54 CAPÍTULO 3 HEMOGLOBINAS NORMAIS A ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS HEMOGLOBINAS A origem da hemoglobina e seu processo evolutivo está relacionado com o desenvolvimento de vida em nosso planeta. A primeira evidência científica de vida na Terra foi obtida por meio de análises de sedimentos da Groelândia que indicaram por métodos indiretos de isótopo de carbono (C12) que as rochas continham componentes orgânicos datados de aproximadamente 3,8 bilhões de anos. Fósseis de colônias bacterianas datados de 3 bilhões de anos foram encontrados nos mares do Caribe e do oeste da Austrália, indicando efetiva organização de microorganismos ao longo desse tempo. Animais e plantas não microscópicos emergiram do mar há 800 milhões de anos e se desenvolveram no solo há 400 milhões de anos. Estudos efetuados em plantas leguminosas, leveduras e paramécio, revelaram que os genes codificadores para hemoglobinas devem ter se manifestado há cerca de 800 milhões de anos. É provável que neste período as moléculas de hemoglobinas primitivas surgiram como subprodutos resultantes da formação de citocromo c- uma proteína pigmentada essencial para a respiração celular. Pesquisas realizadas com o objetivo de avaliar a evolução de genes codificadores de proteínas (ou exons) mostraram que em plantas leguminosas, essas proteínas conhecidas por leghemoglobinas, tinham quatro exons (ou genes codificadores) entremeados por três introns (estrutura do DNA sem capacidade de codificar), em um mesmo cromossomo, conforme mostra a etapa 1 da figura 29. Os estudos feitos em algumas espécies de peixes primitivos mostraram que houve a redução para três genes codificadores de hemoglobina num mesmo cromossomo, caracterizado por três exons entremeados por dois introns (etapa 2 da figura 29), fato sugestivo de que esses peixes primitivos divergiram durante o processo evolutivo dos vertebrados que tiveram a duplicação de cromossomos (etapa 3 da figura 29). Acredita-se que essa duplicação se manteve por muito tempo, pois há 500 milhões 55 de anos duas cópias se diferenciaram por mutações adaptativas para formar dois grupos de exons denominados por alfa e beta, e agrupados em um único cromossomo (etapa 4 da figura 29). Outros milhões de anos seguintes fizeram com que o processo evolutivo desenvolvido por meio de transposição ou translocação, duplicasse o cromossomo em dois cromossomos com características específicas: um com genes alfa e outro com genes beta (etapa 5 da figura 29). Por volta de 100 milhões de anos os genes codificadores de globinas alfa e beta se diferenciaram individualmente para se processarem durante as fases de desenvolvimento de um ser mais complexo, caracterizadas pelas diferenças morfo-funcionais que ocorreram nos períodos embrionário, fetal e pós-nascimento (etapa 6 da figura 29). Assim, por volta de 70 milhões de anos quando surgiram os primeiros primatas, identificados pelo Ancestral Hominídeo Comum, os genes para a síntese de globinas alfa e beta já estavam bem definidos (etapa 7 da figura 29). Esses primatas primitivos demoraram quase 60 milhões de anos para se desenvolverem e se diferenciarem em dois sub-grupos: o Ancestral HumanoChimpanzé e os gorilas. Pesquisas realizadas nos diferentes continentes mostraram que a África certamente foi o local em que os primatas evoluíram para o bipedismo, entre 5 e 10 milhões de anos. Por volta de 4 milhões de anos surge o Australopithecus africanus com características morfológicas de chimpanzé e humana. Entre 2,5 e 1,6 milhões de anos surgiu o Homo habilis que conviveu com o Australopithecus. Nessa fase ocorreram expressivas mudanças morfológicas especialmente na estrutura da cabeça e face. Por volta de 1,5 milhões de anos destaca-se o aparecimento do Homo ergaster, também na África, e desse ancestral partem duas linhagens bem definidas, a do Homo erectus que viveu exclusivamente na África e o Homo heidelbergensis cujos fósseis foram encontrados na África, Ásia e Europa. Ambos apresentam diferenças morfológicas em relação ao ancestral comum (H. ergaster) evidenciadas pelos alongamentos da cabeça e das pernas. Proveniente do H. heidelbergensis, surgiram há 100 mil anos o Homo sapiens neanderthalis, e há 40 mil anos o Homo sapiens sapiens. A figura 30 mostra o resumo da árvore genealógica da espécie humana. É fundamental que seja destacado que durante todo o processo da evolução da espécie humana, desde o Ancestral Hominídeo Comum (há 70 milhões de anos) até o Ancestral 56 Humano-Chimpanzé (há 4 milhões de anos) a molécula de hemoglobina se diferenciou em apenas um aminoácido na posição 23 da globina alfa, onde o ácido aspártico foi substituído pelo ácido glutâmico (figura 31). E há 4 milhões de anos a seqüência de aminoácidos da hemoglobina humana, em relação aos seus ancestrais, permanece estável. Como foi possível observar na leitura desse breve resumo sobre o desenvolvimento da hemoglobina em relação aos seres vivos desde os primórdios do nosso planeta, a hemoglobina teve realmente sua origem há milhões de anos em vertebrados marinhos. Embora proteínas com características de transportadoras de oxigênio tenham sido relatadas entre leguminosas e em invertebrados, foi somente com os vertebrados que a hemoglobina se desenvolveu como molécula especializada no transporte de oxigênio devido ao fato de ter uma célula específica para este