O tratado Roboré e sua influência na fronteira Brasil

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM ESTUDOS FRONTEIRIÇOS
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DO PANTANAL
ROBERTO AJALA LINS
O TRATADO DE ROBORÉ E SUA INFLUÊNCIA NA FRONTEIRA
BRASIL-BOLÍVIA APÓS A NACIONALIZAÇÃO DOS
HIDROCARBONETOS
CORUMBÁ - MS
2012
1
ROBERTO AJALA LINS
O TRATADO DE ROBORÉ E SUA INFLUÊNCIA NA FRONTEIRA
BRASIL-BOLÍVIA APÓS A NACIONALIZAÇÃO DOS
HIDROCARBONETOS
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Mestrado em Estudos Fronteiriços da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
como parte dos requisitos à obtenção do título de
Mestre em Estudos Fronteiriços.
Linha
de
Pesquisa:
Identidade Fronteiriças
Ocupação
e
Orientador(a): Prof. Dr. Marco Aurélio
Machado de Oliveira
Corumbá - MS
2012
2
ROBERTO AJALA LINS
O TRATADO DE ROBORÉ E SUA INFLUÊNCIA NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA
APÓS A NACIONALIZAÇÃO DOS HIDROCARBONETOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos
Fronteiriços da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Aprovado em ___/___/___,
com Conceito APROVADO.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Dr. Marco Aurélio Machado de Oliveira
(Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
_______________________________________
Dr. Eduardo Gerson de Saboya Filho
(Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
_______________________________________
Dr. Wilson Ferreira de Melo
(Universidade Federal do Mato Grosso do Sul)
3
PARA MARA MARIA, ANNA EDESA e STEPHANIE, sustentações da minha vida...
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador MARCO AURÉLIO MACHADO DE OLIVEIRA,
colega de profissão que me ensinou entre tantas coisas, o sentido da verdadeira e
desinteressada amizade, em um momento bastante complicado da minha vida
acadêmica profissional. O seu silêncio e as palavras certas, nas horas exatas, além
da compreensão, paciência e inteligência me fizeram enxergar outros horizontes e
repensar que sempre vale à pena. Muito obrigado é uma palavra que ficou pequena
diante do muito que devo a ele. Só mesmo Deus poderá recompensar o meu
orientador por tudo que fez por mim e para que o Mestrado se tornasse realidade na
nossa instituição.
Ao meu sobrinho Luiz Roberto Lins Almeida, por ter me auxiliado com sua
aguçada inteligência e senso crítico no Projeto de Pesquisa deste trabalho.
Ao meu sobrinho Israel Lins Almeida, pelas críticas oportunas, pelo interesse
constante e pelo privilégio de ser seu tio. Vou me lembrar todos os dias que o
ressentimento nunca será o melhor caminho... e o que deve ser guardado da vida
são os bons momentos.
Para Ramona Trindade, pelo despojamento, auxílio fundamental na correção
desse trabalho, pelo incentivo, pela demonstração de amizade. Obrigado por tudo e
para sempre.
Para Eunice das Neves Almeida, pela paciência que sempre teve com meus
arroubos e pela amizade que sei que me dedica.
A todos os professores do Mestrado em Estudos Fronteiriços, o meu
agradecimento e o orgulho por pertencer a mesma instituição de ensino que eles.
Aos meus pais, pela formação e pela certeza que tenho que eles ainda olham
por mim.
Para minha família em sentido amplo, a mais querida que alguém poderia ter.
Finalmente, agradeço principalmente a Deus por ter colocado em minha vida
todas estas pessoas.
5
RESUMO
As relações fronteiriças mantidas entre o Brasil e a Bolívia, principalmente após a
assinatura do Tratado de Roboré e mais ainda após a nacionalização dos
hidrocarbonetos promovida pela Bolívia, em 1º de maio de 2006, apresentou-se
como uma relação maior de interdependência entre os dois países. Esta dissertação
procurou analisar a eventual perda de potencial econômico e eventuais conflitos
pudessem ter surgido como resultado do decreto que nacionalizou a exploração dos
hidrocarbonetos. Tais situações certamente influenciaram as questões de fronteira
pois que frustrou, em um primeiro momento, as expectativas energéticas e de
esperado desenvolvimento para a região. Observou-se que a relação entre os dois
países
sempre
foi
marcada
por
uma
relação
de
necessidades
complementares evidenciando-se que o Tratado de Roboré, em si, foi apenas o
inicio de uma série de medidas que visavam deixar muito claro os interesses do
Brasil na questão do gás como fonte importante de energia. Utilizou-se como
principal fonte para a pesquisa da presente dissertação o próprio Tratado de Roboré,
fazendo-se necessário entender todo o arcabouço histórico que antecedeu a
sua assinatura, fundamental para avaliar as questões de fundo que permearam os
entendimentos acordados entre os dois países. A pesquisa baseou-se em material
bibliográfico sobre as relações jurídicas e diplomáticas entre Brasil e Bolívia opiniões
já expostas em trabalhos de relevância anteriormente realizados sobre temas
semelhantes, e ainda o acompanhamento do desenrolar da relação entre os países
vizinhos.
6
ABSTRAT
Border relationsmaintained between Brazil and Bolivia, especially after the signing of
Roboré Agreement and even more after the nationalization of hydrocarbons
promoted by Bolivia, on 1st May2006, presented as a higher ratio of interdependence
between the two countries . This dissertation proposed to analyze the possible loss of
economic potential and possible conflicts thatcould have arisen as a result of the
decree which nationalized the exploration of hydrocarbons. Such situations certainly
influenced the border issues because frustrated, at first, the energy expectations
andthe expected development for the region. It was observed that the relationship
between the two countrieshas been marked by a ratio needs further demonstrating
that the Roboré Agreement itself was only the beginning of a series of measures
aimed to leave clear in the interests of Brazil in the gas issue as an important source
of energy. It was used as the main source for the research of this dissertation the
Roboré Agreement itself, being necessary to understand all the historical background
leading up to its signature, essential to value thesubstantive issues that permeated
the understandings agreed between the two countries.The research was based on
publications about legal and diplomatic relations between Brazil and Bolivia, also in
the opinions that were already given in relevant papers conducted before on similar
topics, and alsomonitoring the progress of the relationship between the neighbors
countries.
7
RESUMEN
Las relaciones fronterizas mantenido entre Brasil y Bolivia, especialmente después
de la firma deRoboré y aún más después de la nacionalización de los hidrocarburos
promovida por Bolivia, el 1 de mayo de 2006, presentado como una relación de
interdependencia más estrecha entre los dos países. Esta tesis doctoral trató de
examinar la posible pérdida de los conflictos económicos potenciales y las posibles
podría haber surgido como resultado del decreto que nacionalizó la explotación de
hidrocarburos. Este tipo de situaciones sin duda influyó en los problemas fronterizos
que frustraron debido a que, en un primer momento, las expectativas y el desarrollo
de energía prevista para la región. Se observó que la relación entre los dos países
ha estado marcada por una relación de necesidades más que demuestra que el
Tratado de Roboré en sí era sólo el comienzo de una serie de medidas destinadas a
dejar claro en los intereses de Brasil de gas asunto como una importante fuente de
energía. Fue utilizado como la principal fuente para la investigación de esta tesis
doctoral Roboré el propio Tratado,por lo que es necesario entender todos los
antecedentes históricos que condujeron a su firma, esencial para evaluar las
cuestiones de fondo que se propagaban en los entendimientos acordados entre los
dos países. La investigación se basa en publicaciones sobre las relaciones jurídicas
y diplomáticas entre Brasil yBolivia opiniones ya expuestas en anteriores
documentos de interés llevado a cabo sobre temas similares, y también monitorear
el progreso de la relación entre los vecinos.
