Centro Univerisitário de João Pessoa - Departamento de Ciências Exatas Coordenação de Engenharia Civil Apostila de Fı́sica Geral II Professor: Ms. José Jacinto Cruz de Souza (UNIPÊ) Fonte: Bechtold, Ivan Helmuth e Branco, Nilton da Silva. Fı́sica básica C-II.2.ed. Florianópolis: UFSC, 2011. João Pessoa - PB 2014 Sumário Apresentação ............................................................................. 9 1. Estática dos Fluidos............................................................ 11 1.1 Propriedades dos fluidos........................................................... 13 1.2 Pressão num fluido .................................................................... 15 1.3 Variação de pressão em um fluido em repouso..................... 19 1.4 Aplicações.................................................................................... 24 1.4.1 Princípio de Pascal ............................................................. 24 1.4.2 Vasos comunicantes........................................................... 27 1.4.3 Medidas de pressão ........................................................... 29 1.4.4 Empuxo: Princípio de Arquimedes ................................. 30 Resumo.............................................................................................. 35 Exercícios........................................................................................... 36 Bibliografia básica ............................................................................ 38 Bibliografia complementar comentada ......................................... 38 2. Dinâmica dos Fluidos........................................................ 41 2.1 Introdução ................................................................................... 43 2.2 Conservação da massa: equação de continuidade ................ 45 2.3 Conservação da energia: equação de Bernoulli ..................... 49 2.4 Viscosidade ................................................................................. 56 Resumo.............................................................................................. 60 Questões ............................................................................................ 60 Problemas...........................................................................................61 Bibliografia básica ............................................................................ 62 Bibliografia complementar comentada ......................................... 62 3. Temperatura e Calor........................................................... 63 3.1 Introdução ................................................................................... 65 3.2 Temperatura................................................................................ 66 3.2.1 Escalas de temperatura ..................................................... 67 3.3 Expansão térmica....................................................................... 68 3.4 Calor............................................................................................. 72 3.4.1 Capacidade térmica e calor específico............................. 72 3.4.2 Transição de fase e calor latente....................................... 77 3.5 Transferência de energia térmica............................................. 79 3.5.1 Condutividade térmica...................................................... 81 Resumo.............................................................................................. 85 Questões ............................................................................................ 87 Bibliografia básica ............................................................................ 89 Bibliografia complementar comentada ......................................... 90 4. Primeira Lei da Termodinâmica...................................... 91 4.1 Introdução ................................................................................... 93 4.2 Equivalente mecânico de caloria.............................................. 94 4.3 Trabalho adiabático.................................................................... 95 4.3.1 Análise gráfica.................................................................... 98 4.4 Transferência de calor.............................................................. 100 4.5 Primeira lei da termodinâmica .............................................. 100 4.6 Processos reversíveis ................................................................101 4.7 Aplicação em processos termodinâmicos............................. 104 4.7.1 Processo adiabático .......................................................... 104 4.7.2 Processo isocórico ............................................................ 104 4.7.3 Processo isobárico ............................................................ 105 4.7.4 Processo isotérmico.......................................................... 106 4.7.5 Processo cíclico ................................................................. 106 4.8 Gás ideal .................................................................................... 109 4.8.1 Energia interna de um gás ideal .....................................112 4.8.2 Capacidade térmica de um gás ideal .............................113 4.8.3 Processo adiabático de um gás ideal..............................116 Resumo............................................................................................ 122 Exercícios......................................................................................... 123 Bibliografia básica .......................................................................... 127 Bibliografia complementar comentada ....................................... 127 5. Teoria Cinética dos Gases............................................... 129 5.1 Introdução ..................................................................................131 5.2 Modelo de gás ideal ..................................................................131 5.3 Pressão ...................................................................................... 134 5.4 Temperatura: interpretação cinética ...................................... 138 5.5 Fluido de Van der Waals ......................................................... 139 Resumo............................................................................................ 144 Questões ...........................................................................................145 Problemas.........................................................................................145 Bibliografia básica ...........................................................................146 6. Segunda Lei da Termodinâmica e Entropia ................ 147 6.1 Introdução ..................................................................................149 6.2 Segunda Lei da Termodinâmica: enunciados de Clausius e Kelvin ............................................151 6.3 Motor térmico e refrigerador.................................................. 155 6.3.1 Motor térmico ................................................................... 155 6.3.2 Refrigerador.......................................................................157 6.4 Equivalência dos enunciados de Kelvin e Clausius ............ 158 6.4.1 O enunciado de Kelvin leva ao de Clausius ................. 158 6.4.2 O enunciado de Clausius leva ao de Kelvin................. 159 6.5 Ciclo de Carnot..........................................................................160 6.6 A escala termodinâmica de temperatura ............................. 165 6.7 Exemplos de máquinas térmicas.............................................166 6.7.1 Refrigerador doméstico.....................................................166 6.7.2 Bomba de calor ..................................................................167 6.7.3 Ciclo Otto............................................................................167 6.7.4 Ciclo Diesel.........................................................................169 6.8 Teorema de Clausius................................................................ 171 6.9 Entropia ..................................................................................... 172 6.9.1 Entropia e processos reversíveis..................................... 172 6.9.2 Entropia e processos irreversíveis.................................. 175 6.9.3 O princípio do aumento da entropia ..............................178 Resumo............................................................................................ 183 Questões .......................................................................................... 183 Problemas........................................................................................ 184 Bibliografia básica .......................................................................... 186 Apresentação Este livro contempla de forma simples e direta os conteúdos pertencentes às áreas de teoria dos fluidos e termodinâmica. Ao longo dos textos as discussões relacionam os fenômenos físicos a situações práticas, com o intuito de facilitar o entendimento por parte dos estudantes. Iniciamos esta disciplina com o estudo da estática dos fluidos no Capítulo 1: nesse contexto consideramos fluidos em equilíbrio, onde propriedades como pressão e empuxo são discutidas em detalhes. No Capítulo 2 veremos uma introdução à dinâmica dos fluidos, onde fluidos idealizados em movimentos simples serão estudados. Apesar da simplicidade dos modelos tratados, as aplicações são várias, desde o escoamento de fluidos em encanamentos até a sustentação de aviões. Dando seqüência ao conteúdo, iniciamos o estudo das propriedades térmicas da matéria no Capítulo 3, que discute os fenômenos relacionados com temperatura e calor e onde abordamos as escalas térmicas, os efeitos de dilatação térmica e os processos de transferência de calor. No Capítulo 4 é apresentada a primeira lei da termodinâmica, a qual é baseada nos conceitos de conservação de energia, sendo o calor e o trabalho as formas de energia transferidas entre os sistemas considerados. Essa lei é aplicada a diversos processos termodinâmicos e é dada uma ênfase à importância dos processos reversíveis na determinação dos parâmetros citados acima. Nesse Capítulo também é introduzido o conceito de gás ideal, bem como as condições em que é observado. No Capítulo 5 apresentamos a Teoria Cinética dos Gases, a qual se propõe a dar uma interpretação microscópica às leis termodinâmicas estudadas nos Capítulos anteriores. Assim, estabelecemos a pressão e a temperatura como médias de grandezas microscópicas. Veremos ainda um modelo de gás que vai além daquele de gás ideal, o chamado gás de Van der Waals. Finalmente, no Capítulo 6 será estudada a Segunda Lei da Termodinâmica, nos seus vários enunciados. Discutiremos máquinas térmicas (motores e refrigeradores), ciclos termodinâmicos - especialmente o de Carnot, que permite a definição de uma escala termodinâmica de temperatura - e um conceito importante e delicado em Termodinâmica, o de entropia. Ivan Helmuth Bechtold Nilton da Silva Branco Capítulo 1 Estática dos Fluidos Capítulo 1 Estática dos Fluidos Neste Capítulo, iremos estudar as propriedades de fluidos em equilíbrio. Vamos analisar conceitos básicos de densidade, pressão, empuxo e tensão superficial. Ao final deste estudo você deverá ser capaz de: aplicar os conceitos de pressão, entender o Princípio de Pascal e o problema dos vasos comunicantes; definir densidade e explicar o empuxo sobre os corpos (por exemplo, sobre barcos e balões de ar quente) mediante o princípio de Arquimedes; resolver problemas envolvendo variações de pressão e problemas com forças de empuxo sobre corpos flutuantes e imersos. 1.1 Propriedades dos fluidos Usualmente, costumamos classificar a matéria em sólidos, líquidos e gases. Um corpo sólido tem geralmente volume e forma bem definidos, que só se alteram (geralmente pouco) em resposta a forças externas. Uma das principais propriedades dos líquidos e gases é o escoamento, por isso ambos são denominados fluidos. Os líquidos têm volume bem definidos, mas não a forma, sendo que o volume amolda ao recipiente que o contém. Já os gases não apresentam nem forma nem volume bem definidos, expandindo até ocupar todo o volume do recipiente que os contém. Em alguns casos, a separação entre sólidos e fluidos não é bem definida; é o caso de fluidos como o vidro quente e o piche: eles escoam tão lentamente que se comportam como sólidos nos intervalos de tempo que trabalhamos com eles. O plasma, caracterizado como um gás altamente ionizado, é frequentemente chamado de “o quarto estado da matéria”, em meio às três classes de estado já existentes 14 (sólido, líquido e gasoso). Além disso, existem os materiais que se enquadram na chamada “matéria condensada mole”, os quais apresentam uma grande variedade de formas e cujas principais características são: elasticidade, interações fracas entre os elementos estruturais, grande variedade de graus internos de liberdade etc. Alguns exemplos são: argila, sistemas granulares como a areia, polímeros como a borracha e o plástico, espuma, sistemas coloidais e microemulsões (maionese), membranas e outros materiais biológicos, géis, cristais líquidos (para saber mais sobre matéria condensada mole, consulte o artigo da Revista Brasileira de Ensino de Física, que pode ser obtido no endereço: <http:// www.sbfisica.org.br/rbef/Vol27/Num3/>) etc. Os estudos nessa área renderam o Prêmio Nobel de física de 1991 a Pierre-Gilles de Gennes. Para uma definição mais precisa de sólidos e fluidos, é preciso classificar os diferentes tipos de forças que atuam sobre eles. Essas forças são geralmente proporcionais à área de um elemento de superfície (que pode ser interna ou externa ao meio) sobre o qual estão sendo aplicadas. A força por unidade de área é definida como tensão: as tensões podem ser normais ou tangenciais às superfícies sobre as quais atuam, veja a Figura 1.1 abaixo: Cola T m m m T T1 A B T2 C Figura 1.1 – (a) e (b) são exemplos de tensões normais sobre o teto e sobre o solo, respectivamente, e (c) é um exemplo de tensões tangenciais sobre as superfícies laterais adjacentes ao corpo de massa m. 15 No caso de um pneu de automóvel ou bicicleta, a pressão interna do pneu está relacionada com as colisões das moléculas de ar com a superfície interna (mais detalhes no Capítulo 5), mas existe ainda a pressão atmosférica na superfície externa do pneu (que é igual a 1 atm quando próximo ao nível do mar). A pressão medida com um calibrador equivale à diferença entre as pressões interna e externa, diferença essa que é compensada pela elasticidade do material de que é feito o pneu. Na Figura 1.1, (a) e (b) são exemplos de tensões normais. Em (a) um G bloco de massa m puxa o fio que exerce uma tensão T num elemento de superfície do teto, também chamada de tração. Em (b) o bloco G está sobre o chão e exerce diretamente uma tensão T sobre um elemento de superfície deste, chamada de pressão. Na Figura 1.1, em (c), o bloco está colado G Gentre duas paredes e, como se pode notar, exerce as tensões T1 e T2 sobre as superfícies de cola que aparecem paralelas às paredes. Esse é um exemplo de tensões tangenciais, também chamadas de tensões de cisalhamento. A diferença fundamental entre sólidos e fluidos está na forma com que estes respondem às tensões tangenciais sobre si. No caso de um sólido, a força externa pode deformar um pouco a sua estrutura, até que se atinja o equilíbrio com as tensões tangenciais internas e o corpo permaneça em repouso. Se a força externa não for muito grande e o sólido voltar à condição inicial depois dela ser retirada, a deformação é dita elástica. Essas deformações, em geral, são muito menores que as dimensões do corpo sólido. Um fluido não consegue equilibrar uma força externa tangencial (por menor que seja), o resultado disso é o escoamento. Fisicamente esse fenômeno está relacionado com o deslizamento relativo entre as partículas constituintes do fluido. A resistência a esse deslizamento é chamada de viscosidade e será vista no Capítulo seguinte. Lembrando de (c) na Figura 1.1, enquanto a cola estiver fluida ela escoa ao longo das paredes devido à ação da gravidade; apenas depois de solidificada ela consegue equilibrar as forças tangenciais exercidas pelo bloco. 1.2 Pressão num fluido Um fluido se comporta como um meio contínuo porque, na escala macroscópica, suas propriedades variam continuamente de um ponto para outro. Comumente vamos nos referir a elementos de volume num fluido 'V 'x'y'z , onde suas dimensões 'x, 'y, 'z devem ser muito menores que as distâncias macroscópicas (ex.: a medida de uma caixa) e ao mesmo tempo muito maiores que as distâncias interatômicas. Essa proposição é necessária para que 'V contenha um grande número de átomos e as flutuações nas propriedades do fluido sejam desprezíveis, resultando na condição de continuidade do fluido. 16 Vamos imaginar uma quantidade de fluido com massa 'm fechada em um elemento de volume 'V . Podemos então definir a densidade do fluido nessa região como: rU § 'm · lim ¨ ¸ 'V o0 'V © ¹ dm . dV (1.1) onde o limite 'V o 0 nessa expressão significa que 'V é um infinitésimo físico, portanto a densidade pode variar continuamente na escala macroscópica. A unidade de densidade no Sistema Internacional de medidas (SI) é Kg . Na Tabela 1.1, apresentamos alguns m3 valores de densidades de algumas substâncias. Substância Densidade Hidrogênio a 0°C e 1atm 9,0 × 10 -2 Ar: 0°C e 1atm 100°C e 1atm 0°C e 50atm Isopor Petróleo (valor médio) 1,29 0,95 6,50 1,0 × 102 8,0 × 102 Gelo 9,2 × 102 Água: 0°C e 1atm 100°C e 1atm 0°C e 50atm Sangue Glicerina Alumínio Ferro, Aço Prata Mercúrio Ouro Platina 1,000 × 103 0,958 × 103 1,002 × 103 1,06 × 103 1,26 × 103 2,7 × 103 7,8 × 103 1,05 × 104 1,36 × 104 1,93 × 104 2,14 × 104 Tabela 1.1 – Densidades de algumas substâncias Um fluido está em equilíbrio quando o resultado da soma das forças que agem em cada porção do fluido é igual a zero. Essas forças podem ser divididas em volumétricas e superficiais. Um exemplo de forças volumétricas é a força gravitacional, a qual é de longo alcance G G e atua em todos os elementos do fluido, sendo dada por 'F 'mg , Infinitésimo físico Um elemento infinitesimal é definido como sendo muito pequeno, porém maior que zero. 17 onde mos então: e representa a massa de um elemento de fluido. Te. (1.2) G onde g é a aceleração da gravidade. As forças superficiais ocorrem em uma dada porção do meio limitada por uma superfície. Por exemplo: a força que a água exerce na superfície interna de um copo. Como discutimos anteriormente, os fluidos escoam quando submetidos a forças tangenciais à superfície, por isso a força superficial deve ser sempre perpendicular à superfície para um fluido em repouso. G A força superficial 'F do fluido sobre um elemento de superfície 'S é proporcional à área desse elemento. É conveniente então definir a pressão P como o número que mede a força por unidade de área. Na Figura 1.2 a seguir, n̂ representa um vetor unitário normal a 'S , onde convencionamos que n̂ aponta sempre para fora de uma superfície fechada. Dessa forma, podemos escrever: G 'F P'Snˆ . (1.3) G onde 'F e n̂ têm a mesma direção e sentido, portanto a pressão pode ser escrita como: 'F . (1.4) P 'S Tomando o limite onde o elemento de área tende a zero, obtemos a seguinte equação diferencial para P: P 'F 'S o0 'S lim ∆S dF . dS n^ ∆F S Figura 1.2 – Representação esquemática de um elemento de superfície ¨6 (parte de uma superfície S ), indicando o sentido da força sobre S, bem como o vetor unitário n̂ normal à superfície em ¨6. (1.5) 18 Em geral, a pressão pode variar de um ponto a outro da superfície, o que vem do fato dela depender diretamente da força aplicada no ponto em questão. Sendo A a área de uma superfície e F a força resultante sobre ela, a pressão pode ser escrita como: P F . A (1.6) É importante notar que a pressão é uma grandeza escalar, ou seja, não depende de . O que determina a direção da força é a orientação da superfície, ou seja, . A unidade de pressão no SI é o Pascal, abreviatura Pa, sendo que 1Pa 1N/m 2 . Há outras unidades bastante comuns como: atmosfera ( 1atm 1, 013 u105 Pa ) e mmHg ( 1atm 760 mmHg ). Exemplo 1. Calcule a massa e o peso do ar no interior de uma sala contendo 2,0 m de altura e um piso com área de 3,0 m u 4,0 m . Quais seriam a massa e o peso do mesmo volume de água? Encontre ainda a força total sobre o piso dessa sala exercida de cima para baixo pela pressão do ar. Solução: Na tabela 1.1, encontramos os valores da densidade da água e do ar (vamos considerar a densidade do ar igual a 1,2 Kg/m3 na temperatura ambiente). O volume da sala é V (2,0m)(3,0m)(4,0m) 24m3 , portanto a massa do ar pode ser obtida pela equação abaixo, partindo da equação 1.1: mar UarV (1, 2Kg/m3 )(24m3 ) 28,8Kg . O peso do ar é dado em Newtons: war mar g (28,8Kg)(9,8N/Kg) 282,2N . A princípio é surpreendente que o peso de um volume tão grande de ar seja igual ao de uma criança de aproximadamente 30Kg , mas agora faça as mesmas contas considerando a água no lugar do ar e você vai encontrar que a massa do mesmo volume de água é mágua 24 u103 Kg e consequentemente seu peso é wágua 23,5 u104 N . Em homenagem ao cientista e filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662). 19 A pressão de 1atm (quando próximo ao nível do mar) sobre o piso de área A (3,0m)(4,0m) 12m 2 produz uma força total de cima para baixo que é dada pela equação abaixo, a partir da equação 1.6: F PA (1, 013 u 105 N/m 2 )(12m 2 ) | 12 u105 N . Essa força é equivalente ao peso de aproximadamente 120 toneladas de água. Assim, como o piso suporta um peso tão grande? A resposta é que existe uma força de mesma magnitude apontando de baixo pra cima sobre o piso, da mesma maneira como um livro fica parado sobre uma mesa: seu peso está atuando para baixo, mas existe uma força que atua de baixo para cima. E no caso de ser o piso de um apartamento no segundo andar? Aí precisamos lembrar que o apartamento de baixo também está preenchido de ar, e que esse ar produz uma força igual de baixo para cima no piso. 1.3 Variação de pressão em um fluido em repouso Vamos considerar um pequeno elemento de um fluido, situado no interior deste e, além disso, supor que esse elemento tem forma de disco com pequena espessura e está situado a uma distância de referência z, como mostra a Figura 1.3. P’ A A P dz z z=0 Figura 1.3 20 A espessura do disco é dz e cada face tem uma área A . Partindo da equação 1.1, podemos escrever a massa desse elemento como: dm UdV UAdz . (1.7) As forças superficiais atuando no elemento de volume provêm do fluido que a este rodeia e são perpendiculares a sua superfície em todos os pontos. A resultante das forças nos eixos horizontais é nula, pois o elemento não tem aceleração ao longo desses eixos. As forças horizontais são devidas apenas às pressões do fluido e, por simetria, a pressão deve ser a mesma em todos os pontos do plano horizontal com altura z. O elemento de fluido também não tem aceleração na direção vertical, logo a resultante das forças que agem nessa direção também é nula; entretanto as forças verticais não provêm unicamente das pressões nas faces do disco, mas existe também uma contribuição do seu peso. Sendo P a pressão na face inferior e Pc P dP a pressão na face superior, a condição de equilíbrio é obtida observando que a força sobre a face superior mais o peso do elemento de fluido é igual à força sobre a face inferior do elemento, que é escrita a partir da equação 1.6: PA ( P dP) A dw . onde dw baixo. (1.8) UAgdz é o peso do elemento de volume, e aponta para Desenvolvendo a equação 1.8, temos: PA ( P dP) A UAgdz , AdP A Ugdz , logo, dP dz Ug . (1.9) A equação 1.9 mostra que a pressão no fluido varia com a altura em relação a um certo referencial. Essa variação de pressão equivale ao peso por unidade de volume do elemento de fluido compreendido 21 entre os pontos onde ocorre a variação de pressão (lado direito da equação anterior). Se P1 é a pressão na altura z1 e P2 é a pressão na altura z2 , acima de um nível de referência, a integração da equação 1.9 fornece: P2 ³ dP P1 z2 ³ Ugdz z1 ou . A densidade da água, por exemplo, aumenta aproximadamente 0,5% quando a pressão varia de 1atm a 100atm em temperatura ambiente. (1.10) A equação 1.10 foi obtida considerando U e g constantes de z1 a z2. Para líquidos, a densidade U varia muito pouco, portanto, com boa aproximação, podemos tratar um líquido como incompressível na estática dos fluidos, ou seja, U = constante. Em geral, as diferenças de nível não são muito grandes para que seja necessário considerar as variações de g, por isso a aproximação “g = constante” também é consistente. A superfície livre de um líquido em contato com a atmosfera é uma superfície onde a pressão é constante, pois todos os seus pontos estão submetidos à pressão atmosférica P0 . Esse valor é o mesmo para todas as superfícies livres em líquidos na vizinhança numa mesma altitude. Assim, é conveniente definir essa superfície livre como sendo o nível natural de referência, e então podemos escrever P2 cte P0 . Consideremos z1 um nível arbitrário e que a pressão nessa altura é dada por P . Logo: P0 P Ug ( z2 z1 ) , mas z2 z1 representa uma profundidade h abaixo da superfície livre, onde a pressão é P (veja a Figura 1.4), então temos que: P P0 Ugh . (1.11) A equação 1.11 é conhecida como Lei de Stevin e diz que a pressão no interior de um fluido aumenta linearmente com a profundidade. Além disso, ela mostra claramente que a pressão é a mesma em todos os pontos de mesma profundidade. Uma consequência impor- 22 tante é que a pressão não depende do volume do fluido; a pressão da água a 1m abaixo da superfície de uma piscina é igual à pressão da água a 1m abaixo da superfície da Lagoa dos Patos (RS), considerando que ambas estão na mesma altitude e estão preenchidas com o mesmo líquido. z2 − z1 = h z2 P1 = P z1 Figura 1.4 – Líquido confinado num recipiente, onde a superfície superior está aberta para a atmosfera. Um exemplo da aplicação da equação 1.11 ocorre na construção de represas ou barragens: a base é projetada mais larga que a parte superior e isso se deve ao fato que a pressão da água no fundo é maior que na superfície. Para os gases, U é bem menor que para os líquidos (ver tabela 1.1), por isso a diferença de pressão entre dois pontos nas proximidades da superfície da Terra é desprezível. No entanto, se o resultado de z2 z1 h for muito grande, poderá haver uma diferença de pressão entre as duas extremidades do objeto (o que não ocorrerá quando o h for muito pequeno): sabemos que a pressão do ar varia bastante quando subimos a grandes altitudes na atmosfera terrestre. Nesses casos, onde a densidade varia com a altitude, precisamos conhecer a função que relaciona U com z , U( z ) , antes de fazermos a integral que resultou na equação 1.10. Exemplo 2. Achar a pressão a 10 m de profundidade, abaixo da superfície de um lago, quando a pressão na superfície for de 1atm . A pressão atmosférica está relacionada com o peso da coluna de ar acima da superfície da Terra. O peso de uma coluna de ar com área de 1cm 2 é aproximadamente 10 N, resultando numa pressão de 1, 013 u105 Pa . 23 Solução: Para resolver esse problema, vamos utilizar a equação 1.11, p p0 Ugh . Sendo: p0 1atm 1, 013 u105 N/m 2 , U 1000 Kg/m3 e g 9,8 N/Kg , temos: p 1, 013 u105 N/m 2 (1000 Kg/m3 )(9,8 N/Kg)(10 m) p 199,3 u 103 N/m 2 1,97 atm . Ou seja, a 10 m de profundidade, a pressão é quase o dobro da pressão na superfície do lago, por isso é dito que cada 10 m de diferença de profundidade na água corresponde a 1atm de pressão. Exemplo 3. Uma represa retangular, de 50 m de largura, suporta uma massa de água com 20 m de profundidade (veja o esquema na Figura 1.5 abaixo). Calcule a força horizontal total que age sobre a represa. H = 20 m dA =L dh L= 50 m Figura 1.5 – Represa retangular indicada no exemplo 3. Solução: Pelo fato da pressão variar com a profundidade, não podemos simplesmente multiplicar a pressão pela área da represa para encontrar a força exercida pela água. Para resolver o problema, é necessário integrar os elementos de força sobre os elementos de superfície em diferentes alturas dh , da base até o nível superior da água, ou seja, de h 0 até h H 20 m . A pressão da água numa determinada profundidade h é dada pela equação 1.11, mas, nesse caso, não precisamos considerar a pressão atmosférica p0 , pois ela age nos dois lados da parede da represa. O elemento de força é então escrito como: onde dA Ldh , sendo que L é a largura da represa. A força é obtida através da integral: 24 h H F ³ H dF h 0 ³ UgLhdh 0 h2 UgL 2 H 0 1 UgLH 2. 2 Substituindo os valores, obtemos: F 1 (1000 Kg/m3 )(9,8 N/Kg)(50 m)(20 m) 2 2 9,8 u107 N . 1.4 Aplicações A seguir serão estudadas as aplicações dos fundamentos apresentados anteriormente. 1.4.1 Princípio de Pascal Pela Lei de Stevin (equação 1.11), a diferença de pressão entre dois pontos de um fluido em equilíbrio é constante, dependendo apenas do desnível entre estes pontos. Assim, se produzirmos uma diferença de pressão num ponto de um fluido em equilíbrio, essa variação se transmitirá a todos os pontos. O resultado prático disso é que todos os pontos do fluido sofrem a mesma variação de pressão. Esse princípio foi enunciado por Pascal em seu “Tratado sobre o equilíbrio dos líquidos” e é conhecido como Princípio de Pascal. Uma aplicação prática disso é o macaco hidráulico utilizado nas oficinas mecânicas para levantar carros (ver esquema da Figura 1.6). A ideia básica é que, quando o pistão da esquerda é baixado pela aplicação de uma força f , o aumento da pressão é transmitido para todos os pontos do fluido (em geral óleo), inclusive na outra extremidade onde existe um pistão com área A bem maior que a área a do primeiro. Como a pressão nos dois pistões é a mesma, pois estão no mesmo nível, a força para cima no pistão da direita F será maior que a força f . a f d A F Figura 1.6 – Esquema de um macaco hidráulico. Uma pequena força aplicada num pistão pequeno produz uma grande força para movimentar um pistão grande. D 25 Para obtermos a relação entre as forças f e F , consideramos a igualdade da pressão no pistão da esquerda ( Pe ) com a pressão no pistão da direita ( Pd ), Pe Pd , logo: f a F A então: F A f. a (1.12) Ou seja, a força f é aumentada pela razão entre as áreas. Sendo d e D as distâncias de deslocamento dos pistões da esquerda e direita, respectivamente, e considerando o fluido incompressível, o volume deslocado pelo pistão da esquerda (Ve ad ) deve ser igual ao volume deslocado pelo pistão da direita (Vd AD) , então obtemos a seguinte relação entre as distâncias: ad AD . Utilizando a equação 1.12, encontramos uma relação entre as forças e as distâncias nos dois pistões: (1.13) fd FD. A equação 1.13 parece indicar que o trabalho realizado pela força externa no pistão da esquerda é igual ao trabalho realizado pelo fluido no pistão da direita. No entanto é importante lembrar que a equação 1.13 é obtida considerando a igualdade entre as pressões na equação 1.12, ou seja, isso é válido apenas quando ambos os pistões estão na mesma altura. Dessa forma, a equação 1.13 passa a ser uma boa aproximação para deslocamentos infinitesimais dos pistões. Para deslocamentos maiores, que produzem uma diferença de altura entre o pistão da esquerda e o da direita, estando este último mais elevado, é necessário considerar também a pressão devido ao peso da coluna do fluido no pistão da direita, ou seja: . O resultado prático disso é que a força no pistão da esquerda tem que ser um pouco maior que a dada pela equação 1.12, pois precisa empurrar a coluna do fluido, além disso essa força precisa ser maior com o aumento da altura . Nesse caso, vemos que a equação 1.13 não é satisfeita, ou seja, o trabalho devido ao deslocamento 26 dos dois pistões não é o mesmo. Esse fato merece uma atenção especial, pois alguns livros de física básica não tratam desse problema. Exemplo 4. O pistão grande de um macaco hidráulico tem 40 cm de diâmetro. Que força deve ser aplicada ao pistão pequeno, de 8 cm de diâmetro, para elevar uma massa (m = 1.800 Kg), que inclui a massa do carro mais a plataforma que o sustenta, a uma altura de 1,5 m? Solução: Para visualizar a situação, observe a Figura 1.6. A fim de resolver o problema, vamos inicialmente utilizar a equação 1.12, que relaciona as forças nos dois pistões e as áreas destes. O objetivo é determinar a força f a ser exercida no pistão pequeno para elevar o carro no pistão grande, cuja força F mg . Inicialmente, precisamos determinar as áreas dos pistões: a S(4 cm) 2 e A S(20 cm) 2 Então: f a mg A S(4 cm) 2 (1.800 Kg)(9,8 N/Kg) 705, 6 N. S(20 cm) 2 Uma força de 705, 6 N equivale ao peso de uma pessoa de 72 Kg . Esse resultado é obtido considerando a igualdade das pressões entre os dois pistões durante todo o processo, o que na prática não ocorre porque o pistão da direita precisa subir para elevar o carro. Considerando que o pistão da esquerda permaneça no nível do solo e o da direita se eleve a uma altura h 1,5 m , sabemos que será necessária uma força f c ! f devido ao peso da coluna de fluido a ser elevada no pistão da direita. O valor de f c aumenta com o aumento da altura, sendo máximo na altura máxima h 1,5 m . Nessa situação, vamos calcular então o valor máximo dessa força, considerando que os pistões estão preenchidos com óleo cuja densidade volumétrica é 3 aproximadamente 820 Kg/m . Nesse caso, a equação 1.12 se torna: fc a ou seja, fc F Ugh A a mg a Ugh. A 27 Assim: f c 705, 6 N S(0, 04 m) 2 (820 Kg/m3 )(9,8 N/Kg)(1,5 m) f c 705, 6 N 60, 6 N 766, 2 N. Nessa situação, a força máxima (a ser aplicada no pistão da esquerda), para elevar o carro a uma altura de 1,5 m do solo, precisa ser incrementada de 60, 6 N , que equivale a um aumento de 8,6% em relação à situação de equilíbrio das pressões. 