HEAVY METAL E IDENTIDADE: MICROCOSMOS DO

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HEAVY METAL E IDENTIDADE: MICROCOSMOS DO GÊNERO MUSICAL
A PARTIR DA REVISTA ROADIE CREW1
Eduarda Borin2
Caroline De Franceschi Brum3
Resumo: O heavy metal é um gênero musical que evoluiu de uma série de contribuições
musicais e, aos poucos, tornou-se uma manifestação cultural. A revista Roadie Crew, fundada
em São Paulo, por Airton Diniz, Claudio Vicentin e Anselmo Teles, em 1994, objeto deste
artigo, é uma publicação mensal especializada nesse gênero musical. Este artigo busca
verificar de que maneira a revista Roadie Crew influenciou a construção identitária de um
grupo de leitores, fãs de heavy metal. Para isso, buscamos a teoria de Stuart Hall sobre
identidade cultural e a relação das marcas contemporâneas de Semprini. Os procedimentos
metodológicos utilizados para a consecusão dos objetivos específicos são de natureza qualiquantitativa, de caráter exploratório. A coleta de dados foi realizada em duas etapas, na
primeira, foi enviado um questionário filtro online. Com base nos resultados, foram
selecionados para entrevista 20 indivíduos que se mostraram dispostos a colaborar com a
pesquisa. A segunda fase consistiu na seleção de cinco desses 20 entrevistados para a análise
dos dados coletados. O número de entrevistas foi decidido pelo nível de influência dos
indivíduos na cena heavy metal gaúcha, tendo como ponto decisivo o fato de ainda
consumirem conteúdo da Roadie Crew, seja físico, seja digital. Pode-se perceber que o heavy
metal é constituído por uma rede de significados que faz com que os ouvintes desse gênero
não só consumam a música, como também constituam uma identidade própria.
Palavras-chave: comunicação; estudos culturais; identidade cultural; heavy metal; revista
Roadie Crew.
Introdução
O heavy metal é um gênero musical que evoluiu do blues e do rock. Seus primeiros
registros datam do início da década de 1970, tornando-se popular nos anos 1980. Segundo o
antropólogo Dunn (2006), o heavy metal, no ano de 1986, tornou-se o gênero musical mais
ouvido no mundo. Black Sabbath, segundo Popoff (2013), é considerada a primeira banda de
heavy metal. Originou-se no ano de 1968, na cidade de Birmingham, Inglaterra, e sua
primeira formação foi composta por Tony Iommi (guitarrista), Bill Ward (baterista), Ozzy
Osbourne (vocalista) e Geeze Butler (baixista), os quais transformaram o rock a partir
1
Comunicação e indústria criativa.
Bacharel em Comunicação Social: Publicidade e Propaganda, Centro Universitário Franciscano,
Santa Maria, RS. [email protected]
3
Mestre em Ciências da Cultura pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real,
Portugal. Docente do Curso de Publicidade e Propaganda, Centro Universitário Franciscano, Santa
Maria, RS. [email protected]
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1
daquele momento (POPOFF, 2013). Conforme Chris Welch (2003), Iommi afirmou que, o
Black Sabbath surgiu no auge da Guerra do Vietnã, quando o movimento hippie era
considerado forte. A banda estava entre o sentimento de guerra e de paz e não concordava
plenamente com o discurso defendido pelo movimento, tendo em vista a situação social e
econômica dos integrantes. A maior parte era da classe operária da cidade, que sofria com a
desigualdade, os efeitos pós-guerra e não acreditava em um mundo de paz e amor. Esses fatos
foram refletidos nas composições musicais da banda, alterando os padrões sonoros praticados
e reproduzidos na época. Assim, podemos alinhar esse comportamento com o conceito de que
o ser humano tem a necessidade de se sentir pertencente a um grupo social para ser aceito
pela sociedade em que vive, e poder agir de diferentes formas conforme o contexto. Maffesoli
(1998) defende que as práticas comuns de um grupo, que estabelecem uma identidade
própria, assim como a estética visual e os comportamentos caracterizam a ideia de tribo, que,
ao adotá-la e transformá-la em estilo de vida, permitem que o indivíduo se redescubra.