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................
09
2 SISTEMA JURÍDICO INTERNACIONAL ......................................................................
12
2.1 Fundamentos do Direito Internacional Público .....................................................
14
2.2 Fontes do Direito Internacional Público .................................................................
17
2.3 Tratados Internacionais ...........................................................................................
19
2.4 Definição de Tratados Internacionais .....................................................................
21
2.5 Diferença entre Tratados e Acordos Internacionais ..................................
23
2.6 Características dos Tratados Internacionais .........................................................
24
2.7 Natureza jurídica dos Tratados Internacionais ......................................................
24
2.8 Formas de Introdução dos Tratados Internacionais no Direito Público .............
24
2.9 Hierarquia dos Tratados no ordenamento jurídico Brasileiro ..............................
26
3 RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE O BRASIL E A BOLÍVIA ...............................
30
3.1 Breve histórico das relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia .......................
30
3.2 Tratado da Amizade, Limites e Comércio (27/03/1867) .........................................
32
3.3 Tratado de Petrópolis (17/11/1903) ..........................................................................
34
3.4 Tratado de Natal (25/12/1928) ..................................................................................
35
3.5 Acordo de Roboré – Nr 1 C/R(29/03/1958) .............................................................
36
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................
46
5 REFERÊNCIAS .............................................................................................................
48
ANEXOS ...........................................................................................................................
51
9
1 INTRODUÇÃO.
A presente dissertação trata das relações fronteiriças entre o Brasil e a Bolívia
no que tange as influências ocorridas após a assinatura do Tratado de Roboré, que
versa sobre a delimitação de fronteiras, via férrea e hidrocarbonetos.
Focou-se o presente estudo na questão dos hidrocarbonetos, visto ser um
dos aspectos mais importantes do tratado e cujas influências mais se sentem na
zona fronteiriça, quer pela criação do GASBOL (Gasoduto Brasil-Bolívia), quer pela
promessa/possibilidade de desenvolvimento que prometia para a região Fronteiriça e
que em muito pretendia beneficiar a cidade de Corumbá.
O tema proposto ganhou inegável relevância após a nacionalização dos
hidrocarbonetos promovida pela Bolívia, em 1º de maio de 2006, por decreto
presidencial de Evo Morales Ayma.
Em um primeiro momento, o objetivo principal do trabalho foi abordar a perda
de potencial econômico e eventuais conflitos que tenham surgido como resultado do
decreto que nacionalizou a exploração dos hidrocarbonetos na Bolívia. Procurou-se
avaliar os reflexos do descumprimento de cláusulas contratuais do Tratado
Internacional na esfera econômica, jurídica e social da região de fronteira,
especialmente a região de Corumbá, que poderia ter sido a beneficiada com o
adimplemento da relação diplomática.
O Decreto Supremo n. 28.071/2006, do Presidente boliviano influenciou
questões de fronteira, uma vez que trata do tema de energia, o que afetou as
expectativas energéticas da cidade, que tem empresas de mineração instaladas na
região.
Para a consecução dos objetivos da dissertação foram buscadas opiniões já
expostas em trabalhos de relevância anteriormente realizados sobre temas
semelhantes, e ainda o acompanhamento do desenrolar da relação entre os países
vizinhos.
Com isso, algumas aparentes verdades foram se descortinando no desenrolar
da pesquisa, tendo chamado muito a atenção o fato de que o Tratado de Roboré,
em si, foi apenas o começo de uma tentativa de deixar muito claro os interesses do
Brasil na questão do gás como fonte importante de energia.
10
Inegável que o gás natural adquiriu para as relações internacionais no século
XX importância inconteste. A intensificação da exploração do gás natural, depois da
década de 1970, enquanto alternativa para substituir o petróleo na geração de
energia, chamou novamente a atenção para a sua importância evidenciando que os
alinhavos do Tratado de Roboré estavam no caminho certo.
Embora o Tratado de Roboré tivesse aberto as portas para negociações,
resultados práticos e factíveis ocorreram muito tempo depois, por intermédio do
Acordo de Cooperação e Complementação Industrial, assinado em 22 de maio de
1974, entre o Brasil e a Bolívia.
Para escrever a presente dissertação, verificou-se a importância e a
necessidade de entender todo o arcabouço histórico necessário para avaliar as
questões de fundo que diziam respeito ao Tratado de Roboré.
Mostrou-se também, particularmente necessária a incursão no estudo
preliminar dos aspectos gerais dos Tratados Internacionais e suas conseqüências e
influências jurídicas dentro do Sistema Legal Brasileiro.
A dissertação está organizada em três capítulos. No primeiro deles trata-se do
Sistema Jurídico Internacional, cuja finalidade imediata é fazer um estudo, ainda que
não minudente, dos aspectos mais relevantes para entender todo o arcabouço
jurídico e as motivações da razão que levam as nações a exercerem opções, ora
vantajosas e ora nem tanto, para a formação de um sistema jurídico internacional.
O segundo capítulo trata das relações diplomáticas entre o Brasil e a Bolívia e
o histórico dessas relações, bem como se faz uma incursão nos diferentes Tratados
em que os dois países foram signatários.
E, finalmente, o terceiro capítulo que teve por base propriamente dita a
análise mais detalhada do Tratado de Roboré, especialmente as relações
fronteiriças entre Brasil e Bolívia, uma vez que a exploração de gás e
hidrocarbonetos principalmente após o Decreto Supremo do Presidente Boliviano,
de 01 de maio de 2006 que nacionalizou total e absolutamente, por parte do Estado
Boliviano, os recursos naturais de hidrocarbonetos, trouxe influência significativa
para a região fronteiriça e para o Brasil.
A medida atingiu diretamente a Petrobrás, pois a estatal brasileira possuía no
momento do ato de nacionalização, US$1,6 bilhão em investimentos no país andino.
A nacionalização do gás natural e do petróleo foi uma tentativa do Governo Boliviano
11
de dar ao Estado boliviano o controle sobre as atividades produtivas que estavam
circunscritas a esses setores.