1.4.2 Vasos comunicantes A equação 1.11 dá a relação entre as pressões em dois pontos quaisquer de um fluido, independentemente da forma do recipiente que o contém. Portanto, se um recipiente é formado por diversos ramos que comunicam entre si e possuem as superfícies livres (ver exemplo (a) na Figura 1.7 a seguir), o líquido sobe à mesma altura h em todos os ramos. Note que, nesse caso, o fluido também tem a mesma pressão em quaisquer pontos dos diferentes ramos que estejam à mesma altura z. Esse é conhecido como o Princípio dos Vasos Comunicantes. p0 p0 p0 p0 A h2 h A A p0 z 2 B Superfície de separação C 1 h1 C’ z A B Figura 1.7 – (a) Vasos comunicantes e (b) dois líquidos imiscíveis com densidades diferentes em um vaso com forma de U. Agora, se compararmos os dois vasos externos no exemplo (a) da Figura 1.7, à primeira vista, seríamos induzidos a pensar que a pressão do líquido é maior na base do vaso da esquerda que na base do vaso da direita (apesar de ambos possuírem a mesma área A). Essa intuição deve ao fato que, se os dois vasos fossem independentes e pesados em separado, o vaso da esquerda acusaria um peso maior, pois existe um volume de água maior nesse vaso. Se isso fosse verdade, a 28 altura da coluna de água deveria ser maior no vaso da direita, o que não é observado experimentalmente. Esse é conhecido como o paradoxo hidrostático. A explicação para essa situação resulta do fato que no vaso da esquerda a resultante das forças provenientes das pressões que atuam sobre as superfícies laterais têm uma componente para baixo, a qual gera uma reação das paredes do vaso com uma componente para cima que tende a contrabalançar parte do peso do líquido. No caso do vaso da direita, as forças de reação provenientes das pressões das paredes verticais são horizontais, logo elas não têm componente vertical (observe as setas indicativas no exemplo (a) da Figura 1.7). O mesmo raciocínio é válido para o tubo do meio, com forma curvada, se a área da base for a mesma que a dos tubos laterais. Consideremos agora um tubo em forma de U que contém dois líquidos imiscíveis com densidades diferentes; por exemplo, um líquido mais denso no ramo da direita ( U1 ) e um menos denso no ramo da esquerda ( U2 ). A pressão pode ser diferente num mesmo nível dos dois ramos do tubo. Essa situação está ilustrada pelo exemplo (b) da Figura 1.7, onde se pode ver que a superfície do líquido é mais alta no ramo da esquerda que no da direita. A pressão em C e C c é a mesma em ambos os lados, os quais estão à mesma altura z . No entanto, a pressão diminui menos de C para A que de C c para B , porque a coluna do líquido do lado esquerdo pesa menos que a coluna do líquido do lado direito. Assim, a pressão no ponto A deve ser maior que no ponto B. Se P é a pressão em C e C c , da equação 1.11 temos: P P0 U1 gh1 P0 U2 gh2 , de modo que: h1 h2 U2 . U1 (1.14) Através da expressão 1.14 acima, podemos determinar a relação entre as densidades de dois líquidos imiscíveis a partir da medida das alturas das colunas de cada líquido em relação à superfície de separação entre eles. 29 1.4.3 Medidas de pressão A pressão manométrica é justamente aquela pressão medida para o pneu de seu automóvel no posto de gasolina. Podemos usar o fato de a diferença de pressão ser proporcional à profundidade de um líquido para medir pressões desconhecidas. Na Figura 1.8 a seguir, apresentamos um modelo simples de medidor de pressão, chamado de manômetro de tubo aberto. Nesse dispositivo, um lado fica aberto à pressão atmosférica P0 , enquanto a outra extremidade fica em contato com a pressão P a qual deseja medir (essa extremidade pode estar conectada a qualquer sistema, como exemplo estufas e cilindros de gás). A diferença P P0 é chamada de pressão manométrica e, de acordo com a equação 1.11, é igual a Ugh, onde U é a densidade do líquido no tubo. Dessa forma, conhecendo a pressão atmosférica e a densidade do líquido, podemos determinar a pressão absoluta P . P0 P h h2 h1 P Figura 1.8 – Manômetro de tubo aberto para a medição de uma pressão desconhecida. h P P Figura 1.9 – Barômetro de mercúrio, utilizado para medir a pressão atmosférica P0 . Outro tipo comum de manômetro é o barômetro de mercúrio, utilizado pela primeira vez em meados do século XVII para medir a pressão atmosférica. Ele consiste de um longo tubo de vidro (aproximadamente 1m ), fechado em uma extremidade, previamente preenchido com mercúrio e posteriormente invertido em um recipiente contendo a mesma substância (ver Figura 1.9 ao lado). O líquido que está no tubo tende a descer, mas é impedido pela pressão atmosférica atuando na superfície do líquido que está no recipiente, mantendo assim uma coluna de mercúrio dentro do tubo. O espaço que se forma acima da coluna contém apenas vapor de mercúrio, e sua pressão é muito pequena, podendo ser desprezada, de modo que a pressão nesse volume é considerada nula. Assim, o barômetro de mercúrio 30 mede a pressão atmosférica diretamente a partir da altura da coluna de mercúrio. Ao nível do mar, a altura da coluna é de aproximadamente 76 cm, sendo essa uma outra unidade de medida de pressão: 76 cmHg = 1 atm; no alto de uma montanha, essa altura pode diminuir em até 8cm , indicando a diminuição da pressão externa. 1.4.4 Empuxo: Princípio de Arquimedes Uma percepção familiar a todos nós é que um corpo imerso na água parece apresentar um peso menor que quando está no ar. Além disso, sabemos que um corpo flutua quando sua densidade é menor que a do líquido. Aparentemente, parece existir uma força que ajuda a sustentar os corpos dentro de um líquido; essa força realmente existe e é denominada de força de empuxo. Vamos imaginar um corpo sólido cilíndrico, de área A na base e de altura h , totalmente imerso e em equilíbrio dentro de um recipiente contendo um fluido com densidade U. A condição de equilíbrio requer que a somatória de todas as forças sobre esse corpo seja nula. Como ilustrado na Figura 1.10 a seguir, vemos por simetria que as forças sobre a superfície lateral do cilindro se cancelam, pois num mesmo eixo horizontal têm a mesma magnitude (que é o caso das pressões P, P e Pc, Pc na figura), entretanto a pressão P2 exercida pelo fluido sobre a base inferior é maior que a pressão P1 sobre a base superior. Pela equação 1.11, temos: P2 P1 Ugh . (1.15) Logo, a resultante das forças superficiais exercidas pelo fluido sobre G o cilindro será a força de empuxo E E.zˆ , que é dirigida para cima, onde: E P2 A P1 A UghA . (1.16) Como a altura multiplicada pela área dá o volume ( hA V ) e a densidade multiplicada pelo volume dá a massa ( UV m ), temos que o empuxo é dado por: G G (1.17) E mgzˆ w fluido . 31 Ou seja, o empuxo é igual ao peso da porção de fluido deslocada ( w fluido ), com o sinal invertido. A P1 P P P P h P2 Figura 1.10 – Pressões do líquido atuando sobre um cilindro sólido imerso num fluido. Esse princípio foi enunciado por Aquimedes no século III a.C., quando, segundo a lenda, ele teria comprovado a falsificação da coroa de ouro do rei Herão de Siracusa, comparando o volume de água transbordado pela coroa (quando imersa em um recipiente cheio de água) e um pedaço de ouro de igual massa. Se a coroa fosse mesmo de ouro, esse volume deveria ser o mesmo do volume de água transbordado, pois, como vimos, o volume deslocado depende da densidade do material. Para o azar do rei, a coroa era falsa. Para mais detalhes, visite o endereço: <http://nautilus.fis.uc.pt/ softc/Read_c/gradiva1/ eureka.htm>. Diante disso, como então o cilindro fica em equilíbrio no fluido se existe uma resultante sobre ele de baixo para cima? Precisamos lembrar que, além do empuxo, atua sobre o sólido uma outra força voG lumétrica que é a força peso ( w ), aplicada no centro de gravidade; é essa força que contrabalança o empuxo. No entanto, o equilíbrio só acontece se as densidades do sólido e do líquido forem as mesmas. Quando a densidade média do sólido for menor que a do fluido, ele G G não pode ficar totalmente submerso, pois E ! w . O sólido ficará então flutuando, com o empuxo, devido à porção submersa equilibrando o seu peso. Como exemplo podemos citar os “icebergs” que flutuam com apenas 11% do seu volume fora da água; isso ocorre porque a densidade do gelo é aproximadamente 90% da densidade da água (ver Exemplo 6 no final desta Seção). Por outro lado, se G G E w , o sólido afunda. Essa observação representa o Princípio de Arquimedes, que pode ser enunciado da seguinte forma: Um corpo total ou parcialmente imerso em um fluido recebe do fluido uma força (o empuxo), que é igual e contrária ao peso da porção de fluido deslocado e aplicado no centro de gravidade do mesmo. É importante enfatizar que, nesse enunciado, o resultado não depende da forma do corpo imerso, o qual, para simplificar, inicialmente, consideramos como sendo um cilindro. O fato é que o empuxo atua 32 no centro de gravidade da porção de fluido deslocada pelo corpo, que é chamada de centro de empuxo. Nesse sentido, a geometria do casco de embarcações flutuantes torna importante para garantir a estabilidade de navegação, ou seja, é importante saber os pontos de apliacação dessas forças (peso e empuxo). O peso atua sempre no Centro de Gravidade (CG), que é fixo, enquanto o empuxo é aplicado no Centro de Empuxo (CE), que é variável e muda de acordo com a forma do volume do líquido deslocado, conforme a figura: G E C A P G E P C B Figura 1.11 – O Peso sempre atua no Centro de Gravidade da embarcação, que não varia com a inclinação, porém isso altera o Centro de Empuxo, pois a forma da água deslocada varia. A lei do empuxo também explica o funcionamento de um submarino. Ele possui vários compartimentos que são preenchidos G G com ar para flutuar na superfície da água, portanto E ! w ; para afundar, bombeia água para o interior dos compartimentos até que G G E w ; se a intenção é retornar à superfície, basta bombear a água para fora novamente. Note que, através desse processo, o comandante pode controlar perfeitamente a profundidade de navegação do submarino. Da mesma forma, você pode entender porque um balão com ar quente ou hidrogênio sobe. Existem outros fenômenos que muitas vezes são confundidos com o empuxo: um clipe de alumínio (daqueles de prender papel) pode flutuar sobre a superfície da água, embora sua densidade seja quase 3 vezes maior que a da água; alguns insetos e até mesmo certos répteis conseguem caminhar sobre a superfície da água sem afundar. Essas situações não são explicadas pelo empuxo, mas pelo fenômeno da tensão superficial, no qual a superfície do líquido se comporta como uma membrana submetida a uma tensão. As moléculas de 33 um líquido exercem forças de atração entre si, de modo que, se uma molécula for deslocada de sua posição, aparecerá uma força restauradora que tende a recolocá-la na sua posição de origem. No caso do clipe, quando este é colocado sobre a superfície, as moléculas superficiais são ligeiramente deslocadas para baixo, e as moléculas adjacentes exercem uma força restauradora para cima, o que o sustenta. Exemplo 5: Uma estatueta de ouro de 15, 0 Kg está sendo elevada de um navio submerso. Qual é a tensão no cabo de sustentação quando a estatueta está em repouso: a) completamente submersa e b) fora da água? Solução: a) Quando a estátua está submersa, ela sofre a ação de uma força de empuxo com módulo igual ao peso da água deslocada. Para encontrar essa força, inicialmente, precisamos calcular o volume da estatueta utilizando a densidade do ouro da tabela 1.1. m Uouro V 15, 0 Kg 19,3 u103 Kg/m3 7,8 u104 m3. Com esse valor, encontramos o peso da água do mar referente a esse volume deslocado (considere Uágua 1, 03 u103 Kg/m3 ): wágua mágua g UáguaVg (1, 03 u103 Kg/m3 )(7,8 u104 m3 )(9,8 N/Kg) 7,8 N . Esse valor é igual ao módulo da força de empuxo E. Logo, para achar a tensão no cabo T quando a estátua está em repouso, utilizamos o princípio de que nessa condição a somatória de todas as forças que agem sobre ela é igual a zero, ou seja: ¦F T E T (mg ) 0 , logo: mg E T (15, 0 Kg)(9,8 N/Kg) 7,8 N 147 N 7,8 N 139, 2 N . A estatueta submersa parece ter uma massa de 14, 2 Kg , cerca de 5% a menos que sua massa real. 34 b) Refazendo as mesmas contas e utilizando a densidade do ar na temperatura ambiente como Uar 1, 2 Kg/m3 para determinar o empuxo do ar sobre a estatueta quando ela está fora da água, obtemos que: Ear UarVg 9,1u103 N. Como esse valor é muito menor que o valor do peso real da estatueta ( mg 147 N ), podemos considerar que a tensão no cabo é igual ao seu peso real. Veja na Figura 1.12 a seguir um diagrama de forças sobre a estátua, referente aos itens (a) e (b) do exemplo 5: T T E W W A Submersa B Fora da água Figura 1.12 – Figura citada no Exemplo 5. Exemplo 6. Qual é a fração do volume total de um “iceberg” que fica fora da água? Solução. Da tabela 1.1 temos que a densidade do gelo é igual a 9, 2 u102 Kg/m3 , enquanto a da água do mar é aproximadamente 1, 03 u103 Kg/m3 . O peso do “iceberg” é dado por: U geloVice g , wice onde Vice é o volume do “iceberg”. O peso da água do mar deslocada, de volume Vágua , é igual ao empuxo E : E mas observe que E o meio, então: UáguaVágua g , wice , porque o “iceberg” está em equilíbrio com U geloVice g UáguaVágua g e 35 Vágua U gelo Vice Uágua 0,92 u103 Kg/m3 1, 03 u103 Kg/m3 0,89 89% . Ou seja, o volume de água deslocada equivale a 89% do volume do “iceberg”, que representa a parte submersa, portanto apenas 11% do “iceberg” fica do lado de fora da água. Veja a seguinte representação conforme a Figura 1.13: E W Figura 1.13 – Figura citada no Exemplo 6. Resumo A densidade de uma substância é dada pela razão entre a sua massa e o seu volume. Quando a massa m está uniformemente distribuída em um volume V , a densidade U é dada por: U m . V A pressão P de um fluido é a razão entre a força F exercida pelo fluido e a área A sobre a qual essa força está aplicada, logo: P F . A Num líquido como a água, que pode ser tratado como incompressível, a pressão cresce linearmente com a profundidade. Tomando a superfície da água como nível de referência e submetida à pressão atmosférica P0 , a pressão P num ponto a uma profundidade h é dada por: P P0 Ugh . 36 Pelo princípio de Pascal, a pressão aplicada a um fluido num vaso fechado se transmite sem alteração a todos os pontos do fluido e às paredes do vaso. Essa propriedade foi utilizada na elaboração de macacos e prensas hidráulicas. O princípio de Arquimedes afirma que um corpo total ou parcialmente imerso num fluido sofre uma força, o empuxo, que é igual em módulo e sentido oposto ao peso do fluido deslocado. G E mgzˆ G w fluido . Exercícios 1) Você compra uma peça retangular de metal com massa de 0,0158 Kg e com dimensões 5,0 × 15,0 × 30,0 mm. O vendedor diz que o metal é ouro. Para verificar se é verdade, você deve calcular a densidade média da peça. Qual o valor obtido? Você foi enganado? Resposta: U 7,02 u103 Kg/m3 ; Sim, o metal não é ouro. 2) Um balão de vidro de 60 ml está cheio de mercúrio a 0°C. Quando a temperatura sobe para 80°C, 1,47 g de mercúrio são derramados para fora do frasco. Admitindo que o volume do frasco é constante, calcule a densidade do mercúrio a 80°C, sendo a sua densidade igual a 13.645 Kg/m3 na temperatura de 0°C. Resposta: U 13.620 Kg/m3 . 3) O líquido no manômetro de tubo aberto indicado na Figura 1.8 é mercúrio, com h1 3,0 cm e h2 7,0 cm. Sendo assim: a) Qual é a pressão absoluta no fundo do tubo em forma de U? b) Qual é a pressão absoluta no tubo aberto a uma profundidade de 4,0 cm abaixo da superfície livre? c) Qual é a pressão absoluta do gás no tanque da esquerda? 37 Resposta: a) P 11, 06 u104 Pa ; b) P 10, 66 u104 Pa ; c) P 10, 66 u104 Pa . 4) Um tanque aberto cheio de água possui as seguintes dimensões: 2,0 × 1,0 × 0,5 m. Dessa forma: a) Determine a pressão num ponto situado no fundo do tanque; b) Calcule a força total exercida pela água sobre o fundo do tanque; c) Calcule a pressão sobre as paredes laterais a uma profundidade h 0,25 m; d) Determine o módulo da força total resultante que atua sobre a parede lateral do tanque, a qual possui largura de 1 m e profundidade de 0,5 m. Resposta: a) P 10, 62 u104 Pa ; b) F 2,12 u105 N ; c) P 10,37 u104 Pa ; d) F 1.225 N . 5) Muitas pessoas imaginam que, se fossem mergulhar com a parte superior de um tubo snorkel flexível para fora da água, elas seriam capazes de respirar através dele enquanto estivessem caminhando debaixo d’água, porém elas geralmente não consideram a pressão da água que se opõe à expansão do tórax e dos pulmões. Suponha que você pode respirar deitado no chão com um peso de 400 N sobre seu tórax que equivale a uma massa de 41 Kg. A que profundidade abaixo da superfície livre da água você conseguiria respirar, admitindo que seu tórax tem uma área frontal de 0,009 m2? Resposta: h 4,5 m . 38 6) Um pedaço grande de cortiça pesa 0,285 N no ar. Quando mergulhado em água e acoplado a um dinamômetro preso no fundo do tanque, a tensão na corda que impede a cortiça de subir para a superfície da água é de 0,855 N. Calcule a densidade da cortiça. Resposta: U 250 Kg/m3 . 7) Um bloco de gelo flutua sobre um lago de água doce. Qual deve ser o volume mínimo do bloco para que uma mulher de 45 Kg possa ficar em pé sobre o bloco sem que ela molhe seus pés? Resposta: V 56, 25 u102 m3 . Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. M. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. 2 v. RESNICK, R.; HALLIDAY, D.; KRANE, K. S. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. 2 v. SEARS, Z. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. TIPLER, P. A.; MOSCA, G. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. 1 v. Bibliografia complementar comentada NUSSENZVEIG, H. M. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. 2 v. Para saber mais sobre propriedades dos fluidos, sugerimos a leitura da seção 1.1 Propriedade dos Fluidos. RESNICK, R.; HALLIDAY, D.; KRANE, K. S. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. 2 v. Uma leitura mais aprofundada sobre pressão nos fluidos pode ser encontrada nas seções 17.2 Pressão e Massa Específica e 17.3 Variação de Pressão em um Fluido em Repouso. 39 TIPLER, P. A.; MOSCA, G. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. 1 v. Você encontrará mais detalhes sobre empuxo na seção 13.3 Empuxo e Princípio de Arquimedes. Capítulo 2 Dinâmica dos Fluidos Capítulo 2 Dinâmica dos Fluidos No final deste Capítulo, você deve ser capaz de tratar situações simples de escoamento de fluidos sem turbulência e sem viscosidade. Os conceitos físicos por trás dessas situações idealizadas já são conhecidos do leitor: leis de Newton, conservação de massa e conservação de energia. Ao final do Capítulo, trataremos de escoamentos com viscosidade e, de forma qualitativa, de turbulência. 2.1 Introdução Na verdade, quase todos os estudos em Física Teórica seguem este padrão: modelos simplificados são estudados, a princípio, de tal forma que os ingredientes fundamentais das situações reais estejam presentes nesses modelos e que seu tratamento matemático seja possível. Posteriormente, modelos mais complexos, que estejam mais próximos do sistema real, são pesquisados. Lembre-se que para falar de densidade não podemos nos concentrar em um ponto. Na verdade, o que chamamos de ponto é uma região do fluido grande o suficiente para termos muitas partículas, e assim ser possível definir densidade, e pequena o suficiente para que as grandezas físicas relevantes (velocidade, pressão, altura etc.) não variem consideravelmente dentro da região. Neste Capítulo iremos estudar a física de fluidos em movimento. Essa é uma das áreas mais interessantes da Física. Ela está por trás de vários fenômenos em nosso dia-a-dia, como ondas no mar, movimentos na atmosfera (comportamento climático), escoamento da água tratada que recebemos em casa e até mesmo na dinâmica do tráfego de veículos em cidades. Mas essa área pode ser de difícil tratamento matemático, devido às equações que descrevem os fenômenos nela observados. Assim, iremos iniciar nosso estudo com sistemas simples e aos poucos vamos introduzir efeitos mais realísticos. Apesar de usarmos conceitos já vistos por você nas disciplinas anteriores (conservação de massa e da energia por exemplo), no tratamento de escoamento de fluidos, temos um procedimento diverso do utilizado anteriormente. Não seguiremos mais cada partícula (ou grupo de partículas) do fluido. Iremos agora nos concentrar em pontos dele, especificando a densidade = ( x, y, z , t ), a velociG G dade v v ( x, y, z , t ) das partículas e a pressão P P ( x, y, z , t ) em diferentes pontos ( x, y, z ) e em diferentes instantes de tempo t . Podemos classificar o escoamento de fluidos de acordo com as seguintes características: 44 a) Estacionário ou não-estacionário: no escoamento estacionário, as grandezas físicas não dependem do tempo, apesar de poderem ainda depender da posição. Essa condição é satisfeita, por exemplo, em escoamentos a baixas velocidades. O escoamento pode ser não-estacionário e, nesse caso, as grandezas relevantes dependem do tempo. Um exemplo drástico desse tipo de escoamento é o que acontece em cachoeiras ou próximo aos raios de uma roda de bicicleta a grandes velocidades: o comportamento do fluido é aparentemente aleatório e temos o fenômeno da turbulência; b) Compressível ou incompressível: no caso da densidade do fluido variar, diz-se que o escoamento é compressível (nesse caso, ele pode depender só da posição ( x, y, z ) , só do tempo t ou de ambos). Se U for constante, então o escoamento é incompressível e, nesse caso, U não depende nem da posição nem do tempo; c) Viscoso ou não-viscoso: uma aproximação comum nas disciplinas de Física Básica A e B é a de desprezar o atrito. O análogo ao atrito no caso de fluidos chama-se viscosidade e ela tem características bem diferentes daquelas do atrito entre corpos sólidos. Em muitas situações, como para óleos lubrificantes, a viscosidade é uma propriedade fundamental; d) Rotacional ou irrotacional (ou não-rotacional): essa característica pode ser melhor definida de um ponto de vista matemático, mas não iremos explorar esse caminho aqui. Fisicamente, um escoamento irrotacional é tal que uma pequena roda com pás, quando colocada a escoar junto com um fluido, deslocaria-se junto com ele sem girar sobre um eixo que passa pelo seu centro de massa. Uma analogia possível é a do movimento da Terra em torno do Sol: ele seria considerado rotacional, caso a Terra fosse um elemento de fluido, porque ela gira em torno de um eixo interno. Caso a Terra apenas se transladasse em torno do Sol, diríamos que seu movimento seria irrotacional. Nem sempre a noção intuitiva de um escoamento não-rotacional é correta. Assim, por exemplo, quando a água escoa pelo ralo de uma pia, o fluido gira, mas a roda descrita acima não giraria em torno de seu eixo, caracterizando assim um escoamento não-rotacional. 45 Como discutido anteriormente, começaremos nosso estudo pela situação mais simples e aos poucos discutiremos como a introdução de efeitos mais reais modificaria os resultados obtidos. 2.2 Conservação da massa: equação de continuidade G Vamos supor um escoamento estacionário, isto é, a velocidade v não depende do tempo. Imagine então um ponto P no fluido (veja Figura 2.1 a seguir): qualquer partícula que passe por esse ponto terá sempre a mesma velocidade e, portanto, seguirá sempre a mesma trajetória. Podemos então definir as linhas de corrente como sendo coincidentes com as trajetórias das partículas nos fluidos e a velocidade delas é sempre tangente às linhas em cada ponto (mas lembre-se que o módulo da velocidade pode variar). É consequência direta dessa maneira de definir as linhas que, num escoamento estacionário, duas linhas de corrente nunca se cruzam (ou seja, uma situação como a desenhada em (b) na Figura 2.1 não é permitida). vQ R Q vP P A B Figura 2.1 – (a) Representação de uma única linha de corrente, construída de tal forma que as partículas têm a trajetória especificada pela linha e, portanto, a velocidade em um dado ponto seja tangente à linha naquele ponto. (b) Note que a situação desta parte da figura não é permitida (veja também discussão na Figura 2.2 a seguir). Podemos definir ainda o que se chama de tubo de corrente: esse tubo imaginário, formado por linhas de corrente, limita a porção de fluido em seu interior, de tal forma que o fluido nunca atravessa o tubo, já que duas linhas de corrente não se cruzam (veja a Figura 2.2 a seguir). É como se, em um escoamento estacionário, houvesse realmente um “cano”, formado pelas linhas de corrente, que separasse o fluido em porções interior e exterior ao tubo de corrente. 46 Uma maneira de representar o módulo da velocidade numa região do fluido é através da densidade de linhas de corrente nessa região: quanto mais densa, maior a velocidade. Figura 2.2 – Representação de um tubo de corrente: o fluido no interior (ou no exterior) desse tubo nunca cruzará sua fronteira, em um escoamento estacionário. Vamos considerar agora um desses tubos de corrente, de tal forma que o fluido atravesse um elemento de área (com área A1 ) no ponto p1 de sua extremidade esquerda. Nesse ponto, o fluido tem densidade U1 (note que permitimos que o escoamento seja compressível) G e velocidade v1 (de módulo v1 e direção perpendicular àquela definida pela área A1 ). Assim, durante um intervalo de tempo 't , uma massa 'm1 de fluido, dada por: 'm1 U1 A1v1't , (2.1) atravessa a área A1 (veja a Figura 2.3 a seguir). Essa expressão vem do fato da massa ser igual ao produto da densidade pelo volume; deduza-a a partir dessa informação (veja o Capítulo 1 do livro). A grandeza ∆m1 ∆t é o fluxo de massa para fora do volume hachureado, através da área A1. Durante esse mesmo intervalo de tempo 't , uma porção do fluido G atravessa a área A2 , no ponto p2 ; se a velocidade nesse ponto for v2 , de módulo v2 , e a densidade do fluido for U2 , a massa de fluido atravessando a área A2 é: 'm2 U2 A2 v2 't. (2.2) 47 Sorvedouro Lugar no mar ou rio, onde há redemoinho; o que leva para o fundo o que nele cai. Supondo que não haja fonte ou sorvedouro de massa entre p1 e p2 , a quantidade de massa que passa pela área A1 é a mesma que passa pela área A2 . Assim, temos: U1 A1v1 U2 A2 v2 , (2.3) UAv constante, (2.4) ou, de forma mais geral: ao longo de um tubo de corrente. A p v t p v t A z z Figura 2.3 – Representação de um tubo de corrente: a mesma quantidade de fluido que entra nesse tubo pela extremidade esquerda, em um intervalo de tempo 't , sai do tubo na extremidade direita, no mesmo intervalo de tempo. Se o fluido for incompressível, U também é constante e então a equação 2.4 se reduz a: Av = constante. (2.5) Você já deve ter usado esta propriedade: para aumentar a velocidade de saída da água em uma mangueira, diminuímos a área de saída no bico dela. O produto Av nesse caso mede o volume de fluido que atravessa a seção transversal do tubo por unidade de tempo e é a chamada vazão do tubo. Note, na equação 2.5, que a velocidade em um tubo é maior em partes onde sua seção reta é menor. Esse fenômeno é representado na Figura 2.4: a densidade de linhas na região de seção reta menor é maior que na região com seção reta maior. Figura 2.4 – Representação do escoamento em um cano com seção reta variável. Note que a densidade de linhas é maior na região de seção reta menor, representando uma velocidade maior nessa região. 48 Você pode fazer uma experiência em casa ou no trabalho: abra uma torneira comum, deixando sair um fluxo nem muito pequeno nem muito grande de água, ou seja, um fluxo estacionário. O que você percebe em relação à área do filete de água à medida que ela diminui a altura? Explique com o que discutimos nesta seção. Exemplo 1. Um rio de 21m de largura e 4,5 m de profundidade recebe a água de uma região de 8.500 km 2 8,500 u109 m 2 de área, onde a precipitação pluviométrica média é de 48cm/ano . Suponha que um quarto desse volume de água volte à atmosfera por evaporação. Qual a velocidade média da água nesse rio? Solução: Usaremos as unidades do Sistema Internacional de unidades. Vamos supor que três quartos (3/4) do volume de água de chuva que cai na região seja drenado para o rio e por ele seja escoado para fora dela. Esse volume de água é dado por: 0, 48(m/ano) u 8,500 u 109 m 2 4,1u109 m3 /ano. Três quartos desse volume anual têm o seguinte valor: (3/4) u 4,1 u 109 m3 /ano 3,1 u 109 m3 /ano. É esse o valor que escoa pelo rio em um ano, ou seja, supondo um ano de 365 dias, em 1s temos uma vazão de: 3,1u109 (m3 /ano) 3,1536 u107 (s/ano) 97 (m3 /s) . Essa vazão é igual ao produto da área da seção reta do rio pela velocidade média de escoamento da água: A u v 97m3 /s , Com A (21m) u (4,5m) 94m 2 , temos que: v 97 (m3 /s) 1, 0 (m/s) . 94 (m 2 ) 49 2.3 Conservação da energia: equação de Bernoulli Iremos mais uma vez aplicar um conceito já visto nas disciplinas anteriores, o da conservação de energia, a um fluido perfeito incompressível, no regime de escoamento estacionário e sem viscosidade. Suponha um tubo de corrente muito fino, de tal maneira que as grandezas físicas relevantes não variem dentro de uma mesma seção reta desse tubo, o qual chamaremos de filete de corrente (veja para referência a Figura 2.3, na qual supomos que as seções retas A1 e A2 sejam pequenas o suficiente para que pressão, densidade e altura sejam aproximadamente constantes dentro da respectiva seção). As alturas dessas seções, em relação a um plano horizontal de referência, são respectivamente z1 e z2 , e o fluido flui da esquerda para a direita. Lembramos a você, leitor, sobre a equação de conservação de energia, a qual diz que a variação de energia cinética de uma massa 'm, entre dois pontos quaisquer, é dada pelo trabalho feito pela resultante de todas as forças que atuam nessa massa, no caminho entre esses pontos. Como estamos supondo que não há viscosidade, essas forças são conservativas e, especificamente em nosso caso, têm duas origens: 1) forças derivadas da diferença de pressão entre os pontos p1 e p2 , e 2) força da gravidade. Como por suposição as forças são conservativas, o trabalho por elas realizado não depende do caminho percorrido pela massa 'm (esta é uma boa hora para você voltar ao material de disciplinas anteriores e recordar o porquê desse resultado). Vamos juntar as informações: a diferença 'T de energia cinética entre os pontos p1 e p2 da Figura 2.3 é dada por: 'T 1 1 'm2 v22 'm1v12 . 2 2 (2.6) Como supomos não haver fontes ou sorvedouros de fluido entre os pontos, 'm1 'm2 { 'm , e então: 'T 1 'm (v22 v12 ). 2 (2.7) No ponto p1 , a pressão é feita pela porção de fluido à esquerda da área hachurada na Figura 2.3 e, portanto, a força derivada dessa 50 pressão está no mesmo sentido do movimento, de modo que o trabalho é positivo e igual a F1'x1 P1 A1v1't , onde P1 A1 é a força atuando no ponto p1 e v1't é o deslocamento próximo a esse ponto. No ponto p2 , a força de pressão é contrária ao movimento, e é devido à porção de fluido à direita da área hachurada, atuando contrária ao deslocamento. Portanto, o trabalho devido a ela é negativo e igual a P2 A2 v2 't , onde P2 A2 é a força atuando no ponto p2 e v2 't é o deslocamento nesse ponto. Assim, o trabalho realizado pelas forças de pressão é representado por: P1 A1v1't P2 A2 v2 't ( P1 A1v1 P2 A2 v2 )'t. (2.8) Essa equação pode ser reescrita usando as equações 2.1 e 2.2 e lembrando que 'm1 'm2 { 'm . O trabalho realizado pela força de pressão (W p ) é então: 'm (2.9) W p ( P1 P2 ) , U onde U é a densidade do fluido (como este é suposto incompressível, a densidade é a mesma em qualquer ponto). O trabalho devido à força da gravidade ( Wg ) depende apenas da diferença de altura entre os pontos p1 e p2 e é dado por: Wg 'mg ( z2 z1 ), (2.10) onde g é a aceleração da gravidade e z2 e z1 as alturas dos pontos p1 e p2 , respectivamente. Se z2 for maior que z1 , o trabalho feito pela força peso é negativo, como esperado, pois o peso tem sentido contrário ao deslocamento vertical de 'm . Como o trabalho total é a variação 'T da energia cinética, ou seja, 'T W p Wg , obtemos que: 'm 1 'm(v22 v12 ) ( P1 P2 ) 'mg ( z2 z1 ). U 2 Cancelando 'm e multiplicando todos os termos pela densidade U, 1 U(v22 v12 ) ( P1 P2 ) Ug ( z2 z1 ). 2 51 Finalmente, escrevendo todas as grandezas relativas ao ponto p1 em um lado da equação e, do outro, as relativas ao ponto p2 , obtemos: 1 2 Uv2 P2 Ugz2 2 1 2 Uv1 P1 Ugz1. 