Segundo Hall (2014, p. 11), “o sujeito, previamente vivido como tendo uma
identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única,
mas de várias identidades”. Esse apontamento leva à reflexão sobre a maneira pela qual a
cultura influencia a sociedade. O mesmo autor ainda afirma que essas identidades “podem ser
contraditórias ou não resolvidas” (HALL, 2014, p. 11).
Percebe-se, então, que o gênero musical heavy metal contribuiu (e ainda contribui)
para a construção da identidade de diversos jovens, permitindo um espaço para a expressão
de ideias, comportamentos, princípios, expectativas, configurando-se como um ambiente para
que tenham sua voz exposta. Essa manifestação cultural criou um âmbito de produção e
consumo midiático (JANOTTI, 2004). Para Dunn (2008), o heavy metal intensificou-se no
Brasil a partir do primeiro Rock In Rio, no ano de 1985, com 1 milhão e 380 mil pessoas
presentes durante os dez dias do festival, evento que modificou a realidade musical brasileira
apresentando novos conceitos. A ditadura no país teve seu fim em 1985 e o heavy metal
chegou juntamente com a necessidade de liberdade de expressão dos jovens dessa geração.
Desse momento em diante, as bandas nacionais começaram a lançar seus primeiros discos do
gênero, expressando o sentimento antes contido em relação à ditadura. Assim, o heavy metal
surgiu no Brasil concomitantemente à democratização do país, após o período ditatorial
2
(DUNN, 2008), unindo a rebeldia do movimento com a necessidade dos jovens de serem
escutados pela sociedade.
Nesse contexto, insere-se o objeto empírico desta pesquisa, a revista Roadie Crew,
criada no início dos anos 1990, na cidade de São Paulo, por Airton Diniz, Claudio Vicentin e
Anselmo Teles. Caracterizada como uma publicação especializada em música, tem o classic
rock e o heavy metal como principal enfoque. Possui tiragem aproximada de 22.000
exemplares, com periodicidade mensal e comercialização no Brasil e em Portugal. Ao longo
das suas 104 páginas, aproximadamente, traz reportagens, entrevistas, críticas de produções
musicais e eventos, biografias, pôsteres, curiosidades do meio musical, colunas e artigos
especiais.
Relacionando o heavy metal aos meios comunicacionais, o problema desta pesquisa
recai sobre a seguinte questão: a revista Roadie Crew é uma base de identificação e influência
para os fãs de heavy metal no Brasil? Desse modo, como objetivo geral da pesquisa,
pretendeu-se verificar de que maneira a revista Roadie Crew influencia a construção
identitária de um grupo de leitores, fãs de heavy metal. Assim, para dar conta do objetivo
geral, foi necessário situar o heavy metal como forma de expressão, compreender a relação
dos leitores com o gênero musical e descrever as dinâmicas de um grupo de leitores da revista
Roadie Crew.
Para dar conta dos objetivos propostos, o presente estudo configura-se com natureza
qualiquantitativa, de método indutivo, por meio do qual é possível relacionar os aspectos
mensuráveis aos descritivos da pesquisa (FACHIN, 2003). Foi utilizado o método de análise
de conteúdo, que visa determinar o que está sendo dito sobre determinado tema valendo-se,
para tanto, de um conjunto de técnicas. A técnica de entrevistas em profundidade, com
questões semiestruturadas, auxiliou a compreensão relacional do público leitor da revista
como fã do heavy metal. Quanto ao instrumento de pesquisa, foram aplicados dois
questionários online para conhecer e identificar o público leitor da revista, disponibilizados
em grupos de discussão da rede social Facebook.