De acordo com o Decreto Supremo n° 28.701 de nacionalização do gás,
todas as companhias estrangeiras de petróleo em operação na Bolívia deveriam
entregar 51% do controle da empresa ao governo boliviano num prazo máximo de
180 dias. A Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB), empresa estatal
boliviana, assumiu, como representante do Estado, a comercialização dos
hidrocarbonetos, definindo condições, volumes e preços, tanto para o mercado
interno como para a exportação e industrialização. O decreto nº 28.701/2006
apresentou-se de forma desfavorável para a Petrobrás, na medida em que houve um
aumento nos impostos, afetando a rentabilidade dos seus ativos. A carga tributária
sobre os campos mais lucrativos passou de 50% para 82%, o que a levou a empresa
brasileira a cancelar todo e qualquer investimento na Bolívia.
A pesquisa baseou-se em material bibliográfico sobre as relações jurídicas e
diplomáticas entre Brasil e Bolívia.
12
2 SISTEMA JURÍDICO INTERNACIONAL
O sistema jurídico internacional pode ser entendido como um conjunto
coerente de normas e de princípios com contornos jurídicos.
Marcelo Dias Varella1, comenta que:
A passagem do nacional para o internacional se opera por meio dos atos
ou por abstenções. Entre os atos, podemos situar os instrumentos jurídicos
internacionais, tais como os tratados ou convenções internacionais. Um
exemplo de abstenção será o silêncio de um Estado frente à interferência
da comunidade internacional num assunto tipicamente interno”.
E finaliza:
Todas essas transformações precisam de um quadro jurídico mais
homogêneo ou do desaparecimento de regulamentações nacionais
heterogêneas ou restritivas demais. A incerteza jurídica, a instabilidade
política e econômica devem desaparecer ou, pelo menos, ser diminuídas
para que os valores emergentes possam consolidar-se. O sistema jurídico
necessita, num mundo globalizado, de um tratamento internacional para se
desenvolver.
Inegável a expansão do Direito Internacional com a necessidade de controle
desse direito, ainda que para isso possa ocorrer uma certa e tolerável intromissão
em assuntos até então dito internos. Isso porque o espírito que deve dominar a
extensão e expansão do direito internacional deriva obviamente da necessidade de
uma cooperação interestatal, baseada na vontade da atuação conjunta em uma
escala internacional para a resolução de conflitos ou interesses regionais, ou mesmo
globais. Em contraposição ao princípio soberano, de que cada Estado é
independente e tem o poder de fazer valer suas próprias decisões dentro do seu
espaço territorial, surge uma necessidade cada vez maior de que os Estados se
submetam a um conjunto de escolhas, a fim de que possam obter alguns benefícios
jurídicos, políticos, econômicos, sociais e políticos. Por intermédio dessas escolhas,
ainda que em princípio possam ceder seus espaços de competência interna,
acabam por participar de um verdadeiro processo de expansão do direito
internacional e por conta disso precisam cooperar, ceder, participar de uma
regulação jurídica evidentemente mais internacionalizada.
1
VARELLA, Marcelo Dias. A crescente complexidade do sistema jurídico internacional. Alguns problemas de
coerência sistêmica. Revista de informação legislativa, Brasília a.42, n. 167, jul./set. 2005. Material da 1ª aula da
Disciplina Direito Constitucional Internacional, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em
Direito Constitucional – UNISUL - IDP – REDE LFG.
13
Assim agindo, é evidente que as nações acabam por exercer opções, ora
vantajosas e ora nem tanto, o que representa a aceitação e, por conseguinte, a
operacionalização de regras benéficas ou maléficas para a formação de um sistema
jurídico internacional.
A opção de uma nação pelo que chamamos alhures de “escolhas” representa
igualmente o que se pode chamar de verdadeira transposição do nacional para o
internacional e se opera por ações ou omissões. Por ações entende-se a celebração
de tratados ou convenções internacionais e por omissão, o silêncio de determinada
nação sobre a interferência da comunidade internacional sobre um assunto interno.
A expansão do direito internacional de forma que possa ser visualizado como
um sistema jurídico internacional pressupõe um encadeamento jurídico mais
homogêneo e menos restritivo. Mais homogêneo no sentido de que tais normas
precisam estar consentâneas com um direito que respeite “direitos”, não abrindo
espaços para incertezas jurídicas, e menos restritivo no sentido de que valores
emergentes se consolidem. Certo é que o sistema jurídico precisa também de um
mundo globalizado para que possa florescer e alcançar o seu desiderato, sendo
desnecessário dizer que a constituição de empresas globais, crescimento do
processo de globalização financeira e organização mais célere da sociedade civil
(aqui entendida como conjunto de indivíduos no nível global), é ponto que não deve
ser desprezado quando se fala em sucesso do fortalecimento de uma ordem jurídica
internacional mais forte.
Esse processo de expansão do direito internacional como sistema pressupõe
a necessidade de certo controle do direito com relação às organizações
internacionais e supranacionais com o desafio de não ferir a soberania nacional. Se
é certo que a atribuição de competência e capacidades é inerente ao Poder
Soberano de cada país, não menos certo é que a soberania absoluta, visualizada
por Grotius ou Hobbes, há de ser vista com certa ressalva, uma vez que até hoje os
doutrinadores discutem se a soberania dita absoluta alguma vez realmente existiu.
Tal raciocínio procede e nasce na idéia que vários problemas nacionais estão sendo
ou foram resolvidos pelo direito internacional, que criou novas fontes de direito e
variados órgãos de execução e controle desse direito.
O direito internacional, assim, evolui e retrai no tempo ao sabor de um
inevitável jogo de forças e imposição de regras das grandes potências, mesmo que
juridicamente os Estados continuem sendo iguais ainda que haja defasagem entre a
14
realidade e a teoria. Entretanto, esse é um dos pontos em que o Sistema Jurídico
Internacional se fortalece, pois há inegável tendência de cessões feitas pelos
Estados Soberanos que faz surgir uma competência de implementar e controlar o
direito.
Evidentemente há que se entender que esse verdadeiro processo de atribuir
capacidades não é linear e tampouco suprime do Estado a sua soberania, que é
dada legitimamente por aquele que tem o poder para tal, numa sociedade
democrática, que é o povo. Sobre essa atribuição de capacidades o Professor
Marcelo Dias Varela2, pontua:
Esse processo de atribuição de capacidades e de soberania não é racional,
nem linear. É difuso, não-organizado. A ausência de coerência e a
multiplicação das ações criam um roteiro de duplo tratamento dos assuntos,
de superposição de regras, de acumulação de lógicas contraditórias, de um
lado, e de ausência de tratamento, de raciocínios fechados, produzidos,
seja pelo Estado, seja pelo direito internacional, de outro lado, o todo se
referindo ao conceito de sistema, tratando-se do conjunto jurídico
internacional.
Há que se entender, todavia, que quando se fala em soberania, além dessa
possibilidade de atribuição de capacidade, fala-se também na questão da
competência do Estado, dentre elas a de fixar competências legislativas que
interferem na vida das pessoas físicas e jurídicas. Exemplo disso seriam os direitos
e obrigações da vida civil do indivíduo. Sobre essa competência, nenhum outro país
pode imiscuir-se, sob pena de interferir na ordem interna de um país e,
consequentemente, ferir sua soberania.