2 (2.11) Como os pontos p1 e p2 são quaisquer pontos de um filete, a igualdade na equação 2.11 acima vale para qualquer ponto do filete e podemos então escrever: 1 2 Uv P Ugz 2 C, (2.12) onde C é uma constante ao longo de todo o filete. Essa é a equação de Bernoulli. A rigor, a constante C pode variar de filete a filete, mas é comum encontrar aplicações nas quais C é o mesmo para todos os filetes. Se fazemos v 0 na equação 2.12 acima, reobtemos o resultado conhecido da Hidrostática, onde P Ugz C , estudado no Capítulo 1. Note que a equação 2.12 pode ser interpretada como a soma de três termos associados a densidades de energia (energia por unidade de volume): o primeiro termo é a densidade de energia cinética, o terceiro termo a densidade de energia potencial e o segundo termo uma densidade de energia associada à pressão. De fato, a força exercida pela pressão é o produto desta pela área, de modo que o trabalho feito por essa força (o qual é igual ao produto da força pelo deslocamento) é o produto da pressão pelo volume. Para encontrar a densidade de energia, dividimos a equação 2.2 pelo volume e encontramos a própria pressão. Vamos agora estudar algumas situações onde a equação de Bernoulli é relevante. Exemplo 2. Uma aplicação comum é a de um reservatório com uma grande superfície livre, na qual a pressão é a atmosférica (P0), conforme esquematizado na Figura 2.5 a seguir. Suponha-se um escoamento estacionário, com o fluido saindo por um orifício a uma determinada altura h1 , medida a partir da base do reservatório, de tal forma que o volume de líquido que sai pelo orifício é muito pe- 52 queno, e a superfície livre do reservatório tem, para quaisquer fins práticos, altura constante (ou seja, a velocidade do fluido nessa superfície é zero). Podemos aplicar a equação de Bernoulli a um dos filetes representados na Figura 2.5 a seguir: P0 Ugh2 P0 Ugh1 1 2 Uv , 2 O lado esquerdo se refere à superfície livre e o lado direito à parte externa B do furo. Assim: v 2 g (h2 h1 ) { 2 gh , (2.13) ou seja, o módulo da velocidade na saída do orifício é o mesmo que teria um corpo material que caísse de uma altura h { h2 h1 sob ação exclusiva da força da gravidade. P0 v0 h2 A B v h1 h h2 h1 P0 Figura 2.5 – Reservatório com superfície livre muito grande, de modo que o escoamento pelo orifício A não modifica consideravelmente a altura h2 dessa superfície. Entre o ponto A e o ponto B , onde a pressão é a atmosférica ( P0 ), a seção reta do tubo de corrente sofre uma contração por um fator 0, 6. Você pode justificar o porquê do fato da pressão em A ter de ser maior que p0 (use as equações de continuidade e de Bernoulli em seu argumento). Exemplo 3. O medidor de Venturi é um dispositivo usado para medir a velocidade de escoamento de um fluido em uma tubulação. Considere a situação da Figura 2.6 a seguir, onde um fluido de densidade U escoa por um tubo com seções retas de áreas A e a , de tal forma que A ! a , e um tubo com um fluido de densidade U em seu interior é acoplado ao encanamento. Note que foi através desse procedimento que Torricelli, quando assistente de Galileu, enunciou a fórmula que leva seu nome. 53 A a 2 1 h Figura 2.6 – Medidor de Venturi: equipamento usado para medir a velocidade de escoamento de um fluido em um encanamento. A densidade do fluido no encanamento é U e no tubo é U . Devido à equação de continuidade, temos que: A v1 , a v2 (2.14) onde v1 é a velocidade do fluido na parte da tubulação com seção reta A (ponto 1 ) e v2 é a velocidade na parte com seção reta a (ponto 2 ). Desconsiderando a diferença de altura entre os pontos, podemos usar a equação de Bernoulli para escrever: P2 1 2 Uv2 2 P1 1 2 Uv1 . 2 Aqui P2 é a pressão no ponto 2 e P1 a pressão no ponto 1. Usando a equação 2.14 e o fato da diferença de pressão ser dada por P1 P2 Ugh , onde h é a diferença entre as alturas do líquido de densidade U nos dois lados do tubo, podemos mostrar (faça os cálculos como exercício) que: v Usado para medir a velocidade de um fluido em relação a um avião ou, de forma equivalente, a velocidade de um avião se movendo em um fluido. a 2 Ugh . U( A2 a 2 ) (2.14.1) Exemplo 4. Uma outra aplicação importante, usada na medição de velocidade de aviões (quando acoplada às extremidades das asas), é o chamado tubo de Pitot (este equipamento pode ter apresentado defeito no vôo da Air France que caiu, em 2009, quando ia do Rio de Janeiro para Paris). Nessa montagem (veja Figura 2.7 a seguir), uma abertura (ponto A) está em um ponto de acumulação, tal que a velocidade nesse ponto seja zero, ou seja, a pressão é a pressão estática, PA Pe . Na outra abertura no tubo (ponto B), a pressão é a dinâmica 54 e a velocidade do fluido é supostamente não perturbável pela presença do aparato, o que é, formalmente, uma aproximação. Tomando v A 0 e supondo como desprezível a diferença de altura entre os pontos A e B , a equação de Bernoulli pode ser escrita como: Pe PB 1 2 Uv Pe PB 2 1 2 Uv , 2 onde U é a densidade do fluido externo ao tubo. B B A h 0 Figura 2.7 – Esquema do tubo de Pitot, usado para medir a velocidade de um fluido em relação a um avião ou, de forma equivalente, a velocidade de um avião em relação ao fluido. O ponto A é um ponto de acumulação, no qual o fluido encontra-se em repouso; no ponto B , por outro lado, supõe-se que o fluido não tem sua velocidade modificada pelo aparato. Podemos também relacionar a diferença entre as pressões Pe e PB com a diferença de altura no tubo, Pe PB U0 gh, onde U0 é a densidade do fluido no interior do tubo. Assim: B U0 gh 1 2 Uv v 2 U 2 0 gh . U Exemplo 5. Um procedimento feito com certa frequência no passado, para remover combustível de um carro, está desenhado na Figura 2.8. O líquido do reservatório, de densidade U , é aspirado através da mangueira ABC , para que saia pela abertura C . Vamos calcular a velocidade de escoamento do fluido na abertura C da mangueira, em função das alturas h1 e h2 e da pressão P0 na superfície O do reservatório (se essa h1 O A h2 C Figura 2.8 – Um fluido de densidade U é aspirado por uma mangueira delgada e sai pela sua abertura C . Esse esquema é utilizado (mas não é recomendado), por exemplo, para extrair combustível do tanque de um veículo. 55 superfície estiver aberta, essa pressão é a atmosférica; vamos supor isso aqui). Suponha ainda que a superfície O tenha uma área muito maior que a da seção reta da mangueira, de modo que a velocidade com que a superfície O diminui sua altura, à medida que o fluido escoa, seja desprezível. A pressão em C também é a atmosférica e podemos então aplicar a equação de Bernoulli ao longo de um filete (como indicado em cor azul escuro na Figura 2.8) para os pontos O e C : p0 Ugh2 p0 1 2 Uvc vc 2 2 gh2 , (2.15) onde vc é a velocidade do fluido na abertura C e as alturas são sempre medidas em relação à abertura C . Note que, se h2 tende a zero, a velocidade vc também vai a zero. Se o valor de h2 se torna negativo, ou seja, a superfície O fica abaixo da saída C , o fluido não escoa (pois o valor de vc2 seria negativo). Sabendo a velocidade em C , podemos usar a equação 2.15 de continuidade (lembre-se que o fluido é suposto incompressível) para calcular as velocidades em A e em B . Como a área é a mesma ao longo de toda a mangueira: vB vA vC 2 gh2 . Com a ajuda desse último resultado, podemos calcular a pressão PB no ponto B e a pressão PA no ponto A . Aplicando a equação de Bernoulli aos pontos A e C , obtemos: PA Ugh2 1 2 Uv A 2 P0 1 2 UvC , 2 onde supomos que a diferença de altura entre A e O seja desprezível. Lembrando que as velocidades em A e em C são iguais, chegamos ao seguinte resultado: PA P0 Ugh2 . O mesmo procedimento pode ser aplicado aos pontos B e C : PB Ug (h1 h2 ) 1 2 UvB 2 P0 1 2 UvC . 2 56 Mais uma vez usando a igualdade entre as velocidades em B e em C , obtemos: P0 Ug (h1 h2 ). PB (2.16) Note que a pressão em B é menor que a pressão atmosférica. Se h1 for grande o suficiente, PB pode inclusive ir a zero. Dessa maneira, existe um valor máximo para h1 para que o fluido escoe pela mangueira, dado pela condição de PB ser igual a zero: h1 p0 h2 . Uh 2.4 Viscosidade Vamos discutir alguns aspectos simples de viscosidade. Essa é uma força de atrito entre camadas do fluido. Como toda força de atrito, ela é uma descrição fenomenológica dos efeitos de forças fundamentais (como também o é na descrição do atrito entre superfícies sólidas, visto por você nas disciplinas anteriores). Consideremos então uma porção de fluido entre duas placas planas paralelas, conforme mostrado na Figura 2.9 a seguir: é observado experimentalmente que, se a placa superior é puxada de modo a G escorregar com velocidade constante v , lâminas inferiores do fluido são arrastadas, de tal forma que a lâmina imediatamente abaixo da placa tem a mesma velocidade desta e a lâmina em contato com a placa inferior está em repouso. Também é observado que a velocidade dessas placas diminui linearmente com a altura y e, eventualmente, vai a zero em alguma altura (que definimos como y 0 ). Esse escoamento é chamado de laminar, pois o fluido se move em lâminas, as quais deslizam umas sobre as outras. A força por unidade de área, chamada de tensão tangencial, necessária para arrastar a placa superior com velocidade constante é dada, em módulo, por: (2.17) onde A é a área da placa e K o coeficiente de viscosidade, o qual é uma característica do fluido. Essa é a força que a lâmina de fluido imediatamente inferior à placa faz nesta e também a força que ela sofre da lâmina de fluido inferior. A unidade de K no MKS é N.s / m 2 . Descrição fenomenológica Descrição feita a partir de informações experimentais do sistema, buscando-se enunciar uma lei que descreva aquele sistema em especial e sistemas análogos a ele. Esse procedimento é alternativo ao usado em descrições a partir de princípios fundamentais da Física. 57 Uma unidade mais comum na prática é o centipoise (cp), dado por 1 cp 102 poise = 103 N.s / m 2 . y A v dy x G Figura 2.9 – Nesse processo, a placa superior é puxada com velocidade v e a placa inferior está em repouso. O fluido entre as placas é “arrastado” devido à viscosidade. Quanto mais viscoso o líquido, maior será K, e valores típicos desse coeficiente para alguns fluidos são, em N.s / m 2 : K 0,11 para o óleo lubrificante a 0qC , hK 0, 03 para o óleo lubrificante a 20qC , K 1u103 para a água a 20qC e K 1,8 u105 para o ar a 20qC . Considere agora um escoamento viscoso ao longo de um cano cilíndrico de raio a, de tal modo que a velocidade de escoamento não seja grande e este seja laminar. A porção do fluido em contato com o encanamento (r = a) está em repouso, e a velocidade aumenta no sentido do centro da tubulação. A força necessária para manter o escoamento com velocidade constante vem de uma diferença de pressão entre as extremidades do encanamento (veja Figura 2.10 a seguir); para manter constante a velocidade de todas as lâminas, a força total sobre cada uma delas tem que ser nula. Sendo P1 e P2 as pressões nas extremidades esquerda e direita do tubo de comprimento l, respectivamente, a força por unidade de área na superfície externa de um tubo cilíndrico do raio r é dada por: F A ( P1 P2 ) Sr 2 2 Srl P1 P2 r. 2l 2 1 Figura 2.10 – Escoamento viscoso em um cano de seção reta cilíndrica. (2.18) 58 Como essa é a força de viscosidade, a qual é dada pela equação 2.17, temos: F dv P1 P2 K r, A dr 2l onde usamos a equação 2.18, e o sinal negativo vem do fato que a velocidade diminui à medida que r aumenta. Podemos isolar dv dr na equação anterior, obtendo: dv dr ( P1 P2 ) r. 2l K Podemos resolver essa equação diferencial da seguinte forma: passando a diferencial dr para o lado direito da equação e integrando ambos os lados, obtemos: a 0 ³ dv v(r ) ' ³ r ( P1 P2 ) rdr , 2l K onde usamos a condição de contorno da velocidade ser zero no contato com o cano, isto é, v(a ) 0 . Obtemos então: v(r ) P1 P2 2 2 (a r ). 4l K Assim, o perfil de velocidades dentro da tubulação é parabólico, sendo, como esperado, máximo para r 0 e mínimo, e igual a 0, para r a. A partir da equação anterior, podemos calcular a vazão total, isto é, o volume de fluido que escoa por unidade de tempo através da seção reta circular do cano. Como a velocidade varia com a distância ao eixo r do cano, devemos dividir o volume total do cilindro em pequenos volumes elementares, associados a uma porção compreendida entre dois raios r e r dr (veja a Figura 2.11 a seguir), com dr pequeno o suficiente para que a velocidade seja aproximadamente constante entre r e r dr . A contribuição dessa porção para a vazão I, ou seja, o volume escoado por unidade de tempo, é: dI dV dt v(r )dA v(r )2 Srdr S( p1 p2 ) 2 2 (a r )rdr. 2l K 59 r r + dr a Figura 2.11 – Divisão do cano representado na Figura 2.10 em pequenas porções cilíndricas, de raio r e espessura dr. Essa, porém, é apenas a contribuição da porção cilíndrica entre os raios r e r dr ; para obtermos a vazão de todo o cano, temos que integrar desde r 0 até r a : S( p1 p2 ) 2 2 ³0 (a r )rdr. 2l K a ³dI I Essa integral pode ser resolvida da seguinte forma: a ª a2r 2 r 4 º » « 4 ¼0 ¬ 2 a ³ (a 2 r )r dr 2 0 a4 a4 2 4 a4 , 4 Assim o resultado final para a vazão é: I Sa 4 ( P1 P2 ) . 8 Kl Essa é a lei de Hagen-Poiseuille, a qual diz que a vazão em um encanamento é proporcional à queda de pressão por unidade de comprimento e inversamente proporcional ao coeficiente de viscosidade. Ela diz também que a vazão é maior para tubos de raios maiores (mantidas constantes as outras características do escoamento e do fluido). A definição de viscosidade, representada pela equação 2.17, é válida para fluidos chamados de newtonianos. Para estes, um gráfico entre a força por unidade de área ( F A ) e o gradiente da velocidade em uma direção perpendicular à área ( dv dy ) é uma reta que passa pela origem. Os fluidos que não seguem esse comportamento são chamados de fluidos não-newtonianos. Em alguns desses fluidos, a viscosidade depende do gradiente de velocidade, de modo que 60 o fluido se comporta como um sólido se tentarmos, por exemplo, esticá-lo com movimentos bruscos, e se comporta como um líquido se o perturbarmos de forma mais suave. Em um fluido desse tipo, uma pessoa pode ser capaz de caminhar sobre ele, caso o faça com passos rápidos; por outro lado, se a pessoa parar em pé sobre o fluido, irá afundar, de forma parecida com o que aconteceria em um fluido newtoniano. Um fluido não-newtoniano pode ser feito em casa, adicionando-se maizena, aos poucos, a um copo de água e misturando. Se você tentar enfiar seu dedo rapidamente na mistura, sentirá uma forte reação contrária; o fluido se comporta como um sólido deformável. Por outro lado, se você lentamente tentar introduzir qualquer objeto no fluido, este se comportará como um líquido e a reação contrária será bem menor que no caso anterior. Resumo Foi apresentado neste Capítulo um breve estudo dos fluidos em movimento. Utilizando conceitos básicos como a conservação da massa e conservação de energia, foi deduzida a fórmula da continuidade para fluidos e a equação de Bernoulli. Essa última implica que, se um fluido estiver escoando em um estado de fluxo contínuo, então a pressão depende da velocidade do fluido. Quanto mais rápido o fluido estiver se movimentando, tanto menor será a pressão à mesma altura no fluido. Questões 1) Por que o jato de água em uma torneira, quando o escoamento é estacionário, fica mais estreito à medida que a altura diminui? Essa questão já foi levantada no texto anterior sobre viscosidade. Talvez seja uma boa hora de voltar a pensar nela. 2) Um recipiente, com um fluido em seu interior, está em repouso sobre uma mesa. Você caminha em relação à ela. Você usaria estática ou dinâmica dos fluidos para estudar o fluido no recipiente? Por quê? Esse interessante e divertido efeito pode ser visto no endereço <http://www. youtube.com> realizandose uma busca com a expressão “non-newtonian fluid”. 61 3) Em um escoamento estacionário, a velocidade em cada ponto do fluido é constante. Como pode então a partícula ser acelerada? Uma simulação interessante desse fenômeno pode ser encontrada no endereço <http://www.grc.nasa.gov/ WWW/K-12/airplane/ foil2.html> 4) Seria possível o grande Zico bater uma daquelas faltas de efeito, que em geral terminavam com a bola dentro do gol do Fluminense ou do Vasco, se o jogo se realizasse na Lua? 5) Explique qualitativamente como se dá o empuxo dinâmico responsável pela sustentação de aviões. 6) Em 2002, durante uma ventania muito forte (semelhante aos tornados, tão comuns em algumas regiões dos EUA), ocorrida no bairro Ribeirão da Ilha, em Florianópolis, o telhado de uma casa de alvenaria foi levantado e posteriormente caiu na rua, em frente à casa. Tente explicar como isso pôde acontecer, utilizando os conceitos estudados neste Capítulo. 7) Explique o funcionamento de um canudo para tomar líquidos. Problemas 1) Uma mangueira de jardim tem 1,9 cm de diâmetro interno e está ligada a um irrigador que consiste de um recipiente cilíndrico com 24 furos, cada um com 0,12 cm de diâmetro. Se a velocidade da água no interior da mangueira é de 1,05 m/s, com que velocidade ela sai dos orifícios do irrigador? 2) Um grande reservatório de paredes verticais e construído sobre um terreno horizontal contém água até uma altura h . Suponha que um pequeno orifício seja feito em uma de suas paredes. A que distância máxima dessa parede o jato de água que sai do reservatório irá atingir o chão do terreno? Em que altura deve estar esse orifício, acima do terreno, para que essa distância seja atingida? 3) Explique qualitativamente por que, quando está ventando e uma janela está aberta, as cortinas tendem a “sair” do apartamento, isto é, elas são puxadas para fora da janela. Suponha agora que a janela meça 4,26 m por 5,26 m, que o vento esteja soprando a 28,0 m/s fora do apartamento, em uma direção paralela à janela, e que dentro do apartamento o ar esteja parado 62 (em média). Qual a força resultante sobre as cortinas citadas acima considerando que a densidade do ar = 1,3 Kg/m3? 4) Um avião tem uma massa total de 2000 Kg e a área total coberta pelas duas asas é de 30 m2. A velocidade de escoamento acima das asas é 1,25 vezes maior que abaixo delas, quando o avião está decolando. A densidade da atmosfera é aproximadamente 1,3 Kg/m3. Que velocidade mínima de escoamento acima das asas é necessária para que o avião decole? Proponha uma forma de o avião baixar de altura, no pouso, usando apenas a diferença de pressão nas asas. Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. M. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. 2 v. SEARS, Z. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. RESNICK, R.; HALLIDAY, D. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. 2 v. TIPLER, P. A.; MOSCA, G. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. 1 v. Bibliografia complementar comentada AGUIAR, C. E.; RUBINI, G. A aerodinâmica da bola de futebol. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 26, n. 4, p. 297-306, dez. 2004. Disponível em: <http://www.sbfisica.org.br/rbef/ pdf/040701.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2011. Uma aplicação prática dos conceitos vistos neste Capítulo pode ser encontrada nesse artigo, o qual também pode ser localizado no endereço <http://www.fsc.ufsc.br/~canzian>, no link “Física do futebol”. Essa página foi construída pelo professor Nelson Canzian, do Departamento de Física da UFSC. Capítulo 3 Temperatura e Calor Capítulo 3 Temperatura e Calor Ao final do Capítulo estaremos aptos a entender e diferenciar os conceitos de temperatura e calor, bem como definir a Lei Zero da Termodinâmica; conhecer e relacionar matematicamente as escalas de temperatura e conceituar capacidade térmica e calor específico relacionando-os com processos de transferência de energia térmica. 3.1 Introdução Daqui em diante (neste e nos próximos Capítulos) iremos estudar os fenômenos termodinâmicos, ou seja, os fenômenos relacionados com a temperatura, o calor e as trocas de calor. Entre outras coisas, será possível explicar processos cotidianos como a condução de calor em um ferro elétrico ou o fato dos cabos de madeira de uma panela evitarem que você queime a sua mão. Além disso, você entenderá o funcionamento de máquinas térmicas como uma geladeira, um aparelho de ar condicionado e um motor de automóvel. A partir da observação experimental. Historicamente, a termodinâmica foi elaborada baseando-se em observações empíricas. A descrição termodinâmica é sempre uma descrição macroscópica (que se aplica a um número muito grande de partículas, considerando médias entre as grandezas envolvidas), o que é compatível com uma descrição estatística. Somente mais tarde, com a formulação da teoria cinética dos gases, precursora da teoria atômica da matéria, é que se procurou dar uma explicação microscópica (ao nível atômico ou molecular) para alguns resultados da termodinâmica. As variáveis macroscópicas são, por exemplo: pressão, volume e temperatura. A termodinâmica clássica trata de sistemas em equilíbrio termodinâmico, ou seja, quando as variáveis macroscópicas que caracterizam o sistema não variam com o decorrer do tempo. No entanto, o fato de essas variáveis serem constantes no tempo não quer dizer que o sistema é estático do ponto de vista microscópico, ou seja, as partículas que formam o sistema estão em constante movimento e mudam constantemente de velocidade. 66 Neste Capítulo iremos abordar os conceitos de temperatura, de calor e as propriedades térmicas da matéria, para nos Capítulos seguintes estudarmos as leis da termodinâmica, as quais acreditamos que regulam os fenômenos térmicos na natureza. 3.2 Temperatura O conceito de temperatura está associado a uma propriedade comum de sistemas em equilíbrio térmico. No entanto, a sensação subjetiva de temperatura não fornece um método confiável de medição. Por exemplo: num dia frio, tocar um pedaço de metal e um pedaço de madeira, que estejam no mesmo ambiente, dá a falsa impressão de que o metal está mais frio. Como você explica esse fato? Mais adiante isso ficará claro. Desse problema trata a chamada Lei Zero da Termodinâminca (em alguns livros chamada de Anteprimeira Lei da Termodinâmica), que pode ser enunciada da seguinte forma: Quando dois sistemas ( e ) estão em equilíbrio térmico com um terceiro (C), então e estão em equilíbrio térmico entre si (ver figura 3.1). C A B Figura 3.1 – Ilustração da Lei Zero da Termodinâmica. Se A e B estão em equilíbrio térmico com C , então A e B estão em equilíbrio térmico entre si. A Lei Zero a princípio parece óbvia, mas é preciso entender que ela só se aplica para sistemas em equilíbrio térmico, ou seja, quando a temperatura não varia com o decorrer do tempo. Essa lei trouxe grandes contribuições para a ciência: graças a ela é que podemos utilizar termômetros para medir a temperatura de corpos diferentes. 67 3.2.1 Escalas de temperatura Sabemos que no alto de uma montanha a água entra em ebulição abaixo de 100°C. Isso está relacionado com a pressão atmosférica, que é menor no alto da montanha (como vimos no Capítulo 1). A escala Celsius (°C) é a mais conhecida para nós, pois é a escala adotada nos termômetros que usamos aqui no Brasil. Em outros países outras escalas são mais comuns. A escala Celsius foi definida como sendo 0°C o ponto de congelamento da água e 100°C o ponto de ebulição da água, ambos considerados próximos ao nível do mar. Dessa forma, um termômetro é calibrado a partir desses parâmetros, sendo dividido em 100 partes iguais, onde cada divisão equivale a 1°C. Com isso pode-se medir a temperatura desconhecida de outros corpos. A escala Fahrenheit (°F) é de uso corrente em países de cultura inglesa e foi definida como sendo 32°F o ponto de congelamento da água e 212°F o ponto de ebulição da água, quando próximo ao nível do mar.Portanto, a diferença ente os pontos de congelamento e de ebulição é de 100° para a escala Celsius e de 180° para a escala Fahrenheit. Com isso, pode-se estabelecer uma relação geral entre essas duas escalas de temperatura para realizar conversões entre elas: (3.1) em que TC é a temperatura em graus Celsius e TF a temperatura em graus Fahrenheit. Para mais informações sobre o Zero Absoluto, verifique a bibliografia comentada ao final deste Capítulo. A escala Kelvin (K) é denominada de escala de temperatura absoluta, pois o ponto de 0 K, que é igual a 273,15°C, é a temperatura de pressão nula de qualquer gás. Esse valor é obtido através da extrapolação da curva de pressão em função da temperatura, medida por um termômetro a gás de volume constante; para atingir a pressão zero o gráfico intercepta o eixo da temperatura em 273,15°C, que é conhecido como Zero Absoluto. Como a variação de 1 K é igual a 1°C, a relação entre as duas escalas é dada por: TK TC 273,15K (3.2) em que TK é a temperatura em Kelvin. Assim, a temperatura de ebulição da água na escala Kelvin é 373,15 K. Para a maioria dos propósitos práticos pode-se arredondar para 273 K a temperatura de congelamento da água. 68 Exemplo 1. Faça as seguintes conversões entre as escalas de temperatura: a) de 37°C para o equivalente em Fahrenheit; b) de 310 K para o equivalente em Celsius; e c) de 68°F para o equivalente em Kelvin. Solução: a) Para essa conversão vamos utilizar a equação 3.1, então: ou seja, 9 (37q) 32q 98, 6qF . 5 TF b) Para essa conversão vamos utilizar a equação 3.2, então: 310K TC 273,15K, ou seja, TC 310K 273,15K 36,85qC. c) Para essa conversão precisamos primeiro transformar os 68°F em Celsius pela equação 3.1 para depois transformar esse valor para Kelvin através da equação 3.2, então: TC portanto TK 5 68q 32q 20qC, 9 TC 273,15K 20q 273,15K 293,15K. 3.3 Expansão térmica Quando a temperatura de um corpo aumenta, em geral observa-se uma expansão de suas dimensões. Isso ocorre devido ao aumento da energia interna do material, fazendo com que as moléculas ou átomos constituintes se afastem um pouco mais uns dos outros, em média. Consideremos uma barra comprida de comprimento L mantida à temperatura T : se sua temperatura for alterada ( 'T ), observa-se uma variação 'L , no seu comprimento, proporcional a 'T e ao comprimento original L : 69 'L DL'T (3.3) Aqui D é o coeficiente de expansão linear e suas unidades são 1/°C ou 1/K . Esse coeficiente não varia sensivelmente com a pressão, mas pode variar com a temperatura, portanto a equação 3.3 fornece o valor médio de D num intervalo 'T . O valor correto numa dada temperatura é obtido tomando-se o limite de D para 'T o 0 . D lim 'T o 0 'L L 'T 1 dL L dT (3.4) No entanto, para fins práticos, podemos considerar a constante para valores de temperatura não muito próximos da temperatura de fusão dos sólidos. Valores típicos de a para sólidos são da ordem de 105 por qC . É importante destacar que em se tratando de sólidos anisotrópicos, isto é, aqueles em que as propriedades variam de acordo com a direção a ser tomada, assume valores diferentes, dependendo da direção considerada. Vamos considerar agora uma lâmina delgada (muito fina), com estrutura isotrópica (igual em todas as direções) e lados L1 e L2 , cuja área A é dada por L1 u L2 . Nesse caso, uma variação na temperatura dT produzirá uma mudança na área dA dada por: dA dT d ( L1 u L2 ) dT L1 dL2 dL L2 1 dT dT Logo, se dividirmos ambos os lados da igualdade por A obtemos: 1 dA 1 dL2 1 dL1 2D A dT L2 dT L1 dT (3.5) L1 u L2 , portanto 'A 2 DA'T (3.6) 70 Ou seja, o coeficiente de dilatação superficial é igual a duas vezes o coeficiente linear D . Analogamente, para o caso de um paralelepípedo teremos uma variação no volume 'V , devida a uma variação de temperatura 'T , que é dada por: 'V EV 'T (3.7) onde E 3D é definido como o coeficiente de dilatação volumétrico. Em geral, o valor de E para líquidos (da ordem de 103 por qC ) é bem maior que para os sólidos (da ordem de 105 por qC ). A definição de um coeficiente de dilatação volumétrico é conveniente no caso de líquidos e gases, os quais ocupam todo o ambiente em que estão confinados, onde se busca saber apenas a variação volumétrica. Para a maioria dos materiais E > 0, mas existe uma exceção para a água, onde E 0 no intervalo de temperatura de 0qC a 4qC . Isso quer dizer que a água apresenta um volume mínimo a 4qC e, portanto, a densidade da água é máxima nessa temperatura; diminuindo-se a temperatura abaixo desse valor, a água expande-se até congelar. Uma consequência direta desse efeito é o fato da superfície de um lago (numa cidade de inverno rigoroso) congelar, sem que as águas mais profundas congelem. O gelo formado na superfície funciona como um isolante térmico, mantendo as águas mais profundas numa temperatura mais elevada, com densidade maior, permitindo que o gelo flutue. Perceba que isso é essencial para a manutenção da vida marinha abaixo da superfície congelada, pois se a água na superfície descesse para o fundo ao se congelar, o lago se congelaria como um todo. Esse comportamento da água deve-se às propriedades específicas das ligações de hidrogênio entre suas moléculas. Exemplo 2. Uma ponte de aço tem comprimento de 1000m . Qual a expansão no seu comprimento quando a temperatura sobe de 0qC para 30qC ? Considere Daço 11u106 K 1 . Solução: Como a unidade do coeficiente linear é dada em K 1 , precisamos determinar a variação da temperatura em Kelvin. Vimos que a variação de 1K 1qC , ou seja, a variação de temperatura é a mesma em graus Celsius ou graus Kelvin (o mesmo não é válido para a escala Fahrenheit). Assim: É importante perceber que o coeficiente b não precisa estar vinculado à dilatação linear na direção dos três eixos cartesianos do espaço tridimensional, ele está relacionado com uma variação de volume. Por exemplo, no caso de líquidos e gases (que assumem a forma do recipiente que os contém), em geral interessa saber apenas a variação 'V. Isso explica o rompimento de canos cheios de água quando congelam em uma cidade muito fria no inverno. O mesmo acontece se você colocar uma garrafa cheia de água (tampada) para congelar no freezer. 71 'T logo, 'L DL'T 30qC 0qC 30qC 30K (11u106 K 1 )(1000m)(30K) 0,33m , ou seja, a ponte expande 33cm . É por isso que é necessário deixar folgas ao longo de uma ponte para que essa expansão seja possível, caso contrário a ponte poderia romper. Essa folga também é necessária ao longo dos trilhos de trem, ou estes poderiam se curvar. Exemplo 3. Um recipiente de vidro de 1 litro está cheio de álcool até a boca em temperatura de 10qC . Se a temperatura for aumentada para 30qC , qual a quantidade de álcool que transbordará do recipiente? Dados: Dvidro 9 u106 K 1 e E álcool 1,1u103 K 1. Solução: Para determinarmos a quantidade de álcool que transborda, precisamos calcular separadamente a variação no volume do vidro e a variação no volume do álcool. Para isso utilizaremos a equação 3.7, e depois subtrair os valores. Temos que a variação de temperatura é 'T 20qC 20K . Além disso: a) A variação do volume do vidro é dada por: 'Vvidro 3DvidroV 'T 'Vvidro 3(9 u106 K 1 )(1 litro)(20K) 5, 4 u104 litros 0,54ml b) A variação do volume do álcool é dada por: 'Válcool E álcool V 'T 'Válcool (1,1u103 K 1 )(1 litro)(20K) 2, 2 u102 litros 22, 0 ml c) Assim, a quantidade que transborda será: 'V 'Válcool 'Vvidro 'V 22, 0ml 0,54ml 21, 46ml Vale lembrar que existem materiais como o plástico e a borracha, que apresentam um efeito chamado entrópico, ou seja, eles contraem com o aumento da temperatura. 72 3.4 Calor A primeira tentativa de definir “calor” foi dada por Lavoisier no século XVIII, com a hipótese do calórico, uma substância que escoaria entre os corpos, transferindo calor de um corpo para outro, sendo que a quantidade total de calórico era conservada. A hipótese rival foi dada por Francis Bacon e Thomas Hooke e enunciada por Newton, atribuindo o calor ao movimento de vibração das partículas dos corpos (ver sugestão de leitura no final deste Capítulo). A definição mais correta para o calor, considerada atualmente, é que o calor é uma forma de energia, que é transferida de um corpo para outro em virtude de diferença de temperatura, portanto o calor é uma energia em transição. Nesse contexto, não faz sentido dizer que um corpo possui mais calor que outro; na verdade, os corpos podem possuir temperaturas diferentes, mas o calor (como veremos mais adiante) está sempre associado a um gradiente de temperatura. 3.4.1 Capacidade térmica e calor específico Quando se adiciona energia térmica a uma substância, ou seja, quando é transferido calor para uma substância, a temperatura geralmente se eleva1. Nesse caso, a quantidade de energia térmica 'Q necessária para elevar a temperatura da substância em 'T é proporcional à variação de temperatura 'T e à sua massa m . Podemos escrever então: 'Q mc'T C 'T (3.8) onde C mc é chamada de capacidade térmica2 e c é chamado de calor específico3. A unidade para a quantidade de calor é a caloria e foi definida inicialmente como a quantidade de energia térmica para elevar a temperatura de 1 grama de água de 14,5qC até 15,5qC . No Sistema Internacional de medidas 1cal 4,186J . Analogamente, pode-se então definir uma capacidade térmica molar, CM Mc C / n , como sendo a capacidade térmica de 1mol da substância, onde M é a massa molecular. Nesse sentido, a capacidade térmica de n moles é dada por Cn nCM . Como veremos mais adiante, uma exceção ocorre nas transições de fase, onde a quantidade de calor absorvida é utilizada para alterar propriedades físicas da substância. 