fim, qual seja, o eritrócito. O desenvolvimento do eritrócito e da hemoglobina como um conjunto harmonioso na fisiologia do transporte de oxigênio, teve importância fundamental na evolução das diversas espécies de vertebrados. Estudos realizados em sangue de lampréias mostraram que o transporte de oxigênio é realizado por moléculas de hemoglobinas formadas por um único tipo de globina (ver etapas 1 e 2 da figura 29). Admite-se, portanto, que no período de divergência da lampréia para outras formas de vertebrados ocorreu a duplicação dos genes codificadores em genes específicos: alfa e beta. A especialização fisiológica de captação, transporte e liberação de oxigênio tornou-se maior e mais efetiva com a formação de tetrâmeros de moléculas de hemoglobinas compostas por duas globinas alfa e duas beta (ou α2 β2). Esse tipo de estrutura tetramérica é encontrada em peixes, répteis, anfíbios, aves e mamíferos. Para quase todas as espécies de animais vertebrados ocorre a síntese de diferentes formas tetraméricas de moléculas de hemoglobinas que são específicas para as diversas fases de transformações que acontecem desde a fecundação do ovo até a fase adulta. Por exemplo, em anfíbios as moléculas das hemoglobinas do girino diferem daquelas encontradas em rãs adultas. Na espécie humana ocorre o mesmo fenômeno de diferenciação de hemoglobinas nas três fases de desenvolvimento: embrionário, fetal e pós-nascimento, caracterizando respectivamente as Hb embrionárias, a Hb Fetal, e as Hb adultas (ou Hb A/A2). Cada um desses três tipos básicos de hemoglobinas humanas apresentam processos fisiológicos de captação, transporte e liberação de oxigênio que estão relacionados com as diferentes fases do 57 desenvolvimento embrionário e fetal, bem como após o nascimento. Todos esses fenômenos relativos à síntese de hemoglobinas é bem conhecido geneticamente, como se verá adiante. 58 Etapa 1 (800 m.a.) Etapa 2 (700 m.a.) Etapa 3 (600 m.a.) Etapa 4 (500 m.a.) α β Etapa 5 (300 m.a.) Etapa 6 (100 m.a.) α ζ ε γ Etapa 7 (70 m.a.) ζ ψζ ψ α1 α2 α1 ε γG β γA ψ β δ Feto PN PN Pseudogene β Pseudogene Embrião Feto Feto PN PN Embrião Feto Figura 29 – Proposta sobre evolução do gene da globina durante 800 milhões de anos m.a.: milhões de anos; PN: pós-nascimento Pseudogenes: são genes que tem seqüência de DNA, porém estão inativos por processo de mutação ou deleção. 59 70 milhões de anos ANCESTRAL HOMINÍDEO COMUM 4 milhões de anos ANCESTRAL HUMANO - CHIMPANZÉ Australopithecus africanus 2,5 – 1,6 milhões de anos 1,5 milhões de anos 1 milhão de anos 100 mil anos Homo habilis CHIMPANZÉ Homo ergaster Homo erectus Homo heidelbergensis Homo sapiens neanderthalis 40 mil anos Figura 30 – Resumo da árvore genealógica humana. Homo sapiens sapiens 60 ANCESTRAL HOMINÍDEO COMUM 70 milhões de anos globina α 23: Ácido aspártico (Asp) globina β 104: Arginina (Arg) 4 milhões de anos ANCESTRAL HUMANO - CHIMPANZÉ Globina α 23: Asp → Ácido Glutâmico HUMANO CHIMPANZÉ GORILA Figura 31 – Divergência da linhagem humano - chimpanzé e da linhagem gorila do ancestral hominídeo comum, e a diferença entre aminoácidos ao longo de 70 milhões de anos até o presente. 61 A SÍNTESE DAS GLOBINAS A síntese das globinas na espécie humana requer um rígido controle genético do DNA inserido nos genes de globinas do tipo alfa no cromossomo 16 e nos genes de globinas do tipo beta no cromossomo 11. Esses genes se tornam ativos à medida que os precursores eritrocitários amadurecem conforme foi apresentado no capítulo 2. Entretanto a síntese da globina tem dinamismos diferentes para cada fase do desenvolvimento humano, morfologicamente caracterizada por embrionária, fetal e pós-nascimento. Esse processo que diferencia os tipos de globinas e, consequentemente, das hemoglobinas, se deve não somente ao estímulo de cada gene para respectiva fase de desenvolvimento, mas decorre notadamente de enzimas estimuladoras do DNA (DNA polimerase) que reproduz um molde que configura o seu RNA complementar. Este RNA, por sua vez, precisa de uma enzima complexa conhecida por RNA polimerase para induzir o seu crescimento em forma de fita que gradualmente se desprende do DNA que foi copiado. Por essa razão a RNA polimerase tem fundamental importância na síntese de proteínas, quer no sentido da sua composição estrutural, bem como da sua concentração. Para que seja possível entender a síntese dos diferentes tipos de globinas podemos admitir que cada um dos genes de globinas tipo alfa (ζ, α2, α1), e os de globinas tipo beta (ε, γG, γA, δ, β) são estimulados por RNA polimerases específicos. Na região do cromossomo 16 onde se localizam o grupo de genes de globinas tipo alfa há uma pequena extensão de bases nitrogenadas cujo conjunto é conhecido por região controladora dos genes (RCG) de globinas alfa, e o mesmo ocorre com relação ao cromossomo 11 (figura 32). É justamente na RCG que as RNA polimerases específicas para cada genes de globinas tipo alfa e tipo beta são formadas e estimuladas a induzirem as sínteses de globinas em cada um desses genes. A análise da figura 32 mostra que o agrupamento de genes de globinas do tipo alfa (RCG – ζ – ψζ – ψα1 – α2 – α1) tem seqüência aproximada de 40 mil de bases nitrogenadas, sendo portanto menor que os genes de globinas do tipo beta (RCG – ε – γG – γA – δ – β) com cerca de 60 mil bases nitrogenadas. Em biologia molecular considera-se