Note-se a diferença entre capacidade e competência e note-se ainda que a
igualdade soberana dos Estados é reconhecida e deve ser respeitada e não há que
se falar em transferência de soberania dos Estados para as organizações
internacionais ou para a comunidade internacional.
2.1 Fundamentos do Direito Internacional Público
Miguel Reale3, estatui em sua obra de Introdução ao Estudo do Direito, que
na coexistência estabelecem os indivíduos relações de coordenação, subordinação,
2 VARELLA, Marcelo Dias. A crescente complexidade do sistema jurídico internacional. Alguns problemas de coerência sistêmica. Revista de informação legislativa,
Brasília a.42, n. 167, jul./set. 2005
3
Miguel Reale - Lições Preliminares do Direito
15
integração, relações essas com o concomitante aparecimento de regras. Há uma
realidade natural (dado, cru) e uma realidade humana, cultural ou histórica
(construído, cozido). Em Do Espírito das Leis, Montesquieu4 define a lei como uma
“relação necessária que resulta da natureza das coisas”. Essa definição vale tanto
para leis físico-matemáticas como para as leis culturais. O direito, assim entendido
como ciência cultural, se sedimenta em alicerces do direito positivado, ou seja, no
direito posto. Esse Direito oficializado e promulgado lhe fornece características
próprias, cujos dados empíricos podem ser classificados em dúplice natureza, qual
seja, uma natureza técnica e outra política. A primeira pode ser definida sem
maiores digressões no âmbito da clara manifestação do direito positivado. Essa
natureza se manifesta por intermédio de técnica legiferante criada por aquele que
detém competência para tal e seguindo-se processo legislativo fundamentado na lei,
e, portanto, de conhecimento de todos, já que estampado na Constituição Federal.
Tem-se como verdadeira a assertiva de que o processo legislativo deve se
adequar a regras e princípios colocados pelo poder Constituinte Originário. Nessa
mesma linha de raciocínio, vê-se que as regras e princípios norteadores, colocados
pelo chamado Poder Constituinte Originário, evidenciam a natureza eminentemente
política do ato de escolha dos valores que irão abalizar os conceitos e limites do
arcabouço jurídico de uma nação. Dessa forma, não apenas os operadores do
direito, mas também o próprio legislador em sua atividade legiferante, deverá estar
atrelado a normas éticas e jurídicas a que devem obediência, a fim de possibilitar
que a lei possa efetivamente estampar a vontade soberana daquele que concede o
chamado Poder Originário, que é o povo.
O ato político como manifestação legítima, na medida em que demanda a
criação de um Poder de uma Ordem Constitucional, deve submeter-se a parâmetros
jurídicos que devem nortear uma realidade social, nacional e internacional.
Ao se criar uma nova ordem interna com a promulgação de uma Constituição,
convém obedecer a parâmetros que confiram ao poder a necessária legitimidade
para que mínimos parâmetros recepcionem princípios de Direito Internacional
Público.
Nunca foi tarefa fácil estudar e principalmente entender o Sistema Jurídico
Internacional, em função do seu cunho precipuamente filosófico e complexo. Nos
4 Do Espírito
das Leis (L'Esprit des lois), publicado em 1748, é o livro no qual Montesquieu elabora conceitos sobre formas de governo e exercícios da
autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política
16
últimos 50 anos, fomos espectadores de espantosa evolução científica e tecnológica
que, ao mesmo tempo em que apresentou ao mundo inegáveis e positivas
transformações, igualmente propiciaram um poder de destruição em guerras nunca
dantes imaginado pelos Estados Soberanos. Uma das armas utilizadas por grupos
terroristas para espalhar o medo pelo mundo são microorganismos, com um poder
de devastação assustador. Na história da humanidade, a varíola e a peste
provocaram milhares de mortes. O desenvolvimento científico que em outra época
anulou este poderio hoje potencializa e direciona seu poder para a destruição.
Nesse contexto, as Relações Internacionais tornaram-se extremamente
sensíveis, urgindo a necessidade de que os operadores do direito passassem a
estudar e conhecer os aspectos principais desse ramo jurídico, sob pena de serem
açambarcados por problemas insolucionáveis, em razão da ignorância desses
pontos cruciais. Na perspectiva de estarem se protegendo, estados soberanos
utilizam seu poder bélico como ameaça não só aos países que consideram inimigos,
mas também a toda humanidade. Daí porque é de importância ímpar conhecer, ao
menos, os fundamentos do Direito Internacional Público, como forma de analisar se
existe possibilidade concreta de se criar um sistema jurídico internacional protetivo
ou preventivo.
Existem três sistemas hermenêuticos de fundamentos do Direito Internacional
Público, quais sejam: o sistema Voluntarista, o Sociológico e o Iusnaturalista, este
último mais aceito.
Para o primeiro sistema, o Voluntarista, a simples e unilateral vontade dos
Estados Nacionais seria a pedra de toque e fundamento do Direito Internacional
Público. Ainda que algumas subcorrentes doutrinárias, nos moldes de Jellinek,
tenham tentado amenizar o absolutismo que tal sistema encerra, bem se vê o
descabimento de tal teoria, posto que coloca exclusivamente no Estado a
responsabilidade maior de concepção do Direito Internacional Público, o que não
pode ser admitido, já que os Estados não se encontram sozinhos, mas fazem parte
de um sistema universal, ainda que imaginário. A visão despótica pregada por esse
sistema não encontra ressonância no Direito Internacional.
Em lado oposto, tem-se o sistema Sociológico, que tem em Duguit e Scelle,
os seus precursores, estabelecendo que o Direito Internacional Público advém da
solidariedade que deve existir entre os participantes do cenário internacional.
Apregoam que as normas internacionais deveriam se originar dessa alegada
17
solidariedade. Obviamente que esse sistema não encontra ressonância nos dias
atuais em função de uma série de normas internacionais que, embora nem sempre
aceitas, devem ser acatadas, ao menos em tese, pelos Estados Soberanos.
Evidente o caráter utópico e de difícil concreção do sistema analisado.
E, por último, o sistema Iusnaturalista, que embora possa ser o mais antigo
dos três sistemas apresentados, pois remonta a 300 anos, é o mais utilizado nas
relações internacionais. Tem o seu precursor em Hugo Grotius que preleciona a
existência de dois tipos de normas: a positiva e a natural. A norma positiva é aquela
inspirada fortemente no direito natural. Esta última se caracteriza em um ideal de
justiça nem sempre presente na primeira. Afinal, é do direito natural que parte a
inspiração para levar em consideração o Costume Internacional e os Princípios
Gerais do Direito, sedimentado no igualmente chamado “Direito das Gentes” (Direito
fulcrado na conciliação entre os princípios da territorialidade e da personalidade. É
um direito inspirado na razão natural, positivo e vigente, mas com caráter menos
formalista do que ius civile), outra denominação que se dá ao Direito Internacional
Público. O raciocínio é lógico e justifica a aceitação desse sistema há tanto tempo,
uma vez que não abrindo espaços para incertezas jurídicas e menos restritivo no
sentido de que valores emergentes se consolidem como o respeito aos costumes e
princípios gerais, acaba por estabelecer o respeito à Soberania de cada Estado, o
que facilita a sua aceitação.