Pautada por esses parâmetros, a presente pesquisa buscou compreender as implicações
presentes no heavy metal além do vínculo estritamente musical, analisando-o também como
influência na construção da identidade de jovens e adolescentes. No Brasil, as pesquisas
relacionadas ao heavy metal estão em crescimento, porém ainda são escassas. É possível
3
encontrar diversos estudos internacionais sobre heavy metal, porém vários ligados à área da
saúde, principalmente à psicologia, fazendo uma ligação entre o gênero e os transtornos
psicológicos. O presente estudo aproxima-se das pesquisas internacionais que relacionam o
heavy metal, a cultura e a sociologia, tendo como autores mais influentes a socióloga Deena
Weinstein (2000) e o musicologista Robert Walser (1993). Nacionalmente, temas
relacionando esses elementos vêm ganhando destaque lentamente, ainda com poucos autores
abordando o assunto, tendo a maior concentração de publicações na região Nordeste do país.
Assim, esta pesquisa procura não somente sanar uma curiosidade pessoal, mas também
contribuir para o enriquecimento desse campo de estudo no país.
Análises: relações, identidades e a roadie crew.
Além de um gênero musical, o heavy metal se estabelece como um modo de vida,
conforme o discurso dos entrevistados. O principal aspecto evidente nas respostas dos
entrevistados é da necessidade de se sentirem pertencentes a um grupo social, conceituado
por Bauman (2012), onde afirma que ter uma identidade parece ser uma das necessidades
humanas universais. Podemos verificar nos trechos a seguir:
É uma relação permanente, eu não consigo me imaginar, na verdade nem pensei, até
hoje, como eu seria sem o meu vínculo com o metal (Entrevistado 6).
Posso dizer que a banda é a válvula de escape de todos nós, uma forma de expressar
os sentimentos contidos. Essa relação profunda com a música não é entendida por
muitos que estão fora do meio. Eu estou com quase 30 anos e ainda me perguntam
quando vou parar de escutar e tocar esse tipo de música. É ridículo, mas as pessoas
não entendem (Entrevistado 2).
O metal tem a característica da personalidade da pessoa que leva a escutar o gênero,
torna-se uma coisa pessoal (Entrevistado 2).
A necessidade de se sentir pertencente a um grupo social é considerada um desejo básico do
ser humano. Quanto aos entrevistados, é possível perceber que a sua ligação com o heavy metal é tão
forte que eles necessitam expressar esse sentimento de alguma forma, externando na forma de se
vestir, nas próprias músicas que escutam e na definição dos subgêneros do metal tido como
preferidos. Não há opinião contrária que os faça mudar suas concepções acerca do heavy metal, sendo
provavelmente impossível desfazer esse vínculo.
Segundo a teoria psicossocial de Erikson (1972), a função mais importante da adolescência é
a construção da identidade, quando os valores, as crenças e as metas definidas tornarão o indivíduo
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comprometido com o que busca. É justamente nesse período que, segundo os entrevistados, iniciaram
seus principais contatos com o gênero.
Comecei a escutar heavy metal aí pela 5ª série, por 2004, foi quando tive o primeiro
contato (Entrevistado 8).
Bem, eu comecei a escutar metal desde pequeno por causa dos meus primos que
gostavam. Eles escutavam muita coisa em fita K7 e vinil, porque, na época, era só o
que tinha. Eu acabava pegando emprestado e ouvia, mas era pouca coisa. [...]
Depois meus colegas de escola começaram a ouvir junto, o que um descobria
mostrava para o outro e começou tudo assim (Entrevistado 3).
Quando adolescente, começaram aquelas modinhas de colégio, de ouvir aquelas
bandas que todo mundo conhecia. Eu comecei a ouvir também, só que logo comecei
a me interessar mais e a pesquisar mais, assim conheci outros gêneros, e foi aí que
comecei a escutar o metal (Entrevistado 4).
Desde os 12 ou 13 anos, comecei a ouvir heavy metal. O que eu sempre digo para
os meus amigos: é um modo de vida pra mim. Não há um dia em que eu não tenha
um momento dedicado ao metal (Entrevistado 6).
