 5, todo o acima acertado foi abolido. O músico se guia apenas pela coleção de notas, livre dos parâmetros do pentagrama. Experiência 1: sob a forma declarada de “música ligeira” uma série foi trabalhada, onde se gerou uma rede mais ou menos intrincada de vozes, com boa consequência rítmica. Experiência 2: com forma de dobrado, onde a introdução foi construída com quatro introduções de dobrados de João Sacramento Neto. A 1ª parte é construída com melodias de dobrados célebres, em quodlib e o forte, com contracantos, centros e marcações também diversificados. O trio é construído com material das partes anteriores. Experiência 3: com forma definida “de polaca: tema e variações”, trabalhamos com os timbres. Um conjunto de quatro funções tem sua distribuição alternada entre grupos de instrumentos, destacando o elemento timbre como diferenciador. Experiência 4: improvisação dirigida, primeiro utilizando módulos com a série da experiência 1, depois utilizando módulos de improvisação livre, com entradas e referências dadas pelo regente. Experiência 5: foi fornecida a tabela, transposta também para os instrumentos em si bemol e mi bemol, onde, como ponto de convergência das improvisações individuais, torna-se necessária a presença do regente. 227 ANEXO 3: AUDIÇÕES - FAIXA DO CD EM ANEXO Faixa 1: Dobrado Anysio Teixeira - Audição 8 ......................................................... 194 Faixa 2: Sedare dolorem opus Divinum est - Audição 9 ............................................ 197 Faixa 3: Maxixe Bandeira do Divino - Audição 10 ................................................... 199 Faixa 4: Dobrado Luis Ayala - Audição 1 ................................................................. 156 Faixa 5: Abertura na levada - Audição 2 ................................................................... 166 Faixa 6: Dobrado Novo - Audição 3 ......................................................................... 171 Faixa 7: Dobrado Pepezinho - Audição 4.................................................................. 172 Faixa 8: Dobrado 2 de Julho - Audição 5 .................................................................. 173 Faixa 9: Suite Maragogipe - Audição 6..................................................................... 176 Faixa 10: Marcha Santo Antônio - Audição 7 ........................................................... 178 Faixa 11: Os Bohêmios (Anacleto de Medeiros) Faixa 12: Hesitating Blues ( Jim Europe) Faixa 13: Contracanto e tangado (OSUFBA, regência Piero Bastianelli) 228 ANEXO 4 - PARTITURA: Dobrado Anysio Teixeira 229 230 231 232 233 234 235 236 237 238 239 240 ANEXO 5 - PARTITURA: Fantasia Sedare Dolorem Opus Divinum Est 241 242 243 244 245 246 247 248 249 250 251 252 253 254 255 256 257 258 259 260 261 262 263 264 265 266 267 ANEXO 6 - PARTITURA: Maxixe Bandeira do Divino 268 269 270 271 272 273 274 275