1 A capacidade térmica está relacionada com a capacidade que uma substância ou corpo tem de absorver calor e variar a temperatura. Vemos que quanto maior a massa de um corpo, maior é a sua capacidade térmica. 2 O calor específico é uma propriedade de cada substância e representa a medida da capacidade que uma substância tem de absorver calor. 3 73 A massa molecular (em alguns livros chamada equivocadamente de peso molecular) é definida como a massa por mol da substância e, portanto, a sua massa total é dada por . O valor de para todos os elementos existentes na natureza pode ser determinado utilizandose a massa atômica (muitas vezes chamada de número de massa) de cada elemento da tabela periódica, que é expressa em gramas por mol. Por exemplo: para o Oxigênio ma | 16, 0g / mol e para o Hidrogênio ma | 1, 0g / mol , então uma molécula de água ( H 2 O ) possui M | 18g / mol . A capacidade térmica de um sistema com mais de uma substância, cujas massas são m1 , m2 , m3 ,... , mn , e seus respectivos calores específicos c1 , c2 , c3 ,... , cn é dada pela soma da capacidade térmica de cada substância, ou seja: C m1c1 m2 c2 m3c3 ... mn cn Nesse caso, a quantidade de energia térmica necessária para introduzir uma variação 'T na temperatura do sistema é dada por: 'Q (m1c1 m2 c2 m3c3 ...)'T . (3.9) O calor específico varia com a temperatura e com as condições em que a variação de temperatura ocorre: a pressão constante ou a volume constante. Por isso define-se o calor específico a pressão constante como cP e o calor específico a volume constante como cV . Para líquidos e sólidos a diferença entre cP e cV é pequena e pode ser desprezada, pois o volume varia muito pouco com a pressão. Em geral, o calor específico é determinado nas condições de pressão atmosférica (que é constante), por isso a maioria dos valores de calor específico refere-se a cP . Entretanto, para gases cP e cV são bastante diferentes, como veremos no Capítulo seguinte. Na tabela 3.1 a seguir apresentamos os valores de calor específico e capacidades térmicas molares de alguns sólidos e líquidos, juntamente com seu valor de massa molecular; esses valores foram obtidos em condições de pressão atmosférica ( 1atm ). 74 Quando a variação da temperatura é grande, é preciso considerar a dependência de c com a temperatura: c c(T ) . Assim, o correto seria integrar a equação 3.8 da temperatura inicial Ti até a temperatura final T f : (3.10) Para pequenas variações de temperatura, porém, onde o calor específico não varia apreciavelmente, a equação 3.8 pode ser utilizada com boa aproximação. Nesse caso, o calor específico pode ser considerado como o valor médio entre Ti e T f . No próximo Capítulo veremos que a linha em que se trata de uma diferencial inexata. Substância indica c (J / Kg K) M (Kg / mol) CM (J / mol K) Alumínio 910 0,0270 24,6 Cobre 390 0,0636 24,8 Ouro 126 0,203 25,6 Chumbo 128 0,207 26,5 Prata 234 0,108 25,3 2.428 0,0461 111,9 Mercúrio 138 0,201 27,7 Sal (NaCl) 879 0,0585 51,4 Água 4.186 0,0180 75,4 Gelo (10°C) 2.050 0,0180 36,9 Álcool etílico Tabela 3.1 – Calores específicos e capacidades térmicas molares de algumas substâncias (a pressão constante de 1 atm). Através da tabela 3.1 é interessante observar que as capacidades térmicas molares de todos os metais são praticamente as mesmas, apesar de terem calores específicos bem diferentes. Os calores específicos dos líquidos são bem maiores, especialmente o da água, 75 O fato é que grandes massas de água como lagos e o oceano tendem a moderar as variações de temperatura nas suas vizinhanças, ou seja, no inverno, quando a noite cai, a água começa a liberar o calor absorvido do sol durante o dia, não deixando a temperatura cair bruscamente. Já numa região desértica, onde praticamente não existe água, durante o dia, com sol as temperaturas chegam facilmente a 40°C, baixando rapidamente para valores negativos com o pôr do sol. Recipiente termicamente isolado Chamado de calorímetro, tem a propriedade de não permitir a troca de calor com o meio externo. que é consideravelmente maior que o das outras substâncias: é, por exemplo, aproximadamente 10 vezes maior que o do cobre. Assim, devido a sua grande capacidade térmica, a água é uma excelente substância para armazenar energia térmica. Além disso, o calor específico da água varia muito pouco num amplo intervalo de temperaturas; medidas precisas mostraram uma variação de aproximadamente 1% no intervalo de 0qC a 100qC . Dessa forma, ela pode ser utilizada para determinar o valor do calor específico de uma substância desconhecida. Sabendo-se a temperatura inicial de uma substância qualquer TS com massa mS e calor específico cS (desconhecido), se ela for mergulhada num recipiente termicamente isolado, de massa mR e calor específico cR e contendo uma massa de água mA cujo calor específico é dado por c A , ambos numa temperatura inicial conhecida Ti , ocorre uma troca de calor entre a substância, a água e o recipiente contendo a água, até que o equilíbrio térmico seja atingido e todo o sistema assuma a mesma temperatura final T f . No caso de também ocorrerem transições de fase, é necessário considerar a quantidade de calor utilizada nesse processo. Nessas condições, a quantidade de calor trocada pela substância é dada por: (3.11) 'Qs ms cs (T f Ts ) , em que 'T T f TS é a variação de temperatura da substância. A quantidade de calor trocada pelo recipiente e a água é dada por: 'QRA mR cR (T f Ti ) mAc A (T f Ti ) , (3.12) onde 'T T f Ti é a variação de temperatura do conjunto recipiente + água. Como o sistema substância + recipiente + água está termicamente isolado, pela conservação de energia todo calor que sai da substância é absorvido pelo conjunto recipiente + água, e vice-versa. Portanto, a soma das equações 3.11 e 3.12 tem que ser igual a zero. Assim: 'QS 'QRA 0, ou seja, ms cs (T f Ts ) (mR cR mAc A )(T f Ti ) 0. (3.13) 76 Através da equação 3.13, conhecendo-se as massas e medindo-se as temperaturas, pode-se determinar o calor específico de uma substância desconhecida. Como nesses cálculos utilizam-se variações de temperatura e essa variação é igual nas escalas Celsius e Kelvin, ambas as escalas podem ser utilizadas. 'Q , obtemos uma exC pressão para a variação da temperatura 'T de um sistema com capacidade térmica C pela transferência de uma quantidade de calor 'Q . Como C é proporcional à massa, vemos que 'T o 0 quando a massa for muito grande. Nesse caso limite, o sistema permite uma transferência de calor 'Q sem que a temperatura se altere significativamente. Tal sistema é chamado de reservatório térmico. Exemplos de reservatórios térmicos ideais são a atmosfera terrestre e o oceano, mas na prática pode-se considerar qualquer recipiente de tamanho adequado e contendo um fluido em equilíbrio térmico como sendo um reservatório térmico. Reescrevendo a equação 3.8 na forma 'T Exemplo 5. Um pedaço de chumbo com massa de 600g é aquecido a 100qC e colocado num recipiente de alumínio de 200g contendo 500g de água, ambos a 17,3qC . Sabendo-se que a temperatura final de equilíbrio é 20qC , determine o calor específico do chumbo. Dados: c Al 0,9 u103 J / Kg K e cH2O 4,18 u103 J / Kg K . Solução: Vemos que a variação de temperatura do recipiente com a água é 'TRA 20qC 17,3qC 2, 7qC 2, 7K e do chumbo é 'Tch 20qC 100qC 80qC 80K . Lembre-se que, nas unidades dos calores específicos, a massa aparece em quilogramas (Kg), assim as massas do problema precisam ser transformadas para essa unidade. Usando a equação 3.13 temos: (0, 6Kg)(80) cch [(0, 2Kg)(0,9 u103 J / Kg K) u (0,5Kg)(4,18 u103 J / Kg K)](2, 7K) 0, 77 onde, isolando-se cch , obtemos: cch (0, 486 u103 J 5, 643 u103 J) 128J / Kg K . 48Kg K 3.4.2 Transição de fase e calor latente A transição de fase é identificada pela alteração do estado físico da substância. Quando o gelo derrete, por exemplo, ocorre a passagem do estado sólido para o estado líquido da água. Como dito anteriormente, quando se fornece uma quantidade de calor a uma substância, a pressão constante, usualmente se observa um aumento da sua temperatura. Entretanto, numa transição de fase uma substância pode absorver grandes quantidades de calor sem variar a temperatura. Nesse caso, a energia transferida à substância é utilizada para alterar o seu estado físico. As transições de fase mais conhecidas são: a) Fusão: do estado sólido para o líquido; b) Vaporização: do estado líquido para o gasoso; c) Sublimação: passagem direta do estado sólido para gasoso (ex: gelo seco (CO2 solidificado), naftalina etc.) e vice-versa; d) Condensação: do estado gasoso para o líquido; e) Solidificação: do estado líquido para o sólido. No caso de uma substância pura como a água, as transições ocorrem em uma dada temperatura, que, nas proximidades do nível do mar, são: 0qC para a fusão e 100qC para a vaporização. Observou-se experimentalmente que a quantidade de calor necessária para ocorrer uma transição é proporcional à massa m, e então definiu-se a constante de proporcionalidade como sendo o calor latente L . Para um processo de fusão existe o calor latente de fusão LF : 'QF mLF , (3.14) Para um processo de vaporização existe o calor latente de vaporização LV : 'Qv mLv , (3.15) onde, para a água, a pressão de 1atm, 78 LF LV 333,5 u103 J / Kg 79, 7 u103 cal / Kg e 2, 26 u106 J / Kg 540 u103 cal / Kg . Percebe-se que o calor latente de vaporização é bem maior que o de fusão, isso indica que é necessária uma quantidade de calor maior para realizar a transição do estado líquido para o gasoso. É importante destacar que o valor do calor latente para a solidificação é o mesmo que o valor para a fusão, a diferença é que para ocorrer a fusão uma quantidade de calor tem que ser transferida para a substância, enquanto que para a solidificação essa mesma quantidade de calor deve ser removida. Portanto, convencionou-se que para a fusão e para a solidificação . O mesmo raciocínio é válido para a vaporização e condensação. Exemplo 6. Qual a quantidade de calor necessária para vaporizar 1, 0Kg de gelo a 20qC e mantido a uma pressão de 1atm? Solução: Para encontrarmos a quantidade de calor necessária para vaporizar o gelo, precisamos inicialmente determinar a quantidade de calor gasta para levá-lo de 20qC a 0qC , depois aquela para fundilo nessa temperatura, em seguida a quantidade de calor para levá-lo de 0qC a 100qC e por fim aquela para vaporizá-lo a 100qC . Assim, calcula-se a quantidade de calor gasta em cada um dos processos para somar todas as quantidades ao final. a) Levar o gelo de 20qC a 0qC : O calor específico do gelo é cgelo 2, 05 u103 J / Kg K e temos que 'T 0 (20) 20qC 20K . Utilizando a equação 3.8: 'Qgelo mcgelo 'T 'Qgelo 41u103 J. (1, 0 Kg)(2, 05 u103 J / Kg K)(20K) b) Fundir o gelo a 0qC (a temperatura permanece constante), para isso vamos utilizar a equação 3.14: 'QF mLF (1, 0Kg)(333,5 u103 J / Kg) 333,5 u103 J 79 c) Levar a água de 0qC a 100qC : o calor específico da água é cH2O 4,18 u103 J / Kg K e temos que 'T 100qC 100K . Utilizando a equação 3.8: 'QH2O mcH2O 'T 'QH2O 418 u103 J. (1, 0Kg)(4,18 u103 J / Kg K)(100K) d) Vaporizar a água a 100qC (a temperatura permanece constante), para isso vamos utilizar a equação 3.15: 'QV mLV (1, 0 Kg )(2, 26 u106 J / Kg) 2, 26 u106 J. Dessa forma, a quantidade total de calor necessária para realizar esse processo é a soma das quantidades de calor de todas as etapas, logo: 'Qtotal 'Qgelo 'QF 'QH 2O 'QV 'Qtotal 3052,5 u103 J. 3.5 Transferência de energia térmica De modo geral, sabemos que sempre que existir uma diferença de temperatura entre dois corpos ou dois meios, esse gradiente de temperatura faz com que haja um fluxo de energia térmica da temperatura maior para a menor. Existem três métodos pelos quais a energia térmica pode ser transferida: condução, convecção e radiação. Condução Através da condução, o calor é transferido pelas interações entre os átomos e moléculas que constituem o material, mas sem transferência direta de matéria. A condução ocorre pela vibração e colisão das partículas constituintes. Lembrando que a vibração é maior onde a temperatura for mais elevada, na colisão parte da sua energia cinética é transferida para as partículas com vibração menor, que também passam a vibrar mais. O resultado é um processo em cadeia que se propaga para longe da região mais aquecida. No caso de um metal, o transporte também é feito pelos elétrons livres; no caso de um gás, apenas pelas colisões diretas entre as partículas. Certamente você já queimou a mão ao tirar uma panela do fogo porque o cabo estava quente, esse é um exemplo típico de condução de 80 calor através do material do cabo. Para evitar isso, em geral os cabos são constituídos ou revestidos de materiais que não conduzem muito bem o calor (ex.: madeira, borracha); os metais são exemplos de bons condutores de calor. Agora você consegue responder à pergunta no início da seção 3.1; a sensação de que o metal é mais frio deve-se ao fato de que ele é melhor condutor de calor do que a madeira, assim ele absorve a energia térmica da sua mão com maior eficiência. Convecção A convecção é caracterizada pelo transporte de matéria no processo de transferência de calor, que ocorre pelo movimento coletivo das moléculas de um fluido (líquido ou gás). É um processo contínuo, ativado pela diferença de temperatura entre duas regiões do fluido, a qual altera a densidade do meio. Dessa forma ocorre um movimento do fluido no sentido de homogeneizar a densidade. Quando você coloca uma panela com água no fogo para ferver, durante um certo tempo é possível notar que a temperatura da superfície da água aumenta lentamente. Durante esse período a transferência de calor para a superfície ocorre pela condução através da vibração das moléculas. Obviamente, a temperatura no fundo da panela aumenta mais depressa, e quando a diferença entre a temperatura da água da superfície e a do fundo atinge um valor crítico, a água começa a se mover. A partir desse ponto, o processo de convecção é dominante na transferência de calor, fazendo com que rapidamente a água atinja o equilíbrio térmico. Portanto, a convecção é uma forma muito eficiente de transferir calor. A convecção é um processo muito comum na natureza. As chamadas correntes de convecção podem ser observadas na atmosfera terrestre e nos oceanos, em um copo com gelo percebe-se o movimento da água, num dia de verão o ar próximo ao asfalto parece trêmulo, ao abrir a porta de um freezer percebemos que o ar frio desce etc. Radiação Imagine-se entrando em casa num dia frio de inverno em que você encontra a lareira acesa, de imediato você sente o calor na pele. No entanto, como o calor é transportado do fogo até a sua pele? Não pode ser por condução, pois o ar é um péssimo condutor de calor. Também não pode ser por convecção, pois o ar da sala está qua- 81 se parado. Nesse exemplo você está experimentando a transmissão por radiação, onde a energia é transmitida através de ondas eletromagnéticas. Essas ondas viajam do fogo até a sua pele, da mesma forma que a luz, onde então são absorvidas e convertidas em energia interna. Todos os corpos do universo irradiam calor, e ao mesmo tempo que um corpo irradia também recebe energia irradiada por outros corpos. A radiação é a única maneira de transmitir energia sem a necessidade de um meio para isso, ou seja, a radiação pode atravessar o espaço vazio, caso contrário não sentiríamos o calor do Sol aqui na Terra. 3.5.1 Condutividade térmica Vamos considerar dois reservatórios térmicos (sendo que um possui maior temperatura que o outro) ligados por uma barra condutora de calor, permitindo o fluxo contínuo de calor da temperatura maior ( T1 ) para a menor ( T2 ), como mostra o exemplo a na figura 3.2 a seguir. Nesta, o exemplo (b) representa um segmento da barra condutora com área de seção reta A e comprimento 'x , através do qual existe um gradiente de temperatura 'T / 'x , onde 'T é a diferença entre as temperaturas nas duas extremidades do segmento. ∆T T1 Fluxo de calor A T2 ∆x A B Figura 3.2 – (a) Esquema de uma barra condutora de calor ligando dois reservatórios térmicos com temperaturas diferentes ( T1 ! T2 ) e (b) detalhe de um segmento da barra condutora. Sendo 'Q a quantidade de calor conduzida num intervalo de tempo 't , então existe uma taxa de condução dada por 'Q / 't I , que é definida como a corrente térmica ( I ). Experimentalmente, verificou-se que a corrente térmica é proporcional à área da seção reta e ao gradiente de temperatura, ou seja, I v A.'T / 'x (o símbolo v representa proporcionalidade). Juntando as duas expressões para I , temos: 82 I 'Q 't kA 'T . 'x (3.16) onde k é uma constante de proporcionalidade característica do meio condutor, definida como a condutividade térmica. A unidade de I é J W e a de k é W / m.K . Se isolarmos a variação de temperatura s na equação 3.16, encontramos: 'T 'x I kA I , (3.17) 'x é a resistência térmica. kA onde Vamos analisar agora como ocorre a condução térmica entre duas barras condutoras (com propriedades condutoras diferentes) ligadas entre si, como mostra a figura 3.3, onde T1 e T3 são as temperaturas nas duas extremidades externas e T2 é a temperatura na junção das barras ( T1 ! T2 ! T3 ); supomos que elas têm a mesma área transversal A , e k1 e k2 são as condutividades térmicas em cada barra. T2 T1 k1 k2 L1 T3 L2 Figura 3.3: Sistema constituído de duas barras condutoras diferentes, de comprimento L1 e L2 , unidas numa extremidade e submetidas a um gradiente de temperatura, em que T1 ! T2 ! T3 . Pela lei de conservação de energia, o fluxo térmico – e, consequentemente, a corrente térmica – deve ser o mesmo através das duas barras. Pela equação 3.17 a variação de temperatura nas placas é dada por: T1 T2 L1 k1 A 1 I T2 T3 L2 k2 A 2 I 83 Somando os lados da igualdade das duas equações resulta que: T1 T3 (1 2 ) I o 'T eq I , (3.18) onde eq 1 2 é a resistência equivalente para dois condutores ligados em série. Note que o resultado seria o mesmo se houvessem outros condutores a mais ligados da mesma forma, em que 'T é a variação total de temperatura (nos dois extremos) e eq a soma de todas as resistências. Uma situação um pouco mais complexa é a determinação da quantidade de calor perdida numa sala em certo intervalo de tempo 't ; isso equivale a encontrar o fluxo de calor 'Q / 't I . Nesse caso, precisamos encontrar a corrente térmica através do teto, das paredes laterais, portas e janelas. Como os materiais que constituem essas partes são diferentes, então a corrente térmica deve ser diferente em cada uma delas. Considerando que 'T (que é a diferença entre a temperatura interna e externa da sala) é o mesmo em cada caminho, o fluxo total é dado pela soma das correntes térmicas em cada meio, ou seja, I total I1 I 2 I 3 ... + I n , e como 'T I temos: 'T eq 'T 'T 'T 'T ... 1 2 3 n 1 eq 1 1 1 1 ... 1 2 3 n (3.19) Nesse caso, eq representa a resistência térmica equivalente através de condutores ligados em paralelo. Mais adiante, na disciplina de Física III (que trata de fenômenos elétricos), você verá que os conceitos abordados aqui são perfeitamente equivalentes ao caso elétrico. Aqui vimos que uma diferença de temperatura produz uma corrente térmica em um corpo que depende da sua resistência térmica pela relação 'T I . No caso elétrico, a corrente elétrica é produzida por uma diferença de potencial elétrico ( ) que depende da resistência elétrica pela relação conhecida como Lei de Ohm, 'V eletr I . Note que as duas relações são idênticas. O mesmo acontece com a relação para 84 resistências elétricas equivalentes, em série e em paralelo. Lembramos que a corrente térmica está relacionada com o fluxo de calor num intervalo de tempo, enquanto a corrente elétrica relaciona-se com o fluxo de cargas elétricas num intervalo de tempo. Certamente você já percebeu que num dia frio de inverno os pássaros enchem suas plumas, parecendo mais gordos; isso é um exemplo de que os pássaros conhecem a condutividade dos materiais! O fato é que a condutividade térmica do ar é muito pequena, ou seja, o ar é um bom isolante térmico, então a camada de ar que preenche as plumas ajuda a evitar a fuga de calor do corpo. Pela mesma razão os casacos de lã e as cobertas de pena mantêm o nosso corpo aquecido. Quem já andou de avião deve ter percebido que as janelas são duplas ou triplas, o motivo disso é confinar ar entre as lâminas de vidro para obter isolamento térmico. No entanto, se o espaçamento entre as lâminas for grande, a eficiência diminui por efeito de convecção. A distância otimizada de isolamento do ar é de 1cm a 2cm . Na tabela 3.2 estão apresentados valores de condutividade térmica de algumas substâncias. Substância k (W/mK) Substância k (W/mK) Alumínio 205,0 Vidro 0,8 Cobre 385,0 Gelo 1,6 Aço 50,2 Madeira 0,04 a 0,12 Concreto 0,8 Ar 0,024 Tabela 3.2 – Condutividade térmica de algumas substâncias. Exemplo 7. Considere dois cubos metálicos (chumbo e prata) com 2, 0cm de aresta, ligados em série, onde as extremidades externas estão entre dois reservatórios térmicos, um com T1 100qC (em contato com o chumbo) e o outro com T3 0qC (em contato com a prata), semelhante ao sistema da figura 3.3. Assim: a) Encontre a corrente térmica total que atravessa os dois cubos; b) Determine a temperatura T2 na interface entre os dois cubos. Dados: kchumbo 353W / m K e k prata 429W / m K . Quando um avião voa aproximadamente a 10.000 m de altitute a temperatura externa fica em torno de -40°C; se não houvesse isolamento térmico as pessoas congelariam dentro do avião. 85 Solução: a) Inicialmente precisamos encontrar a resistência total total . Como os dois cubos estão ligados em série, vamos utilizar a equação 3.18: total ch pr . A área da seção reta é a mesma para os dois: A (0, 02m)(0, 02m) 0, 0004m 2 4 u104 m 2, onde 'x 0, 02m , portanto: ch 'x kA 0, 02m (353W / mK)(4 u104 m 2 ) 0,142K / W , pr 'x kA 0, 02m (429W / mK)(4 u104 m 2 ) 0,117K / W , logo: total (0,142 0,117)K / W corrente total é dada por: I total 'T total 0, 259K / W. Dessa forma a 100K 0, 259K / W 386W. b) A temperatura na interface dos dois metais (T2 ) pode ser determinada com os dados existentes tanto para o chumbo como para a prata. Vamos calcular aqui a temperatura para o chumbo e fica a sugestão para você realizar o mesmo cálculo com os dados da prata, lembrando que a corrente que passa pelos dois é a mesma ( I total ). Através da equação 3.18 temos: T1 T2 ch I total , vamos considerar 100qC 373K , 373K T2 T2 (0,142K / W)(386W), 373K 54,8K 318, 2K 45, 2qC. Resumo O conceito de temperatura dos corpos é tratado pela Lei Zero da Termodinâmica: quando dois sistemas (A e B) estão em equilíbrio térmico com um terceiro (C), então A e B estão em equilíbrio térmico entre si (ver figura 3.1). Para realizar conversões entre as escalas de temperatura Celsius ( TC ), Fahrenheit ( TF ) e Kelvin ( TK ) são utilizadas as seguintes equações: 86 TC 5 TF 32q e TK 9 TC 273,15K Com relação à dilatação dos materiais, vimos que ela depende das dimensões do material, da variação de temperatura e principalmente da sua estrutura química. No caso de uma dilatação linear temos que a variação no comprimento L é dada por: 'L DL'T , onde D é o coeficiente de expansão linear. Se a dilatação for superficial, a variação da área da superfície é dada por: 'A 2 DA'T , Se a dilatação for volumétrica, temos: 'V EV 'T , onde E 3D é definido como o coeficiente de dilatação volumétrica. O calor é uma energia de transição transmitida entre corpos submetidos a diferentes temperaturas. A capacidade térmica de uma substância ( C mc ) é definida como a capacidade que esta tem de absorver calor, onde c é o calor específico de cada substância. A quantidade de energia térmica 'Q necessária para elevar a temperatura de uma substância de 'T é dada por: 'Q mc'T C 'T . Em situações onde ocorrem transições de fase, a quantidade de calor absorvida ou cedida pelo sistema é utilizada na sua totalidade para alterar o estado físico da substância, sem produzir uma variação da temperatura. Nesse caso: 'Q mL , em que L é definido como calor latente, que pode ser de fusão ou vaporização. Existem três formas pelas quais a energia térmica pode ser transferida entre os corpos: condução, convecção e radiação. 87 A condutividade térmica ( k ) é definida em termos de uma corrente térmica ( I ), que representa a taxa temporal de condução de calor: 'Q / 't I , onde: I 'Q 'T kA 'T . 'x Ao isolarmos a variação da temperatura, encontramos uma definição para a resistência térmica ( ): 'x I kA 'T I , 'x . kA Para situações em que existem vários condutores conectados em série, a resistência equivalente é dada por eq 1 2 3 ...n , porém se eles estiverem conectados em paralelo a resistência equi1 1 1 1 1 valente se torna . Como será visto mais ... eq 1 2 3 n adiante no curso, esses conceitos são idênticos aos de corrente e resistência elétrica. Questões 1) Um tanque subterrâneo com capacidade igual a 1700 litros é preenchido com etanol a uma temperatura inicial de 19qC . Quando o etanol se esfria até atingir a temperatura de 10qC do solo (a qual está em equilíbrio com a do tanque), qual é o volume de etanol no interior do tanque? Suponha que o volume do tanque permaneça constante e considere Ee tan ol (0, 75 u103 )0 C 1 . Resposta: V = 1688,5 litros. 2) Um pedaço de gelo de 200g e a 0qC foi colocado em 500g de água a 20qC . O sistema está em um calorímetro de capacidade térmica desprezível. Sendo assim: a) Qual a temperatura final de equilíbrio do sistema? b) Qual a quantidade de gelo que fundiu? 88 Resposta: a) T f 0qC ; b) m 125g . 3) Um projétil de chumbo, inicialmente a 30qC , é lançado por uma arma e se funde ao colidir com um alvo. Admitindo-se que toda a energia cinética inicial se transforma em energia interna que eleva a temperatura do projétil até atingir a temperatura necessária para provocar a sua fusão, calcule a velocidade do projétil no impacto com o alvo. Considere: calor latente de fusão do chumbo como L 24, 7 u103 J / Kg e ponto de fusão do chumbo como 600K . Resposta: v 354m/s . 4) Um pedaço de cobre de 100 g a temperatura T é lançado num calorímetro de cobre com 150 g contendo 200 g de água. A temperatura inicial da água e do calorímetro é 16°C, e a temperatura final, depois de atingido o equilíbrio térmico, é de 38°C. Depois da experiência, pesando-se o calorímetro com a água, verificou-se que 1,2 g de água evaporaram. Determine a temperatura T. É necessário considerar que o calorímetro não está isolado e, portanto, que a quantidade de água evaporada não ficou no seu interior. Resposta: T 625, 7qC . 5) Um cubo de alumínio e um cubo de cobre, ambos com aresta de 3,0 cm, estão dispostos entre dois reservatórios térmicos mantidos a 100°C e 20°C, conforme mostra a figura 3.4 a seguir. Considere: kalum. 237W / m.K e kcobre 401W / m.K . Sendo assim: a) Encontre a corrente térmica conduzida por cada um dos cubos de um lado a outro; b) Qual a corrente térmica total? c) Qual é a resistência térmica equivalente? 89 cobre 100°C 20°C alumínio Figura 3.4 – Figura referente ao exercício 5. Resposta: a) I alum. 568,8W e I cobre b) I total 1531, 2W ; c) eq 52 u103 K / W . 962, 4W ; 6) Uma panela com fundo de cobre contém 0,8 litro de água em ebulição, sendo que essa água seca em 10 minutos. Assumindo que todo o calor passa pelo fundo plano de cobre com 15,0 cm de diâmetro e 3,0 mm de espessura, calcule a temperatura da face externa do fundo (em contato com o fogo) no instante em que a panela seca. Considere o calor latente de vaporização da água como LV 2, 26 u106 J / Kg . Resposta: T 101,3qC . Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. v. 2. SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10 ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. RESNICK, R.; HALLIDAY, D. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. v. 2. TIPLER, Paul A.; MOSCA, Gene. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. v. 1. 90 Bibliografia complementar comentada TIPLER, Paul A.; MOSCA, Gene. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. v. 1. Para mais detalhes sobre a obtenção da escala absoluta, sugere-se a leitura da seção 17.3 Termômetro a gás e escala de temperatura absoluta. NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. v. 2. Uma leitura interessante sobre a natureza do calor pode ser encontrada na seção 8.1 A natureza do calor. SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Editora Addison Wesley, 2003. Mais detalhes sobre transições de fase, com vários exemplos resolvidos, podem ser encontrados na seção 15.7 Calorimetria e transições de fases. Uma discussão mais aprofundada sobre as fases da matéria pode ser encontrada na seção 16.7 Fases da matéria. Para saber mais sobre os mecanismos de trocas de calor, com vários exemplos resolvidos, ver seção 15.8 Mecanismos de transferência de calor. Capítulo 4 Primeira Lei da Termodinâmica Capítulo 4 Primeira Lei da Termodinâmica Ao final deste Capítulo você deverá compreender os conceitos relacionados à primeira lei da termodinâmica, assim como identificar e caracterizar os processos termodinâmicos. Também deverá interpretar e representar diagramas termodinâmicos e aplicar a definição de gases ideais na resolução de problemas e questões. 4.1 Introdução A energia interna de um sistema pode ser entendida como a soma da energia cinética de todas as partículas que constituem o sistema somada com a sua energia potencial total, devido à interação entre elas. A primeira lei da termodinâmica trata de um princípio fundamental em física: a conservação de energia. No entanto, como os processos termodinâmicos, além do trabalho mecânico, também envolvem trocas de calor, esse princípio foi ampliado e foi introduzido o conceito de energia interna de um sistema. A energia interna será representada pela letra U . Essa lei de conservação de energia é considerada como o exemplo mais claro de descoberta simultânea, sendo anunciada por quatro cientistas europeus entre 1842 e 1847: Mayer, Joule, Colding e Helmholtz. Além desses, muitos outros, norteados pelos estudos de motores térmicos, contribuíram para que as ideias de conversão entre energia mecânica e térmica fossem amadurecidas. O fato é que esses cientistas, aparentemente, sem terem conhecimento uns dos outros, apresentaram ideias com o mesmo eixo unificador centrado na conservação de energia. Para mais detalhes, ver sugestão de leitura no final deste Capítulo. Da mesma forma como acontece para a energia potencial gravitacional de um corpo, a variação da energia interna ('U U f U i ) depende apenas dos estados inicial e final dessa energia. Como veremos neste Capítulo, a primeira lei da termodinâmica nos dá uma relação para en- 94 contrar 'U a partir do calor transferido e do trabalho realizado. Com isso é possível definir um valor específico de U para um estado de referência e dessa forma encontrar a energia em qualquer outro estado. O estado termodinâmico de um fluido homogêneo (líquido ou gás) é descrito pela sua pressão ( P ) , volume (V ) e temperatura (T ) , sendo que ele fica inteiramente determinado por um par dessas variáveis: ( PV ) , ( PT ) ou (VT ) , ficando assim determinada a temperatura, volume e pressão, respectivamente. Um sistema termodinâmico é caracterizado por ser capaz de realizar trocas de energia com sua vizinhança, ou seja, ele interage com o meio ambiente em sua volta. Isso pode ocorrer através de transferência de calor ou realização de trabalho. Neste Capítulo, iremos abordar a primeira lei da termodinâmica, discutir alguns processos termodinâmicos a partir da primeira lei e aplicar isso em situações práticas. Esse estudo é importantíssimo para o entendimento de máquinas térmicas, como será visto mais adiante. 4.2 Equivalente mecânico de caloria A relação entre energia mecânica e calor foi estabelecida por Joule em meados do século XIX, estudando o aquecimento da água quando a mesma era mexida por um agitador, como ilustrado na figura 4.1 a seguir. Ele utilizou um recipiente contendo água e constituído de paredes adiabáticas, e o movimento das pás era controlado pelo trabalho de subida e descida das massas conectadas ao eixo de giro, permitindo dessa forma calcular o trabalho realizado pelas pás. m1 m2 Figura 4.1 – Esboço do esquema utilizado por Joule para determinar o equivalente mecânico de caloria. Consiste de um recipiente com paredes adiabáticas contendo água, constituído de pás giratórias para agitar a água. As paredes adiabáticas não permitem troca de calor com o meio externo, constituindo um sistema termicamente isolado. 95 Joule verificou que o aumento da temperatura era proporcional ao trabalho realizado, sendo que eram necessários 4,186 Joules para aumentar a temperatura de 1,0 grama de água de 14,5°C para 15,5°C , o que equivale a 1,0 caloria , então estabeleceu-se a relação: 1,0 cal 4,186 J. (4.1) Além disso, Joule mostrou por métodos diferentes que a mesma quantidade de trabalho era necessária para ter o mesmo efeito na temperatura. Um outro método foi utilizar uma resistência elétrica para aquecer a água (é isso que acontece num chuveiro elétrico). Nesse caso, o gerador de corrente que alimenta a resistência é que realiza o trabalho sobre o sistema. No Sistema Internacional de medidas (SI) adota-se o Joule como unidade básica de energia, inclusive para o calor. Vamos estudar agora algumas formas de transferência de energia entre um sistema e sua vizinhança, e como isso interfere na energia interna desse sistema. 