A adolescência é o período em que os jovens buscam referências para manifestar seus
sentimentos e é o momento no qual o heavy metal conquista seu espaço primário. A partir de
experiências compartilhadas, esses laços vão sendo construídos e se fortificam, criando raízes
que se tornam presentes em toda a vida do headbanger, atuando como a confirmação de sua
identidade social. Um dos fatores que consolidam a formação da identidade dos indivíduos é
a relação interpessoal, quando estes se identificam com outras pessoas. Esse fator é
apresentado nas entrevistas por meio das menções à influência, seja dos pais, dos amigos ou
dos familiares.
Comecei a ler a revista Bizz também por causa dos meus primos. Sempre agradeço a
eles, porque um primo meu tinha assinatura e eu pegava emprestado nessa época
(Entrevistado 3).
O meu irmão, mais velho que eu, foi o caminho, sem dúvidas, para começar escutar
o metal, me levou para as bandas clássicas (Entrevistado 6).
O meu primeiro contato com o metal foi através dos meus primos, eu devia ter uns
oito ou nove anos. Eles escutavam Black Sabbath, Led Zeppelin, Pink Floyd. Eu
comecei a gostar das músicas e a buscar mais material (Entrevistado 2).
Meu pai escuta muito rock, ele tinha os CDs do John Lennon, Beatles, Pink Floyd,
Queen, eu escutava essas bandas com ele e comecei a procurar mais bandas. Até
que um dia fui na casa de um amigo e ele me mostrou algumas músicas do Iron
Maiden. A primeira música de heavy metal mesmo que ouvi foi a The Number Of
The Best, do Maiden (Entrevistado 8).
5
Eu sempre tive certo interesse pela música desde criança, pois tenho dois tios que
tocam instrumentos, uma tia pianista e um tio que tocava acordeom (Entrevistado
4).
O papel dos influenciadores no rock em geral trouxe grandes contribuições para os
futuros ouvintes. Por ser um gênero que contém diversas ramificações, os influenciadores
apontam direções a serem seguidas, auxiliando o novo ou inexperiente ouvinte a perceber
diferentes conceitos e particularidades musicais. Fóruns, revistas e conversas são importantes
para essa intermediação de conteúdo, espaços em que são apontados os pareceres dos editores
acerca de determinada banda ou música, servindo como uma orientação, que desperta o
interesse e que após servirá como base de informação para novas buscas. Assim, a construção
musical se dá através da experimentação auditiva guiada, pela qual, posteriormente, o
indivíduo seguirá o gênero/subgênero que mais se identificar.
Além disso, o sentimento de ampliar o grupo, de trazer novos ouvintes, apreciadores e
fãs, fortalecendo o meio e atuando também como fonte de informação, é conceituado por
Maffesoli (1998, p. 131), em que a confiança entre os membros do grupo é estabelecida
através de signos de reconhecimento específicos, “que não tem outro fim senão o de
fortalecer o pequeno grupo contra o grande grupo”. O mesmo autor ainda afirma que “a
partilha secreta do afeto, ao mesmo tempo em que confirma os laços próximos, permite
resistir às tentativas de uniformização” (MAFFESOLI, 1998, p. 131). A confirmação da
teoria do autor pode ser encontrada no fragmento abaixo:
Eu tinha uns 13 anos. Nessa época o acesso à internet não era comum, como eu
tinha internet discada a minha principal fonte de informação eram as revistas.
Lembro da Rock Brigade nessa época, só que eu nunca mais vi pra vender em
bancas, acompanho só pelo site, e a Roadie Crew, que na época eu já tinha alguma
coisa. Acabava trocando muitas informações sobre bandas com meus colegas da
escola, eles mostravam o que haviam achado e a gente compartilhava esse material
(Entrevistado 4).
O diferenciar-se e a necessidade de aceitação em um grupo social é novamente
afirmada nesse ponto, com o fazer-se importante na cena musical. Por isso, também, tantos
fãs têm orgulho em falar sobre o gênero, debater informações e realizar uma espécie de
competição saudável em relação ao nível de conhecimento sobre as bandas que formam a
cena na sua cidade, estado, país e também em nível mundial. Por esse e outros motivos
alguns fãs contribuem para o meio musical em que estão inseridos, não é raro headbangers
6
terem a sua própria banda, externando todos os conceitos defendidos por seus ídolos e em
busca do seu lugar na história do heavy metal.