que a leitura das bases se faz no sentido 5' → 3' e assim é possível observar que há um sentido lógico relacionando o 62 desenvolvimento morfológico do ser humano com as sínteses específicas de globinas para as respectivas fases embrionária, fetal e pós-nascimento. É preciso também considerar que a estimulação de cada um desses genes de globinas depende da quantidade de RNA polimerase específica para esse fim. Certamente há mecanismos que ainda não estão bem definidos para determinar o início e o fim de cada tipo de RNA polimerase para cada fase do desenvolvimento humano, até o momento em que esse processo se estabiliza, fato que ocorre por volta do sexto mês de vida (tabela 8). A figura 33 mostra a eletroforese de globinas normais extraídas de pessoa adulta e de recém-nascido. Enquanto no adulto a síntese de globinas alfa e beta está bem estabilizada e equilibrada, no recém-nascido ainda há, além da globina alfa, outras duas globinas gama: γA e γG, que compõe a Hb Fetal. É importante destacar que os genes duplicados de globinas gama são diferenciados pela inserção de um único aminoácido na posição 136 de cada polipeptídeo gama sintetizado e, por isso, se diferenciam em γG quando o aminoácido glicina ocupa esta posição, ou γA no caso de ser a alanina. A proporção de síntese dessas duas globinas que compõe a Hb Fetal é constante durante a fase fetal, ou seja 70% de γG e 30% de γA. Por outro lado, após o nascimento, em situações em que a Hb Fetal permanece elevada – como são os casos de persistência hereditária da Hb Fetal, ou em condições patológicas por descoordenação de sua síntese – como são os casos de talassemias beta, a relação γG : γA apresenta ampla variação sem que seja possível estabelecer relação consistente entre a proporção desses dois tipos de globinas gama com causas que determinam a elevação de Hb Fetal. 63 A SÍNTESE DO GRUPO HEME Síntese da Porfirina A síntese do grupo heme ocorre nas mitocôndrias dos eritroblastos após várias reações químicas que resultam em expressivas transformações estruturais envolvendo a biossíntese das porfirinas e a introdução do ferro neste complexo molecular. A síntese de porfirina tem início durante o metabolismo do ácido cítrico (ciclo do ácido cítrico ou ciclo de Krebs), onde compostos químicos intermediários são formados e participam como precursores ou substratos para muitas vias biosintéticas, entre as quais se destaca a síntese da porfirina (figura 34). Os produtos intermediários do ciclo do ácido cítrico como a succinil coenzima A (succinil Co-A) e o aminoácido glicina se combinam por reação catalítica intermediada por uma enzima mitocondrial, a delta-amino levulinato sintetase, ou ALA-sintetase, com a participação da vitamina B6. Nesse processo forma-se um composto instável de ácido alfa-amino-beta-adípico, que se descarboxila espontaneamente em ácido-delta-aminolevulínico (ALA). A partir dessa fase, ocorrem várias reações químicas de transformações, com participações de enzimas que atuam na desaminação, descarboxilação e na oxidação de produtos intermediários, até formarem a molécula de porfirina (figura 35). Após a configuração do anel da porfirina, o ferro é introduzido no seu interior para se ligar com quatro átomos de nitrogênio (figura 36). Esse conjunto caracterizado como grupo heme se prende à globina por meio de ligações com dois aminoácidos histidina, molecularmente distinguidas por histidina proximal e histidina distal (figura 37). 64 Metabolismo do ferro A maioria do ferro orgânico presente na hemoglobina é encontrada nos eritrócitos circulantes. Os macrófagos do sistema retículo endotelial armazenam o ferro liberado pela hemoglobina de eritrócitos velhos fagocitados sob forma de ferritina e hemossiderina. Os macrófagos também liberam átomos de ferro no plasma que se ligam à transferrina e são transportados para os tecidos hematopoiéticos, incorporando-se nos precursores dos eritrócitos – os eritroblastos. O balanço de ferro é rigidamente controlado entre perda e ganho. Há uma perda de ferro diária que ocorre através da urina, fezes, pele, unhas e menstruação. Esta perda, variável entre 1 e 2 miligramas diárias, é restabelecida pelo ferro absorvido na dieta, que oscila também entre 1 e 2 miligramas/dia. O ferro circulante na hemoglobina tem concentrações variáveis entre 1,7 a 2,4g, e o ferro absorvido e armazenado sob forma de ferritina pelos macrófagos também é representativo, entre 0,5 e 1,5g. A incorporação do ferro através dos receptores de transferrina, as reservas intracelulares de ferro em ferritina e a incorporação do ferro no anel protoporfirínico para a síntese do heme nas mitocôndrias, são eventos coordenados em resposta ao suprimento de ferro no nível de transcrição e de tradução, pela presença de elementos responsivos ao ferro (ERF) localizados nas regiões ascendentes não traduzidas dos RNA mensageiros (RNAm) para ferritina e para a enzima eritróide heme sintética ácido delta-aminovulínico sintetase (ALA-S). Esse processo biologicamente complexo do equilíbrio (ou homeostase) do ferro celular tem na estrutura do ERF o seu ponto de compensação, ou seja, quando há grande disponibilidade de ferro ocorre baixa afinidade entre ferro e ERF, resultando em menor síntese do receptor da transferrina, e aumento da síntese de ferritina e ALAS. Por outro lado, quando o suprimento de ferro é baixo há o