Miguel Alarcão fala à Visão sobre episódios da História

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ID: 65088040
30-06-2016
Tiragem: 93360
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País: Portugal
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Period.: Semanal
Área: 17,70 x 23,50 cm²
Âmbito: Interesse Geral
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O PAÍS
QUE NUNCA
QUIS SER
EUROPA
A HISTÓRIA DO REINO UNIDO ESTÁ CHEIA
DE IDIOSSINCRASIAS, INSUBMISSÕES,
INDIVIDUALISMO, “ESPLÊNDIDO ISOLAMENTO”,
RESISTÊNCIAS À NORMA DO CONTINENTE,
TENSÕES E ALIANÇAS IMPROVÁVEIS…
SINGULARIDADES DE UMA ILHA QUE NUNCA
QUIS DEIXAR DE O SER. AGORA E DANTES,
ORGULHOSAMENTE SÓ
A N A M A R G A R I D A D E C A R VA L H O
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Um Henrique VIII diferente... O monarca foi o causador
de uma das maiores cisões com o “poder político continental”,
neste caso, o papado de Roma, uma espécie de “Bruxelas”
da altura. A sua dissidência daria origem à Igreja Anglicana
30 JUNHO 2016 VISÃO
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N
30-06-2016
Nos anos 50, um forte temporal abalou
toda a zona do mar do Norte e as Ilhas
Britânicas ficaram incomunicáveis. Não
se podia lá chegar, nem de barco nem de
avião. No dia seguinte, lia-se nos jornais
londrinos: “O Continente está isolado.”
O tom desafiador de britânicos que,
com o Brexit, também consideram que
a União Europeia está, ela sim, “insulada”, não é de agora. Ao longo da sua mais
do que peculiar História, o país da Magna Carta derrotou a Invencível Armada,
travou Napoleão e ditou o fim das duas
guerras mundiais, inclusive dando ao
mundo o exemplo da resistência a Hitler…
É o país do ritual do chá, de Shakespeare, Dickens, Oscar Wilde, Virginia Woolf,
Joyce, de Newton, de Darwin, dos Beatles,
Rolling Stones, Pink Floyd, dos Monty
Python… O país de Sherlock Holmes e do
007… O país que (re)inventou o futebol e
tantos outros desportos... Esse país nunca
se importou de dividir para reinar. E continua a bradar militantemente “God Save
The Queen”, apesar de, desde tempos remotos (finais do século XIV), o Parlamento ter fixado de forma bem consciente
o seu papel e importância institucional,
e a Coroa, é certo que reforçadora dos
sentimentos patrióticos e de identidade
nacional, lhe ter ficado dependente do
ponto de vista material e fiscal. “Não foi
Inglaterra que fez o seu Parlamento, mas
o Parlamento que fez a Inglaterra”, sublinhou o historiador G.M. Trevelyan.
Claro que a mais mediatizada, filmada,
glosada, romantizada e televisionada rutura com o continente foi protagonizada
por Henrique VIII, o tristemente célebre
rei serial killer, de obesidade mórbida,
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BREXIT
Os passos que ainda
terão que ser dados
até ao adeus
definitivo da UE
1
O Reino Unido notifica o
Conselho Europeu da
decisão de sair da União
Europeia. Não há prazo
para o fazer
2
O Conselho Europeu decide
que tipo de acordo deve ser
oferecido ao Reino Unido
com os termos da sua saída
e a estrutura do seu futuro
relacionamento com a União
3
O Reino Unido negoceia
os detalhes desse acordo
4
Conselho Europeu e Reino
Unido têm dois anos para
concluir o acordo, a partir
do momento da
notificação
5
O Conselho, por maioria
qualificada e depois de
obter consentimento do
Parlamento Europeu,
conclui o acordo
que assassinava mulheres, lembrado pelos
seus seis casamentos, por ter renunciado
à autoridade papal (cortando com a espécie de “União Europeia” do seu tempo...)
e criando a Igreja Anglicana. Mas muito
antes disso, já a Inglaterra dava sinais de
idiossincrasias históricas, ambivalências
e singularidades. À época do Império Romano remonta Miguel Alarcão, doutorado
em Cultura Inglesa e professor associado
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa:
“A condição insular e periférica da província terá sido um dos fatores responsáveis
pelo abandono oficial de Roma, a partir
de 409-410 (Édito ou Carta de Honório),
naquela que já foi apresentada como ‘a
primeira descolonização voluntária’.”