A gente troca bastante informação [entre os amigos], tem dois momentos que ficam
bem claros, que eu posso te falar bastante informações. Um deles é o período de
antes da internet, que era via de correspondência. A gente tinha os fanzines e as
revistas impressas. A gente trocava informações, eu tinha muita correspondência,
até é bom lembrar que pelas revistas, falando certamente da Rock Brigade e da
Roadie Crew, sendo eventualmente uma outra revista, mas especialmente os
fanzines, em que traziam os endereços de bandas. Eu aleatoriamente buscava nessas
que eu tinha uma identificação maior, quando não pegava [o endereço] de todas as
bandas e enviava cartas pedindo materiais e coisas assim. Quando recebia esse
material também vinham muitas informações de outras bandas, mas tudo no meio
underground. No meio mais conhecido claro, o que aparecia nas revistas eram
bandas que eu já conhecia, então corria atrás por mais material (Entrevistado 6).
Depois meus colegas de escola começaram a ouvir junto, o que um descobria
mostrava para o outro e começou tudo assim. Quando eu comecei a me
corresponder com gente de todo o Brasil, por carta, a gente começou a trocar fita
K7 também. Conheci bastante coisa através de trocas pelo correio, demorava um
mês pra chegar a fita e até hoje tenho os LPs e as fitas guardados (Entrevistado 3).
Quando a internet ainda era pouco acessada pelos brasileiros, a revista Roadie Crew
servia como um dos principais meios de informações dos headbangers, a característica de
levar notícias internacionais para o público brasileiro fortaleceu a relação com o leitor. No
início dos anos 90, as trocas aconteciam de forma lenta e vários processos eram necessários.
A Roadie Crew, juntamente com a Rock Brigade, atuava como centralizadora de contato das
bandas. Estas escreviam para a revista, informando o endereço para envio de materiais e
apresentando seu conteúdo. O leitor que se interessasse deveria enviar uma carta diretamente
à banda, solicitando o envio do material e, se houvesse um valor a ser cobrado, o dinheiro era
enviado juntamente. Assim a rede crescia, as revistas fortaleciam a cena brasileira em
ascensão e as bandas underground conseguiam espaço para expor seu material.
Atualmente, destaca-se que a frequência de consumo do material da revista Roadie
Crew continua a mesma, porém a plataforma de acesso ao conteúdo é diferente. Com a
facilidade de acesso à internet e a disponibilidade imediata de informações, os leitores tem
preferido o acesso on-line e a revista mantém um espaço no site denominado “Classificados”
para a mesma troca que ocorria anteriormente.
7
Uma interessante forma de diferenciação das edições publicadas da Roadie Crew,
apontada pelos entrevistados, é a banda da capa. Não são apontados os números, ou mês da
edição, mas sim a banda de maior destaque.
A Roadie Crew conheci em 1998, com o Blind Guardian na capa. Eu lembro que eu
saí do recreio da escola pra ir comprar a Metal Head e acabei comprando a Roadie
Crew (Entrevistado 3).
Então foi o que eu fiz, a primeira resenha foi de um show em São Leopoldo, em
2001. Mandei as fotos junto e foi publicado na edição de março de 2002, eu acho
que com o Gamma Ray na capa (Entrevistado 3).
Com isso, pode-se verificar a importância da escolha da capa da publicação, pois o
leitor se identifica a partir da banda definida para ocupar aquele espaço, gerando expectativas
acerca do conteúdo. Atua também como uma demarcação e diferenciação, conectando os
assuntos abordados naquela edição com fatos de seu cotidiano e ao sentimento de descoberta
e emocional do leitor.
O heavy metal é um gênero musical não compreendido em sua plenitude, os processos
inclusos no consumo da música são profundos e cheios de significados. O conhecimento
superficial acerca do gênero musical pela sociedade causa desconforto entre os headbangers,
que para serem melhor aceitos adquirem mais de uma identidade que, como apontado por
Hall (2014, p. 11), é uma característica da sociedade atual, onde “o sujeito, previamente
vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
composto não de uma única, mas de várias identidades”.