aumento de sua ligação com o ERF, com o aumento da síntese do receptor da transferrina e a redução na síntese de ferritina e ALA-S. 65 Situações que prejudicam a formação do grupo heme Há duas situações bem específicas que tem influência no desempenho da síntese do grupo heme. A primeira se deve à deficiência de enzimas que participam das transformações químicas que ocorrem durante a síntese do anel porfirínico, e em decorrência desse defeito ocorre a porfíria. A segunda situação que causa prejuízo na formação do grupo heme se deve à deficiência de ferro. A porfíria constitui um conjunto de doenças, geralmente hereditárias, causadas por alterações que ocorrem durante o processo de formação das porfirinas (figura 34). As três porfirinas de importância clínica são: protoporfirina, uroporfirina e coproporfirina. A protoporfirina está amplamente distribuída pelo corpo e desempenha a função de precursor do grupo na composição da hemoglobina e mioglobina, bem como da catalase e dos citocromos; participam também do armazenamento e utilização de energia celular. A coproporfirina e a uroporfirina, que são precursoras da protoporfirina, são normalmente excretadas em pequenas quantidades pelas fezes e urina. Os eritrócitos contém pequena concentração de protoporfirina e coproporfirina. Os portadores de porfírias se caracterizam pela fotossensibilidade, dores abdominais agudas, neuropatias, excreção urinária aumentada de porfirinas e de seus precursores. As principais síndromes das porfírias são: • Porfíria eritropoiética – causa hereditária • Protoporfíria eritrocitária – causa hereditária • Porfíria hepática intermitente aguda (PIA) – causa hereditária • Porfíria hepática variegatta – causa hereditária • Porfíria hepática cutânea tardia – causa adquirida • Porfirinúria – causa decorrente de doenças malignas, infecções e poliomielite Os tipos, as características e a idade de manifestações clínicas e laboratoriais das porfírias estão resumidas nas tabelas 9 e 10. 66 O ferro tem igual importância que as sínteses de porfirinas e de globinas para compor a complexa molécula de hemoglobina. As principais situações que causam as deficiências de ferro e, consequentemente, de hemoglobina se devem a quatro condições: a) perda crônica de sangue, b) aumento de demanda, c) mal absorção, e d) dieta com carência de ferro. Em países subdesenvolvidos, ou mesmo nos bolsões de pobreza de países ou cidades desenvolvidas, a principal causa da deficiência de ferro é de ordem alimentar. Em países desenvolvidos ou em classes sociais com boas condições econômicas – que incluem moradia, saneamento básico e cultura – a causa mais freqüente de deficiência de ferro se deve à sua perda crônica, notadamente através do trato gastrointestinal e uterina. Entretanto é importante ressaltar que a demanda de ferro durante a infância, adolescência, gestação, lactação e ciclo menstrual, aumenta o risco de anemia pelo balanço negativo de ferro. Finalmente, uma situação rara envolve conjuntamente o uso de ferro na sua inserção no anel de protoporfirina, trata-se da anemia sideroblástica. Esta anemia é do tipo refratária, ou seja, não responde ao tratamento por suplementação de ferro, laboratorialmente se caracteriza pela presença de eritrócitos hipocrômicos e elevada concentração de ferro nos eritroblastos medulares, fato que originou o nome da anemia sideroblástica. A forma mais comum de anemia sideroblástica se deve ao defeito na síntese das porfirinas causada por mutação da enzima ácido-delta-aminolevulínico-sintetase (ALA-S), que é sintetizada no cromossomo X. Por essa razão, a ação da enzima ferroquelatase fica prejudicada e, consequentemente, o ferro não é inserido no anel porfirínico e o grupo heme não é sintetizado (consultar figura 34). Um resumo esquemático das principais causas que podem influenciar na formação da hemoglobina, especialmente devido à síntese do grupo heme está representada na figura 38. 67 A MOLÉCULA DA HEMOGLOBINA A molécula de hemoglobina é estruturalmente composta por duas globinas do tipo alfa e duas do tipo beta, compondo um tetrâmero com formato globular (figura 39). As dimensões espaciais do tetrâmero são as mesmas nas hemoglobinas embrionárias (Gower-1, Gower-2 e Portland), e nas hemoglobinas Fetal, A e A2, com diâmetro de aproximadamente 5,5nm configurando-lhes um modelo globular e discretamente achatado. O peso molecular das hemoglobinas humanas é próximo de 64.500 daltons, com pequenas variações entre os diferentes tipos. Todas as moléculas de hemoglobinas das fases embrionária, fetal e pósnascimento tem 574 aminoácidos, dos quais 282 estão na composição das duas globinas tipo alfa (141 aminoácidos por globina tipo alfa) e 292 na composição das duas globinas tipo beta (146 aminoácidos por globina tipo beta). Os graus de semelhanças estruturais, calculado com base na similaridade da composição de aminoácidos entre os tipos de globina são variáveis com maior identidade entre as globinas beta e delta (96% de semelhança), seguida da beta e gama (71%), e com menores similitudes entre alfa e beta (42%), e alfa e gama (39%). Essa identidade química é possível ser explicada por meio da suposição genética sobre a origem e evolução da hemoglobina, apresentada no início desse capítulo. A estabilidade das moléculas de hemoglobinas, quer sejam embrionárias, Fetal, A ou A2, é dependente do arranjo