Uma certa lógica de determinismo
geográfico pode ajudar a explicar algumas
outras particularidades, continua o professor: “O sinuoso recorte da costa britânica que, acolitado pelos ventos e pelas
correntes do canal da Mancha e do mar do
Norte, contribuiria de modo decisivo para
a derrota da Invencível Armada (1588),
prova, manifestação ou sinal de uma alegada condição da Inglaterra e do seu povo
como ‘nação eleita’.” O mar funcionava-lhes como muralha de água, a costa tortuosa como cortina defensiva, e acentuava
a sua segurança e excelência bélico-militar – terá sido também determinante nos
preparativos de resistência a um eventual
desembarque de Napoleão Bonaparte,
após o reinício, em 1803, das guerras revolucionárias e napoleónicas (1793-1815)
– e, acrescenta o professor, as inúmeras
reentrâncias que correspondem, não raro,
à foz de diferentes rios, malha hidrográfica natural, “cuja importância histórica
deverá ser assinalada enquanto vias de
circulação de pessoas, bens, matérias-primas, mercadorias e produtos no período
anterior ao melhoramento e à expansão
da rede viária e à criação da ferrovia (segunda metade do séc. XVIII e do segundo
quartel do séc. XIX, respetivamente) e política de construção de canais (1760/70)”.
PIONEIROS A CORTAR CABEÇAS A REIS
Ainda nas condicionantes geográficas e de
território, não são despiciendas as jazidas de carvão mineral, “que virão suprir a
crescente exaustão do carvão de lenha no
processo de industrialização britânica”; o
estanho da Cornualha, já antes cobiçado
pelos romanos, fundamental para a fundição do bronze, além de outros metais
“necessários às futuras indústrias de ar-
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Magna Carta O documento, de 1215, limitava o poder real
e antecipava em vários séculos a ideia de constituição
mamento, construção naval e ferroviária…”; e, finalmente, o petróleo do mar
do Norte, descoberto ao largo da costa
oriental da Escócia na década de 1970,
“responsável pelo parcial reequilíbrio da
economia britânica no encapelado mar da
crise internacional, associada ao choque
petrolífero de 1973-74”.
Mas em termos políticos, em total dissonância com o continente, Miguel Alarcão destaca a Magna Carta, o documento
que, muito precocemente, em 1215, limita
o poder e os absolutismos dos monarcas em Inglaterra. Tendo um significado
mítico “prospetivo, protomoderno, quase
democrático”, esta antecâmara do constitucionalismo (a introdução e três artigos ainda integram o direito inglês) foi,
na realidade, “claramente conservadora,
retrospetiva, defensiva e feudal”. Também
são do século XII as origens do Parlamento, “impulsionadas pelo taticismo baronial de Simon de Monfort, em 1258-65”.
O professor também salienta as medidas
cívico-políticas decorrentes do empirismo e do constitucionalismo seiscentista e da Revolução de 1688, com o Bill of
Rights: “Curiosamente, a História de um
povo que não gosta de revoluções está
cheia delas.” E refere a Revolução Agrária,
a Revolução Industrial e a Revolução da
Pop. A revolução no humor. E até a cortar
cabeças de reis “os britânicos levam 144
anos de avanço sobre os franceses”: Carlos
I, em 1649, contra Luís XVI, em 1793...
As características muito particulares
dos britânicos, e que muitas vezes os opuseram a outras potências europeias – em
particular à França – decorrem, na opinião
do historiador, da “ambivalência”. A História Medieval de Inglaterra assenta em dois
eixos: um germânico-escandinavo, outro
românico-francês. E o próprio idioma,
hoje língua franca planetária, é, do ponto
de vista lexical, um tanto híbrido. “O sentido do compromisso”, diz o historiador, “a
tendência para vias médias e evoluções na
continuidade acentuam tudo isso.” A propósito do Brexit, lembra os vetos franceses
do general De Gaulle – em 1963 e em 1967
– à entrada britânica na então Comunidade Económica Europeia (CEE), antecessora
da União Europeia, equiparando o Reino
Unido a um “cavalo de Troia” dos EUA:
“O facto de o atual eixo franco-alemão
reunir, porventura, os dois principais antagonistas históricos da Grã-Bretanha pode
ressuscitar desconfianças multisseculares.”