2.2 Fontes do Direito Internacional Público
O conceito mais elementar de Fonte é aquilo que faz nascer alguma coisa ou
que faz brotar, no caso, o direito. As fontes do Direito Internacional podem ser
definidas como um conjunto de normas que indicam o processo de revelação do
Direito Internacional, segundo o artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de
Justiça de 1945, sediada na cidade de Haia. São elas: as convenções
internacionais, o costume internacional e os princípios gerais do direito. O Estatuto
não estabeleceu qualquer hierarquia entre as fontes de direito internacional.
Para a doutrinadora civilista Maria Helena Diniz o costume “é uma norma que
deriva da longa prática uniforme ou da geral e constante repetição de dado
comportamento sob a convicção de que corresponda a uma necessidade jurídica”.
Para o Estatuto de Haia, o costume é uma prática geral aceita como sendo direito.
18
O direito internacional entende que o costume internacional, a exemplo do direito
civil nacional, é dotado de dois elementos: o material e o subjetivo ou psicológico.
O elemento material ou externo consiste na prática, ou seja, na repetição, ao
longo do tempo, de um certo modo de proceder ante determinado quadro de fato. A
conduta reiterada não precisa ser necessariamente um comportamento positivo,
ação, podendo consistir numa omissão. O elemento subjetivo (opinio juris) consiste
no entendimento, na convicção de que assim se procede por ser necessário, correto
e justo, é a convicção de que a norma eleita funciona como lei.
Não há que se confundir o elemento subjetivo com a mera praxe, pois no
costume há um sentimento de dever jurídico, de obrigatoriedade. Além disso, no
costume há uma reciprocidade entre os Estados que o adotam. A prática geral a que
se reporta o Estatuto de Haia ao definir o costume internacional não impede a
existência de costumes internacionais de âmbito regional, como é o caso do asilo
político, costume internacional de caráter regional muito comum nos países da
América Latina.
A demora em ser constituído e a dificuldade em ser provado tem feito o
costume internacional cair em desuso. As transformações tecnológicas e os conflitos
com os sujeitos de direito internacional têm exigido soluções rápidas e ágeis e o
costume internacional é de constituição lenta, não satisfazendo as necessidades do
mundo atual. Desde a 2º Guerra Mundial, o costume internacional vem sendo
substituído gradualmente pelos tratados e convenções internacionais como fonte de
direito, que, por serem escritos, denotam uma maior eficácia e consequentemente
atendem melhor os anseios dos entes envolvidos.
Com relação aos Tratados, a Convenção de Viena, 23 maio de 1969, os
definiu como “acordo internacional celebrado por escrito entre Estados e regido pelo
Direito Internacional, quer inserido num único instrumento, quer em dois ou mais
instrumentos conexos, qualquer que seja a sua designação específica”.
O acordo celebrado entre os Estados deve ser regido pelo direito das gentes
para ser considerado tratado. Se for regido pela lei interna de algum dos Estados
será um contrato interestadual, mas não tratado. Sobre o Tratado, trataremos de
forma mais detalhada no capítulo a seguir.
A terceira fonte enunciada pelo Estatuto de Haia são os princípios gerais do
direito reconhecidos pelas nações civilizadas. A expressão reconhecidos pelas
nações civilizadas causou muita polêmica, pois se alega que teria caráter
19
discriminatório. Segundo o Comitê de Juristas que elaborou o projeto do Estatuto de
Haia, eles seriam os princípios aceitos pelas nações in foro domestico, tais como
certos princípios de processo, o princípio da boa-fé, e o princípio da res judicata ou
coisa julgada.
O direito internacional moderno depende cada vez menos desta fonte de
direito internacional, pois a maioria dos princípios gerais do direito já se encontra
fixada no direito consuetudinário ou no direito dos tratados.
2.3 Tratados Internacionais
O Tratado Internacional, como espécie de norma jurídica de cunho especial
com relação a sua forma de constituição, é eminentemente singular naquilo que diz
respeito a sua posição estática e dinâmica dentro de dada ordem jurídica nacional.
O Tratado Internacional deve ser visto, quanto a sua finalidade prática, dentro da
realidade social de cada país onde será aplicado, posto que a partir do momento em
que for introduzido em determinado ordenamento jurídico, outro não será o caminho
que não a sua aplicação, guardadas as exigências constitucionais.
Para autores como Francisco Rezek, na gênese de Tratados Internacionais
devem se
fazer
coordenação,
presentes
as
horizontalidade
e
seguintes
condicionantes: descentralização,
consentimento.
Para
o
autor
citado,
a
descentralização decorre do fato de que: "A sociedade internacional, ao contrário do
que sucede com as comunidades nacionais organizadas sob a forma de Estados, é
ainda hoje descentralizada, e o será provavelmente por muito tempo adiante de
nossa época5". A Coordenação surge em decorrência da necessidade de, como o
nome diz, coordenarem-se as soberanias, vistas nesse caso como o poder que cada
ente estatal tem de fazer valer dentro do seu território a universalidade das suas
decisões. Assim:
As relações entre o Estado e os indivíduos ou empresas fazem com que
toda ordem jurídica interna seja marcada pela idéia de subordinação. Esse
quadro não encontra paralelo na ordem internacional, onde a coordenação
é o princípio que preside a convivência organizada de tantas soberanias6.
5
José Francisco Rezek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 6ª. Ed., São Paulo : Saraiva, 1996, p. 01 a 03
6
Idem
20
Desse modo, sem muito esforço há que se concluir com relação a
horizontalidade que: "No plano internacional não existe autoridade superior nem
milícia permanente. Os Estados se organizam horizontalmente, e prontificam-se a
proceder de acordo com normas jurídicas na exata medida em que estas tenham
constituído objeto de seu consentimento. A criação de normas é, assim, obra direta
de seus destinatários. Não há representação, como no caso dos parlamentos
nacionais que se propõem exprimir a voz dos povos, nem prevalece o princípio
majoritário. A vontade singular de um Estado soberano somente sucumbe para dar
lugar ao primado de outras vontades reunidas quando aquele mesmo Estado tenha,
antes, abonado a adoção de semelhante regra, qual sucede no quadro das
organizações internacionais, a propósito de questões de importância secundária7".
E por fim, o consentimento, que apesar de fundamental na formação do
tratados em geral, "não é necessariamente criativo (como quando se trata de
estabelecer uma norma sobre a exata extensão do mar territorial, ou de especificar o
aspecto fiscal dos privilégios diplomáticos). Ele pode ser apenas perceptivo, qual se
dá quando os Estados consentem em torno de normas que fluem inevitavelmente da
pura razão humana, ou que se apóiam, em maior ou menor medida, num imperativo
ético, parecendo imunes à prerrogativa estatal de manipulação8”.