estrutural que ocorre entre a composição das globinas do tipo alfa com as do tipo beta. As estruturas tridimensionais desses dois grupos de globinas são muito parecidas, apesar de suas seqüências de aminoácidos serem diferentes, conforme apresentado acima. A conformação globular da molécula de hemoglobina se deve à extensa disposição helicoidal dos polipeptídeos que compõe as globinas dos tipos alfa e beta (figura 39), que representa 75% do total da sua estrutura. Os trabalhos realizados por Perutz e Kendrew em 1959 utilizando o método de cristalografia de proteínas por meio da difração de raio-X, mostraram algumas particularidades físico-químicas da molécula de hemoglobina definitiva ou adulta (Hb A). A Hb A possui um rearranjo tetraédrico devido a conformação pareada de duas globinas alfa (α2) e duas beta (β2). Essa disposição tetramérica α2 β2 somente é possível devido às ligações físico- 68 químicas de diferentes intensidades que possibilitam a movimentação da molécula durante a oxigenação. Para tornar mais fácil o entendimento dessas ligações e das suas relações com a fisiologia da hemoglobina, denominou-se o tetrâmero químico α2 β2 em α1 α2 / β1 β2 (figura 40), devido aos contatos intermoleculares que ocorrem entre globinas alfa e beta. Pela disposição do tetrâmero da hemoglobina (figuras 39 e 40) observa-se que as globinas alfa e beta se situam diagonalmente, de tal forma que os contatos entre os aminoácidos da globina α1 com a globina β2 (α1 β2) são iguais aos que ocorrem entre as globinas α2 β1. Da mesma forma os contatos intermoleculares entre α1 β1 são iguais aos α2 β2. Os contatos entre as globinas α1 β2 e α2 β1 envolvem um total de 38 aminoácidos (6,6% do total de aminoácidos da molécula). Esses contatos α1β2 e α2 β1, que se dispõe horizontalmente no modelo molecular da figura 40, promovem movimentos de deslizamento das globinas alfa e beta, fato que facilita a oxigenação dos quatro grupos heme da molécula. Os contatos intermoleculares entre as globinas α1 β1 e α2 β2 são mais extensos pois participam 68 aminoácidos (11,8% do total de aminoácidos da molécula) que se dispõe verticalmente no modelo molecular da figura 40. Esses contatos α1 β1 e α2 β2 são os que mantém a integridade físico-química do tetrâmero, dando-lhe estabilidade molecular. Os contatos α1 α2 ocorrem somente na forma desoxigenada da hemoglobina, e tem influência na interação entre os grupos heme, no efeito Bohr e no transporte de CO2. Os contatos β1 β2 ocorrem nas formas oxi e desoxigenadas, e são responsáveis pela acomodação da molécula de 2,3 difosfoglicerato (2,3 DPG) durante a desoxigenação da hemoglobina. Os estudos seqüentes sobre a configuração estrutural da molécula de hemoglobina demonstraram que as globinas dos tipos alfa e beta tem duas regiões específicas, a interna e a externa. As regiões internas, são compostas por aminoácidos não-polares e hidrofóbicos localizados em 75% da molécula, incluindo os helicóides e o grupo de aminoácidos que envolve o grupo heme. As regiões externas são bem menos extensas pois compreendem apenas em 25% do conteúdo molecular, e são formadas por aminoácidos polares e hidrofílicos que se dispõe nas partes não helicoidais da molécula, fazendo contato com a água. A tabela 11 mostra os aminoácidos hidrofóbicos e hidrofílicos. 69 CROMOSSOMO 16 – GENES DO TIPO ALFA 40.000 bases nitrogenadas 5' 3' RCG ζ ψζ ψ α1 α2 α1 Feto PN Feto PN Pseudogenes Embrião Região Controladora de genes CROMOSSOMO 11 – GENES DO TIPO BETA 60.000 bases nitrogenadas 5' 3' RCG Região Controladora de genes ε Embrião G B γ γ Feto Feto ψβ Pseudogene δ β PN PN Figura 32 – Esquema representativo do agrupamento de genes de globinas do tipo alfa (cromossomo 16) e tipo beta (cromossomo 11), com destaques para a Região Controladora de Genes (RCG) e o tamanho de cada agrupamento caracterizado pelo número de bases nitrogenadas. PN: pós-nascimento. 70 Tabela 8 – Relação entre os diferentes tipos de hemoglobinas, composições estruturais e concentrações, com as fases de desenvolvimento ontogênico. Fase da Hemoglobina Estrutura ontogênese Embrionária Fetal (*) Pós – Nascimento Concentração (%) Gower – 1 ζ2 ε2 20 – 40 Portland ζ2 γ2 5 – 20 Gower – 2 α2 ε2 10 – 20 Fetal α2 γ2 90 – 100 A α2 β2 96 – 98 A2 α2 δ2 2–4 Fetal α2 γ2 0–1 (*) Na fase fetal ocorre o início as síntese da Hb A, não excedendo 10% de concentração 71 Figura 33 – Eletroforese de globinas obtidas de amostras de pessoa adulta e recém-nascido. No adulto o fracionamento de globinas alfa e beta se caracteriza visualmente pelo equilíbrio de suas concentrações. No recém-nascido, além da globina alfa há duas outras globinas, a γA e γG, que decrescem rapidamente após o nascimento. Após o sexto mês de vida normalmente as duas globinas gama deixam de ser sintetizadas para serem substituídas pela globina beta. 72 Piruvato Acetil-Co A Ácidos Graxos e esteróis Glicose Fenilpiruvato Oxaloacetato Citrato Glutamina Prolina Arginina Serina α - cetoglutamato Glicina Glutamato Malato Cisteína Aspartato Fenilalanina Asparagina Purinas Succinil – Co A Tirosina Triptofatano Pirimidinas Porfirinas Figura 34 – Esquema sintético representativo do ciclo do ácido cítrico (Krebs). Produtos intermediários desse ciclo, assinalados em retângulos, participam da síntese do grupo heme. 73 GLICINA SUCCINIL – Co A ALA sintetase ALA PBG PBG desaminase PORFÍRIA INTERMITENTE AGUDA URO I URO III cossintetase PORFÍRIA ERITROPOIÉTICA (Doença de Gunther) URO III URO descarboxilase PORFÍRIA CUTÂNEA COPRO DEFICIÊNCIAS ENZIMÁTICAS COPRO oxidase DOENÇAS COPROPORFÍRIA PROTO gene PROTO gene oxidase PORFÍRIA VARIEGATTA PROTOPORFIRINA PROTOPORFÍRIA Ferroquelatase ERITROPOIÉTICA FERRO HEME Figura 35 – Síntese da molécula de porfirina e do grupo heme após a incorporação do ferro, e a relação das deficiências enzimáticas com doenças que causam as porfírias. 