SE HITLER INVADISSE O INFERNO...
“Se Hitler invadisse
o Inferno, eu
elogiaria o Diabo”,
disse o primeiro-ministro Winston
Churchill. Ele
corporizou
o espírito britânico
e manteve a ilha
a salvo do vendaval
nazi que varria
o Continente
Ao longo dos séculos, o Reino (des)Unido foi mantendo aquilo que os próprios
britânicos designam por “esplêndido isolamento”. Tradicionalmente, a Grã-Bretanha só intervém, no plano geopolítico
(ora agindo sozinha ora criando alianças
improváveis), quando grandes potências
entram na sua rota de colisão. Os ingleses
(como costumamos designar os britânicos, não com grande correção mas para
simplificar) estiveram em guerra contra a
Espanha, contra a França, contra a Alemanha (no século XX, nas duas guerras mundiais)... Nomeado primeiro-ministro a 10
de maio de 1940, já iniciada a invasão nazi
a ocidente, Winston Churchill haveria de
proferir na Câmara dos Comuns o célebre
discurso em que reafirma a declaração de
guerra à Alemanha “no mar, na terra e no
ar, com todo o nosso poder e com todas
as forças que Deus possa dar-nos; fazer
guerra a uma monstruosa tirania que não
tem precedentes no sombrio e lamentável
catálogo dos crimes humanos”. Quando
se referiu ao futuro, disse: “Só tenho para
oferecer sangue, sofrimento, lágrimas e
suor.” Severa e incansavelmente bombardeados pela Luftwaffe (Força Aérea alemã), os ingleses resistiram – até os reis se
mantiveram no Palácio de Buckingham –,
sem nunca os alemães terem conseguido condições para desembarcar nas ilhas.
Restava aos pilotos da RAF (Real Força
Aérea) a incumbência de defender o território e o canal da Mancha da Blitz hitleriana. Na Câmara dos Comuns, Churchill
homenageou os aviadores britânicos com
a típica fleuma: “Nunca antes no campo
dos conflitos humanos, tantos deveram
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tanto a tão poucos.” Mantinham a aliança por conveniência à Rússia de Estaline,
mas – ainda Churchill – “se Hitler invadisse o Inferno, eu elogiaria o Diabo”.
UMA REPÚBLICA NO SÉCULO XVII
O historiador brasileiro Luiz Eduardo
Oliveira, professor na Universidade de
Sergipe, autor do livro O Mito de Inglaterra – Anglofilia e Anglofobia em Portugal, aponta a primeira e mais marcante
singularidade da História da Inglaterra
no republicanismo de Oliver Cromwell,
em pleno século XVII. “A Guerra Civil Inglesa é considerada por muitos como a
primeira revolução do mundo moderno”,
afirma. O processo de declínio da legitimidade automática da monarquia sagrada
começa, diz, justamente aqui. “A comunidade dinástica europeia nunca tinha visto
nada igual: um rei (Carlos I, em 1649) ser
condenado e decapitado por ordem do
Parlamento… Foi o início da curta experiência republicana da Inglaterra – onze
anos – sob o protetorado de Cromwell,
prenunciando o que aconteceria mais de
um século depois nos EUA e em França.”
Este período, lembra o historiador,
coincide com o início da aventura colonial inglesa, que também foi, a seu modo,
atípica, sobretudo no período vitoriano, segunda metade do século XIX: “Tal
singularidade relaciona-se com o papel
fundamental que passaram a ter a língua
inglesa e a ‘inglesidade’, fosse através de
projetos educacionais ou de produtos
culturais”. Institucionalizaram-se os “estudos ingleses”. Ou seja, explica, a literatura inglesa foi colocada ao serviço de um
grande projeto nacionalista e imperialista.