Também por conta das condicionantes não há que se falar em vinculação ao
princípio majoritário, vez que cada vontade singularmente expressa se vincula na
medida exata dos seus interesses particulares, daí prevalecendo os princípios da
pacta sunt servanda, e envolvendo todas as condicionantes com os pressupostos da
soberania e da boa-fé. Heber Arbuet Vignali9, in “Atributo da Soberania”, estatui que:
"[...]; no campo internacional, coexistem muitos soberanos, os quais, ao ter que se
relacionarem, criam um sistema de coordenação, desenvolvido a partir da idéia de
compromissos mútuos e obrigação de cumpri-los de boa-fé."
Não se pode perder o foco de que o respeito aos princípios é de fundamental
importância na vigência dos Tratados Internacionais e que o desrespeito a tais
princípios pode comprometer a sua vigência, uma vez que ao ser desrespeitado um
princípio, em regra, está o desrespeito a um conjunto de leis que o formam.
7
8
9
Ibidem
Ibidem
Estudos da Integração, v. 9, Brasília : Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas; Porto Alegre : Associação Brasileira de
Estudos da Integração, 1995, p. 20.
21
Reveste-se então de importância o cumprimento e respeito ao princípio da
pacta sunt servanda, já que: “o que foi pactuado deve ser cumprido” – é um modelo
de
norma
fundada
no
consentimento
perceptivo.
Regras
resultantes
do
consentimento criativo são aquelas das quais a comunidade internacional poderia
prescindir. São
aquelas
que evoluíram em determinado sentido, quando
perfeitamente poderiam ter assumido sentido diverso, ou mesmo contrário. E é
impossível, em absoluto, conceber que a mais rudimentar das comunidades
sobreviva sem que seus integrantes se subordinem, quando menos, ao dever de
honrar as obrigações livremente assumidas10".
Há que ser observado que o contrato social vigora em toda sua plenitude na
sua clássica doutrina na sociedade internacional, pois vige o princípio da igualdade
formal entre os diversos entes de direito internacional, em razão da soberania dos
entes estatais.
2.4 Definição de Tratados Internacionais
Accioly e Silva11 assim definem os Tratados Internacionais: “Por tratado
entende-se o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre
duas ou mais pessoas internacionais”.
Para Rezek12: "Tratado é o acordo formal, concluído entre sujeitos de direito
internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos".
Analisando os dois conceitos acima estampados vemos que a posição de
Rezek, ao justificar seu conceito, é muito mais técnica, pois explana que: “A
produção de efeitos jurídicos é essencial ao tratado, que não pode ser visto senão
na sua dupla qualidade de ato jurídico e de norma. O acordo formal entre Estados é
o ato jurídico que produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia
efeitos de direito, gera obrigações e prerrogativas, caracteriza enfim, na plenitude de
seus dois elementos, o tratado internacional”.
Extrai-se que tratado é a norma jurídica produzida mediante um ato de
vontade estatal num contexto em que se presume a igualdade formal entre as
partes. Esse ato consuma uma relação jurídica de direito internacional e funda a
10
11
ibidem
Hildebrando Accioly e Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, Manual de Direito Internacional Público, 12ª. ed., São Paulo - Saraiva,
1996, p. 20.
12 José Francisco Rezek, Direito dos tratados, Rio de Janeiro : Forense, 1984, p. 21.
22
obrigatoriedade da aplicação da norma internacional mediante os princípios da pacta
sunt servanda e da boa-fé.
O conceito acima denota não só a posição que o tratado ocupará
hierarquicamente no cotejo das normas jurídicas, como definirá a dinâmica das
normas que dele se extrairá dentro do contexto e unicidade que devem permear o
próprio direito estatal.
Não é difícil se chegar à conclusão de que toda a Ordem Constitucional
Brasileira e parte significativa da legislação complementar testemunham a realidade
empírica que confirma a validade da teoria monista com prevalência, não só no
direito internacional, mas da própria Ciência Jurídica, pois se o Direito tem o atributo
da unidade, tal unidade implica na prevalência da norma internacional sobre a
nacional.
Despiciendo dizer que a afirmação retro encontra limites naquilo que
podemos chamar de proteção da ordem pública, quando esta for ofendida em sua
estrutura mais fundamental, no que diz respeito aos direitos e garantias
fundamentais. Não obstante, se, eventualmente, direitos e garantias fundamentais,
ao serem inseridos pela norma internacional afetarem a Ordem Pública estabelecida,
evidente que esta lhe cederá o passo por determinação constitucional, desde que se
respeitem os direitos adquiridos, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito, que são
limites objetivos à vigência e eficácia de toda e qualquer norma jurídica no
ordenamento legal brasileiro e sem assombro, pode-se dizer os pilares do Direito,
pois que o sustentam e lhe dão base.
Assim sendo, pode-se afirmar com segurança que, quando se trata da
vigência e da eficácia de determinada norma internacional em nosso ordenamento
interno, em vista de expresso mandamento constitucional, operará uma espécie de
contraposição entre os direitos e garantias presentes na norma internacional. Se por
outro lado, a norma internacional ferir quaisquer das garantias postas em nosso
ordenamento deverá haver o devido controle judicial de constitucionalidade. Essas
inovações introduzidas pela norma internacional devem atender aos requisitos do
art. 5o da Constituição Federal e seus parágrafos de forma que toda ordem interna
se submeta na definição da norma aplicável. Vê-se que o princípio da especialidade
prevalecerá frente ao princípio cronológico.
23
2.5 Diferença entre Tratados e Acordos Internacionais
Na prática sempre houve uma diferença entre Tratados e Acordos
Internacionais. Isso ocorre porque o Poder Executivo por intermédio do seu
instrumento diplomático acaba impondo uma realidade nem sempre consentânea
com o que está previsto na Constituição. Quando isso acontece estamos diante dos
chamados tratados em forma simplificada ou acordos executivos.
O governo assina determinados acordos de caráter internacional sem a
anuência do Poder Legislativo. A esse fenômeno dá-se o nome de ‘acordos do
executivo’ e no Brasil ocorre desde a edição da Constituição Federal de 1946. Tais
tratados dispensam a participação do legislativo, fugindo ao controle do Senado.
O Poder Executivo firma tais acordos internacionais sem necessitar da
aprovação ou referendo do Poder Legislativo, de forma a dar-lhes vigência no direito
interno através, apenas, da edição do Decreto Executivo, praticando assim a
INTERNALIZAÇÃO de tais acordos internacionais.
Luciano Nascimento Silva13, traz interessante contribuição sobre o assunto
em sua monografia:
CACHAPUZ DE MEDEIROS nos traz a posição do professor ACCIOLY,
defendendo a tese de que, efetivamente, existe determinados acordos
internacionais que não prescindem da aprovação ou referendo do Poder
Legislativo, por tratar-se de atos não complexos, bastando apenas a
intervenção do Chefe do Poder Executivo ou do órgão por ele delegado
(Ministério das Relações Exteriores), para dar-se assim a internalização do
ato internacional. São eles: a) os acordos sobre assuntos que sejam da
competência privativa do Poder Executivo; b) os concluídos por agentes ou
funcionários que tenham competência para isso, sobre questões de
interesse local ou de importância restrita; c) os que consignam
simplesmente a interpretação de cláusula de um tratado já vigente; d) os
que decorrem, lógica e necessariamente, de algum tratado vigente e que
são como que o seu complemento; e, e) os de modus vivendi, quando têm
em vista apenas deixar as coisa no estado em que se encontram ou
estabelecer simples bases para negociações futuras”.