4.3 Trabalho adiabático Vamos considerar um gás em equilíbrio termodinâmico num recipiente de paredes adiabáticas com um pistão móvel. Esse gás é descrito pela sua pressão inicial ( Pi ) e seu volume inicial (Vi ) . Quando é realizado um trabalho sobre o sistema, que pode ser através da colocação de um corpo de massa m sobre o pistão, o sistema tende para uma nova posição final de equilíbrio com Pf e V f (ver figura 4.2 a seguir). É importante lembrar que as leis da termodinâmica podem ser aplicadas apenas nas situações de equilíbrio termodinâmico, portanto os parâmetros do estado final podem ser considerados apenas após esse estado ter atingido o equilíbrio. Sabemos que isso não ocorre durante o deslocamento do pistão pela ação da força de contato do corpo com o pistão, onde ocorrem movimentos turbulentos no gás, portanto esses estados intermediários não são de equilíbrio. 96 Mais adiante veremos que a condição de equilíbrio dos estados intermediários é necessária para que se possa obter uma curva num diagrama , tornando o processo reversível. Paredes adiabáticas m Pi ,Vi Pf ,Vf A B Figura 4.2 – Ilustração de uma compressão adiabática de um gás através da colocação de um corpo de massa m sobre um pistão móvel: (a) estado de equilíbrio inicial, antes de colocar a massa, descrito por Pi e Vi , e (b) estado de equilíbrio final, depois de colocada a massa, descrito por Pf e V f . Na nova configuração de equilíbrio ( Pf , V f ), percebemos que o volume foi reduzido e com isso a pressão interna deve ter aumentado. Diz-se que nesse processo foi realizado um trabalho adiabático sobre o sistema, pois não houve troca de calor. Esse trabalho, por sua vez, produz um aumento da energia interna do sistema, que reflete num aumento da temperatura do gás, pelo fato de as paredes não permitirem fuga de calor (como no caso do experimento de Joule). Da mesma forma, se o corpo de massa m fosse removido no exemplo (b) da figura 4.2, o gás iria expandir-se até uma nova posição de equilíbrio, realizando trabalho sobre o pistão e resultando no seu movimento. Nesse caso, diria-se que o sistema realizou trabalho, causando uma diminuição da energia interna do gás. A partir dessas considerações, podemos definir: 'U Wi o f , (4.2) ou seja, em um sistema termicamente isolado a variação da energia interna 'U é igual ao trabalho realizado do estado inicial ao estado final ( Wi o f ). O sinal negativo aparece por definição histórica do es- 97 tudo de máquinas térmicas onde padronizou-se que o trabalho é positivo ( W ! 0 ) quando o mesmo é realizado pelo sistema, e negativo ( W 0 ) quando é realizado sobre o sistema. Assim, como o trabalho realizado pelo sistema diminui a energia interna, coloca-se o sinal negativo na equação 4.2. Essa padronização histórica está associada à ideia de trabalho útil (que pode ser aproveitado) no estudo de máquinas térmicas. Por exemplo, numa máquina a vapor, como uma locomotiva, quando a água é transformada em vapor pela absorção de calor da caldeira o volume aumenta e, com isso, empurra o pistão realizando o trabalho necessário para mover a alavanca que faz girar as rodas. Ou seja, a expansão do sistema gerou trabalho, e esse trabalho então foi considerado positivo. Mais adiante veremos que a mesma ideia é utilizada para definir como positiva uma quantidade de calor que é transferida a um sistema termodinâmico, pois essa energia transferida também pode ser convertida em trabalho útil. A força que as moléculas do gás exercem sobre as paredes de um recipiente está relacionada com as colisões momentâneas das moléculas com a parede. O trabalho na mecânica, por sua vez, está associado com um deslocamento durante a aplicação de uma força. Assim, o trabalho é identificado apenas quando ocorre um deslocamento da parede, que é observado no caso do pistão do exemplo anterior. Considerando A como sendo a área do pistão, a força F sobre ele pode ser expressa por: (4.3) F PA No próximo Capítulo, sobre a teoria cinética dos gases, veremos como a pressão é definida do ponto de vista microscópico. onde P é a pressão que o gás exerce sobre o pistão. Dessa forma, para um deslocamento infinitesimal dx, o trabalho relativo a essa força é: , mas Adx tão: dV , que representa uma pequena variação de volume, en(4.4) 98 A notação é utilizada para identificar que representa apenas uma quantidade infinitesimal de trabalho, não sendo uma diferencial exata, ou seja, a partir da integração da equação 4.4 obtemos apenas uma quantidade de trabalho realizado entre o estado inicial e final, definido como na equação 4.5, mas jamais poderemos determinar quanto é o trabalho inicial ( ) ou o trabalho final ( ). Na verdade, assim como o calor, o trabalho não é uma propriedade do sistema. Como veremos mais adiante, isso está relacionado com o fato que o trabalho não é uma função de estado termodinâmico e, portanto, o trabalho realizado depende do tipo de processo (se adiabático, se isotérmico etc.). Dessa forma, para uma variação finita de Vi até V f , o trabalho é dado pela integral da equação 4.4 nestes limites: Vf Wi o f ³ P(V )dV . (4.5) Vi Em geral, a pressão do sistema pode variar durante a variação do volume, portanto para calcular o trabalho a partir da equação 4.5 é necessário conhecer o caminho entre os estados Vi e V f , ou seja, conhecer a função . Veremos mais adiante que essa função só pode ser obtida se o processo de compressão e expansão realizado pelo gás for reversível. 4.3.1 Análise gráfica Vamos considerar um processo termodinâmico descrito num diagrama PV, que ocorre de um estado inicial (1) para um estado final (2). No gráfico da figura 4.3 a seguir estão ilustrados três caminhos em que o sistema pode evoluir de 1 para 2. Como a temperatura fica definida por cada ponto do par ( PV ) do diagrama, cada caminho define como a temperatura varia ao longo do processo. O caminho ao longo da curva b (1b2) pode representar uma isoterma (onde a temperatura é constante); os caminhos 1a 2 e 1c 2 são compostos de trechos isocóricos (volume constante) e isobáricos (pressão constante). A partir do gráfico da figura 4.3, fica claro que o trabalho realizado nes- P P1 c 1 b P2 a V1 2 V2 V Figura 4.3 – Representação de um processo termodinâmico num diagrama PV, onde estão ilustrados três caminhos para ir do estado 1 para o estado 2. 99 se processo depende do caminho apresentado no gráfico e é obtido pela equação 4.5, representando a área compreendida entre a curva P P (V ) e o eixo V , de V1 até V2 . Por exemplo: a área hachurada na figura 4.3 representa o trabalho para ir de 1 até 2 pelo caminho 1b2 . Podemos ver que nos trechos 1c e a 2 , onde a pressão é constante, da equação 4.5 temos: W1oc P1 (V2 V1 ) Wa o2 P2 (V2 V1 ), Essas equações também representam as áreas abaixo das curvas para P1 e P2 constantes, entre V1 e V2 , respectivamente. Como P1 ! P2 , vemos que W1oc ! Wa o2 , confirmando que o trabalho é diferente de acordo com o caminho tomado por quem estiver analisando o processo. Nos trechos 1a e c 2 o trabalho é nulo, pois o volume é constante. No caso de um processo cíclico, onde o sistema volta ao estado inicial, o trabalho total é descrito pela área contida dentro da curva fechada, como mostra a figura 4.4 a seguir. Num processo cíclico, a variação total da energia interna é nula ( 'U 0 ). Isso vem do fato de que a energia interna depende apenas dos estados inicial e final, e não do caminho descrito no gráfico, portanto o trabalho total (quando diferente de zero) está relacionado com uma quantidade de calor transferida no processo. P P1 1 P2 2 V1 V2 V Figura 4.4 – Representação de um processo termodinâmico cíclico num diagrama PV. A área hachurada dentro da curva indica o trabalho total realizado nesse processo. De acordo com a ilustração da figura 4.4, podemos ver que o trabalho total será negativo se o ciclo ocorrer no sentido anti-horário, pois no trecho ( 2 o 1 ) da parte superior do ciclo o trabalho é maior em módulo que no trecho (1 o 2 ), porém negativo porque o volume di- 100 minui. Se o ciclo ocorrer no sentido horário, o trabalho total será positivo. Nesses processos é correto escrever a equação 4.5 na forma: Wciclo onde o símbolo v³ P(V )dV , (4.6) representa uma integral num circuito fechado. 4.4 Transferência de calor Vamos considerar agora que a passagem do estado de equilíbrio inicial para o final de um recipiente contendo gás não ocorre pela realização de trabalho adiabático, mas pela transferência de calor. Nesse caso, uma das paredes do recipiente necessariamente precisa ser diatérmica (que permite a troca de calor) e estar em contato com um reservatório térmico. Assim, se não houver realização de trabalho, a variação da energia interna depende apenas da quantidade de calor transferida: 'U Q. (4.7) Por definição, padronizou-se que a quantidade de calor é positiva ( Q ! 0 ) quando é fornecido calor ao sistema (aumentando a energia interna) e negativa ( Q 0 ) quando é retirado calor do sistema. Como vimos anteriormente, isso se deve ao estudo com máquinas térmicas, onde uma quantidade de calor fornecida ao sistema pode ser convertida em trabalho útil. 4.5 Primeira lei da termodinâmica No caso mais geral, em que ocorrem transferência de calor e realização de trabalho, a variação da energia interna depende desses dois processos e é dada por: 'U Q Wi o f . (4.8) A equação 4.8 representa a forma analítica da primeira lei da termodinâmica, que atribui a variação da energia interna 'U , a qual não provém do trabalho realizado, ao calor transferido ao sistema ou retirado do sistema. A primeira lei pode ser enunciada da seguinte forma: 101 “A variação da energia interna de um sistema termodinâmico é igual ao calor transferido menos o trabalho realizado entre o sistema e sua vizinhança”. 4.6 Processos reversíveis Como dito anteriormente, para determinar o trabalho através da equação 4.5 é necessário conhecer a função P P (V ) . Isso só é possível se o processo para levar o sistema do estado inicial ao estado final for reversível, nesse caso ele deve necessariamente ocorrer de forma quase estática. Para um processo ser quase estático, ele deve obedecer duas condições: 1) Ocorrer muito lentamente: essa condição é necessária para se ter uma sucessão infinitesimal de estados de equilíbrio termodinâmico, com P e V bem definidos. 2) O atrito entre as partes envolvidas no processo ser desprezível: essa condição é necessária para não haver dissipação de energia por atrito. Podemos imaginar uma situação prática desse panorama considerando o caso da figura 4.2 apresentada anteriormente, se substituirmos o corpo de massa m por uma quantidade de areia de igual massa. Se colocarmos apenas um grão de areia, o sistema tende a buscar uma nova condição de equilíbrio, e após o equilíbrio ser atingido podemos determinar P e V . Após isso, colocamos outro grão de areia e assim por diante, lembrando que entre a colocação de um grão de areia e outro esperamos o sistema atingir o equilíbrio termodinâmico para termos P e V bem definidos. Se a cada grão colocado medirmos a pressão e o volume, conheceremos os pontos que ligam os estados inicial e final, e seremos capazes de desenhar a curva P P (V ) . Esse procedimento permite determinar o caminho que leva do estado inicial ao estado final, tornando assim possível a utilização da equação 4.5 para cálculo do trabalho realizado. Nos processos irreversíveis apenas os estados de equilíbrio inicial e final são conhecidos (como no exemplo da figura 4.2, quando o corpo de massa m é colocado sobre o pistão). Nesse caso, os estados intermediários são turbulentos e estão fora do equilíbrio termodinâmico. 102 Então não é possível determinar as variáveis termodinâmicas P e V , o que não nos permite conhecer o caminho que leva do estado inicial ao estado final. Sabemos apenas que o trabalho realizado equivale à variação da energia interna, mas não podemos calculá-lo diretamente com a equação 4.5 porque a função P P (V ) não é conhecida. A transferência de calor num processo reversível obedece às mesmas condições descritas anteriormente para os processos irreversíveis, mas agora é a quantidade de calor que deve ser transferida lentamente, em que a transformação do estado inicial ao final deve passar por uma sucessão densa de estados de equilíbrio termodinâmico intermediários, permitindo a determinação das variáveis termodinâmicas durante o processo. Nesse caso, podemos utilizar a expressão estudada no Capítulo anterior para determinação da quantidade de calor: (4.9) onde integrando temos: Tf Q ³ C (T )dT , (4.10) Ti em que C mc é a capacidade térmica. Lembramos que o calor específico c varia de acordo com o processo: cV para volume constante e cP para pressão constante, portanto a quantidade de calor transferida Q (necessária para levar o sistema do estado inicial ao estado final) também depende do caminho do processo escolhido, sendo necessário conhecer a função C C (T ) para fazer a integração. Da mesma forma como discutido para o trabalho infinitesimal , também representa apenas uma quantidade infinitesimal de calor transferida, não constituindo uma diferencial exata, ou seja, através da equação 4.10 não é possível determinar o calor inicial ou final de um sistema, apenas a quantidade de calor transferida. É interessante notar que a energia interna de um determinado estado termodinâmico de equilíbrio não pode ser identificada nem com , nem com . É impossível dizer qual proporção de representa trabalho ou calor. Isso vem do fato que e não são funções de estado termodinâmico. Os termos calor e trabalho referem-se sempre a trocas ou fluxos de energia entre um sistema e sua vizinhança. 103 A forma infinitesimal da primeira lei da termodinâmica para um número de moles fixo é dada por: (4.11) Exemplo 1. Um sistema termodinâmico é constituído de 3,0 Kg de água a 80°C . Mediante agitação da água, realiza-se 25 u103 J de trabalho sobre o sistema e ao mesmo tempo removem-se 15 u103 cal de calor. Sendo assim, determine: a) A variação da energia interna 'U ; b) A temperatura final do sistema. Solução: a) Inicialmente precisamos converter a unidade de calor para Joule através da relação apresentada na equação 4.1: Q (15 u103 )(4,186 J) 62,8 u103 J. Agora utilizamos a equação 4.8 para determinar 'U , lembrando da convenção de sinais: trabalho realizado sobre o sistema ( W 0 ) e calor retirado do sistema ( Q 0 ), então: 'U Q W 62,8 u103 J 25 u103 J 37,8 u103 J. Percebemos que a variação da energia interna é negativa, isso quer dizer que foi removida mais energia em forma de calor que adicionada em forma de trabalho. b) Para encontrar a temperatura final T f precisamos saber a variação de temperatura 'T T f Ti , visto que a temperatura inicial do sistema é conhecida ( Ti 80qC ). Para isso, utilizamos a equação 4.9, que relaciona uma quantidade de calor transferida com uma variação de temperatura: 'Q mc'T , sendo que o calor específico da água é igual a 4,186 u103 J/Kg qC , então: 'T Como T f 'Q mc (37,8 u103 J) (3, 0 Kg)(4,186 u103 J/Kg qC) 'T Ti , temos que: Tf 3qC 80qC 77qC. 3, 0qC. 104 4.7 Aplicação em processos termodinâmicos Nesta Seção, vamos estudar alguns casos específicos de processos termodinâmicos que ocorrem em várias situações práticas. A identificação do processo envolvido é o primeiro passo na resolução de problemas que envolvem a primeira lei da termodinâmica. 4.7.1 Processo adiabático Nesse processo não existe troca de calor com o meio externo, ou seja, Q 0 . Isso usualmente é conseguido isolando-se termicamente o sistema num recipiente de paredes adiabáticas. Então a equação 4.8 fica assim redefinida: 'U Wi o f . (4.12) A variação da energia interna está relacionada apenas com a realização de trabalho (nesse caso, chamado de trabalho adiabático). Como vimos na Seção 4.2, no caso de um gás confinado num recipiente com paredes adiabáticas e um pistão móvel, quando é realizado trabalho sobre o sistema tem-se que 'U ! 0 e a energia interna aumenta. Quando o sistema realiza trabalho, tem-se que 'U 0 e a energia interna diminui. Geralmente esse processo resulta também na variação da temperatura. Processos termodinâmicos suficientemente rápidos, em que não há tempo para ocorrer uma troca significativa de calor, também podem ser considerados adiabáticos. Por exemplo: a expansão de vapor numa máquina térmica, o aquecimento do ar quando bombeamos um pneu de bicicleta etc. 4.7.2 Processo isocórico Nesse processo o volume não varia. Em geral, isso significa que o sistema não realizou trabalho com a sua vizinhança, ou seja, Wi o f 0 . Logo, pela primeira lei temos: 'U Q. (4.13) 105 Temos então que a variação da energia interna depende apenas da transferência de calor, sendo que U aumenta ( 'U ! 0 ) quando é fornecido calor ao sistema e U diminui ( 'U 0 ) quando é retirado calor do sistema. Um exemplo disso é o aquecimento de água em um recipiente cujo volume é mantido fixo. É importante notar que a realização de trabalho não está vinculada apenas à variação de volume. É possível realizar trabalho num sistema por agitação, como foi demonstrado no experimento de Joule, na Seção 4.1 deste livro. Nesse exemplo, apesar de se tratar de um processo isocórico, temos que Wi o f z 0 . Uma outra situação interessante de análise é a expansão livre de um gás. A expansão livre de um gás é um experimento em que um recipiente contendo gás está ligado por uma válvula com outro recipiente mantido a vácuo. Quando a válvula é aberta, o gás se expande livremente para o recipiente com vácuo e, como o ar não empurra nenhuma parede no seu movimento, o trabalho realizado pelo gás é nulo, apesar de variar o volume. Esse não é um processo isocórico, pois o volume do gás aumenta, entretanto o gás não realiza trabalho porque não empurra uma parede. 4.7.3 Processo isobárico A pressão é mantida constante nesse processo. Nesse caso, em geral nenhuma das grandezas 'U , Q e Wi o f é nula, entretanto o cálculo do trabalho é simples, pois a pressão sai da integral na equação 4.5, resultando na relação: Wi o f P(V f Vi ) . (4.14) Isso ocorre, por exemplo, no processo de ebulição da água numa panela aberta, onde a pressão atmosférica é constante ( Patm 1, 0 atm ). Nesse exemplo, a variação da energia interna é dada por: 'U mLV Patm (Vvapor Vágua ), onde m é a massa de água e LV o calor latente de vaporização da água. Essa variação de energia interna é interpretada como a energia necessária para romper as forças de atração das moléculas no 106 estado líquido, na transição para o estado gasoso. Para assimilar esses princípios, sugerimos que você resolva o problema 2 da lista no final deste Capítulo. 4.7.4 Processo isotérmico Nesse processo a temperatura é que permanece constante. Para isso, é necessário que a transferência de energia ocorra muito lentamente, permitindo que o sistema permaneça em equilíbrio térmico. Num processo isotérmico, em geral 'U , Q e Wi o f não são nulos. Um caso especial ocorre com um gás ideal, para o qual a energia interna depende apenas da temperatura, sem ser influenciada pelo volume e pela pressão. Dessa forma, 'U 0 num processo isotérmico com um gás ideal, logo Q Wi o f . Ou seja, qualquer energia que entra no sistema em forma de calor sai novamente em virtude do trabalho realizado por ele. 4.7.5 Processo cíclico Num processo cíclico o sistema volta sempre para o seu estado inicial. Como a variação da energia interna depende apenas dos estados inicial e final, então 'U 0 num ciclo completo, logo: Q Wi o f , (4.15) ou seja, a transferência de calor é igual ao trabalho realizado. Esse resultado se aplica no estudo de máquinas térmicas que operam em ciclos repetidos. Esse é o objeto de estudo da segunda lei da termodinâmica. Uma outra situação bem particular, em que 'U 0 , ocorre para um sistema isolado, que não permite nem troca de calor nem realização de trabalho, ou seja, Q Wi o f 0 , resultando que a energia interna de um sistema isolado permanece constante. Exemplo 2. Um recipiente termicamente isolado, cheio de água, cai de uma altura h do solo. Considerando que a colisão seja perfeitamente inelástica, onde toda a energia mecânica se transforma em energia interna da água, qual deve ser a altura para que a temperatura da água aumente em 1,0°C ? Os gases ideais serão estudados na próxima Seção. 107 Solução: A variação da energia mecânica quando um corpo cai de uma altura h é dada por mgh , em que g é a aceleração da gravidade e m a massa do corpo. Se a energia mecânica for totalmente convertida em energia interna e sendo o sistema termicamente isolado, essa queda acarretará num aumento de temperatura da água equivalente a uma transferência de energia térmica Q mc'T , então: mgh mc'T . Para se obter um aumento de temperatura 'T mos que a altura é: h c'T g (4,18 u103 J/Kg K) (1,0 K) 9,8 N/Kg 1,0°C 1,0K , te- 426,5 metros. É interessante notar que a altura não depende da quantidade de água, ou seja, da massa m . Exemplo 3. A partir do diagrama PV da figura 4.5 a seguir, preencha as lacunas da tabela 4.1. P (N/m2) 2×105 1×105 c b a −3 5×10 −3 10×10 V (m3) Figura 4.5 – Figura indicada no exemplo 3. Etapa ab 800 bc ca -100 abca Tabela 4.1 108 Solução: Nesta resolução utilizaremos a primeira lei da termodinâmica, conforme a equação 4.8. A sugestão é inicialmente acrescentar na tabela os valores das grandezas a partir do conhecimento dos processos termodinâmicos envolvidos em cada etapa, depois realizar os cálculos das etapas conhecidas. É importante sempre acrescentar os valores na tabela, porque ao final o trabalho resume-se a somar linhas e colunas. É fácil perceber que, na etapa ca , o trabalho Wc oa 0 porque se trata de um processo isocórico. Isso quer dizer que Qca 'U ca 100 J . Além disso, sabemos que num ciclo completo a variação de energia interna é nula, portanto 'U abca 0 . Para determinar o trabalho na etapa ab utilizamos a equação 4.14, pois se trata de um processo isobárico, então: Pa (Vb Va ) (1u 105 ) (5 u103 ) 500 J , Wa ob Lembre-se que esse valor representa a área debaixo da curva ab, entre Va e Vb . Logo, pela primeira lei encontramos: 'U ab Qab Wa ob 800 J 500 J 300 J. Observando agora, para a última coluna da tabela, que 'U abca 'U ab 'U bc 'U ca , substituímos os valores conhecidos e obtemos que 'U bc 200 J. O trabalho para o sistema ir de b para c pode ser calculado pela área debaixo da curva entre esses pontos. Percebe-se de antemão que este trabalho deve ser negativo porque o volume diminui, o que representa que o trabalho é realizado sobre o sistema. Wboc Pb (Vb Vc ) ( Pc Pb ) (Vb Vc ) 2 500 J 250 J 750 J. Assim, utilizando novamente a primeira lei podemos encontrar Qbc : Qbc 'U bc Wboc 200 J 750 J 950 J. Bom, agora basta somar as colunas para encontrar os valores de: Wabca 250 J, Qabca 250 J. Dessa maneira, podemos completar a tabela 4.1 com os seguintes valores: 109 Etapa ab bc ca abca 800 -950 -100 -250 500 -750 0 -250 300 -200 -100 0 Tabela 4.1 4.8 Gás ideal As condições físicas ou o estado termodinâmico de um dado material são descritos por sua pressão ( P ), seu volume (V ), sua temperatura ( T ) e sua quantidade (relacionada à massa m ), sendo que, em geral, não podemos introduzir variações em nenhuma dessas grandezas sem afetar as outras. Existem casos em que a relação entre essas variáveis é bastante simples, o que torna possível explicitála em termos de uma equação matemática, chamada de equação de estado. Quando essa relação é complicada, usualmente utilizam-se gráficos ou tabelas numéricas para facilitar a visualização, mas de qualquer forma a relação entre as variáveis existe. A seguir vamos discutir a equação de estado de um gás ideal, que é muito utilizada para explicar o comportamento termodinâmico dos gases. O conceito de gás ideal traz a ideia de que esses gases tendem a apresentar a mesma relação entre as variáveis P , V , T e m , em qualquer condição. Esse é um conceito idealizado, que na verdade não existe, mas experimentalmente observou-se que os gases reais seguem uma mesma relação nas seguintes condições: a) Quando a densidade é baixa, ou seja, quando a distância média entre as moléculas do gás é muito grande, nesse caso a energia potencial pode ser desprezada, pois praticamente não existe interação entre as moléculas. b) Quando a média do quadrado da velocidade das moléculas que constituem o gás é suficientemente alta. Isso ocorre quando a pressão é baixa e a temperatura elevada. 110 O modelo de gás ideal que descreveremos aqui, portanto, é na verdade uma boa aproximação para o comportamento de gases reais sob as condições a e b apresentadas acima. No caso dos gases, é geralmente mais fácil descrevê-los em termos do número de moles n ao invés da massa. Por definição, um mol de qualquer substância pura equivale à quantidade de substância tal que sua massa (em gramas) seja igual à massa molecular M. Nas Condições Normais de Temperatura e Pressão (CNTP), que correspondem a T 273,15 K 0qC e P 1, 0 atm 1, 013 u105 Pa , a Lei de Avogadro leva ao resultado importante que 1,0 mol de qualquer gás ocupa sempre o mesmo volume V 22, 415 litros ; além disso, 1,0 mol de qualquer substância tem sempre o mesmo número de moléculas, dado pelo chamado Número de Avogadro, ou seja, N 0 6, 023 u1023 moléculas/mol . Através de experimentos com vários gases diferentes, que foram inseridos em cilindros onde era possível controlar P , V e T , mantendo-se fixo o número de moles n para uma densidade suficientemente baixa de moléculas, observou-se que: a) Quando a temperatura era mantida constante, a pressão variava inversamente com o volume . Daí tiramos que P.V cte ( cte quer dizer constante), conhecida como Lei de Boyle. b) Quando a pressão era mantida constante, o volume variava diretamente com a temperatura (V v T ) . Daí tiramos que V / T cte , conhecida como Lei de Charles e Gay-Lussac. Juntando-se as observações a e b anteriores podemos escrever uma única relação entre P , V e T , para o caso de n fixo: PV T cte o PV i i Ti Pf V f Tf , (4.16) Aqui os índices i e f referem-se aos estados inicial e final do gás. Como o volume ocupado por um gás, com P e T , é proporcional a sua massa (que está relacionada com o número de moles), então a constante cte na equação 4.16 deve ser proporcional a n , ou seja: PV nRT . (4.17) A principal contribuição de Avogadro foi perceber que volumes iguais de todos os gases, nas mesmas condições de temperatura e pressão, contêm o mesmo número de moléculas. 111 A princípio R é uma constante a ser determinada para cada gás, mas na condição de densidade baixa observou-se que ela tem o mesmo valor para todos os gases. Dessa maneira a equação 4.17 é chamada de equação de estado dos gases ideais, em que R é a constante universal dos gases ideais, dada por R 8,314 J/mol K . Na resolução de problemas através da equação 4.17 é necessário utilizar as unidades do Sistema Internacional de medidas (SI), para o qual foi obtido o valor de R 8,314 J/mol K . No SI a temperatura é dada na escala Kelvin, o volume é dado em m3 (lembrando que 1, 0 m3 1000 litros ) e a pressão é dada em Pascal, 1, 0 Pa 1, 0 N/m 2 (lembrando que 1, 0 atm 1, 013 u105 Pa ). Exemplo 4. Uma amostra de 100 g de CO 2 ocupa o volume de 55 litros a 1,0 atm de pressão. Sendo assim: a) Qual a temperatura da amostra? b) Se o volume for aumentado para 80 litros e a temperatura for mantida constante, qual a nova pressão? Dados: a massa molecular do CO 2 é M | 44 g/mol . Solução: a) Inicialmente precisamos encontrar o número de moles n da amostra, que pode ser determinado a partir da massa m da amostra e da sua massa molecular M através da relação: n m M 100 g 44 g/mol 2, 27 moles. Agora podemos determinar a temperatura através da equação 4.17, onde precisamos lembrar de transformar o volume em m3 ( 55 litros 55 u103 m3 ) e a pressão em Pascal ( 1, 0 atm 1, 013 u105 Pa ), portanto: T PV nR (1, 013 u105 Pa) (55 u103 m3 ) (2, 27 moles) (8,314 J/mol K) 295, 2 K | 22qC. 112 b) Para encontrar a nova pressão pelo aumento do volume de 55 litros para 80 litros com a temperatura permanecendo constante, podemos usar a relação PV cte : Pi Vi Pf Pf V f (1, 0 atm) (55 litros) Pf (80 litros) 0, 688atm. 4.8.1 Energia interna de um gás ideal Vamos realizar aqui uma discussão qualitativa para chegar a conclusões sobre a energia interna de um gás ideal. Para isso, consideremos a expansão livre de um gás. Nesse processo o gás é mantido num recipiente com um determinado volume conectado por uma válvula a outro recipiente no qual foi produzido vácuo. Consideremos ainda que esse sistema está isolado termicamente através de paredes adiabáticas. Quando a válvula é aberta, o gás se expande livremente, ocupando assim um volume maior, portanto percebe-se uma variação do volume e da pressão do gás. Como o gás não realiza trabalho porque não empurra nenhuma parede e como não há troca de calor com o meio externo, pela primeira lei da termodinâmica a variação da energia total do gás é nula ( 'U 0 ). Se supusermos que a temperatura do gás se manteve constante nesse processo, é possível afirmar que a energia interna depende unicamente de T , e não tem dependência alguma com P e V . Mas isso é verdade? É importante perceber que as considerações acima são válidas para qualquer gás, seja ele ideal ou não, pois se baseiam unicamente na primeira lei da termodinâmica. Medidas realizadas com o experimento de expansão livre de um gás trouxeram a resposta para a questão acima e comprovaram que, para gases reais, ocorre uma pequena diminuição da temperatura, apesar de a energia interna permanecer constante. Nesse caso, a energia interna depende também de P e V , entretanto a variação da temperatura cai para zero quando a densidade do gás for pequena, ou seja, para um gás ideal. Assim, para gases ideais, a energia interna depende unicamente da temperatura ( U U (T ) ). A combinação dessa propriedade com a equação 4.17 de estado dos gases ideais constitui o modelo de um gás ideal. No Capítulo seguinte, que trata da Teoria Cinética dos Gases, será apresentada uma dedução um pouco mais rigorosa. 113 4.8.2 Capacidade térmica de um gás ideal No Capítulo anterior discutimos que as capacidades térmicas para gases podem ser bem diferentes, dependendo de como a variação de temperatura ocorre, a pressão constante ou a volume constante, o que está relacionado com os calores específicos cP e cV . Vamos discutir essas diferenças através dos dois caminhos ( a e b ) pelos quais é possível passar da isoterma T1 para a isoterma T2 , onde T2 ! T1 , como ilustrado na figura 4.6 a seguir. O caminho a representa um processo isocórico (V constante) enquanto o caminho b representa um processo isobárico ( P constante). As isotermas são obtidas considerando-se a temperatura constante na equação 4.17, de onde obtemos que É fácil ver que as curvas e na figura 4.6 representam temperaturas constantes, onde representamos a função P T1 . , e são obtidas quando num diagrama . T2 P2 a P1 b V1 V2 V Figura 4.6 – Representação esquemática de duas isotermas (T1 e T2 ) num diagrama PV, onde a passagem de T1 para T2 pode ocorrer por processo isocórico ( a) ou isobárico (b). Sendo CM Mc a capacidade térmica molar de um gás ideal, temos que a quantidade de calor necessária para elevar a temperatura de n moles do gás de T1 para T2 é dada por: (4.18) Como depende do caminho pelo qual se faz a transferência de calor, o qual está relacionado com o fato das capacidades térmicas 114 serem diferentes se o processo ocorre a volume constante ou a pressão constante, então definimos: (volume constante), e (pressão constante). Agora vamos aplicar a primeira lei da termodinâmica aos caminhos a e b da figura 4.6: r O caminho a ocorre a volume constante, isso significa que não existe realização de trabalho, então pela primeira lei temos: (4.19) r O caminho b ocorre a pressão constante, percebemos então que além da transferência de calor existe também realização de trabalho, que é dado pela equação 4.4: , logo: (4.20) sendo que através da equação 4.14 de estado dos gases ideais obtemos: PdV nRdT , pois a pressão é constante. Como discutido anteriormente, a variação da energia interna de um gás ideal depende apenas da variação da temperatura, portanto podemos igualar as equações (4.19) e (4.20), pois em ambos os caminhos a variação de temperatura é a mesma, logo dU a dU b : nCMV dT nCMP dT nRdT , Dividindo ambos os lados por ndT , resulta que: CMP CMV R. (4.21) A equação 4.21 mostra que para gases ideais a capacidade térmica molar a pressão constante é sempre maior que a capacidade térmica a volume constante. Isso vem do fato que no processo isobárico existe também realização de trabalho. Além disso, a diferença entre as duas capacidades térmicas é dada pela constante universal dos gases ideais ( R ). 