74 CH2 H C CH CH3 CH3 N CH N Fe HC N CH2 CH N CH3 H3C CH2 CH2 COOH C H CH2 CH2 COOH Figura 36 – O grupo heme composto pela molécula anelada de porfirina e o ferro em sua região central. 75 Figura 37 – Representação da estrutura molecular do grupo heme inserido na globina. No centro, a esfera maior representa o ferro circundado pelo anel de porfirina. As estruturas carbonadas mais claras indicam as posições dos aminoácidos hidrofóbicos que protegem o grupo heme da água circundante. As estruturas escuras e maiores são os aminoácidos hidrofílicos da superfície interna da globina. 76 Tabela 9 – Principais características das porfírias eritropoiéticas. Características Herança Idade Prevalência Fotossensibilidade Anemia Esplenomegalia Lesão cutânea PE PPE Autossômica recessiva Autossômica dominante 0 a 5 anos 0 a 5 anos Rara Comum Elevada Baixa Hemolítica – Presente – Vesiculares e Dermatoses ulcerativas Urina Prognóstico Vermelha ou rosa Normal Ruim Bom PE: Porfíria eritropoiética; PPE: Protoporfíria eritropoiética 77 Tabela 10 – Principais características das porfírias hepáticas. Herança PIA PV CP PC Autossômica Idem Idem Adquirida Variável Variável dominante Idade 15 a 40 anos 10 a 30 anos Prevalência Comum Rara Rara Rara Fotossenbilidade Ausente Ausência Ausência Intensa Lesão cutânea Ausente Presente Ausente Presente Dor abdominal aguda Presente Presente Presente – Neuropatia Presente Presente Presente – Hepatopatia – – – Presente Vermelha e (*) – – Bom Bom Variável Urina escura Prognóstico Bom (*) aumento de coproporfirina, uroporfirina e protoporfobilinogênio. PIA: Porfíria intermitente aguda; PV: Porfíria Variegatta; CP: Coproporfíria hereditária; PC: Porfíria cutânea tardia. 78 FERRO PROTOPORFIRINA Anemia Sideroblástica • Deficiência de ferro • Perda de ferro HEME + GLOBINA HEMOGLOBINA Figura 38 – Esquema representativo de situações que interferem na síntese do grupo heme. 79 Figura 39 – Modelo espacial do tetrâmero da molécula de hemoglobina formado por duas globinas do tipo alfa e duas do tipo beta, com o grupo heme inserido em cada uma das globinas. 80 β1 α2 α1 β2 Figura 40: Contatos intermoleculares entre as globinas alfa e beta. Os contatos α1 β 1 e α2 β 2 têm importância na estabilidade da molécula. Os contatos α1 β 2 e α2 durante a oxigenação. β1 atuam na movimentação da molécula 81 Tabela 11: Propriedades dos vinte aminoácidos naturais da hemoglobina. Aminoácido Sigla Grupo R Polarização Hidrofóbico PI % em proteínas Glicina Gly Alifático NP Não 5,97 7,5 Alanina Ala Alifático NP Sim 6,01 9,0 Valina Val Alifático NP Sim 5,97 6,9 Leucina Leu Alifático NP Sim 5,98 7,5 Isoleucina Ile Alifático NP Sim 6,02 4,6 Prolina Pro Alifático NP Não 6,48 4,6 Fenilalanina Phe Aromático NP Sim 5,48 3,5 Tirosina Tyr Aromático NP Não 5,66 3,5 Triptofano Trp Aromático NP Não 5,89 1,1 Serina Ser Neutro P Não 5,68 7,1 Treonina Thr Neutro P Não 5,87 6,0 Cisteína Cys Neutro P Sim 5,07 2,8 Metionina Met Neutro P Sim 5,74 1,7 Asparagina Asn Neutro P Não 5,41 4,4 Glutamina Gln Neutro P Não 5,65 3,9 Aspartato Asp Negativo P Não 2,77 5,5 Glutamato Glu Negativo P Não 3,22 6,2 Lisina Lys Positivo P Não 9,74 7,0 Arginina Arg Positivo P Não 10,76 4,7 Histidina His Positivo P Não 7,59 2,1 NP: não polar; P: polar; pI: ponto isoelétrico; Neutro: não carregado eletricamente. 82 SÍNTESE E EQUILÍBRIO MOLECULAR DAS HEMOGLOBINAS NORMAIS Após a apresentação nesse capítulo das sínteses individualizadas das globinas e do grupo heme, e também da composição estrutural da molécula de hemoglobina, é importante destacar que todo esse processo ocorre de forma sincrônica e simultânea dentro de cada eritroblasto. Assim, a síntese de moléculas de hemoglobinas abrange a ação de genes de globinas α, β, δ e γ, de ribossomos e mitocôndrias, que atuam em processos de mútua dependência biológica durante a hemoglobinogênese que se desenvolve nos eritroblastos e reticulócitos (ver tabela 5, capítulo 2). Como resultado desse sincronismo biológico a síntese de globinas α, β, δ e γ ocorre juntamente com os grupos heme que se inserem na estrutura terciária dessas globinas e, em seguida, se dimerizam em α2, β2, δ2, γ2, para então se tetramerizarem em moléculas de estrutura quaternária de α2 β2 (Hb A), α2 δ2 (Hb A2) e α2 γ2 (Hb Fetal). Esse processo descrito para a fase pós-nascimento e que será efetivado para toda a vida do indivíduo, acontece também nas fases fetal e embrionária. Entretanto, para o fim de expor didaticamente o equilíbrio que se verifica entre as globinas dimerizadas alfa e não-alfa (β, δ e γ), representaremos por meio de figuração hipotética a formação de hemoglobinas A, A2 e Fetal após o sexto mês de vida (figura 41). A importância visual do esquema que representa o equilíbrio entre globinas é fundamental para entender as causas e conseqüências das talassemias alfa e beta ocorrem por desequilíbrio de síntese entre essas duas