O que se extrai desse estudo é que a competência do Poder Legislativo deve
ser utilizada apenas para
aprovar ou referendar compromissos que acarretem
encargos gravosos ao patrimônio nacional, como bem menciona a segunda parte do
13
SILVA, Luciano Nascimento. A Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal e os tratados internacionais: estudo sobre
o Direito dos Tratados e o Direito Constitucional brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003 . Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/4785>.Acesso em: 15 março 2012.
24
dispositivo constitucional. E, diante desta leitura, ficariam de fora os chamados
tratados em forma simplificada ou acordos executivos.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 84, inciso VIII, atribuiu competência ao
Chefe do Poder Executivo para celebrar tratados e ao Congresso Nacional
competência para aprovar e referendar tratados, acordos ou atos internacionais que
acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, no seu
artigo 49, inciso I.
2.6 Características dos Tratados Internacionais
Nos exatos termos do artigo 2º da Convenção de Viena sobre Direito dos
Tratados, dentre as principais características desse instrumento, destacam-se: é um
acordo de vontades; é realizado por sujeitos de Direito Internacional e deve ser
subordinado ao Direito Interno dos Estados; gera obrigatoriedade entre as partes; é
um acordo internacional e deve ser firmado por Estados; deve ser escrito e pode ser
feito em um ou mais documentos e independe de sua denominação, pode ser
tratado, carta, pacto, etc. Com relação à forma, pode ser tratado Lei ou tratado
Contrato; tratado Geral ou tratado Especial e tratado Normativo ou tratado
Constitutivo e, finalmente quanto à matéria pode ser entre Estados ou entre Estados
e Organismos Internacionais ou entre Organismos Internacionais; Bilaterais ou
Multilaterais e de forma Simplificada ou de forma Solene
2.7 Natureza jurídica dos Tratados Internacionais
A natureza jurídica do tratado internacional incorporada, segundo o Supremo
Tribunal Federal, desde 1977, possui o status de lei ordinária. Assim, lei ordinária
posterior pode, em regra (e contrariando os internacionalistas), revogar norma de
tratado internacional incorporado e vice-versa.
2.8 Formas de Introdução dos Tratados Internacionais no Direito Público
Para Francisco Rezek:
O tratado internacional, na afirmação clássica de Georges Scelle, é em si
mesmo um simples instrumento. Identificamo-lo por seu processo de
25
produção e pela forma final, não pelo conteúdo. Este - como o da lei
ordinária numa ordem jurídica interna - é variável ad infinitum. Pelo efeito
compromissório e cogente que visa produzir, o tratado dá cobertura legal à
sua própria substância. É natural, por isso, que o estudo do direito dos
tratados, não tenha por objeto nada mais que esse instrumento, cuja
variedade nominal, ditada pelo acaso e pelo arbítrio das partes, não guarda
relação com seu teor material.
Para entender a lição supra citada, há de ser verificado que isso ocorre
igualmente com relação ao direito geral ou comum, na medida de sua formação
baseada nas normas do Direito Consuetudinário e Princípios Gerais do Direito das
“nações civilizadas”14.
A Constituição Federal de 1988, no § 2º do artigo 5º, estatui que os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte. E é na mesma Constituição que ocorre o surgimento
de dois outros artigos que tratam do poder de assinar tratados e incorporá-los ao
direito interno, quais sejam o artigo 49, inciso I e o artigo 84, inciso VII.
Flávia Piovesan assevera que se consagra, assim, a colaboração entre o
Executivo e o Legislativo na conclusão de tratados internacionais, que não se
aperfeiçoa enquanto a vontade do Poder Executivo, manifestada pelo Presidente da
República, não se somar à vontade do Congresso Nacional. Logo, os tratados
internacionais demandam, para seu aperfeiçoamento, um ato complexo, onde se
integram a vontade do Presidente da República, que os celebra, e a do Congresso
Nacional,
que
os
aprova
mediante
decreto
legislativo.
Ressalte-se
que,
considerando o histórico das Constituições anteriores, se constata que, no Direito
brasileiro, a conjugação de vontades entre Executivo e Legislativo sempre se fez
necessária para a conclusão de tratados internacionais.15
Existe certo dissenso doutrinário em linhas gerais se no Brasil se adota a
corrente dualista, monista ou mista. Para a primeira corrente, como já citado, existe
uma união entre os Poderes Executivo e Legislativo na conclusão dos tratados
internacionais. Por conclusão, leia-se a entrada no ordenamento jurídico nacional do
referido tratado. Para a corrente monista, o tratado ingressaria na ordem jurídica
14
Embora possa não ser um termo considerado “politicamente correto”, continuará sendo utilizado neste trabalho não por
afronta, mas por ser a expressão utilizada no Estatuto de Haia.
GOMES, Luiz Flávio, PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo :
RT, 2000, p. 155.
15
26
nacional sem a necessidade de uma lei em sentido formal. Já a corrente mista
pressupõe a adoção das duas outras correntes mencionadas. Assim, diante do
silêncio constitucional, a corrente mista seria adotada no Brasil, ou seja, ora se adota
a corrente monista (que reza que na incorporação do tratado de direitos humanos,
por exemplo, que não exige, segundo a melhor doutrina, ato normativo do
Presidente da República, passando a vigorar imediatamente quando estabelecido
pela ordem jurídica internacional) e ora a corrente dualista (na incorporação dos
demais tratados, ditos convencionais). Essas são em linhas gerais, a teoria sobre o
assunto, uma vez que o aprofundamento da matéria exigiria um estudo mais
concentrado da questão dos tratados em si, o que refoge ao objetivo do presente
trabalho. De qualquer forma, visualiza-se que o tratado para ser ratificado no
ordenamento interno brasileiro seja antecedido de um ato normativo que se
denomina decreto de execução, da lavra do Presidente da República. Tal decreto
tem o escopo de conferir execução e cumprimento ao tratado ratificado no âmbito
interno. Inegável, porém, que existem duas ordens jurídicas diversas, que
sobrevivem em moderada sinergia, quais sejam: a ordem interna e a ordem
internacional.
2.9 Hierarquia dos Tratados no ordenamento jurídico Brasileiro
Antes de adentrar propriamente no estudo da hierarquia dos tratados no
ordenamento jurídico do Brasil, necessária uma inserção no processo de formação
dos tratados internacionais. Despiciendo dizer que, como processo que é, engloba
fases que, no dizer do doutrinador Cachapuz de Medeiros16, podem ser assim
resumidas:
“o processo solene e completo: pode transcorrer de duas formas: a)
inicia com a negociação e a adoção do texto, prossegue com a
avaliação interna de suas vantagens ou inconvenientes e, no caso de
ser aprovado, ocorre a manifestação da vontade do Estado em
obrigar-se pelo tratado, o aperfeiçoamento jurídico-internacional
dessa vontade e a incorporação do texto do tratado à ordem jurídica
interna (negociação - assinatura – mensagem ao Congresso –
aprovação parlamentar – ratificação – promulgação); b) o Executivo
solicita ao Congresso autorização, é remetido o instrumento de
16 CACHAPUZ DE MEDEIROS, Antônio Paulo. O poder de celebrar tratados: competência dos poderes constituídos para a celebração
de tratados, à luz do direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris
Editor, 1995.