115 Na tabela 4.2 a seguir apresentamos os valores de CMP e CMV medidos para alguns gases à baixa densidade. De acordo com o modelo cinético teórico (o qual será visto em detalhes no próximo Capítulo) 3 5 temos que CMV R , resultando que CMP R e, por conseguinte, 2 2 CMP 5 que J 1, 67 . Esse modelo considera que as moléculas do CMV 3 gás possuem apenas energia cinética de translação, o que é satisfeito muito bem para gases monoatômicos. Para gases constituídos de moléculas com mais de um átomo, outros efeitos precisam ser considerados, como a rotação e vibração das moléculas, resultando num aumento da energia interna do gás. Para gases diatômicos te5 7 mos que: CMV 1, 40 , o que também concorda com os RoJ 2 5 valores medidos. Portanto, vemos que o modelo de gás ideal apresenta boa concordância para gases monoatômicos e diatômicos, mas começa a falhar para gases mais complexos. Tipo de gás Monoatômico Diatômico Poliatômico Gás ( ) ( ) =R ) ( He 20,78 12,47 8,31 1,67 Ar 20,78 12,47 8,31 1,67 H2 28,74 20,42 8,32 1,40 N2 29,07 20,76 8,31 1,40 O2 29,17 20,85 8,31 1,40 CO2 36,94 28,46 8,48 1,30 SO2 40,37 31,39 8,98 1,29 H2S 34,60 25,95 8,65 1,33 Tabela 4.2 – Valores experimentais de CMP e CMV para alguns gases com densidade pequena. CMP é sempre maior que 1 para gaCMV ses; essa grandeza desempenha um papel importante no processo adiabático de um gás ideal, o que será visto na seção 4.7.3 a seguir. A constante adimensional J Vamos analisar uma expansão isotérmica de um gás ideal, por exemplo: de V1 até V2 ao longo da curva T1 na figura 4.6 apresentada an- 116 teriormente. Como a temperatura não varia ao longo da isoterma, a energia interna permanece constante ( 'U 0 ), pois U U (T ) , então pela primeira lei temos que Q Wi o f , ou seja, a quantidade de calor transferida é igual ao trabalho realizado, que é determinado por: V2 W1o2 ³ PdV V1 W1o2 V2 1 dV , V V1 nRT ³ §V · nRT [ln V2 ln V1 ] nRT ln ¨ 2 ¸ . © V1 ¹ (4.22) Pela equação 4.22 vemos que, quando V2 ! V1 , o logaritmo neperiaV no de 2 é positivo, o que significa que o sistema realiza trabalho V1 ( W1o2 ! 0 ) e quando V2 V1 o trabalho é negativo, como era de se esperar. 4.8.3 Processo adiabático de um gás ideal Num processo adiabático sabemos que não há troca de calor, portanto . Assim, a primeira lei nos dá que: mas vimos pela equação 4.19 que a variação da energia interna de um gás ideal pode ser escrita como: dU nCMV dT , (4.23) É importante lembrar que a energia interna depende apenas da temperatura, então a variação da energia interna depende unicamente da variação da temperatura em qualquer tipo de processo. Dessa forma, se a equação 4.19 for válida para um gás ideal em um determinado processo (nesse caso, isocórico), ela será válida para um gás ideal em qualquer outro tipo de processo com o mesmo . logo, nCMV dT PdV . (4.24) 117 Através da diferenciação da equação 4.14 de estado dos gases ideais, obtemos que: PdV VdP nRdT , substituindo na equação 4.24: VdP PdV nRdT VdP nCMV dT nRdT , n (CMV R ) dT nCMP dT . (4.25) Isolando-se dT na equação 4.24 e substituindo-a na equação 4.25, tem-se: VdP CMP PdV CMV JPdV , Podemos reescrever essa equação da seguinte forma: dP P J dV . V (4.26) Integrando-se ambos os lados da equação 4.26 entre os estados iniciais ( Pi , Vi ) e os estados finais ( Pf , V f ), temos: § Pf · ln ¨ ¸ © Pi ¹ J § Vf · § Vf · J ln ¨ ¸ ln ¨ ¸ , © Vi ¹ © Vi ¹ logo, aplicando-se a operação exponencial em ambos os lados, obtemos: Pf Pi Lembrando que, para temperatura constante, a equação de estado dos gases ideais pode ser escrita , o que como equivale a ter . § Vi ¨¨ © Vf J · J ¸¸ o Pf V f ¹ J PV i i . (4.27) A equação 4.27 nos diz que PV J cte numa transformação adiabática de um gás ideal. Uma consequência do fato que J ! 1 para gases ideais é que, num diagrama PV , as curvas adiabáticas são sempre mais inclinadas que as isotermas, portanto uma expansão adiabática de um gás ideal é sempre acompanhada por uma redução da temperatura, por causa da diminuição da energia interna provocada pelo trabalho realizado pelo sistema. Já numa compressão adiabática observa-se um aumento da temperatura do gás, devido ao trabalho realizado sobre ele, aumentando assim a sua energia interna. 118 Para obtermos uma relação entre a temperatura e o volume num processo adiabático de um gás ideal, basta substituirmos a pressão na equação 4.27, utilizando-se a equação de estado dos gases ideais: nRT . Baseado nisso, faça as contas e mostre que: P V T f V f J 1 J 1 TV o TV J 1 i i (4.28) cte. Vamos determinar agora o trabalho realizado por um gás num processo adiabático, para variar a temperatura de um estado inicial até um estado final. Como , temos que . Como podemos utilizar a equação 4.23 para dU , temos que: Integrando essa equação temos: W f oi Wi o f nCMV T f Ti , ou seja, nCMV Ti T f . (4.29) Dessa forma, sabendo-se o número de moles e as temperaturas inicial e final pode-se calcular o trabalho a partir da equação 4.29. Essa equação pode ser reescrita utilizando-se a equação de estado dos gases ideais, para torná-la dependente da pressão e do volume: T PV , ou seja, Ti nR Wi o f PV i i e Tf nR Pf V f nR , logo: CMV (PPViVi PPVf Vf ), R CMV 1 (essa expressão pode ser obtida R J 1 CMP através da equação 4.21 e a relação J , faça essa demonstração CMV como exercício). Dessa maneira: Observe, porém, que Wi o f 1 (PPVV PPVf Vf ). J 1 i i (4.30) Analisando-se as equações (4.29) e (4.30), vemos que se o processo adiabático for uma expansão a temperatura do gás diminui ( T f Ti o Pf V f PV i i ), resultando num trabalho positivo, que por sua vez diminui a energia interna do gás. No caso de uma compres- 119 são ocorre o inverso e o trabalho é negativo. Vemos, portanto, que esses resultados condizem com as definições iniciais dos sinais do trabalho a partir da primeira lei da termodinâmica. 3 R , inicialmente a 2 10 atm e 0°C , sofre uma expansão adiabática reversível, como primeiro estágio num processo de liquefação do gás, até atingir a pressão atmosférica. Vamos considerá-lo como sendo um gás ideal. A partir daí: Exemplo 5. Um mol de gás Hélio, com CMV a) Calcule a temperatura final do gás. b) Calcule o trabalho realizado na expansão. Solução: a) Nesse processo, todas as três variáveis termodinâmicas variam (P, V e T). Assim, para determinar a temperatura final precisamos inicialmente calcular os volumes inicial e final. Para isso, vamos recorrer à equação de estado dos gases ideais (PV nRT ) lembrando que 10 atm 1, 013 u106 N/m 2 e 0°C 273K , logo: nRTi Pi Vi (1mol) (8,31 J/mol K) (273K) 1, 013 u106 N/m 2 2,2 u103 m3 2, 2 litros. 3 Sendo CMV R e usando a equação 4.21, obtemos que 2 5 CMP 5 . Dessa forma, podemos CMP R e, portanto, que J 2 CMV 3 utilizar a equação 4.27 para encontrar o volume final: Pf V f J J 5 2 5/3 PV i i o (1, 013 u 10 N/m ) V f Vf (1, 013 u106 N/m 2 ) (2, 2 u103 m3 )5/3 (10)3/5 (2, 2 u103 m3 ) 8, 75 u103 m3 8, 75 litros. Agora podemos utilizar novamente a equação de estado dos gases ideais para achar a temperatura do estado final, Tf Pf V f nR (1, 013 u105 N / m 2 )(8, 75 u103 m3 ) 107 K (1mol )(8,31J / mol.K ) b) Numa expansão adiabática temos que Usando a equação 4.29 temos que: 1660 C. , ou seja, . 120 (1, 013 u105 N/m 2 ) (8, 75 u103 m3 ) 107 K (1mol) (8,31 J/mol K) Pf V f Tf nR Wi o f 166°C. 2.069 J . 7 , à pressão de 1,0 atm 5 e temperatura de 27°C , é comprimido adiabaticamente até o volume de 0,5 litro e depois resfriado a volume constante até voltar à pressão inicial. Finalmente, por expansão isobárica, volta ao estado inicial. Considere como sendo um gás ideal. A partir daí: Exemplo 6. 1,0 litro de H 2 , para o qual J a) Represente o processo no plano PV , indicando P (atm) , V (litro) e T (K) para cada vértice do diagrama. b) Calcule o trabalho total realizado. Solução: a) Inicialmente, precisamos identificar os vértices A , B e C do diagrama a partir dos dados que já constam no problema. Assim: Em A : VA 1,0 litro , PA 1,0 atm e TA Em B : VB 0,5 litro , PB ? e TB Em C : VC 0,5 litro , PC 1,0 atm e TC 27°C 300 K ; ?; ?. Além disso, é importante identificar os processos que levam os valores de um vértice para outro: A o B : compressão adiabática; B o C : resfriamento a volume constante (isocórico); C o A : expansão a pressão constante (isobárico). Agora podemos começar a calcular os valores que faltam. No processo A o B usamos a equação 4.27 para encontrar PB : PBVB J PB PAVA J o PB (0,5 u103 m3 )7/5 (2)7/5 (1, 013 u105 N/m 2 ) (1, 013 u105 N/m 2 ) (1, 0 u103 m3 )7/5 2, 67 u105 N/m 2 2, 64 atm. Para encontrar TB , podemos utilizar a equação 4.16: 121 PBVB TB TB PAVA o TB TA (300 K) TA PBVB PAVA (0,5 litro) (2,64 atm) (1,0 litro) (1,0 atm) 396 K. A única variável que ainda falta calcular é TC e, como o processo B o C ocorre a volume constante, então podemos utilizar a seguinte relação: P T TC TB PC PB cte o PC TC PB TB § 1,0 atm · (396 K) ¨ ¸ 150 K. © 2,64 atm ¹ O diagrama PV desse processo está representado na figura 4.7: P (atm) 2,64 1,0 B TB = 396 K C A TA = 300 K TC = 150 K 0,5 1,0 V (litros) Figura 4.7 – Figura relativa ao exemplo 6. b) O trabalho total é igual à soma dos trabalhos em cada uma das etapas: Wtotal WAo B WB oC WC o A . Na etapa A o B , trata-se de um trabalho adiabático, portanto podemos utilizar tanto a equação 4.29 como a equação 4.30. Vamos usar aqui a primeira opção e fica a sugestão para você conferir o resultado com a outra equação. Assim: W Ao B nCMV (TA TB ) O número de moles pode ser determinado através da equação de esPAVA tado dos gases ideais, em que n . Além disso, vimos que para RTA 122 J 7 o CMV 5 W Ao B 5 R . Logo: 2 5 § PAVA · ¨ ¸ (TA TB ) 2 © TA ¹ 5 § (1, 013 u105 N/m 2 ) (1, 0 u103 m3 ) · ¨ ¸ (96 K) 2© 300 K ¹ O trabalho na etapa B o C é nulo, WB oC varia. 0 , porque o volume não Na etapa C o A , a pressão é constante, então utilizamos simplesmente a equação: WC o A P (VA VC ) (1, 013 u105 N/m 2 ) (0,5 u103 m3 ) 50, 6 J. Finalmente, o trabalho total é dado por: Wtotal WAo B WC o A 81J 50, 6 J 30, 4 J. Observe que o trabalho total é negativo, isso condiz com o fato de ser um processo cíclico no sentido anti-horário, como discutido anteriormente. Resumo A primeira lei da termodinâmica está relacionada com o princípio de conservação da energia interna de um sistema, e pode ser enunciada da seguinte forma: “A variação da energia interna de um sistema termodinâmico depende da realização de trabalho e da transferência de calor entre o sistema e sua vizinhança”. A expressão matemática que identifica a primeira lei é: 'U Q Wi o f , onde se adota a seguinte convenção de sinais: r Q ! 0 , quando for transferido calor ao sistema, contribuindo para o aumento de U ; r Q 0 , quando for retirado calor do sistema, contribuindo para a diminuição de U ; r Wi o f ! 0, quando o sistema realiza trabalho, contribuindo para a diminuição de U ; 81J. 123 r Wi o f 0 , quando é realizado trabalho sobre o sistema, contribuindo para o aumento de U . O caminho percorrido pelo sistema entre um estado inicial e final só é conhecido se o processo termodinâmico for reversível, para isso, ele deve necessariamente ocorrer de forma quase estática. Essa condição é essencial para permitir o cálculo do trabalho realizado e o calor transferido em um sistema. Processos termodinâmicos: a) Adiabático: o sistema não troca calor com o ambiente, Q 0 ; b) Isocórico: o volume permanece constante e, em geral, Wi o f 0; c) Isobárico: a pressão permanece constante; d) Isotérmico: a temperatura permanece constante; e) Cíclico: o sistema retorna ao estado inicial, 'U ciclo 0. A equação de estado dos gases ideais é dada por: PV nRT , onde R 8,314 J/mol K é a constante universal dos gases ideais e n é o número de moles. A energia interna de um gás ideal depende apenas da temperatura: U U (T ) . Exercícios 1) Considere uma expansão isobárica de um gás com P1 3,0 atm , de V1 1,0 litro até V2 3,0 litros . Na sequência, considere o gás sendo resfriado a volume constante até P1 2, 0 atm . A variação da energia interna total é de 456 J . Utilize a relação 1 atm litro 101,3 J . A partir daí: a) Ilustre o diagrama PV destes processos. b) Qual o calor transferido durante o processo total? Resposta: b) Q 1064 J . 124 2) Um litro de água, ao vaporizar-se a 100°C numa panela aberta, produz 1, 671m3 de vapor d’água. O calor latente de vaporização da água é igual a 2, 26 u106 J/Kg . Lembre-se que 1,0 atm 1, 013 u105 Pa . Sendo assim: a) Determine o trabalho realizado no processo de vaporização. b) Qual a variação da energia interna nesse processo? Resposta: a) Wvapor b) 'U 1, 69 u105 J ; 20,9 u105 J . 3) De acordo com o diagrama da figura 4.7 a seguir, um fluido pode passar do estado inicial ( i ) ao estado final ( f ) por dois caminhos: ( iaf ) e ( ibf ). A diferença de energia interna é 'U U f U i 50 J . O trabalho realizado pelo sistema ao ir de i o f pelo caminho ibf é de 100 J , e o trabalho realizado pelo sistema no ciclo completo ( iafbi ) é de 200 J . P Pf a f c Pi b i Vi Vf V Figura 4.8 – Diagrama do Problema 3. A partir desses dados, determine: a) Qibf ; b) Wa o f ; c) Qiaf ; e d) se o sistema regressar de f o i seguindo a diagonal pelo caminho fci , encontre W fci e Q fci . Resposta: a) 150 J ; b) 300 J ; 125 c) 350 J ; e d) W fci 200 J e Q fci 250 J . 4) O diagrama PV da figura 4.8 a seguir indica uma série de processos termodinâmicos. No processo ab, 150 J de calor são fornecidos ao sistema; no processo bd, 600 J de calor são fornecidos ao sistema e no processo ac a energia interna do sistema não variou. A partir desses dados, complete a tabela 4.3. P (Pa) 8,0.104 b d 3,0.104 a c 2,0.10−3 5,0.10−3 V (m−3) Figura 4.9 – Diagrama do Problema 4. Etapa Q(J) W(J) Etapa Q(J) W(J) ab 150 0 150 bd 600 240 360 abd 750 240 510 ac 90 90 0 cd 510 0 510 acd 600 90 510 ab bd abd ac cd acd Resposta: 126 5) Um litro de nitrogênio gasoso a 40°C e sob pressão de 3,0 cmHg expande-se até atingir um volume de 2,0 litros sob pressão de 4,0 cmHg . Considere o sistema como sendo um gás ideal e determine: a) A quantidade de nitrogênio expressa em moles; b) A temperatura final do sistema. Resposta: a) n 1,5 u103 moles ; b) T f 834, 7 K . 6) Um cilindro com um pistão submetido à pressão atmosférica contém 1,0 litro de ar a 27°C . Considere o ar como um gás ideal com CMV 20,8 J/mol K e J 1, 40 . Dessa maneira, calcule: a) Qual a pressão e a temperatura final do ar se ele sofrer uma 1 compressão adiabática e seu volume for reduzido a do 15 volume inicial? b) Qual é o trabalho realizado pelo ar nesse processo? Resposta: a) Pf b) Wi o f 44 atm e T f 613°C ; 494 J . 3 R descre2 ve o ciclo no plano PT, representado na figura 4.9 a seguir. Sendo assim: P (atm) a) Determine P em atm e V em litros nos pontos A , A B e C e desenhe o plano PV desse processo. Pi 7) Considere que 0,1mol de um gás ideal com CMV b) Calcule Q e W e 'U para as etapas AB , BC , CA e ABCA . 1,0 C B 300 600 T (k) Figura 4.10 – Diagrama do Problema 7. 127 Resposta: a) PA PC VB VC 2,0 atm , PB 2, 46 litros ; 1,0 atm e VA 1, 23 litros , b) Valores obtidos: Etapa Q(J) W(J) AB 173 173 0 BC 374 0 374 CA -623 -249 -374 ABCA -76 -76 0 Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. v. 2. SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. RESNICK, R.; HALLIDAY, D. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. v. 2. TIPLER, Paul A.; MOSCA, Gene. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. v. 1. Bibliografia complementar comentada SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. Você pode obter mais detalhes sobre sistemas termodinâmicos na seção 17.2 Sistemas termodinâmicos. KUHN, Thomas S. A tensão essencial. Lisboa: Edições 70, 1989. Uma leitura bastante interessante sobre a descoberta da primeira lei da termodinâmica se encontra no capítulo 4 A conservação da energia, como exemplo de descoberta simultânea. 128 RESNICK, R.; HALLIDAY, D. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. v. 2. Existe uma discussão interessante sobre a relação entre calor e trabalho na primeira lei da termodinâmica, na seção 22.6 Calor e trabalho. Para saber mais sobre gases ideais, sugerimos a leitura do Capítulo 23 “Teoria cinética dos gases I, seção 23.1 e 23.2”. NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de Física Básica. São Paulo: Editora Edgard Blücher LTDA, 1997. v. 2. Para saber mais sobre processos reversíveis, sugerimos a leitura da seção 8.6 Processos reversíveis. Capítulo 5 Teoria Cinética dos Gases Capítulo 5 Teoria Cinética dos Gases Ao final deste Capítulo você deve ser capaz de relacionar grandezas termodinâmicas, como pressão e temperatura, com médias de propriedades moleculares. Além disso, deve ser capaz de discutir a primeira aproximação mais sofisticada que o gás ideal, o chamado gás de Van der Waals. 5.1 Introdução Mecânica Estatística É uma teoria fundamental em Física e que procura prever o comportamento macroscópico de sistemas físicos a partir de métodos estatísticos aplicados aos constituintes microscópicos desses sistemas. Nos dois Capítulos anteriores, estudamos a Termodinâmica, que tem como objeto de estudo corpos macroscópicos, sem preocupação com aspectos ou detalhes microscópicos. Foi possível, então, estabelecer várias relações entre grandezas termodinâmicas, as quais devem ser respeitadas por quaisquer sistemas físicos macroscópicos. Neste Capítulo, iremos discutir a primeira tentativa de conectar as grandezas termodinâmicas, estudadas anteriormente, com médias obtidas em nível microscópico. Essa é a primeira estratégia para ligar os mundos macroscópico e microscópico. Uma segunda teoria, a Mecânica Estatística, será vista apenas de forma introdutória, mais adiante no curso. Iremos ver que a pressão está relacionada à média da velocidade ao quadrado das partículas e que a temperatura está ligada à energia cinética média de um gás ideal. Discutiremos, então, a energia interna de um gás ideal e, depois, estudaremos a primeira aproximação mais sofisticada que o gás ideal, o fluido de Van der Waals. 5.2 Modelo de gás ideal Iremos agora, pela primeira vez, recorrer a modelos microscópicos para estudar sistemas termodinâmicos. Como em todas as áreas da Física, a ideia inicial ao se modelar um sistema é reter os ingredientes físicos fundamentais deste, de tal forma que o modelo possa ser 132 matematicamente estudado e ainda descreva bem o que acontece na experiência. Um gás em um determinado volume, mesmo que em equilíbrio, é um sistema bastante complexo. O estudo desse sistema através da Mecânica Newtoniana é impossível, do ponto de vista prático e matemático, e indesejável, do ponto de vista físico. Mesmo que soubéssemos todas as posições e velocidades das partículas em cada instante, esses dados dariam pouquíssima (ou nenhuma) informação sobre o comportamento do sistema. No entanto, usaremos o fato do número de partículas do gás ser muito grande para relacionar grandezas macroscópicas com médias de grandezas microscópicas. Exemplo 1. Considere aproximadamente um mol de um gás, ou seja, da ordem de 6 u1023 moléculas. Calcule o espaço, em gigabytes, necessário para guardar as posições e velocidades iniciais desse sistema em três dimensões. Quantos computadores seriam necessários para armazenar essas grandezas, para todas as moléculas? Faça suposições sobre o tamanho típico de discos rígidos modernos e calcule o número de computadores necessários por habitante da Terra. Comente. Solução: Para cada partícula, há seis grandezas a serem guardadas, três componentes da posição e três componentes da velocidade. Assim, o número total de grandezas a ser guardada é 6 u 6 u1023 1024 , onde o sinal significa que iremos nos preocupar apenas com ordens de grandeza. Suponhamos agora que cada grandeza ocupe 4 bytes em um computador (esse é o espaço ocupado por um número real de precisão simples na linguagem Fortran). Assim, são necessários 4 u1024 1024 bytes para armazenar essa informação. Vamos supor que cada computador tenha um disco rígido de 200 Gigabytes 200 u109 bytes 1011 bytes. Assim, supondo que cada computador tenha um disco rígido apenas, são necessários 1024 /1011 1013 computadores. Supondo que a população da Terra seja da ordem de 1010 humanos, serão necessários 1.000 computadores por habitante da Terra apenas para guardar as posições e velocidades iniciais de um mol de um gás. Nossa estimativa está subestimada e ainda teríamos que usar mais computadores caso fosse necessário guardar grandezas ligadas à estrutura interna das moléculas. Assim, vemos que, tecnicamente, esse caminho é inviável. Por outro lado, as restri- Bytes Em se tratando de computadores, a informação é guardada em unidades fundamentais chamadas bits, e cada bit assume o valor 0 ou 1. Um byte são 8 bits, ou seja, uma sequência de 8 zeros ou uns. 133 ções de ordem matemática (resolver a segunda Lei de Newton para essas 6 u1023 moléculas é virtualmente irrealizável, pois as equações são acopladas, isto é, as grandezas para uma molécula dependem de grandezas de muitas outras) e física (que informação útil teríamos por saber a posição e velocidade de todas essas moléculas?) são ainda mais importantes. Para simplificar esse panorama, vamos introduzir o modelo microscópico de gás ideal, consistente com o comportamento desse tipo de gás (discutido no Capítulo 4). Esse modelo está baseado nas seguintes hipóteses: 1) O gás é constituído de partículas. Estas podem ter estrutura interna (serem, por exemplo, moléculas) ou não; essa característica não será relevante em nosso tratamento (veja item 6 abaixo); 2) As moléculas seguem um movimento desordenado, colidindo eventualmente umas com as outras e com as paredes do recipiente. Vamos supor que esse movimento seja bem descrito pela Mecânica Newtoniana; 3) Para que as médias descrevam bem o comportamento das partículas, vamos supor que o número destas seja muito grande (lembre-se que uma média só descreve apropriadamente o comportamento de um sistema quando o número de eventos tende a infinito); 4) O volume do recipiente é muito maior que o volume ocupado por todas as partículas; 5) Devido ao item anterior, é razoável supor que as interações entre as partículas não sejam relevantes, a não ser quando elas colidem umas com as outras. Em outras palavras, vamos supor que as interações moleculares tenham alcance da ordem do tamanho molecular. Como as partículas, em média, estão muito afastadas umas das outras (veja item 4), as interações só serão relevantes quando elas colidirem; 6) As colisões têm duração desprezível e são, em média, elásticas. Quando as partículas colidem, a energia cinética destas pode ser transformada em energia interna. Suponhamos, entretanto, que essa energia interna rapidamente se transforme de volta 134 em energia cinética, de modo que esta se conserve, em média, ao longo do tempo. Em nossos cálculos, vamos usar a aproximação de que cada colisão individualmente seja elástica. Essa suposição simplifica os cálculos e não modifica o resultado em relação à situação mais realista discutida anteriormente. 5.3 Pressão Vamos relacionar a pressão a grandezas médias microscópicas. Pressão é força por unidade de área; por outro lado, força é variação de momento linear por unidade de tempo. Para simplificar nossos cálculos, vamos supor um recipiente cúbico de lado L , que a força sofrida por uma molécula ao colidir com uma parede tenha direção perpendicular a esta e apenas inverta o valor do momento linear nessa direção. Assim, uma colisão com a parede em x L (veja figura 5.1 a seguir) muda a componente x do momento linear da partícula, invertendo-o. Dessa forma, a variação do momento linear na direção x é dada por 'px mvx mvx 2mvx , que é o momento final menos o momento inicial. Pela terceira Lei de Newton, a variação do momento linear da parede será então 2mvx . Justifique essa afirmação. y L v v’ L x L z Figura 5.1 – Recipiente cúbico onde se encontra o gás. É mostrada apenas uma partícula e sua colisão com a parede em x = L. Depois dessa colisão a componente x da velocidade da partícula é invertida mas as componentes y e z se mantêm inalteraG G das. Assim, v ' difere de v apenas na componente x, a qual muda de sinal na colisão. É suposto que todas as colisões com as paredes tenham a característica de apenas inverter a componente da velocidade na direção perpendicular à parede. Momento linear p é definido como o produto da massa m da partícula pela sua velocidade v: p = mv. 135 Decidimos representar densidade de partículas por n e reservar a letra U para densidade de massa. Vamos agora calcular a transferência média de momento para a parede, devido às colisões de várias partículas. Nem todas as partículas que colidem com a parede têm a mesma velocidade; por praticidade, vamos supor que há partículas por unidade de volume com veloG G cidade v1 , n2 partículas por unidade de volume com velocidade v2 , e assim por diante. O número total de partículas por unidade de volume ( n ) é dado por n n1 n2 ... nn . Em um intervalo de tempo dt , as partículas que colidirão com uma superfície 'S (veja a figura 5.2 a seguir) na parede da direita, por exemplo, serão aquelas que G estiverem em um cilindro de base 'S e geratriz v1dt (isso porque G apenas partículas com velocidade v1 que estejam dentro desse cilindro irão alcançar a parede na superfície 'S após um intervalo de tempo dt . Assim, o número total de partículas com essa velocidade que colidem com a parede é dado pelo número de partículas por unidade de volume vezes o volume do cilindro apresentado pela figura 5.2, ou seja: 'n1 n1v1x 'Sdt. (5.1) Note que 'ni é o número de partículas, enquanto ni representa densidade de partículas, ou seja, número de partículas por unidade de volume. Cada uma dessas partículas transferirá um momento 'px 2mvx para a parede. Assim, o momento total transferido por todas as partículas no cilindro em questão será de: dp1x 'n1'p1x 2mn1v12x 'Sdt. (5.2) A força feita por essas partículas é a transferência de momento por unidade de tempo: 'F1x dp1x dt 2mn1v12x 'S . (5.3) Dessa forma, a contribuição dessas partículas para a pressão P1 é dada por: 'F1x P1 2mn1v12x . (5.4) 'S Aqui cabe uma observação importante: ao fazermos os cálculos das equações 5.1, 5.2, 5.3 e 5.4, usamos apenas o módulo da velocidade, portanto entrarão em nossa conta partículas com velocidade orien- 136 tada para a direita, que irão efetivamente colidir com a parede, e também partículas com velocidade orientada para a esquerda, as quais não irão colidir com a parede e não contribuirão para a pressão. Supondo que o número de partículas que tenha velocidade Vx para a direita seja o mesmo que o número de partículas que tenha velocidade Vx para a esquerda (ou seja, que a distribuição de velocidades seja isotrópica), tomamos como resultado final para P1 metade do valor expresso pela equação 5.4: P1 mn1v12x . (5.5) G Figura 5.2 – Cilindro definido pela base 'S e pela geratriz v1't . As partículas G com velocidade v1 e que estiverem dentro desse cilindro colidirão com a parede do recipiente em um intervalo de tempo 't . G G Levando em consideração partículas com outras velocidades ( v2 , v3 etc.), a pressão total será: P m¦ ni vix2 , (5.6) i onde ni é o número de partículas por unidade de volume com veG locidade vi e vix a componente x dessa velocidade. O somatório é feito sobre todas as possíveis velocidades. Note que o valor médio de vx2 , vx2 , é dado por: vx2 n1v12x n2v22x n3v32x .... n1 n2 n3 ... ¦n v 2 i ix i n . (5.7) 137 No entanto, o numerador do lado direito da equação 5.7 é exatamente igual ao somatório apresentado na equação 5.6. Assim, adotando ¦ nivix2 n vx2 obtemos: i P nm vx2 . (5.8) A velocidade ao quadrado ( v 2 ), porém, é dada por v 2 vx2 v y2 vz2 , e como a média de uma soma é a soma das médias, obtemos: v2 vx2 v y2 vz2 3 vx2 . Para a última igualdade nessa equa- ção, supomos que todas as direções no recipiente sejam equivalentes, ou seja, vx2 v y2 vz2 (desprezamos aqui efeitos gravitacio- nais). Note que essa igualdade só é verdadeira em média! A equação 5.8 pode então ser reescrita como: P 1 nm v 2 . 3 (5.9) Como adiantado na introdução, relacionamos uma grandeza termodinâmica (a pressão P) à média da velocidade ao quadrado das partículas do gás, esta uma grandeza microscópica. Como n é o número de partículas por unidade de volume e m a massa de cada partícula, nm é a massa do gás por unidade de volume, ou seja, sua densidade U. Escrevemos então: P 1 U v2 3 1 Mt 2 v 3 V 2 EC , 3 V (5.10) onde M t é a massa total do gás, V seu volume e EC M t v2 2 a sua energia cinética média total. Assim, a pressão de um gás é 2 3 da densidade de energia cinética média total de suas partículas. Exemplo 2. Note que, a partir da equação 5.10, podemos calcular a ¢v 2 ² ) das moléculas de um velocidade média quadrática ( vrms gás a partir de valores medidos de sua pressão e densidade, atra¢v 2 ² = vés de vrms . Para o oxigênio, nas condições normais de temperatura e pressão (CNTP), em que T 273K , P 1atm 1, 01u105 N/m 2 , sua densidade é U 1, 43Kg/m3 . A sua velocidade média quadrática é então dada por 461m/s . A velocidade quadrática 138 média de diferentes gases é da mesma ordem de grandeza da velocidade do som neles. Discuta com colegas o porquê desse resultado. 5.4 Temperatura: interpretação cinética Vamos agora interpretar a temperatura em termos de grandezas microscópicas. Multiplicando a equação 5.10 pelo volume V do gás, obtemos: PV = U V ¢v 2 ² / 3 . (5.11) No entanto, pela equação de estado do gás ideal temos que PV nRT Nk BT , onde n é o número de moles, R a constante dos gases, N o número de partículas, k B a constante de Boltzmann e T a temperatura. Além disso, rUV é a massa total do gás, e pode ser escrita como nM ou Nm , onde M é a massa molar do gás e m a massa de cada partícula. Aplicando essas considerações à equação 5.11, temos: Nk BT 1 Nm¢v 2 ² . 3 (5.12) A partir daí, podemos reescrever a equação 5.12 como: 1 m¢ v 2 ² 2 3 k BT . 2 (5.13) Essa expressão pode ainda ser reescrita como (faça os cálculos necessários): 1 3 M ¢v 2 ² RT . (5.14) 2 2 considerando-se R k B N A , onde R é a constante dos gases e N A 6, 02 u1023 mol1 como sendo o número de Avogadro. Vemos então que a temperatura, uma grandeza termodinâmica, está associada à energia cinética média de uma molécula (ou, de forma equivalente, de um mol da substância), a qual é uma grandeza microscópica. O modelo microscópico de um gás ideal supõe que não haja interação entre as partículas, de modo que a energia interna do gás é apenas a soma das energias cinéticas de cada partícula. Como a energia cinética 139 está ligada apenas à temperatura do gás (veja a equação 5.14), obtemos o resultado já conhecido de que a energia interna de um gás ideal depende apenas de sua temperatura. Acompanhe a tabela 5.1 a seguir. Gás Energia cinética de translação ) média por mol ( Hidrogênio 3.720 Hélio 3.750 Nitrogênio 3.740 Oxigênio 3.730 Dióxido de Carbono 3.730 Tabela 5.1 – Alguns gases, suas respectivas energias cinéticas de translação médias por mol a T 300 K . Exemplo 3. Calcule a energia cinética de translação média de acordo com a Teoria Cinética dos Gases e compare com os dados da Tabela 5.1. Comente. Solução: De acordo com a equação 5.14, essa energia média é dada, para o gás ideal, por: T 3 8,31(J/mol K) 300 (K) 3739,5 J/mol. 2 Comparando o resultado com os dados da Tabela 5.1, vemos que os valores da tabela estão bem próximos da previsão teórica da equação. A maior discrepância é de 0,5% para o Hidrogênio. O desacordo pode ser entendido como uma medida de quanto o gás se desvia do comportamento ideal. Na próxima Seção, iremos um passo adiante da aproximação de gás ideal. 5.5 Fluido de Van der Waals Vamos agora estudar um modelo proposto pelo físico Johannes Diderik Van der Waals em 1873 para estudar fluidos em circunstâncias tais que a equação de estado de gases ideais não os descrevia adequadamente. Para isso, partiremos desta equação de estado e introduziremos os efeitos de interação entre as partículas do fluido. 140 Em nosso modelo de gás ideal, fizemos a suposição que as partículas do gás interagem apenas durante o curtíssimo espaço de tempo de uma colisão. Em situações gerais, essa aproximação não descreve bem o sistema. Assim, por exemplo, o modelo de gás ideal não prevê a transição de fase da água: esta passa de vapor a líquido, quando se abaixa a temperatura a 373,16 K na pressão de 1 atm . Na verdade, a aproximação de gás ideal não prevê transição de fase alguma. Para construir um modelo mais realista, vamos levar em conta, pelo menos de forma aproximada, a interação entre as moléculas. Essa interação tem a energia potencial, entre duas moléculas, U (r ) , representada por (a) na figura 5.3, onde r é a distância entre as partículas (talvez seja uma boa hora de relembrar o que foi visto em Física Básica B sobre energia potencial). A força entre essas moléculas é dada por F (r ) dU / dr e está representada por (b) na figura 5.3. Podemos, simplificadamente, supor que os ingredientes básicos são uma forte repulsão ( F ! 