[...]não gosto da estigmatização, porque ocorrem duas: uma delas é pelo fato de eu
ser fã de metal, ter uma banda, eu não sou um cara sério, que é um preconceito, que
eu não sou um sujeito comprometido com a universidade, o que não é verdade.
Como se alguém que é tatuado, que usa camiseta de banda e que dá aula desse jeito
fosse um cara que não é sério, ou seja, as vezes dentro do próprio grupo existe esse
estigma (Entrevistado 6).
O metal de certa forma segrega tanto no meio familiar como no profissional. Em
pleno século XXI as pessoas têm pré-conceitos. O metal é um estilo de vida, vai
além da música propriamente dita (Entrevistado 2).
[...] venho dar aula com camiseta de banda, mas dependendo do dia, quando tenho
muitas atividades burocráticas tento ser mais formal na minha forma de vestimenta,
não que isso seja obrigatório (Entrevistado 6).
[...] ainda há muito preconceito da sociedade no geral, em pensar que somos um
bando de revoltados sem propósito. Isso incomoda, eu gosto de conversar com as
pessoas para mostrar que não é bem assim que a coisa funciona. Peço para
escutarem a letra, o som, para perceberem a quantidade de elementos que tem ali
(Entrevistado 8).
8
Pode-se perceber que além da identidade de headbanger, os fãs sentem a necessidade
de assumir outras identidades, pois o preconceito que algumas pessoas ainda mantém sobre o
gênero é intenso. Novamente a falta de conhecimento afeta as relações sociais, pois nem todo
headbanger cultua as forças do mal, nem tudo precisa ser ligado a alguma religião ou a falta
delas. A banda de thrash metal Slayer, por exemplo, expõe em suas letras severas críticas em
relação a crenças religiosas4, mesmo assim o vocalista e baixista da banda, Tom Araya, não
esconde sua crença em Deus, tornando-a pública em várias entrevistas. Ronnie James Dio é
outro exemplo, vocalista, gravou 3 álbuns de músicas inéditas com o Black Sabbath, banda
conhecida por sua obscuridade e como uma das criadoras do conceito do heavy metal. Ronnie
Dio nasceu e se criou em família italiana católica e assim defendeu sua crença, apesar de
estar em um meio onde isso era duramente criticado.
Revista Roadie Crew: de objeto a discurso enunciativo
Devido ao déficit de materiais específicos sobre o universo do heavy metal, surgiu a
Roadie Crew. Inicialmente, enquanto fanzine, os conteúdos apenas informavam os leitores.
Foi a partir da profissionalização da publicação que as edições foram aprimoradas, chegando
ao que encontramos hoje nas bancas. O fanzine como micromarca se estabeleceu em um
espaço ainda não ocupado pelas grandes editoras de música do país, trazendo conteúdo local
e relevante para os leitores, como observado no trecho abaixo:
[...] se desenvolve a procura por micromarcas, quase sempre especializadas em um
pequeno setor e divulgadas boca a boca ou por um site na internet. Essas marcas são
distribuídas pelos circuitos paralelos ou alternativos, o que lhes permite escapar do
torniquete implacável da vasta distribuição. Elas prosperam em territórios
abandonados pelas grandes marcas [...] (SEMPRINI, 2010, p. 55).
Além disso, pode-se verificar que a revista se modelou à sua prática discursiva,
construindo e veiculando significados, inserindo os elementos do heavy metal e delimitando
seu conteúdo. Construiu, assim, uma rede semiótica por meio de seu discurso. O objeto
passou por um processo de enunciação seguindo “uma estratégia enunciativa definida por um
enunciador e dirigida, de maneira mais ou menos explícita e mais ou menos voluntária, aos
destinatários” (SEMPRINI, 2010, p. 96).
4
Escute a música Disciple, da banda Slayer. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YeE6RdWcIo. Acesso: 22/10/2015.