globinas. Se pudéssemos "encaixotar" as globinas alfa e não-alfa seria possível construir modelos representativos do equilíbrio das globinas alfa e não-alfa das hemoglobinas normais, e também do desequilíbrio que se verificam nas talassemias alfa e beta (figura 42). Considerando que o volume de síntese das hemoglobinas A, A2 e Fetal é proporcional às suas respectivas concentrações obtidas nas dosagens eletroforéticas ou cromatográficas dessas frações, é também possível supor que em condições normais essas três hemoglobinas compartilham do mesmo espaço – obviamente com concentrações diferentes – dentro de um mesmo eritrócito. Considera-se portanto hemoglobinas normais as três frações identificadas em 83 eletroforeses alcalina de hemoglobina em pessoas com idade superior a 6 meses ou por métodos cromatográficos, com as seguintes concentrações: Hb A: 96 a 98% Hb A2: 2 a 4% Hb Fetal: 0a 1% HEMOGLOBINAS GLICOSILADAS Após o nascimento, observa-se que além das hemoglobinas A, A2 e Fetal, surgem outros cinco tipos de moléculas que constituem o grupo das hemoglobinas glicosiladas: Hb A1a-1, Hb A1a-2, Hb A1b, Hb A1c e Hb A1d. O conjunto dessas hemoglobinas que eletroforeticamente se posicionam um pouco à frente da Hb A, sem que ocorra um fracionamento visível (figura 43), representa 5 a 8% da concentração da Hb A. Todas essas hemoglobinas são derivadas da Hb A por terem hexoses ligadas à região N-terminal do primeiro aminoácido da globina beta – a valina. A glicolização ocorre por um processo lento com intermediação enzimática durante a hemoglobinogênese. Assim, as hexoses permanecem ligadas à Hb A por todo o tempo de vida do eritrócito, que é de 120 dias, em média. A Hb A1c por apresentar maior concentração entre as hemoglobinas glicosiladas, atua como sensível marcadora biológica da glicose sangüínea. A tabela 12 relaciona, suas concentrações e os produtos específicos de glicolização. 84 Cromossomo 16 Cromossomo 11 Mitocôndria α2 γ α1 δ β Grupos heme Globinas α (100%) α2 α2 α2 α2 Globinas β (96 – 98%) Globinas δ ( 2 – 4%) Globinas γ (0 – 1%) α2 β2 Dímeros de globinas α α2 β2 β2 δ2 γ2 Dímeros de globinas β, δ, γ β2 α2 α2 δ2 β2 α2 α2 β2 γ2 Figura 41 – Esquematização hipotética da formação equilibrada entre globinas alfa e não-alfa (β β, δ e γ) após o sexto mês de vida. 85 α γ α δ α → α2 γ2 : Hb Fetal (0 – 1%) → α2 δ2 : Hb A2 (2 – 4%) → α2 β2 : Hb A (96 – 98%) β Equilíbrio entre Globinas nas Hemoglobinas Normais α α γ δ α β Talassemia Alfa α α α γ δ β Talassemia Beta Figura 42 – Esquematização do equilíbrio entre globinas na formação de hemoglobinas normais, e dos desequilíbrios na talassemia alfa (diminuição da síntese de globina α) e na talassemia beta (diminuição da síntese de globina β ). 86 Grupo de Hb Glicosiladas A A2 Anidrase carbônica 1 2 3 Figura 43 – Eletroforese de hemoglobinas em acetato de celulose, tampão alcalino (TEB pH 8,6). Nas três amostras observam-se à frente da Hb A as frações difusas com as hemoglobinas glicosiladas. A amostra 1 é de paciente com talassemia beta menor (Hb A2 aumentada) e as amostras 2 e 3 são normais. Tabela 12 – Subtipos de HbA1 87 relacionados com suas concentrações e glicolização. Subtipo Concentração Glicolização (%) A1a – 1 0,2 Hexose – difosfato Frutose – difosfato Glicose, manose e galactose difosfato A1a – 2 0,2 Hexose – monofosfato Glicose – 6 – fosfato Glicose, manose e galactose monofosfato A1b 0,5 Hexose não – fosforilada Glicose, manose, galactose A1c 4–6 A1d 0,4 1 – deoxi – beta – D – frutose Beta – D – glicopiranosil 88 FISIOLOGIA DA OXIGENAÇÃO DA HEMOGLOBINA O sangue do ser humano transporta diariamente o equivalente a 600 litros de oxigênio dos pulmões aos tecidos, mas pouco deste oxigênio é transportado no plasma sangüíneo porque ele é muito solúvel em soluções aquosas. Quase todo o oxigênio transportado pelo sangue está ligado à hemoglobina. Os eritrócitos ao passarem pelos pulmões tem suas moléculas de hemoglobinas saturadas em 96% de oxigênio (oxiemoglobina do sangue arterial) que serão gradualmente liberados para os tecidos. No sangue venoso que retorna ao coração a hemoglobina está apenas 64% saturada de oxigênio. Assim, o sangue que passa através dos tecidos libera perto de um terço do oxigênio que transporta. As propriedades especiais da molécula de hemoglobina que a transforma em um transportador tão eficiente podem ser entendidas pela comparação das curvas de ligação do oxigênio, ou curvas de saturação do O2 da hemoglobina e mioglobina (figura 44). Estas curvas mostram os graus de saturação de oxigênio quando mioglobina e hemoglobina estão no sangue venoso e arterial. A mioglobina tem maior afinidade pelo oxigênio que a hemoglobina. Ela está quase 100% saturada em pressões parciais de oxigênio medida em milímetros de mercúrio (pO2 / mm Hg) quando o pO2 é de 15 mmHg ou 1,5 kPa, enquanto a hemoglobina requer pO2 de 35 mmHg ou 3,5 kPa para obter 50% de saturação. Quando o hemoglobina se oxigeniza no sangue arterial seu grau de saturação é de 95%, e à medida que começa a distribuição do oxigênio para as células teciduais o faz de forma lenta até passar ao sangue venoso. No sangue venoso o desprendimento do oxigênio é muito rápido e eficiente, fato que faz com que a saturação de oxigênio de 75% em pO2 de 50 mmHg (do músculo em repouso) diminui rapidamente para menos de 10% de saturação em pO2 de 15 mmHg, numa curva tipo