0) a curta distância (r r0 ) e uma atração ( F 0) não tão forte a distância média (r ! r0 ) mas não muito grande). A longas distâncias (r r0 ) , a interação é desprezível. V(r) F(r) r0 r0 r r A B Figura 5.3 – (a) Energia potencial entre duas moléculas de um fluido, em função da distância entre as moléculas, representando uma forte repulsão de curto alcance e uma atração a médio alcance; (b) Força derivada da energia potencial representada por (a) na figura 5.3. Assim, nosso modelo irá incorporar essa repulsão a curtas distâncias (a) e a atração a médias distâncias (b) da seguinte forma: a) No modelo de gás ideal, o volume acessível ao gás é todo o volume do recipiente. Agora tratemos as moléculas como bolas de bilhar e, então, suponhamos que seus centros não podem se aproximar mais que o “diâmetro” da molécula. Assim, cada molécula cria em torno de si um volume excluído, dentro do 141 qual nenhuma outra molécula consegue entrar. Veja a representação desta situação na figura 5.4 a seguir. Essa aproximação é por isso chamada de aproximação de bola de bilhar ou aproximação de caroço duro. R 2R Figura 5.4 – A molécula da esquerda cria um volume excluído ao seu redor, e a distância entre seu centro e o da molécula à direita não pode ser menor que 2R, onde R é o “raio” da molécula. Assim, na equação de estado do gás ideal, substituímos V por V bN , onde b é uma constante dependente da geometria da molécula e N o número de moléculas do gás. Note: supomos que o volume excluído é proporcional ao número de moléculas, o que é razoável. Assim, temos a equação: P( p V bN ) Nk BT ; (5.15) b) Vamos incluir a atração a médias distâncias no cálculo da pressão. Como vimos na Seção 5.2, essa grandeza está ligada à taxa de transferência de momento linear para as paredes. O momento linear é proporcional à velocidade da partícula; assim, quanto maior essa velocidade, maior o momento a ser transferido à parede e maior a pressão. Quando as partículas se atraem, a médias distâncias, uma partícula que irá se chocar com a parede direita do recipiente (veja a figura 5.5 a seguir) será atraída, em média, para o lado esquerdo, visto que a maioria das outras moléculas estará à esquerda da partícula. Assim, a componente de sua velocidade perpendicular à parede será menor que no caso de não haver interação (a partícula é freada por essas interações) e seu momento será consequentemente menor. Logo, a transferência de momento será menor que no caso do gás ideal e a pressão será também diminuída. 142 Essa diminuição está ligada à interação atrativa entre pares de moléculas e é proporcional ao quadrado da densidade de partículas ( N / V ) 2 pela seguinte razão: a força sobre cada molécula que irá bater numa parede do recipiente é proporcional à densidade de partículas (quanto maior a densidade, maior a força que a partícula sentirá, nesse caso para a esquerda). Assim, a variação de momento devida a uma partícula será proporcional a essa força, a qual é proporcional à densidade, mas a variação total de momento transferido à parede é proporcional ao número de partículas que colidem com esta, e essa grandeza também é proporcional à densidade. Dessa forma, esses dois efeitos levam a uma dependência com a densidade ao quadrado. Isolando a pressão na equação 5.15, obtemos: p P Nk BT ., (V bN ) Essa seria a pressão caso não houvesse as interações atrativas. Como discutido até aqui, essas interações diminuem a pressão, com uma contribuição proporcional a ( N / V ) 2 . Chamando essa constante de proporcionalidade de a , temos então a equação: 2 P p Nk BT §N· a¨ ¸ . (V bN ) ©V ¹ (5.16) v F Figura 5.5 – A molécula mais à direita é atraída pelas moléculas à sua esquerda e, devido a essa atração, deixa de colidir com a parede à direita ou colide com ela em velocidade menor (em relação àquela com que colidiria caso não houvesse a atração). Em ambos os casos, a transferência de momento para a parede seria menor, diminuindo, portanto, a pressão do gás. 143 Usualmente, a equação 5.16 é escrita nesta forma: § N2 · P a ¨ ¸ (V bN ) V2 ¹ © (5.17) Nk BT ou, de forma equivalente: a· § ¨ P 2 ¸ (v b ) v ¹ © k BT (5.18) onde v é o volume por partícula. As isotermas (T constante) correspondentes a essa equação estão representadas na figura 5.6 a seguir. Para T Tc e P < Pc , há três soluções para v. Isso é esperado, pois a equação de Van der Waals é de 3º grau em v. De fato, multiplicando a equação 5.18 por v², obtemos: (5.19) ou seja: Pv 3 (k BT bP )v 2 av ab 0. (5.20) À medida que T aumenta, as três soluções em v se aproximam e eventualmente se tornam uma só. Esse é o ponto crítico C: sua temperatura é chamada de temperatura crítica (Tc) e sua pressão é chamada de pressão crítica (Pc). Para valores de P acima de Pc ou T acima de Tc, duas das soluções para v se tornam pares complexos conjugados e apenas uma, entre as três soluções matemáticas, tem sentido físico. Assim, para esses intervalos de P e T há apenas uma solução, como mostrado na figura 5.6 a seguir. Note que, para T Tc , a curva é a P u v dada pela equação de estado do gás ideal, P k BT / v . 144 P Pc C T >> Tc T > Tc T = Tc T < Tc vc v Figura 5.6 – Isotermas obtidas a partir da equação de Van der Waals. Para T < Tc e para certos valores da pressão P há três soluções fisicamente aceitáveis para o volume v por partícula. Exatamente em T = Tc, as três soluções possíveis se transformam em uma só, que é uma raiz tripla em v da equação de Van der Waals. Para T > Tc, há apenas uma solução com sentido físico (as outras duas são um par complexo conjugado) e, para T >> Tc, a curva obtida é a de um gás ideal. Sempre que diminuímos a pressão, para T Tc , o fluido sofre uma transição de fase dita de primeira ordem, passando de líquido a gasoso. Essa transição desaparece para T ! Tc e, exatamente em T Tc , a transição tem um caráter especial que a difere daquela de primeira ordem. Resumo Neste Capítulo introduzimos os primeiros modelos microscópicos para o estudo de fluidos: o modelo de gás ideal e o modelo de Van der Waals. O primeiro modelo descreve os gases como compostos de um número de partículas muito grande, ocupando um volume bem menor que o volume do recipiente e com interação desprezível entre as partículas. O segundo modelo leva em consideração alguns aspectos importantes dos gases quando estes não satisfazem a condição de gás ideal. 145 Questões 1) Quando se abre um frasco de perfume em um canto de uma sala, o cheiro do perfume demora um certo tempo para chegar à outra extremidade. Como você explica esse fato, se as velocidades médias quadráticas nos gases são da ordem de centenas ou milhares de metros por segundo? 2) A velocidade de escape ( ve ) de uma partícula na superfície de um planeta é a velocidade mínima que permite à partícula escapar da atração gravitacional desse planeta (releia essa parte da disciplina Física Básica B). Essa velocidade é dada 2GM R , onde G é a constante gravitacional, M é por ve a massa e R o raio do planeta. Pesquise esses valores para a Terra e a Lua. Depois compare a velocidade de escape nesses dois planetas com a velocidade quadrática média (ver equação 5.9) para os gases mais comuns na atmosfera da Terra, para as temperaturas típicas na superfície da Terra e da Lua. Por que há atmosfera na Terra, mas não na Lua? 3) Um gás cujas moléculas possam ser supostas como pontos geométricos perfeitos pode respeitar a lei de gás ideal? 4) Mostre que, quanto mais rarefeito o fluido de Van der Waals, maior o volume molar. Mostre também que, para volumes molares grandes, obtém-se a equação de estado de um gás ideal. Problemas 1) Suponha a temperatura da atmosfera da Terra constante e igual a T, e que a variação de pressão com a altura y, na atmos Mgy RT fera da Terra, é dada por P P0 e , onde P0 é a pressão na superfície da Terra e M a massa molar do ar. A partir daí, mostre que o número de moléculas por unidade de volume ( nV ) é dado por nP nP0 e( Mgy RT ) , onde nV 0 é o número de moléculas por unidade de volume na superfície da Terra. 2) A velocidade do som em gases diferentes e à mesma temperatura depende da massa molar dos gases. Mostre que v1 v2 M 2 M 1 , onde M 1 é a massa molar do gás 1 e M 2 a 146 massa molar do gás 2 (considere o mesmo para as velocidades v1 e v2 , respectivamente). Discuta como esse fato pode ser usado para separar gases com diferentes massas molares através de difusão. 3) Mostre que a equação de Van der Waals (ver equação 5.18) pode ainda ser reescrita, usando o número de moles n ao invés do número de partículas N , desta maneira: 1· § ¨ P ã 2 ¸ (v b ) v ¹ © onde a a ( N / n) 2 e b RT b(b / n) , e v é o volume molar, v { V / n . Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. v. 2. RESNICK, R.; HALLIDAY, D.; KRANE, K. S. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. v. 2. SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. TIPLER, Paul A.; MOSCA, Gene. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. v. 1. Capítulo 6 Segunda Lei da Termodinâmica e Entropia Capítulo 6 Segunda Lei da Termodinâmica e Entropia Após a leitura e o estudo desse Capítulo você poderá compreender o funcionamento das maquinas térmicas, utilizar esse conceito na modelagem de motores e refrigeradores como máquinas térmicas idealizadas e, também, discutir o conceito de entropia, ligando-o aos enunciados da Segunda Lei da Termodinâmica e ao conceito de “seta do tempo”. 6.1 Introdução Como vimos no Capítulo 4, a Primeira Lei da Termodinâmica referese também à conservação de energia, e qualquer processo físico tem que respeitar essa lei. Entretanto, vários processos não são observados na natureza, apesar de obedecerem à Primeira Lei. Assim, podemos citar, por exemplo, os seguintes fenômenos: a) Quando um bloco desliza com atrito sobre um plano inclinado, ele pode eventualmente chegar ao repouso. Sua energia potencial se transforma em energia cinética, à medida que ele desce o plano, e esta se transforma em outros tipos de energia, devido ao atrito. Dentre esses tipos, o mais importante, em certas situações, é o calor. Assim, a Primeira Lei da Termodinâmica é obedecida e a energia potencial inicial transformase, no final do processo, em energia térmica (vamos desprezar aqui outras formas possíveis nas quais a energia potencial pode se transformar, como, por exemplo, energia sonora e eletromagnética). No entanto, o que impede o calor gerado pelo atrito de ser devolvido ao bloco e este subir o plano inclinado e voltar à posição inicial? A Primeira Lei não proíbe esse processo de acontecer, mas nós certamente estranharíamos se o bloco subisse espontaneamente o plano. Dessa forma, é criada 150 uma seta do tempo: o processo que ocorre na Natureza, espontaneamente, é aquele no qual o bloco desce o plano inclinado, e não o inverso. b) Um frasco de perfume aberto em um canto de uma sala irá permitir que as moléculas se espalhem pela sala e que, após algum tempo, uma pessoa no canto oposto ao do frasco sinta o odor do perfume. Entretanto, você não deve esperar que as moléculas de perfume se reorganizem e voltem para dentro do frasco espontaneamente. Da mesma forma, não acontece de o ar em um auditório, por exemplo, se concentrar espontaneamente em um canto deste e matar a plateia sufocada. Por mais estranho que esses processos possam parecer, nada na Mecânica Clássica ou na Mecânica Quântica os proíbe. No caso do perfume, se, após as moléculas se difundirem pela sala, invertêssemos exatamente a velocidade de cada molécula (obviamente, essa é uma experiência imaginária), elas iriam retornar ao frasco, invertendo exatamente suas trajetórias ao saírem dele. Mais uma vez, esse comportamento não é observado, apesar de permitido pelas leis físicas que já estudamos. Assim, podemos classificar como reversíveis as leis físicas fundamentais vistas até agora: elas não distinguem o passado do futuro ou, em outras palavras, qualquer evento realizado de uma determinada forma pode acontecer exatamente no sentido inverso no tempo. Como discutimos nos dois exemplos anteriores, porém, a natureza não se comporta dessa maneira. Um corpo deslizando com atrito em um plano inclinado, por exemplo, é um processo irreversível. A forma de compatibilizar as observações com a teoria está contida na Segunda Lei da Termodinâmica. Como a maior parte da Termodinâmica, a introdução dessa lei esteve associada a problemas práticos e à generalização de observações experimentais ligadas a máquinas térmicas. Assim, os enunciados de Clausius e Kelvin dessa lei estavam ligados ao comportamento dessas máquinas. Posteriormente, houve a introdução do conceito de entropia e, depois ainda, uma interpretação microscópica, a qual não iremos discutir neste texto, pois não é seu objetivo. 151 6.2 Segunda Lei da Termodinâmica: enunciados de Clausius e Kelvin O enunciado de Kelvin diz que não é possível a existência de um moto perpétuo, ou seja, de uma máquina que transforme totalmente calor em trabalho e retorne o sistema ao estado inicial. Mais formalmente, o enunciado é formulado da seguinte maneira: É impossível realizar um processo cujo único efeito seja remover calor de um reservatório térmico e produzir uma quantidade equivalente de trabalho. A palavra em negrito no enunciado é importante: único significa que, após o processo termodinâmico, o sistema voltou a seu estado inicial e o calor que ele absorveu de uma dada fonte foi totalmente transformado em trabalho. Um processo no qual o sistema volte a seu estado inicial é dito cíclico. Note que pode haver uma transformação na qual todo o calor absorvido seja transformado em trabalho mas o sistema não retorna ao estado inicial, no qual se encontrava antes da transformação. Considere, por exemplo, um recipiente de paredes diatérmicas (permitem troca de calor) e uma tampa móvel, com uma certa quantidade de areia sobre essa tampa (veja a figura 6.1 a seguir). A temperatura da substância dentro do recipiente é a mesma da vizinhança. Se retirarmos bem devagar grãos do monte de areia que está sobre a tampa, esta irá se mover para cima, pois a pressão exercida pela tampa e pelo monte de areia irá diminuir. Assim, a substância realizará trabalho, à medida que a tampa se move para cima. Como a temperatura permanecerá constante, e igual à da vizinhança, o sistema irá absorver calor dela. Se pudermos aproximar o gás no interior do recipiente por um sistema ideal, sua energia não irá mudar (a energia de um gás ideal depende apenas de sua temperatura), de modo que a Primeira Lei da Termodinâmica será escrita como: 'U 0 'Q 'W 'Q 'W . 152 Assim, todo o calor absorvido foi utilizado para realizar trabalho. O processo não viola o enunciado de Kelvin porque o sistema não volta a seu estado inicial no final da transformação. Ao final do processo, a pressão do gás diminuiu e seu volume aumentou. A B Figura 6.1 – (a) gás suposto ideal, a pressão P e temperatura T, em contato térmico e mecânico com a atmosfera, com uma determinada quantidade de areia sobre sua tampa; (b) quando parte dessa areia é retirada, bem devagar, o sistema absorve calor da atmosfera e realiza trabalho, elevando sua tampa. Note que o enunciado de Kelvin proíbe que ocorra espontaneamente o processo inverso de uma expansão livre, ou seja, uma compressão livre. Na expansão livre em um recipiente adiabático, não há troca de calor nem realização de trabalho e o volume do gás aumenta (de Vi para V f , suponha) e sua pressão diminui, permanecendo constante a temperatura (para um gás ideal). Assim, deveria ocorrer que 'Q 'W 0 descrito também para a suposta compressão espontânea, de modo que o volume iria de V f a Vi (onde Vi V f ). Se após essa compressão colocássemos o recipiente em contato com um reservatório térmico a pressão menor (e igual à pressão antes da compressão) e à mesma temperatura do sistema (como no parágrafo anterior), poderíamos fazer o sistema voltar à pressão original e sair do volume Vi e voltar ao volume V f , com 'Q 'W z 0 . Assim, teríamos feito um ciclo no qual todo o calor absorvido teria se transformado em trabalho, o que é proibido pelo enunciado de Kelvin. Neste Capítulo, iremos representar máquinas térmicas por diagramas. O diagrama de uma máquina térmica que receba calor e o transforme totalmente em trabalho está desenhado na figura 6.2. Reservatório térmico é um sistema físico capaz de manter a temperatura constante, independente de realizar trocas de calor com outros sistemas. Um exemplo razoável é nossa geladeira: ela deve manter constante a temperatura em seu interior, independente dos objetos que nela são colocados. 153 Fonte quente Q W Motor miraculoso Figura 6.2 – Diagrama representativo de um moto perpétuo ou motor miraculoso. O motor absorve uma quantidade de calor Q de um reservatório térmico (chamado de fonte quente) e o utiliza para realizar trabalho W , com W Q e de tal forma que o motor volte a seu estado inicial após o processo. Essa máquina é proibida pelo enunciado de Kelvin da segunda lei. Um outro enunciado possível para a segunda lei é o de Clausius. Ele proíbe que a condução de calor se dê de um corpo mais frio para um mais quente sem outro processo envolvido. Explicitamente: É impossível realizar um processo cujo único efeito seja transferir calor de um corpo mais frio a um corpo mais quente. De novo, a existência da palavra único é fundamental: ela implica que estamos falando de um ciclo. Caso a transformação termodinâmica não seja um ciclo, ela não é proibida pelo enunciado de Clausius. Assim, por exemplo, suponha um recipiente de tampa móvel com um determinado gás e dois corpos: um frio, a temperatura T1, e outro quente, a temperatura T2 ! T1. Esse gás pode absorver calor (Q ) do corpo mais frio e realizar trabalho ( W ) em uma expansão isotérmica, pois a temperatura é constante e igual a T1 (veja o exemplo a na figura 6.3 a seguir). Em seguida o gás é comprimido adiabaticamente até chegar à temperatura T2 , sendo realizado um trabalho W1 sobre ele (veja o exemplo b na figura 6.3). Em uma terceira etapa, o gás é colocado em contato com o corpo a temperatura T2 e comprimido isotermicamente, sendo realizado um trabalho W2 sobre o gás e transferido calor Q para o corpo quente (ver exemplo c na figura 6.3). Nada impede que o trabalho total realizado sobre o gás seja nulo (note que, pela convenção, W é positivo mas W1 e W2 são negativos) e, nesse caso, foi retirado calor de um corpo mais quente e cedido a um corpo mais frio. O processo não viola o enunciado de Clausius porque o gás não volta a seu estado inicial no final da transformação: sua temperatura aumentou de T1 para T2 . O diagrama dessa transfor- 154 mação está representado na figura 6.4 a seguir e modela o comportamento de um refrigerador. O processo não viola o enunciado de Clausius porque o sistema não volta a seu estado inicial no final da transformação. W W2 W1 gás gás T1 Q T2 Q B A C Figura 6.3 – Paredes duplas representam paredes adiabáticas neste desenho. (a) Expansão isotérmica, em contato com um corpo “frio” a temperatura T1 ; (b) compressão adiabática até a temperatura chegar a T2 ; (c) compressão isotérmica a temperatura T2 de modo a que o trabalho total seja nulo. 2 = 0 1 Figura 6.4 – Diagrama PV de uma transformação na qual calor é retirado de um corpo mais frio (temperatura T1 ) e cedido a um corpo mais quente (temperatura T2 ). O trecho ia corresponde à expansão isotérmica a temperatura T1, o trecho ab a uma compressão adiabática, levando a temperatura de T1 a T2, e o trecho bf a uma compressão isotérmica a temperatura T2. O diagrama é construído de modo que a área hachurada seja igual à 155 área em cinza e o trabalho total seja zero (lembre-se que o trabalho é a área abaixo da curva P P (V ) no diagrama PV). O estado final do gás, claramente, é diferente do inicial. Na figura 6.5 a seguir representamos o esquema de um refrigerador miraculoso ou perfeito, o qual é proibido pelo enunciado de Clausius, operando entre uma fonte fria a temperatura T1 e uma fonte quente a temperatura T2 . T1<T2 Q Refrigerador miraculoso Q T2 Figura 6.5 – Esquema de um refrigerador miraculoso, no qual o único processo envolvido é a retirada de calor de uma fonte fria, a temperatura T1 , e sua cessão a uma fonte quente, a temperatura T2 . 6.3 Motor térmico e refrigerador 6.3.1 Motor térmico Vamos exemplificar o funcionamento de um motor térmico. Esta máquina térmica tem que trabalhar em um ciclo, retirando energia de um reservatório térmico (fonte quente) na forma de calor e a transformando em trabalho de forma cíclica. Segundo o enunciado de Kelvin, isso não é possível sem a presença de um segundo reservatório térmico (chamado de fonte fria), para onde parte do calor recebido é enviado. Considere então uma fonte quente a temperatura T2 e uma fonte fria a temperatura T1 T2 . O sistema retira um calor Q2 da fonte quente, realiza um trabalho W e cede um calor Q1 à fonte fria (a operação deste motor térmico é representada na figura 6.6 a seguir). Segundo a Primeira Lei da Termodinâmica: 156 'U 0 Q2 Q1 W W Q2 Q1. (6.1) A primeira igualdade na equação 6.1 se justifica pelo fato do processo ser cíclico e o sistema voltar ao estado inicial. Como a energia interna é uma variável de estado, sua variação é nula num processo cíclico. T2>T1 Q2 W Q1 T1 Figura 6.6 – Esquema de um motor térmico, o qual retira calor Q2 de uma fonte quente a temperatura T2 , realiza um trabalho W e cede calor Q1 a uma fonte fria a temperatura T1 . Note a convenção de sinal: agora e são positivos e o fato de ser um calor cedido é estabelecido pelo sinal de menos na equação 6.1. Essa convenção é diferente da usada em Capítulos anteriores. Segundo a convenção anterior, a equação 6.1 seria escrita com negativo. Usaremos a nova convenção até segunda ordem. Uma característica importante de motores é sua eficiência: o ideal é que a maior parte do calor absorvido seja transformada em trabalho (ou seja, para um dado investimento em energia, seja na forma de carvão, energia elétrica em geral etc., queremos que a maior quantidade possível seja transformada em trabalho útil, para operar uma máquina industrial, um automóvel, um navio, uma locomotiva etc.). Em outras palavras, deseja-se diminuir o máximo possível o calor Q1 cedido à fonte fria. A eficiência K é então definida como: K W , Q2 (6.2) 157 ou, em palavras, ela é o trabalho produzido sobre o calor absorvido. Usando a equação 6.1, podemos reescrever a equação 6.2 como: K Q2 Q1 Q2 1 Q1 . Q2 (6.3) Assim, segundo o enunciado de Kelvin, qualquer motor térmico real tem eficiência K 1 , pois Q1 ! 0 . 6.3.2 Refrigerador O objetivo de um refrigerador é resfriar objetos ou ambientes, e para isso ele retira calor de uma fonte fria e o cede a uma fonte quente. Esse é o funcionamento de uma geladeira, de um freezer ou de um ar condicionado, por exemplo. Já vimos que o ciclo não pode consistir apenas desses dois processos (enunciado de Clausius da segunda lei). Para que essas máquinas funcionem, é necessário que seja feito trabalho sobre o refrigerador. O funcionamento de um refrigerador é esquematizado na figura 6.7: T2 Q2 W Refrigerador Q1 T1 Figura 6.7 – Calor Q1 é retirado de uma fonte fria a temperatura T1 , trabalho W é feito sobre a máquina e calor Q2 é cedido a uma fonte quente. A definição de eficiência usada para motores térmicos não é adequada para o refrigerador. Agora, queremos que este seja capaz de retirar a maior quantidade possível de calor da fonte fria ( Q1 ) sendo feito o menor trabalho (W ) possível sobre ele. Assim, o coeficiente de desempenho N de um refrigerador é definido como: 158 N Q1 . W (6.4) Usando a Primeira Lei da Termodinâmica aplicada ao refrigerador, W Q1 Q2 0 W Q2 Q1. Obtemos, então: N Q1 . Q2 Q1 (6.5) Veremos mais adiante como funciona um refrigerador comum residencial. Na seção 6.7.1 discutiremos em mais detalhes o funcionamento de um refrigerador doméstico, o qual é representado na figura 6.14. 6.4 Equivalência dos enunciados de Kelvin e Clausius A princípio, não parece haver ligação entre os dois enunciados da Segunda Lei da Termodinâmica. Entretanto, veremos agora que eles são equivalentes, mostrando que o enunciado de Kelvin só pode ser verdade se o de Clausius também for verdadeiro, e vice-versa. Essa prova usa uma ferramenta bastante comum em Matemática: supomos que uma proposição seja verdadeira e então demonstramos que essa suposição leva a uma contradição ou a um absurdo, demonstrando assim que a proposição é falsa. 6.4.1 O enunciado de Kelvin leva ao de Clausius Vamos supor que o enunciado de Clausius seja falso, ou seja, que um refrigerador miraculoso seja possível. Um refrigerador miraculoso é aquele que realiza um processo cujo único efeito seja transferir calor de um corpo mais frio a um corpo mais quente. Podemos então acoplá-lo a um motor real, como o da figura 6.6, de modo que o novo ciclo (ou a nova máquina) é representado na figura 6.8. Vamos construir o refrigerador miraculoso de modo que ele receba calor Q1 da fonte fria e ceda calor Q1 à fonte quente. O motor real é como explicado anteriormente: ele retira calor Q2 de uma fonte quente, cede um 159 calor Q1 a uma fonte fria e realiza um trabalho W Q2 Q1 . O efeito final desse acoplamento é que a nova máquina retira calor Q2 Q1 da fonte quente e irá realizar trabalho W Q2 Q1 sendo, portanto, uma máquina que viola o enunciado de Kelvin. Assim, o enunciado de Kelvin não pode ser verdadeiro se o de Clausius não o for. T2>T1 T2>T1 Q1 Q2 Refrigerador miraculoso Motor miraculoso W Motor Q1 Q2−Q1 Q1 T1 T1 A W B Figura 6.8 – (a) Motor térmico (à direita da figura), o qual recebe calor Q2 de uma fonte quente, realiza trabalho W e cede calor Q1 a uma fonte fria. Esse motor é acoplado a um refrigerador miraculoso (à esquerda da figura), o qual recebe calor Q1 da fonte fria e cede calor Q1 à fonte quente (b). A máquina resultante viola o enunciado de Kelvin, como discutido no texto, pois ela recebe calor Q2 Q1 de uma fonte quente e realiza trabalho W Q2 Q1 . 6.4.2 O enunciado de Clausius leva ao de Kelvin Agora vamos supor que o enunciado de Kelvin seja falso, ou seja, que um motor miraculoso seja permitido. Um motor miraculoso é aquele que realiza um processo cujo único efeito seja remover calor de um reservatório térmico e produzir uma quantidade equivalente de trabalho. Podemos então acoplá-lo a um refrigerador real, como o da figura 6.7, de modo que o novo ciclo (ou a nova máquina) é representado na figura 6.9 a seguir. Vamos construir o motor miraculoso de modo que ele receba calor Q2 Q1 da fonte quente e realize trabalho W Q2 Q1 . Esse trabalho é então utilizado por um refrigerador, que retira calor Q1 da fonte fria e cede calor Q2 à fonte quente. Assim, o efeito desse acoplamento, motor miraculoso mais refrigerador real, é que a nova máquina retira calor Q1 de uma fonte fria e cede calor Q1 a uma fonte quente (veja a figura 6.9) sendo, portanto, uma máquina que viola o enunciado de Clausius. Então, o enunciado de Clausius não pode ser verdadeiro se o de Kelvin não o for. 160 T2>T1 Q 2− Q1 T2>T1 Q2 Motor miraculoso Q1 Refrigerador miraculoso Refrigerador W = Q2− Q1 Q1 Q1 T1 T1 A B Figura 6.9 – (a) Motor miraculoso (à esquerda da figura), o qual retira calor Q2 Q1 de uma fonte quente e realiza um trabalho W Q2 Q1 . Esse motor é acoplado a um refrigerador real, de modo que o trabalho feito pelo motor é usado pelo refrigerador (à direita da figura), o qual retira calor Q1 de uma fonte fria e cede calor Q2 a uma fonte quente (b). A máquina resultante viola o enunciado de Clausius, como discutido no texto, pois retira calor Q1 de uma fonte fria e cede calor Q1 a uma fonte quente. 6.5 Ciclo de Carnot Podemos, então, nos colocar a questão de qual seria a máquina que levaria ao maior rendimento possível, operando entre uma fonte quente e uma fonte fria. Para isso, devemos evitar máquinas com processos irreversíveis; a existência de atrito sempre transforma energia mecânica em calor, deixando de produzir trabalho útil. Ineficiência análoga também se dá quando ocorre transferência de calor entre corpos a temperaturas diferentes. Assim, essa máquina, operando entre duas fontes, deve trocar calor apenas a temperatura constante (transformação isotérmica), que é um processo reversível, ou então sofrer um processo no qual não seja trocado calor (transformação adiabática). Essa máquina é o chamado motor de Carnot (se o ciclo for percorrido no sentido inverso, temos o refrigerador de Carnot): ele consiste em uma expansão isotérmica, com troca de calor Q2 com uma fonte quente a temperatura T2 , seguida de uma expansão adiabática, de tal modo que a temperatura do sistema diminua e fique igual à da fonte fria ( T1 ). A terceira transformação consiste de uma compressão isotérmica a temperatura T1 e uma posterior compressão adiabática até a temperatura do sistema voltar a T2 . Na figura 6.10 a seguir representamos o ciclo de Carnot em um diagrama P u V e, posteriormente, na figura 6.11 representamos exemplos de como podem ser feitas as transformações envolvidas no ciclo. 161 P a Q2 b W T2 d c T1 Q1 Va Vd Vb Vc V Figura 6.10 – Ciclo de Carnot, o qual consiste de quatro transformações: uma expansão isotérmica de a até b a temperatura T2 ; uma expansão adiabática de b até c , diminuindo a temperatura do sistema de T2 a T1 ; uma compressão isotérmica de c até d a temperatura T1 ; e, finalmente, uma compressão adiabática de d até a , completando o ciclo. T2 T1 a b c d b c Q2 d a Q1 Figura 6.11 – As quatro transformações do ciclo de Carnot. Linhas duplas representam paredes adiabáticas e linhas simples representam paredes diatérmicas. A tampa do recipiente é desenhada de forma tracejada na posição antes da transformação e com linha cheia na posição depois da transformação. Note que o trabalho realizado por esse ciclo é positivo (área colorida na figura 6.10). No entanto, como ele é reversível, pode ser feito no sentido contrário e, nesse caso, o trabalho seria negativo (trabalho 162 seria feito sobre o sistema), um calor Q1 seria retirado da fonte fria e cedido um calor Q2 à fonte quente. Nesse caso, o ciclo de Carnot corresponderia a um refrigerador. Um resultado importante é o Teorema de Carnot: a) Nenhuma máquina térmica operando entre uma fonte quente e uma fonte fria pode ter rendimento superior ao de uma máquina de Carnot operando entre as mesmas fontes. b) Todas as máquinas de Carnot que operem entre as mesmas fontes têm o mesmo rendimento. Vamos demonstrar o item a; o item b será demonstrado por você, leitor(a) (veja a questão 2 adiante). Imagine um motor térmico qualquer (E) operando entre as mesmas temperaturas que um motor térmico de Carnot (C), mas com rendimento maior que este (veja figura 6.12 a seguir para uma esquematização dos motores), de modo que o trabalho realizado por E seja o mesmo que o trabalho realizado por C. Sendo Q 2 o calor recebido por E da fonte quente, Q1 o calor cedido por E à fonte fria, Q2 o calor recebido por C da fonte quente e Q1 o calor cedido por C à fonte fria, temos, pela Primeira Lei da Termodinâmica: W Q2 Q1 Q 2 Q1 Q1 Q1 Q2 Q 2 . (6.6) O rendimento de uma máquina térmica é dado pela equação 6.3, ou seja: KE W ; KC Q 2 W , Q2 (6.7) para as máquinas E e C, respectivamente. Pela hipótese, KE ! KC , e, então, usando a equação 6.7 temos que Q 2 Q2 , ou seja, Q2 Q 2 ! 0 . Assim, pela equação 6.6, temos que Q1 Q1 ! 0 , ou seja, Q1 Q1 . 163 T2 T2 ~ Q2 Motor supereficiente Q2 W Motor de Carnot W ~ Q1 E T1 ∩ T1 Q1 Figura 6.12 – À esquerda, motor térmico operando com rendimento maior que a máquina de Carnot. À direita, motor de Carnot. T2 ~ Q2 Motor supereficiente ~ Q1 W Como o ciclo de Carnot é reversível, podemos pensar que ele seja percorrido no sentido inverso, de tal modo que retire calor Q1 da fonte fria, um trabalho W seja realizado sobre o motor e seja cedido calor Q2 à fonte quente; esse é o refrigerador de Carnot. Podemos então acoplar o motor E ao refrigerador de Carnot C (que é o motor de Carnot invertido), de tal modo que o trabalho realizado por E seja o mesmo usado pelo ciclo invertido de Carnot. O esquema está representado na figura 6.13 a seguir: note que o resultado líquido desse acoplamento é que foi retirado calor ( Q1 Q1 ) da fonte fria e a mesma quantidade de calor, Q2 Q 2 (veja a equação 6.6) foi cediQ2 da à fonte quente, sem realização de trabalho. Isso, porém, viola o enunciado de Clausius da segunda lei Refrigerador e, assim, a existência de um motor com rendimento de Carnot maior que o de Carnot é proibida. Q1 T1 Figura 6.13 – Motor supereficiente (com eficiência maior que a de um motor de Carnot operando entre as mesmas temperaturas) acoplado a um refrigerador de Carnot, entre uma fonte quente a temperatura T1 e uma fonte fria a temperatura T2 . O resultado final dessa situação é que é retirado calor ( Q1 Q1 ) da fonte fria e a mesma quantidade de calor é cedida à fonte quente, o que viola o enunciado de Clausius da segunda lei. O item b do Teorema de Carnot diz que qualquer motor de Carnot terá o mesmo rendimento e que esse rendimento independe da substância utilizada na máquina. Isso nos ajuda a calcular o rendimento do motor de Carnot, supondo que a substância seja um gás ideal. 