Com Portugal, a Inglaterra manteve
uma antiga aliança, datada de 1373, ainda que intercalada por períodos de tensão,
ambiguidade, oscilação e até anglofobia da
nossa parte. A união das casas dinásticas
de Lancaster e de Avis, pelo casamento de
D. João I e D. Filipa de Lencastre, dá início à
Ínclita Geração, responsável pela expansão
colonial portuguesa, pioneira da expansão
europeia, e por uma série de influências de
origem inglesa não só na organização militar mas também nas letras e nos costumes,
lembra Luiz Eduardo Oliveira.
A aliança foi decisiva na restauração da
autonomia do reino português em 1640,
depois de 60 anos de União Ibérica. Foram
também os ingleses que expulsaram de
Portugal as tropas napoleónicas, no decorrer das três Invasões Francesas que tiveram
lugar entre 1807 e 1811. Mas quase tudo se-
Isabel I Filha de Henrique VIII e Ana Bolena, reinava quando os ingleses
derrotaram a Invencível Armada espanhola, em 1588
ria deitado por terra com o Ultimato Britânico de 1890, que exigia a retirada lusa dos
territórios africanos compreendidos entre Moçambique e Angola (o famoso Mapa
Cor-de-Rosa). Os intelectuais republicanos consideraram esta cedência da Coroa
portuguesa aos ingleses uma catástrofe
nacional, uma traição e uma humilhação.
O verso da letra do hino A Portuguesa “contra os bretões marchar, marchar”
(mais tarde, reatadas as relações cordiais
entre Londres e Lisboa, alterado para
“contra os canhões, marchar, marchar”)
foi inspirado nesta “infâmia” perpetrada
pelos aliados de séculos. Mas o hino, esse,
Data de 1373 a aliança
de defesa militar mais
antiga do mundo. E ela
foi fundamental, em
1640, após 60 anos de
domínio filipino... Mas
também serviu para
uma base britânica,
nos Açores, durante
a II Guerra Mundial
tornou-se Hino Nacional da República implantada em 1910...
Mas os mesmos intelectuais “jacobinos”
e adoradores da França, que tinham instaurado a República, fariam com que Portugal entrasse na I Guerra Mundial ao lado
da “velha aliada”. Serviu ainda de chapéu de
chuva à cedência aos ingleses de uma base
nos Açores, durante ao II Guerra Mundial.
Com efeito, a aliança luso-britânica sobreviveu a praticamente tudo. Com a entrada de Portugal na então CEE, em 1986 (13
anos depois da adesão britânica), e dada a
multilateralidade das relações diplomáticas dos países membros, incompatível com
qualquer tratado que privilegie somente
dois deles, foi relegada para um segundo
plano. Com o Brexit, analisa o professor,
as alianças dos dois países ficarão dependentes das relações de forças que se manterão na UE. “Caso a Escócia e, em seguida,
a Irlanda do Norte decidam ficar na UE,
o futuro dos ingleses, a curto prazo, será
o seu isolamento na Europa e no mundo,
para já não falar da desintegração do próprio Reino Unido. A tendência é para o seu
enfraquecimento económico e isolamento
diplomático.”
A semana passada, mais uma vez, a Inglaterra escreveu a seu modo a História da
Europa, continente de que tem sido o tradicional fiel da balança – mesmo quando
parece estar a gerar desequilíbrios. Talvez
seja esse o seu papel no mundo... Quanto
à aliança luso-britânica, talvez nos reserve
ainda surpresas. Ao contrário das histórias com “h” pequeno, a História com “H”
grande não acaba nunca.
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ODD ANDERSEN/GETTYIMAGES
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44 O país que nunca quis ser Europa
A História ajuda a explicar o Brexit. Um extenso dossiê onde ficará a conhecer
as 25 razões porque o Brexit nos vai afetar. Os vários países do Reino Unido, os
desenvolvimentos políticos e os imperdíveis artigos de Hélder Macedo, João
Magueijo e Victor Ângelo. Destaque, ainda, para a crónica especial de Ricardo
Araújo Pereira sobre o tema
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30-06-2016
REINO UNIDO E DEPOIS DO ADEUS
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Histórias do país que nunca foi Europa e as ondas de choque que aí vêm
TEXTOS DE JOÃO MAGUEIJO, HÉLDER MACEDO, VICTOR ÂNGELO,
ADOLFO MESQUITA NUNES, RITA RATO E RICARDO ARAÚJO PEREIRA
ESPECIAL
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