sigmóide. Assim, a curva sigmóide de saturação da hemoglobina revela uma adaptação molecular para a sua função de transporte nos eritrócitos, assegurando a ligação e a liberação do oxigênio para as células teciduais. Esse fato indica que a mioglobina tem alta afinidade pelo oxigênio em comparação com a hemoglobina. Conforme mostra a figura 44, o gráfico da curva de saturação da 89 mioglobina pelo oxigênio é do tipo hiperbólica simples, fato de corrente da ação de massa do oxigênio no equilíbrio mioglobina + O2 Oxi Mb. Em contraste, a afinidade da hemoglobina diminui rapidamente à medida que se transforma de oxiHb → desoxiHb, fato que caracteriza a curva sigmóide que se acentua no sangue venoso. O formato sigmóide tem uma explicação físico-química da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio. A figura 45 representa cada uma das quatro subunidades de globinas (duas alfa ou α2 e duas beta ou β2) se ligando independentemente com a molécula de oxigênio (O2). Assim, o processo fisiológico da oxigenação da hemoglobina ocorre em quatro estágios seqüentes. No primeiro estágio, a molécula está desoxigenada e a molécula de 2,3 – difosfoglicerato (2,3DPG) está inserida entre as duas subunidades de globina beta; no estágio seguinte, inicia-se a oxigenação dos grupos heme das duas globinas alfa, primeiro um e depois o outro; o terceiro estágio se caracteriza pelo ajustamento da conformação tetramérica provocado pelo processo de oxigenação que, ao se completar nos grupos heme das globinas alfa, começa a abranger as globinas beta. O movimento de adaptação a esse processo é provocado pela aproximação entre as globinas beta e a desacomodação do 2,3 DPG, que é expelido para fora. Finalmente, o último estágio se deve pela oxigenação dos grupos heme das globinas beta, inicialmente uma e depois a outra, completando a oxigenação da molécula de hemoglobina. A oxigenação da molécula de hemoglobina também depende do pH e da concentração de CO2; o aumento de CO2 induz a liberação de oxigênio pela hemoglobina, cujo processo é conhecido por efeito Bohr. Esse desempenho bioquímico se deve quando a curva de dissociação de oxigênio (curva sigmóide) em pO2 de 50 mmHg (ou P50) é afetada pelo metabolismo tecidual e pH sangüíneo. Quando o metabolismo tecidual está aumentado são liberados produtos ácidos capazes de causar a queda de pH (acidose) e assim a curva sigmóide é mudada à direita, permitindo maior liberação de oxigênio para os tecidos. Por outro lado, quando há elevação do pH sangüíneo (alcalose) a curva sigmóide se move para a esquerda, diminuindo a liberação de oxigênio para os tecidos. A curva de dissociação de oxigênio também varia em situações específicas: 90 a) O 2,3-DPG, encontrado em grande quantidade nos eritrócitos e em pequenas quantidades nos tecidos, desvia a curva para a direita, diminuindo a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio; b) A afinidade da molécula isolada de Hb S pelo oxigênio é a mesma que a da Hb A, porém os eritrócitos falciformes contém mais 2,3-DPG do que os normais e, consequentemente, diminuem sua afinidade ao oxigênio. c) A Hb Fetal tem maior afinidade pelo oxigênio do que a Hb A, provavelmente devido ao fato do 2,3-DPG não se ligar às globinas gama; d) A Hb H, constituída por quatro globinas beta, tem afinidade pelo oxigênio 12 vezes maior que a Hb A; e) Há várias hemoglobinas variantes que apresentam afinidade aumentada pelo oxigênio – Hb Bethesda, Hb Luton, entre outras – e Hb variantes que apresentam baixa afinidade pelo oxigênio, como é o caso da Hb Kansas. 91 A 2,3 DPG O2 O2 B O2 C 2,3 DPG O2 2,3 DPG O2 D O2 O2 E O2 O2 2,3 DPG O2 2,3 DPG Figura 45: Seqüência dos estágios da oxigenação. A) molécula de hemoglobina (Hb A) desoxigenada; B) início da oxigenação, com a fixação de uma molécula de O2 para uma subunidade de globina alfa; C) a outra globina alfa se oxigena; D) quando o O2 é fixado por uma subunidade de globina beta inicia-se o deslocamento da molécula de 2,3 DPG; E) a fixação do O2 por outra globina beta, expulsa o 2,3 DPG da molécula de hemoglobina, que se torna totalmente oxigenada. 92 pO2 do sangue venoso 100 Mb Saturação com O2 (%) Hb Músculo em repouso 50 Músculo em trabalho pO2 (kPa) 0 1 5 10 13 0 10 50 100 130 pO2 (mmHg) Figura 44: Curvas de saturação da mioglobina (Mb) e hemoglobina (Hb) pelo oxigênio. A mioglobina tem uma afinidade muito maior pelo oxigênio que a hemoglobina. Ela está 50% saturada em pressões parciais de oxigênio (pO2) de apenas 0,15 a 0,30kPa, enquanto a hemoglobina requer uma pO2 de 3,5kPa para uma saturação de 50%. Note que embora as duas, hemoglobina e mioglobina, estejam mais que 95% saturadas na pO2 do sangue arterial que deixa os pulmões (~13kPa), a hemoglobina está apenas cerca de 75% saturada no músculo em repouso, onde a pO2 é cerca de 5kPa e apenas 10% saturada no músculo em trabalho, onde a pO2 é apenas 1,5kPa. Assim, a hemoglobina pode liberar o seu oxigênio de forma muito eficiente no músculo e em outros tecidos periféricos. A mioglobina, por outro lado, ainda está perto de 80% saturada em uma pO2de 1,5kPa e, portanto, descarrega muito pouco oxigênio, mesmo em situações de pO2 muito baixas. A curva sigmóide de saturação da hemoglobina revela uma adaptação molecular para a sua função de transporte nos eritrócitos, assegurando a ligação e a liberação do oxigênio nos tecidos apropriados.