9
A própria revista é um objeto que se tornou discurso, pois os editores imprimem as
suas expectativas e os seus gostos pessoais nos textos publicados. Pode-se observar esse fator
nas resenhas de shows e nos reviews de álbuns, em que os colaboradores exprimem sua
própria impressão acerca do material, podendo ou não ser de acordo com a opinião do leitor.
Já tive experiências ruins com releases de álbuns, de ouvir o CD e ficar indignado
com o que o cara escreveu. Eu evito escrever de estilos que eu não gosto, porque ia
acabar interferindo o meu gosto pessoal no texto, mas já aconteceu de eu ler e ficar
indignado, de o som não ter nada a ver com o que o cara falou (Entrevistado 3).
O “projeto de sentido” de Semprini não está somente no conteúdo de seu discurso,
mas também nas relações que estabelece por sua enunciação, sendo que esse discurso
semiótico não fazia parte do objeto. Nessa congruência dos dois discursos que a Roadie Crew
realiza, não há uma dissonância cognitiva.
O processo de identificação do leitor com a Roadie Crew utiliza vários métodos
semióticos, seja pelo texto, pelas imagens, pelo apelo emocional ou pelo discurso das
próprias bandas que encenam as publicações e os discursos construídos por esse aglomerado
de informações acerca do gênero.
Compreendendo o nível de influência que o heavy metal tem no cotidiano dos fãs e
sabendo que o fato de disseminar informações acerca do gênero para outros apreciadores é
um ato considerado de grande estima no meio, verificou-se que a apropriação e a reemissão
de conteúdos são amplamente praticadas pelos headbangers, relação que acontece de várias
formas. As principais, destacadas nos discursos dos entrevistados, foram as apropriações e
remissões online, uma vez qie atualmente se encontra conteúdo de forma rápida e de fácil
acesso, e as trocas por correspondência, quando a internet não era acessível a todos.
Ainda hoje, costumo indicar muitas bandas e materiais para os amigos. Isso é um
fato legal do metal, o pessoal descobre algo novo e corre mostrar pra todo mundo.
Eu escrevi pra um fanzine, há muito tempo atrás. O nome era O Barulho, fazíamos
ele impresso (Entrevistado 2).
É muito bom discutir e contar a história de cada banda, de cada música. A gente
sempre teve esse hábito de discutir bastante sobre música. Inclusive tive um
programa de rádio, chamado Lado M, que tinha a proposta de comentar e apresentar
bandas de heavy metal, enfatizando as décadas de 1980 e 1990, mas, às vezes, eu
falava de alguma coisa que surgiu a partir de 2000, algum material novo, ou bandas
novas, principalmente no cenário do RS (Entrevistado 8).
Ainda morando em Porto Alegre eu realizei a cobertura de shows de bandas de
black metal, na verdade foi apenas um. Tenho um amigo que era do POA Show e
pediu para eu fazer a cobertura do show do Marduk e Ad Hominem, em 2009 ou
2010, se não me engano, e escrevi para o POA Show uma resenha. Agora tive uma
contribuição no livro que o Maicon Leite organizou, participei com entrevista, mas
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não muito, alguns colegas meus, mais. Mas nessa nova edição, que pega mais o meu
tempo, aí sim tem uma colaboração maior da minha parte (Entrevistado 6).
A emissão das informações ocorre de forma primária pelas revistas e pelos sites
especializados em música. Os leitores atuam como protagonistas na recepção do conteúdo,
pois decidem se irão apenas ler ou escolher transmiti-lo novamente para outras pessoas,
gerando uma nova emissão. Essa nova emissão ocorre por meio dos fanzines, dos rádios e dos
blogs de autoria própria dos leitores, que utilizam as informações das fontes primárias para
produzir um novo conteúdo, ou apenas reproduzi-lo. Para Semprini (2010, p. 102), os leitores
são chamados de protagonistas e auxiliam na contratação do projeto de marca de suas fontes
de informação, pois “legitimam sua permanência, seu conteúdo e sua evolução”.
Um fator importante para que essa nova emissão aconteça é o contexto. De acordo
com Semprini (2010), as tendências socioculturais e sociais estão presentes no contexto.
