RITOS DE PURIFICAÇÃO Excertos da aula de Julia Kristeva de 22 novembro de 1994 na Universidade Paris 7 São muitos os títulos dessa mulher extraordinária: feminista, filósofa, psicanalista e crítica literária, autora de uma extensa obra de grande alcance nas ciências sociais ou humanas. Aqui, selecionamos um pequeno trecho de uma de suas aulas transformadas em livro: Sens et non-sens de la revolte – Pouvoirs et limites de la psychanalyse (Sentido e não-sentido da revolta – Poder e limites da psicanálise). É um texto ainda atual e de interesse antropológico. A franco-bulgara Julia Kristeva Neste livro de Julia Kristeva há, por toda parte, referências ao “Totem e tabu”, de Sigmund Freud, considerando a origem da revolta, desde a horda primitiva na história da humanidade, como uma desobediência à lei e a morte do pai tirano. Um mito antigo, como também na mitologia grega, da morte de Cronos por seu filho Zeus. O livro de Freud, claro, é bastante contestado pela maioria dos antropólogos, sobretudo no que tange às relações psicanalíticas apresentadas. Aqui somente selecionamos um texto referente a um tema antropológico sobre os ritos de purificação. O que torna alguém impuro ou sujo? Isto é, no sentido dos valores das diferentes sociedades. Nas sociedades primitivas, mas não exclusivamente, esta problemática está relacionada com o sagrado. Existem tabus ou interditos para os dois aspectos básicos da reprodução da vida: nos alimentos e na vida sexual. Animais impuros, comidas proibidas, relações sexuais condenadas, etc. Comer um animal tabu ou impuro, em determinada circunstância, ou desobedecer a proibição de comer tal ou qual alimento, bem como manter relações sexuais em situações consideradas de impureza constitui uma transgressão gravíssima às normas da sociedade em questão, passível de punição e, pelo melhor, de passar por um ritual de purificação. Kristeva nos remete aos tabus alimentares: (...) Como desenvolvi em Poderes do horror (Pouvoirs de l’horreur), junto a uma plêiade de antropólogos, que balizaram as questões em detalhes, e que está relacionada com diferentes rituais de purificação na história das sociedades, a purificação que consiste em se desembaraçar de uma sujeira, de uma mancha, de uma impureza, nos confronta a um enigma. O que é a impureza? O que é sujo? Em certas sociedades a impureza é identificada com uma substância que interdita tal ou qual alimento. As regras são ditadas sob formas de tabus alimentares, como existe no judaísmo, hinduismo, islamismo, etc. (...) – P. 48. Bom, para dar alguns exemplos antes de retomarmos ao que disse Kristeva na longínqua data de 1994, mas que nos parece que foi ontem, vejamos: para o cristão de rito católico comer carne vermelha na sexta feira santa é tabu, proibido; para o judeu a carne suína é terminantemente proibida em qualquer circunstância; algumas tribos da Amazônia repudiam a carne de galinha, etc.etc. Há também interdição para as relações sexuais com a mulher menstruada, grávida, pós-parto, com pessoas do mesmo gênero, com animais, etc.etc. Depende da sociedade, do nível cultural, de educação e de civilização. Kristeva dixit: (...) Quando se examina os interditos alimentares ou os desejos de purificação nas religiões, parece inicialmente que a purificação é recomendada ou imposta quando a fronteira entre dois elementos ou entre duas identidades não se mantém e que estes elementos ou estas identidades estão misturados. Assim, não se deve misturar o alto e o baixo, o mar e a terra; idem, para certos animais que habitam o mar e a terra, ou que possuem atributos ordinariamente associados a terra e ao mar, que serão julgados “impuros”. (...) – P. 49. A mistura, a contradição, tudo que quebra a harmonia ou o equilíbrio pode ser considerado tabu, nas sociedades dualistas e também nas religiões monoteístas. Mas, seja através dos feiticeiros, dos adivinhos ou dos sacerdotes, através de práticas ou de preces, de banhos ou de jejuns, bem como de sistemas de arrependimentos e de contrição, se pode buscar a purificação. Ainda referindo-se a questões de impureza relacionada aos alimentos, Kristeva faz uma comparação com a sociedade moderna: (...) Confrontado com os tabus alimentares acima, o moderno conclui que o impuro é aquele que não respeita os limites, e que mistura as estruturas e as identidades. Ora, é necessário manter a identidade na sua autonomia, na sua pureza estrutural, para assegurar a sobrevida não somente do vivente, mais também do socius. (...) – Idem, destaques da autora. Finalizando: Os rituais de purificação diferem segundo as sociedades e também às formas de religiosidade existentes. Quase sempre relacionados com o sagrado, os rituais de purificação servem como resgate ou enquadramento de um indivíduo qualquer que tenha se desviado do comportamento socialmente consagrado, quebrando regras ou desrespeitando tabus, por exemplo. Mas também está relacionado com a ordem das coisas, com a possibilidade da vida, da existência. REFERÊNCIAS: KRISTEVA, Julia. Sens e non-sens de la revolte – Pouvoirs et limites de la psychanalyse. Fayard, Paris, 1995. Tradução, comentários e montagem do texto do Prof. Antonio Souza para o blog IC FAMA A Iniciativa Científica da FAMA na Web. Junho de 2013.