164 Exemplo 1. Calcule o rendimento de um motor de Carnot. Solução: Como discutido no texto, vamos supor que a substância de trabalho do motor de Carnot seja um gás ideal. O rendimento é dado pela equação 6.2. Precisamos então calcular o trabalho total e o calor absorvido da fonte quente. O trabalho feito em uma transformação isotérmica a temperatura T é dado por Wiso nRT ln(V f Vi ) , onde n é o número de moles, R a constante dos gases, V f é o volume final e Vi o volume inicial da transformação. O trabalho em uma transformação adiabática é dado por , onde T f é a temperatura final, Ti a temperatura inicial da transformação e J CMP CMV . Assim, o trabalho total será (confira na figura 6.10): W nRT2 ln(Vb / Va ) nR (T2 T1 ) 1 J nR (T1 T2 ) nRT1 (Vd Vc ) 1 J (6.8) nRT2 ln(Vb Va ) nRT1 ln(Vd / Vc ). O calor Q2 é absorvido da fonte quente na transformação isotérmica ab (veja a figura 6.10). A variação da energia interna de um gás ideal é zero numa transformação isotérmica, pois essa energia depende só da temperatura. Assim, pela Primeira Lei da Termodinâmica: 'U 0 Q2 Wab Q2 Wab nRT2 ln(Vb / Va ). (6.9) A eficiência K W Q2 é dada então por: K 1 nRT2 ln(Vb / Va ) nRT1 ln(Vd / Vc ) nRT2 ln(Vb / Va ) (6.10) T1 ln(Vd / Vc ) T ln(Vd / Vc ) 1 1 T2 ln(Vb / Va ) T2 ln(Va / Vb ) No entanto TV J1 é constante para uma transformação adiabática, de modo que: T2VbJ 1 J 1 TV 1 c (6.11) J 1 TV 1 d . (6.12) e T2VaJ 1 165 Dividindo a equação 6.12 pela equação 6.11, obtemos Vd Vc Va Vb e, então, para um motor de Carnot: KC 1 T1 . T2 (6.13) É importante ressaltar que essa eficiência depende somente das temperaturas dos reservatórios quente ( T2 ) e frio ( T1 ). Note que, apesar dessa eficiência ter sido derivada para um gás ideal como substância, devido ao item b do Teorema de Carnot, ela é válida para qualquer substância, líquida, gasosa ou mesmo mistura das duas. 6.6 A escala termodinâmica de temperatura Comparando as equações 6.3 e 6.13 vemos que podemos fazer a relação: T1 T2 Q1 . Q2 (6.14) Como essa relação não depende da substância, ela pode ser usada como definição de uma escala de temperatura, a qual não depende da substância termométrica (pois essa é uma característica da máquina de Carnot). Essa escala é chamada de escala termodinâmica de temperatura ou escala Kelvin de temperatura. Ponto triplo da água Ponto onde essa substância coexiste em seus estados líquido, sólido e de vapor. Nesse ponto, a pressão tem valor Ptr = 4,58 mmHg, e a temperatura valor Ttr = 0,01°C = 273,16K. Medindo-se o calor cedido e o absorvido em uma máquina de Carnot, é possível então saber a razão entre as temperaturas de corpos usados como fontes quente e fria. Para definir de modo único uma escala, foi então determinado que a temperatura do ponto triplo da água corresponde a T 273,16 K. Define-se então a escala absoluta de temperatura como: T Ttr Q, Qtr (6.15) 166 onde Q e Qtr são os calores retirados ou cedidos a duas fontes em uma máquina de Carnot, uma na temperatura do ponto triplo da água e outra na temperatura que se quer medir. Note que se pode medir temperaturas menores que a do ponto triplo da água ( Ttr ). Nesse caso, Qtr seria o calor retirado da fonte quente (a água no ponto triplo) e Q o calor cedido à fonte fria, com a temperatura T que se quer medir. A menor temperatura possível de se obter, nessa escala, corresponde a Q o 0 e, portanto, T o 0 . O zero absoluto ( T 0 ), nessa escala, corresponde a Q 0 , isto é, um processo no qual, retirando-se calor de uma fonte quente e o transformando completamente em trabalho, a eficiência dessa máquina h 1). Isso, porém, contraria o enunciado de Kelvin seria de 100% (K da Segunda Lei da Termodinâmica. Esse e outros raciocínios levaram à formulação da Terceira Lei da Termodinâmica: não é possível, por qualquer número finito de processos, atingir a temperatura zero absoluto. 6.7 Exemplos de máquinas térmicas Nesta Seção vamos estudar alguns exemplos de máquinas térmicas, discutindo o que acontece em máquinas reais e as idealizações na descrição delas. 6.7.1 Refrigerador doméstico O esquema básico de um refrigerador comum é mostrado na figura 6.14 a seguir. Uma substância refrigerante, na forma líquida, retira calor da fonte fria (no caso, o interior do refrigerador) e evapora. Esse processo é modelado pela retirada de calor da fonte fria a temperatura constante, em um diagrama P u V (ver o processo dc na figura 6.10: nosso refrigerador é modelado pelo ciclo dessa figura percorrido ao contrário). Após a passagem por uma válvula, ele é comprimido pelo compressor, aumentando sua pressão. Esse processo é suposto ser feito muito rapidamente, de modo que não haja tempo de haver troca de calor, ou seja, é adiabático. Ele é modelado pela transformação cb na figura 6.10. Com o aumento da pressão, a substância se liquefaz a uma temperatura maior e cede calor à fonte quente, de forma aproximadamente isotérmica. Essa transformação é aproximada pelo processo ba na figura 6.10. Finalmente, a subs- As substâncias refrigerantes eram, usualmente, freons, que são gases a base de clorofluorcarbonos (CFC) e que contribuem para a diminuição da camada de ozônio. Atualmente outros gases são usados, como os hidrofluorcarbonetos (HFC), que não possuem cloro (o qual, junto com o bromo, é responsável pela destruição da camada de ozônio) mas ainda contribuem para o aquecimento global. 167 tância passa por uma válvula, onde sofre uma transformação para baixar sua pressão, o qual é fundamental para que a substância evapore a uma temperatura menor (a da fonte fria). Essa última transformação é aproximada por uma expansão adiabática, o processo ad na figura 6.10. Válvula de expansão Evaporador Condensador Frio Baixa pressão Alta pressão Quente Interior do refrigerador Compressor Figura 6.14 – Representação esquemática de um refrigerador doméstico. O interior do refrigerador é a fonte fria e o motor que realiza trabalho sobre a substância é o compressor. 6.7.2 Bomba de calor Uma variação da montagem anterior é a bomba de calor, usada para aquecer o interior de um cômodo ou edifício, resfriando o exterior. Ou seja, ele retira calor de uma fonte fria e cede a uma fonte quente, funcionando como um ar condicionado montado de fora para dentro. As serpentinas que contêm o fluido que se evapora, retirando calor da fonte fria, se localizam no exterior, enquanto as que contêm o fluido que se condensam, cedendo calor à fonte quente, se encontram no interior. 6.7.3 Ciclo Otto Esse ciclo modela, aproximadamente, um motor a gasolina. Esse motor funciona conforme mostrado na figura 6.15. Inicialmente, o combustível é admitido no cilindro pela válvula de admissão, com 168 a válvula de exaustão fechada (veja o exemplo a na figura 6.15); esse processo é representado no diagrama P u V pela reta horizontal, com a seta apontando para a direita (figura 6.16); (essa representação não é considerada parte do ciclo propriamente dito). Após essa fase, o pistão se move para cima, com as válvulas fechadas, comprimindo a gasolina (ver o exemplo b na figura 6.15); esse processo é suposto rápido, de modo que quase não haja troca de calor. Essa transformação é representada no diagrama (veja a figura 6.16 a seguir) pelo trecho ab , uma transformação adiabática. Quando o pistão está na posição mais alta (ver o exemplo c na figura 6.15) e com as duas válvulas ainda fechadas, há a centelha da vela, a qual cede calor ao sistema, aproximadamente a volume constante; esse processo é representado no diagrama PV pelo trecho bc (ver a figura 6.16). Com a explosão o pistão se move para baixo, rapidamente e com as duas válvulas ainda fechadas (ver o exemplo d na figura 6.15). É realizado trabalho nesse processo, que é aproximado por uma expansão adiabática (trecho cd na figura 6.16). Quando o pistão está na posição mais baixa, a válvula de exaustão é aberta e a pressão diminui a volume constante (ver exemplo e na figura 6.15 e trecho da na figura 6.16). Finalmente, a válvula de exaustão se abre e o gás é expulso do cilindro, pois o pistão se move para cima por inércia; esse processo é representado no diagrama P u V pela reta horizontal, com a seta apontando para a esquerda (essa representação também não é considerada parte do ciclo propriamente dito). Logo após, a válvula de exaustão se fecha e a válvula de admissão é aberta, permitindo a entrada de mais combustível. As duas válvulas fechadas Válvula de admissão aberta Válvula de admissão fechada Válvula de exaustão fechada Centelha da vela Válvula de exaustão aberta Anéis do cilindro Pistão Biela Eixo da manivela A B C D Figura 6.15 – Figura do funcionamento de um motor a gasolina. E 169 c P b Q =0 W d Q=0 a V rV V Figura 6.16 – Modelo idealizado de um motor a gasolina: ciclo Otto. Ele consiste de uma compressão adiabática (ab), seguida de aumento de pressão a volume constante (bc). Após esse processo, a substância sofre uma expansão adiabática (cd), seguida de uma diminuição de pressão a volume constante (da). 6.7.4 Ciclo Diesel O ciclo Diesel está representado na figura 6.17 a seguir: ele consiste de uma compressão adiabática (trecho ab da figura 6.17), fornecimento de calor a pressão constante (trecho bc ), expansão adiabática (trecho cd ) e, finalmente, rejeição de calor a volume constante (trecho da ). P b c Q=0 W d Q=0 Vb Vc a Vd V Figura 6.17 – Ciclo idealizado de um motor a Diesel. São realizados quatro processos: uma compressão adiabática, um fornecimento de calor a pressão constante, uma expansão adiabática (nesse processo é realizado trabalho útil) e uma rejeição de calor a volume constante. O que acontece numa câmara de um motor a diesel é mostrado na figura 6.18: 170 válvula de admissão aberta ambas as válvulas fechadas válvula de exaustão aberta injeção de combustível exaustão A Admissão B Compressão C Combustão D Expansão Figura 6.18 – Figura do funcionamento de um motor a diesel. Observe que no exemplo a da figura 6.18 o pistão se desloca para baixo, aspirando ar através da válvula da esquerda (válvula de aspiração); esse processo é representado no diagrama P u V pela reta horizontal que chega ao ponto a , com a seta apontando para a direita (essa representação não é considerada parte do ciclo propriamente dito). Na fase de compressão, o pistão se desloca para cima, com a válvula de aspiração fechada (ver exemplo b da figura 6.18). Com isso, o ar se comprime e sofre um aumento de temperatura. Essa transformação é modelada por uma compressão adiabática no diagrama PV . Depois, a pressão constante, o combustível é pulverizado para o interior da câmara, aumentando um pouco o volume desta; esse processo é modelado na figura 6.17 pelo trecho bc . Devido à alta pressão e à alta temperatura do gás na câmara, o combustível incendeia-se espontaneamente (sem necessitar de uma fagulha, como no motor a gasolina), empurrando o pistão para baixo, rapidamente. Essa última transformação é modelada por uma expansão adiabática na figura 6.17. Quando o pistão está quase no ponto mais baixo, a válvula de descarga se abre e a pressão cai a volume constante; esse processo é modelado pelo trecho da na figura 6.17. Finalmente, parte dos gases é expulsa quando o pistão sobe; esse processo é representado no diagrama P u V pela reta horizontal que sai do ponto a , com a seta apontando para a esquerda (essa representação também não é considerada parte do ciclo propriamente dito). E Exaustão 171 6.8 Teorema de Clausius Vamos agora enunciar um teorema fundamental na introdução de uma nova grandeza termodinâmica muito importante, a Entropia. A equação 6.14 pode ser reescrita como: Q2 T2 Q1 Q Q 2 1 T1 T2 T1 0, (6.16) onde Q2 é o calor absorvido da fonte quente, Q1 o calor cedido à fonte fria, T2 é a temperatura da fonte quente e T1 a temperatura da fonte fria. Vamos agora voltar à convenção original sobre o sinal do calor absorvido ou cedido. Assim, a equação 6.16 pode ser reescrita como: Q2 Q1 T2 T1 0, (6.17) e agora Q1 é negativo. Essa equação é válida para um ciclo de Carnot e pode ainda ser escrita de uma maneira generalizada: Qi ¦T i 0, (6.18) i onde a soma é sobre todos os processos onde é absorvido ou cedido calor Qi a temperatura Ti . Essa equação pode ainda ser generalizada para qualquer processo reversível e para processos irreversíveis também. Nesses casos, ela é escrita na forma: (6.19) Essa dedução pode ser encontrada nas páginas 218 a 221 da seção 10.6 do livro Física Básica 2 de Moysés Nussenzveig. onde a integral é sobre um ciclo qualquer * (como exemplificado na figura 6.19 a seguir), o símbolo representa uma diferencial inexata e T é a temperatura nos pontos do ciclo (em geral, o processo é tal que a temperatura varia ao longo do ciclo). O sinal de igualdade vale para ciclos reversíveis (como o de Carnot) e a desigualdade para ciclos irreversíveis. Essa equação é central na discussão a seguir, e aconselhamos fortemente você entender sua dedução. Vamos agora examinar as consequências importantíssimas da equação (6.19). 172 P C V Figura 6.19 – Ciclo * qualquer, para o qual vale a equação 6.19. Note que no exemplo dessa figura a temperatura varia de ponto a ponto do ciclo. O ciclo pode ser dividido em transformações infinitesimais e éo calor absorvido ou cedido em cada uma dessas transformações. 6.9 Entropia 6.9.1 Entropia e processos reversíveis Vimos que, para processos reversíveis, (6.20) define uma troca de capara qualquer ciclo * reversível e onde lor em um processo reversível (lembre-se que a quantidade de calor trocada depende do processo). Representando esse ciclo como na figura 6.20 a seguir, podemos reescrever a equação anterior como: (6.21) onde a primeira integral é feita do ponto i para o ponto f pelo caminho ( I ) e a segunda integral feita do ponto f para o ponto i pelo caminho ( II ) . Podemos inverter o caminho da segunda integral e, dessa forma, a equação anterior pode ser expressa na forma: (6.22) 173 (I ) P f i (II) V Figura 6.20 – Ciclo termodinâmico: do estado inicial i o sistema vai, pelo caminho ( I ) , até o estado f , retornando ao estado inicial pelo caminho ( II ) . Tanto ( I ) quanto ( II ) são caminhos quaisquer. Como os caminhos reversíveis ( I ) e ( II ) são quaisquer, a equação 6.22 diz que a integral de independe do caminho para processos reversíveis; em outras palavras, a integral de depende apenas dos pontos inicial i e final f . Você deve se lembrar de uma situação como essa na disciplina de Física Básica B, onde a integral definia o trabalho de uma força e a independência dessa integral em relação ao caminho tornava possível a definição de uma grandeza chamada energia potencial. Essa energia pode ser definida para qualquer força conservativa, ou seja, para qualquer força tal que o trabalho desta entre dois pontos não dependa do caminho entre eles. Pode-se então definir uma função de estado, chamada de entropia, designada pela letra S , através de: (6.23) A unidade da entropia no SI é J / K (Joule sobre Kelvin). Para um fluido homogêneo, por exemplo, foi visto que apenas duas grandezas (entre P, V e T) definem o estado termodinâmico do sistema e, portanto, como S depende apenas do estado, podemos escrever: S S ( P, T ) ou S S (V , T ) ou S S ( P,V ). (6.24) 174 Para uma transformação infinitesimal: (6.25) Note que é uma diferencial inexata, enquanto dS é uma diferencial exata, ou seja, o fator 1/T é um fator integrante para a diferencial inexata . Você já deve ter visto este conceito nas disciplinas de cálculo. Vamos ver alguns exemplos de processos reversíveis e de como se comporta a entropia nestes casos: a) Transformação adiabática reversível: nesse caso, , e então dS 0. Se a transformação não for infinitesimal, 'QR 0 e 'S 0. Assim, a entropia é constante ao longo de um processo adiabático, por isso essa transformação é chamada também de isentrópica. Conclui-se também que, ao longo de uma adiabática no diagrama PV, a entropia é constante. b) Transição de fase: durante uma transição de fase (lembre-se, por exemplo, da fusão da água ou de sua evaporação), a temperatura se mantém constante. Nesse caso, a variação de entropia é dada por 'S 'QR T , onde T é a temperatura de transição e 'QR a quantidade de calor transferida na transição. Como 'QR mL , onde m é a massa da substância que sofre a transição e L seu calor latente, temos em uma transição de fase: 'S mL T (6.26) c) Entropia de um gás ideal: para uma transformação reversível, a Primeira Lei da Termodinâmica é escrita como: dU dQR PdV TdS PdV . (6.27) Obtemos então: dS dU PdV . T T (6.28) CMV dT , (6.29) Para 1 mol de gás ideal: dU 175 Considerando CMV constante e que: PV (6.30) RT , podemos observar que: PdV VdP (6.31) RdT . Para calcular dS através da equação 6.28, devemos determinar antes em função de quais grandezas termodinâmicas queremos escrever a variação da entropia (veja a equação 6.24). Escolhendo V e T , temos: ds CMV RPdV dT , T PV (6.32) onde s é a entropia por mol, e usamos a equação 6.29 no primeiro termo e a equação 6.30 no segundo termo do lado direito da equação 6.32. Simplificando: ds CMV dV dT R . T V (6.33) Integrando: Tf f s f si ³ ds i CMV ³ Ti Vf dT dV R³ T V Vi §T CMV ln ¨ f © Ti · § Vf ¸ R ln ¨ ¹ © Vi · ¸ . (6.34) ¹ Assim, a entropia molar de um gás ideal, em função de V e T , é dada por: s (V , T ) CMV ln T R ln V A, (6.35) onde A é uma constante. 6.9.2 Entropia e processos irreversíveis Para calcular a variação de entropia em um processo irreversível entre dois estados i e f , temos que imaginar um processo reversível que leve de i a f e calcular a variação de entropia através de: 176 (6.36) Como vimos, a entropia é uma função de estado e sua variação independe do processo utilizado para ir do estado inicial ao final. Assim, qualquer processo reversível pode ser imaginado, para o cálculo da integral na equação 6.36, e o resultado será independente do processo (e, portanto, será o resultado para o processo irreversível estudado também). Há, entretanto, alguma diferença entre processos reversíveis e irreversíveis? Veremos que a diferença se manifesta na variação de entropia da vizinhança (a variação de entropia do sistema de interesse, como vimos, é a mesma). Vejamos dois exemplos: Exemplo 2. Expansão livre: suponha que um gás sofra uma expansão, do volume inicial Vi para o volume final V f ! Vi , em um recipiente isolado da vizinhança, ou seja, sem troca de calor ou trabalho realizado. Pela primeira lei: 'U 0; 'Q 0; 'W 0. (6.37) Para um processo infinitesimal: (6.38) Note aqui a diferença entre o trabalho realizado para um processo reversível, dW PdV ! 0 , e o trabalho realizado no processo irreversível, . Essa diferença é esperada, pois o trabalho depende do processo termodinâmico. Como o processo de interesse é irreversível, a equação 6.36 não pode ser usada nesse caso, mas podemos imaginar um processo reversível e utilizar essa equação. Para isso, vamos supor que o gás seja ideal e que a expansão seja feita a temperatura constante. Já calculamos a variação de entropia para um processo como esse (ver a equação 6.34) e obtemos: §V · S f Si nR ln ¨ f ¸ . (6.39) © Vi ¹ Supondo uma transformação infinitesimal, fere do resultado para a transformação irreversível, , o que di. Isso, po- 177 rém, era esperado, pois a quantidade de calor trocada depende do processo. Exemplo 3. Transferência de calor irreversível: dois corpos a temperaturas T1 e T2 diferentes (e supondo T2 ! T1 ) são postos em contato térmico. Eventualmente, eles chegarão ao equilíbrio, em uma temperatura entre T1 e T2 . Como exercício, você pode calcular essa temperatura, supondo que as massas dos blocos sejam m1 e m2 e seus calores específicos c1 e c2 , respectivamente. No caso mais simples das massas e dos calores específicos serem iguais, a temperatura de equilíbrio ( T f ) será T f (T1 T2 ) 2 . Use um argumento de simetria para justificar essa temperatura de equilíbrio. O processo descrito é irreversível, então não podemos calcular a variação de entropia usando a equação 6.36. Vamos imaginar um processo reversível que leve do mesmo estado inicial ao mesmo estado final. Esse processo é o seguinte: o corpo a temperatura T1 é posto em contato térmico com reservatórios a temperaturas cada vez maiores, mas com essas temperaturas diferindo entre si de um infinitésimo, até chegar à temperatura T f . O mesmo vale para o corpo a temperatura T2 , só que nesse caso os reservatórios estão a temperaturas cada vez menores, até atingir T f . Cada um dos processos descritos neste parágrafo é reversível e podemos aplicar a equação 6.36 a eles. Assim: (6.40) onde T na primeira integral representa as temperaturas pelas quais passa o corpo a temperatura T1 e na segunda integral representa as temperaturas pelas quais passa o corpo a temperatura T2 . Como os processos são reversíveis, todas essas temperaturas estão bem definidas, mas: (6.41) Usando essa expressão na equação 6.40 e já supondo o caso mais simples dos corpos a diferentes temperaturas terem a mesma massa e o mesmo calor específico, obtemos: 178 'S § T f dT T f dT · mc ¨ ³ ¸ ¨ T T T³ T ¸ © 1 ¹ 2 Lembrando que T f 6.42 como: ª §T mc «ln ¨ f ¬ © T1 · §T f ¸ ln ¨ ¹ ©T2 ·º ¸» ¹¼ § T2 · mc ln ¨ f ¸ . ¨ TT ¸ © 1 2¹ (T1 T2 ) 2 , podemos reescrever a expressão 'S ª (T T ) 2 º mc ln « 1 2 » . ¬ 4T1T2 ¼ (6.43) Queremos agora mostrar que a variação 'S é positiva. Para isso, precisamos mostrar que a expressão entre chaves na equação 6.43 é maior que 1. Mas: (T1 T2 ) 2 2T1T2 T2 T12 2T1T2 T22 T1 2T1T2 T2 4T1T2 T12 2T1T2 T22 4T1T2 (T1 T2 ) 4T1T2 , (T1 T2 ) 2 4T1T2 , Assim, a expressão entre chaves na equação 6.43 pode ser reescrita como: (T1 T2 ) 2 4T1T2 1 (T1 T2 ) 2 . 4T1T2 (6.45) Essa expressão é claramente maior que 1 e, portanto, o logaritmo natural na equação 6.43 é maior que zero, ou seja, 'S ! 0 . 6.9.3 O princípio do aumento da entropia Vamos demonstrar o conhecido resultado de que a entropia de um sistema termicamente isolado nunca decresce. A equação 6.19 nos diz que, para um processo irreversível, a integral em um ciclo de ðQ / T é não positiva. Não provaremos aqui esse resultado, mas, na verdade, é possível demonstrar que, para uma transformação irreversível * , a integral é negativa, ou seja, é possível descartar o sinal de igual: (6.46) 179 Assim, considere agora uma transformação irreversível de um estado i para um estado f e uma transformação reversível de f para i. As transformações são mostradas na figura 6.21: o processo irreversível I é representado por uma linha pontilhada porque seu camip u V pode não estar definido, pois os estados nho em um diagrama P intermediários não são necessariamente de equilíbrio. A transformação reversível R traz o sistema de volta ao estado inicial. Temos então um ciclo * irreversível e podemos usar: (6.47) onde invertemos o sentido no qual o processo reversível é realizado. Para esse processo, porém, temos que: (6.48) e então: (6.49) P f I R i V Figura 6.21 – Ciclo irreversível, consistindo de um processo irreversível I (linha tracejada) e um processo reversível R (linha cheia). Note que a variação de entropia se aplica a qualquer processo entre i e f , pois a entropia é uma função de estado. Temos então: (6.50) Se o sistema estiver isolado termicamente, 'S ! 0. , e obtemos: (6.51) 180 Se o ciclo todo fosse reversível, poderíamos demonstrar, partindo da equação 6.19 com o sinal de igual, que: 'S 0. (6.52) Assim, para um sistema isolado termicamente, temos: 'S t 0, (6.53) onde o sinal de igual vale para um processo reversível e a desigualdade para um processo irreversível. Vamos agora introduzir termos convenientes para nossa discussão a seguir. Consideramos o sistema isolado, ou universo, como composto de um sistema físico de interesse, chamado apenas de sistema, e de sua vizinhança. Pode-se então enunciar a Segunda Lei da Termodinâmica em termos da variação da entropia de um sistema fechado, ou do universo, da seguinte forma: Em qualquer processo termodinâmico que ocorra entre dois estados de equilíbrio, o resultado da soma da entropia do sistema com a entropia da vizinhança nunca diminui. Note o conceito de vizinhança: essa é uma porção não pertencente ao sistema, mas que, junto com este, forma um sistema completo termicamente isolado, conforme o enunciado anterior. Vamos discutir dois exemplos: Compressão espontânea: no exemplo 1 da Seção 6.9.2, vimos que a entropia aumenta de 'S nR ln (V f / Vi ) quando um sistema isolado vai do volume Vi para o volume V f ! Vi . Esse processo é comum e trata-se de uma expansão livre. No caso da compressão espontânea, V f Vi e assim a entropia de um sistema fechado diminuiria, o que é proibido pela segunda lei. Essa é a razão de não termos tido notícia de uma audiência ter sufocado as pessoas porque todo o ar de uma sala se concentrasse em um canto desta. 181 Condução de calor: no exemplo 3, calculamos a variação de entropia quando é retirado calor de um corpo mais quente e fornecido a um corpo mais frio, no momento em que este é posto em contato térmico com aquele. Vimos que essa variação é positiva, como manda a segunda lei. O processo contrário, isto é, quando é retirado calor de um dos corpos e cedido ao outro, até que ambos estivessem nas temperaturas T1 e T2 , nunca ocorre porque ele violaria a segunda lei. Esses dois exemplos permitem a introdução da noção de uma “seta do tempo”, de um sentido para a ocorrência de fenômenos. Como discutimos anteriormente, a primeira lei não proíbe a compressão espontânea, mas a segunda lei, na forma de aumento da entropia, a proíbe. Exemplo 4. Um bloco de gelo de massa mg 0,012 a temperatura inicial de Tg 15 é misturado à água em um calorímetro perfeitamente isolado. A massa da água é de ma 0,056 e sua temperatura inicial de Ta 23 . Calcule a temperatura final da mistura e mostre que todo o gelo se funde. Calcule a variação de entropia da mistura e discuta. Vamos desprezar o calor absorvido ou cedido pelo calorímetro. Dados: calor específico do gelo: Cg 2.220 J / kg K ; calor específico da água: Ca 4.190 J / kg K ; calor latente de fusão: L 333J / kg K . Solução: Precisamos calcular a temperatura final da mistura. Vamos supor que todo o gelo tenha esquentado até a temperatura de 0 , tenha se transformado em água e esta tenha elevado sua temperatura até a temperatura final ( T f ). Caso essa hipótese esteja incorreta, nossas equações mostrarão alguma inconsistência. Assim, o gelo absorve calor para elevar sua temperatura até 0 (primeiro termo do lado direito da equação 6.54 a seguir), depois absorve calor para mudar de fase e se transformar em água (segundo termo do lado direito da equação 6.54) e, finalmente, essa quantidade de água devida ao gelo eleva sua temperatura até a temperatura final (terceiro termo do lado direito da equação 6.54). O calor absorvido por estes três processos é então calculado por: 'Qa mg cg (0qC Tg ) mg L mg ca (T f 00 C ). (6.54) 182 O calor cedido se deve à quantidade de água inicialmente presente no calorímetro e é dado por: 'Qc ma ca (T f Ta ). (6.55) Como a mistura está isolada, 'Qa 'Qc 0. Dessa equação podemos calcular T f , dado por T f 3,5 . Note que, nestas equações, utilizamos a temperatura em graus Celsius porque nas expressões ela sempre entra como diferenças de temperaturas. Daqui em diante, temos que utilizar as temperaturas em Kelvin (na dúvida, você estará seguro(a) se sempre utilizar as temperaturas em Kelvin). Para calcular a variação de entropia do gelo, vamos reconhecer, mais uma vez, três processos: a) Absorção de calor pelo gelo de forma irreversível. Já calculamos 'S para esse caso (exemplo 3 anterior), obtendo 'S g mg cg ln (273,15 K / Tg ) . Note que, como antecipado, estamos usando as temperaturas em Kelvin (K); b) Aumento de entropia devido à transformação de fase do gelo. Esse cálculo foi efeito anteriormente (ver o item b da Seção 6.9.1) e obtivemos 'Stf mg L 273,15 K ; c) Essa porção de água eleva sua temperatura até T f 3,5qC 276, 65 K . Esse cálculo é análogo ao feito no item a acima e obtemos 'S ga mg ca ln (T f / 273,15 K ) . Feitos esses cálculos para os valores do problema, obtemos: 'S gelo 'S g 'Stf 'S ga 16,7 J/K. (6.56) Para a variação da entropia da água inicialmente posta no calorímetro, os cálculos são análogos ao item a anterior, obtendo-se 'S a ma ca ln (T f / Ta ) 15,9 J/K. Como vemos, a variação da entropia da água é negativa. Isso não viola o enunciado da segunda lei porque a água não é um sistema isolado. Se considerarmos o gelo sua vizinhança, de tal forma que gelo+água (sistema+vizinhança) estejam isolados, então a variação total de entropia é 'St 'S gelo 'S a 16,7 J/K (15,9) J/K 0,8 J/K e, como esperado, essa variação é positiva. 183 Vemos agora a diferença entre processos irreversíveis e reversíveis. Enquanto ambos produzem a mesma variação de entropia no sistema físico de interesse, a vizinhança tem uma variação diferente de entropia em cada caso. Para processos reversíveis, a entropia da vizinhança varia de modo a que a variação de entropia do sistema+vizinhança seja nula. Para processos irreversíveis, apesar da variação de entropia do sistema ser a mesma, a variação de entropia total é sempre positiva, ou seja, a variação de entropia da vizinhança é diferente da ocorrida num processo reversível. Do ponto de vista prático, o aumento da entropia corresponde a um desperdício de energia, a qual não será transformada em trabalho. Esse é o caso, por exemplo, na condução de calor entre dois corpos a temperaturas diferentes: esses corpos poderiam ser utilizados como fontes quente e fria de uma máquina de Carnot e produzir trabalho. Posto em contato um com o outro, a temperatura de equilibro é a mesma para ambos e o calor trocado não foi utilizado para realizar trabalho. A interpretação microscópica da entropia é um assunto também fascinante mas fora do escopo deste texto. Resumo Introduzimos e discutimos diversos enunciados da Segunda Lei da Termodinâmica, estudamos modelos de máquinas térmicas e através da discussão do ciclo de Carnot chegamos a uma escala termodinâmica de temperatura. Finalmente, introduzimos o conceito termodinâmico de entropia e de “seta do tempo”. Questões 1) Por que o calor cedido à fonte fria não pode ser nulo em uma máquina térmica (veja a figura 6)? Por que ele não pode ser também positivo, ou seja, por que o motor não pode também receber calor da fonte fria? 184 2) Reveja o raciocínio usado para provar o item a do Teorema de Carnot. Substitua a hipotética máquina de rendimento maior que a de Carnot por outro ciclo de Carnot e demonstre o item b do Teorema de Carnot. 3) Uma certa quantidade de energia mecânica pode ser totalmente convertida em energia térmica? Dê um exemplo, se possível. 4) Considere uma caixa que tem um número muito pequeno de moléculas, digamos três. Pode acontecer algumas vezes, por acaso, que todas essas moléculas se encontrem na metade esquerda da caixa e a metade direita esteja vazia? Isso seria a compressão livre, o oposto da expansão livre. Por que esse fenômeno não acontece com todo o ar de uma sala? 5) Quando juntamos cartas de um baralho em um maço ou empilhamos tijolos para construir uma casa, aumentamos a ordem do mundo físico. Isso viola a Segunda Lei da Termodinâmica? 6) No processo de surgimento de um ser vivo, desde as células mais simples até os organismos mais complexos, uma forma de organização muito complexa é obtida. Nesse processo de ordenamento, a entropia diminui; isso significa que essa tendência à ordem viola a Segunda Lei da Termodinâmica? Problemas 1) Demonstre que duas curvas adiabáticas não podem se cruzar. Dica: suponha que esse cruzamento seja possível e complete o ciclo com uma isoterma. Mostre então que a Segunda Lei da Termodinâmica seria violada nesse caso. 2) Relembre as definições de rendimento K de um motor e de coeficiente N de desempenho de um refrigerador. A partir daí: a) Para um refrigerador de Carnot, calcule N em função das temperaturas das fontes fria e quente, T1 e T2 , respectivamente. Discuta como esse coeficiente depende da temperatura externa; 185 b) Compare o rendimento de um motor de Carnot com o desempenho de um refrigerador obtido do motor de Carnot pela reversão dos processos; c) Em um refrigerador doméstico, o coeficiente N de desempenho é 40% do ideal e o motor fornece uma potência de 220 W. A temperatura do congelador é de 13 , suponha a temperatura ambiente de 27 . Qual a quantidade de calor removida do congelador, em 15 minutos de funcionamento do motor? Que quantidade de gelo ela permitiria formar, partindo da água a uma temperatura de 0 (o calor latente de fusão do gelo é de 80 )? 3) Um gás ideal monoatômico se expande lentamente até ocupar um volume igual ao dobro do seu volume inicial, realizando um trabalho igual a 300 J no processo. Esse processo pode ser isotérmico, adiabático ou isobárico. Sendo assim: a) Desenhe em um diagrama PV os três processos acima. b) Calcule o calor fornecido ao gás e a variação de sua energia interna para cada um dos três processos. 4) Numa máquina térmica o agente é um gás ideal de coeficiente adiabático J. O gás sofre uma expansão adiabática na qual seu volume cresce r vezes, seguida de uma compressão isotérmica até seu volume inicial. Para fechar o ciclo, sua pressão é aumentada a volume constante. Dessa forma: a) Desenhe esse ciclo em um diagrama PV , explicitando todas as informações disponíveis; b) Calcule o rendimento em função de r e J; c) Exprima o rendimento em função da razão entre as temperaturas extremas, T2 T1 ; d) Calcule o rendimento para e r 2 . Compare esse rendimento com o de uma máquina de Carnot operando entre as mesmas fontes. 186 5) Mostre que, para um fluido incompressível e com capacidade térmica C suposta constante, a entropia é dada por S C ln(T ) A, onde A é independente da temperatura. 6) Mostre que a entropia molar de um gás ideal, em função da pressão P e da temperatura T , é dada por s ( p, T ) CMP ln T R ln P A, onde A é uma constante e C p CV R é a capacidade térmica a pressão constante. Bibliografia básica NUSSENZVEIG, H. Moysés. Curso de física básica. São Paulo: Edgard Blücher, 1997. v. 2. RESNICK, R.; HALLIDAY, D.; KRANE, K. S. Física. Rio de Janeiro: LTC, 2006. v. 2. SEARS, Zemansky. Física II: termodinâmica e ondas. 10. ed. São Paulo: Addison Wesley, 2003. TIPLER, Paul A.; MOSCA, Gene. Física. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2007. v. 1.