Assim, a característica de compartilhamento de informações dos headbangers é afirmada por
esse fator, pois, contribuindo para a cena, adquirem um papel social no meio em que se
inserem, tornando-se uma referência.
Considerações finais
Nesse estudo, foi possível abordar a importância que a música tem na vida das
pessoas, desde a Antiguidade até os dias atuais. A música inicialmente narrava o cotidiano de
um grupo de pessoas e, aos poucos, passou a ser um elemento difusor de valores culturais,
carregado de significados. O heavy metal, além de um gênero musical, tornou-se uma
manifestação cultural, com uma forte rede de significados. A partir da contextualização da
cultura e dos Estudos Culturais britânicos, o qual, assim como o heavy metal, nasceu na
cidade de Birmingham, na Inglaterra, foi possível construir uma trama entre os assuntos. Pelo
viés do campo de pesquisa sobre os Estudos Culturais, a interpretação acerca da cultura
precisa ser analisada pautando-se pelo contexto social no qual as pessoas se inserem, assim
como pelas orientações sociais e políticas. No decorrer desse estudo, as pesquisadoras
puderam compreender os pretextos fundamentais que motivaram o surgimento do heavy
metal, sendo o principal deles a não aceitação da realidade social em que as primeiras bandas
do gênero se encontravam. Isso caracterizando, também, um dos motivos para que as relações
de identificação tenham se tornado fortes, pois era um sentimento compartilhado por muitos
11
jovens. Assim, a revista Roadie Crew soube utilizar a seu favor os elementos desse universo,
tonando-se uma fonte de referência nacional sobre o assunto.
Considerando as entrevistas realizadas, pode-se perceber que a revista foi uma das
principais fontes de referência dos jovens dos anos 1990, apesar da dificuldade em se obter
conteúdo específico sobre o gênero musical naquela época. Foi um importante canal de troca
de materiais específicos, visto que os leitores anunciavam discos e fanzines em uma seção
específica, possibilitando que outros leitores entrassem em contato para que as trocas fossem
efetivadas. Geralmente, os headbangers sentem orgulho ao falar do gênero musical que mais
apreciam, fato que justifica a contribuição de maneira voluntária em revistas, rádios, fanzines
e produções de shows, pelo orgulho de colaborar para que a cena heavy metal aconteça. A
presença dos influenciadores é um forte quesito apresentado; todos os entrevistados
conheceram o gênero através da influência dos pais, dos amigos ou de algum outro familiar,
principalmente na adolescência, e mantém essa prática de retransmitir informações por novos
meios, em sites e blogs.
Também foi possível verificar a importância da revista na construção imagética do
heavy metal no Brasil, auxiliando no conhecimento de novas bandas internacionais e
fomentando a produção fonográfica nacional. Devido ao reconhecimento da cena local, novas
bandas se formaram, em diversas regiões do país, aproximando-se do público e, muitas vezes,
contextualizando-o sobre o que o heavy metal representava naquele período. A fidelidade ao
gênero também é apresentada nos discursos dos entrevistados ao diferenciarem o heavy metal
dos demais gêneros musicais. Essa diferenciação auxilia os fãs a se sentirem pertencentes a
um mesmo grupo e inseridos no mesmo contexto.
O que se espera deste estudo é que possa fomentar mais pesquisas sobre o heavy metal
e que auxilie na compreensão desse gênero musical que possui diversos códigos e valores,
além dos elementos estritamente sonoros.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
DUNN, Sam; WISE, Jessica; MCFADYEN, Scot. Metal: A Headbanger's Journey. [Filmevídeo]. Produção e direção de Sam Dunn, DVD, 2006, 94 min. Color.
DUNN, Sam; MCFADYEN, Scot. Global metal. [Filme-vídeo] Produção e direção de Sam
Dunn, DVD, 2008, 95 min. Color.
ERIKSON, Erick. H. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
12
FACHIN, Odília. Fundamentos de Metodologia. São Paulo: Saraiva, 2003.
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