27
adesão à autoridade depositária do tratado, que leva ao
conhecimento das partes a decisão do Brasil de também assumir as
obrigações do tratado. Entrando o ato de adesão em vigor no plano
internacional, o tratado é incorporado à ordem jurídica interna
(mensagem ao Congresso - autorização parlamentar - adesão –
promulgação); e o processo simples e abreviado que é o rito dos
acordos em forma simplificada: negociação – assinatura (ou troca de
notas diplomáticas) – publicação”.
Embora a questão acima suscitada de formação dos tratados possa parecer
em um primeiro momento simples, tal não ocorre em função da falta de clareza da
Constituição Federal Brasileira com relação a hierarquia dos tratados internacionais
recepcionados. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência se encarregaram, ao longo
dos anos, por intermédio de decisões dos Tribunais ou estudos sistematizados, de
resolver conflitos decorrentes ante a ausência de clareza da Carta Maior. Nem
mesmo a Emenda Constitucional nº. 45/2004 pôs fim à celeuma, embora tenha dado
um certo alento a discussões recorrentes referentes à hierarquia de tratados que
versam sobre direitos humanos.
Para Dallari17, os parcos ensinamentos sobre a integração e recepção dos
tratados não permitem uma efetiva clareza sobre a matéria, causando certo dissenso
nos entendimentos jurisprudenciais, uma vez que a equiparação dos tratados às leis
federais não contou com o apoio doutrinário de forma a apaziguar a questão.
Usou-se em todo o período da história recente do país critérios de resoluções
de conflitos relativos à questão da admissão e hierarquia dos tratados, como os
critérios cronológico, da especialidade e o princípio da pacta sunt servanda.
Pelo critério cronológico (lex posterior derrogat legi priori), a exemplo do que
acontece quando estudamos o critério de hierarquia das leis, a norma editada
posteriormente sobrepõe-se a norma já existente naquilo que a contradiz. Tal
raciocínio já foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal ao adotar em decisões
daquele Sodalício o critério em estudo quando estabeleceu que uma lei revoga um
tratado anterior e vice-e-versa. Isso decorre uma vez que o Pretório Excelso dá ao
tratado o “status” de Lei Ordinária. Tal posicionamento não é unânime e há
argumentos de que a forma de revogação dos tratados é diferente da revogação da
lei.
No caso de ocorrência de conflito entre leis e tratados, pode-se usar também
o critério da especialidade (lex specialis derrogat legi gernerali), segundo o qual uma
17 DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu. Constituição e tratados internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003.
28
lei especial que trata da matéria revoga uma lei de caráter geral. No caso acima,
Norberto Bobbio18 entende que há a ocorrência de uma verdadeira “antinomia de
segundo grau”, o que significa dizer que se uma lei ordinária for promulgada
posteriormente a um tratado e trate da mesma matéria de forma diferente, ocorrerá
obviamente um conflito entre os critérios cronológico e da especialidade. Para o
doutrinador suso mencionado, nesse caso aplicar-se-á a regra segundo a qual lex
posterior generalis non derrogat priori speciali. Nesse caso, continuaria valendo o
tratado.
Finalmente o princípio pacta sunt servanda, que estabelece que o que é
contratado deve ser cumprido, tem sido largamente utilizado como critério de
solução de conflitos. A título de exemplo, por tal critério, um Estado Soberano, ao
assumir compromissos na ordem internacional, assume igualmente o compromisso
de validá-los na ordem jurídica interna, obrigando o seu cumprimento. Não pode
esse mesmo Estado Soberano alegar o descumprimento de um tratado livremente
assinado sob o argumento de contrariedade aos interesses internos. Tal escusa
certamente feriria o princípio assinalado e, consequentemente feriria mortalmente
outro princípio que é o da boa-fé, que deve nortear as relações entre ditos Estados
Soberanos. Não se olvide ainda que, em direito, o desrespeito a princípios é, sem
dúvida, mais grave do que o desrespeito às leis, posto que os princípios em linhas
gerais podem compreender um emaranhado de leis.
Um ponto que não pode deixar de ser comentado é que um Tratado assinado
que contrarie os interesses do Estado Soberano causando-lhe, ou podendo vir a
causar danos, pode deixar de ser aplicado, arcando o descumpridor com os ônus da
responsabilização internacional. Entretanto, denunciar o Tratado pode e deve ser
uma saída a ser analisada para evitar seu descumprimento.
Assim como a existência da lei exige um processo de formação para que seja
considerada válida, o tratado deve preencher os requisitos legais para que sua
validade interna seja reconhecida. Dentre tais requisitos, observa-se que a produção
de efeitos internamente pressupõe a vigência do decreto de promulgação da lavra
do Presidente da República.
Finalizando este capítulo, tem-se como adotado o critério que os Tratados e
Convenções Internacionais possuem “status” de lei ordinária.
18
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4. ed. Brasília: Unb, 1994
29
30
3 RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE O BRASIL E A BOLÍVIA
3.1 Breve histórico das relações diplomáticas entre Brasil e Bolívia
Para se falar em integração sul-americana, há sem dúvida que tentar
entender a natureza das relações que existem entre os países desse continente. Tal
tema é de grande relevância e certamente contribui para uma visualização das
relações entre os países, principalmente do Brasil e da Bolívia, que é o foco do
presente trabalho.
Inegavelmente fatores históricos e contemporâneos expressivos ocorridos
entre os dois países merecem uma atenção toda especial. Em quase dois séculos
de relações históricas ocorreram eventos que refletiram situações de estabilidade e
instabilidade entre os vizinhos, onde se encontra a maior fronteira terrestre, com
extensão de 3.423,20 km. Tal fronteira pode ser dividida em três partes: porção
Norte, iniciando na foz do Yaverija, ponto tripartite Brasil-Bolívia-Peru, até o rio
Madeira (Estados do Acre e Rondônia, no Brasil, e Departamento de Pando, na
Bolívia); porção Central, que se inicia na região dos rios Madeira, Mamoré e
Guaporé (Estados de Rondônia e Mato Grosso, no Brasil, e Departamentos de Beni
e Santa Cruz, na Bolívia); e, finalmente, porção Sul: desde a foz do rio Verde (no rio
Guaporé) até a Baia Negra (no rio Paraguai), ponto tripartite Brasil-Bolívia-Paraguai
(Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil, e Departamento de Santa
Cruz, na Bolívia).
Em meados do século XX ocorreu a integração física desses territórios por
intermédio da construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, ligando a cidade de
Bauru, situada na região central do estado de São Paulo até Corumbá em Mato
Grosso do Sul, fronteira com a Bolívia, que propiciou a integração com a rede
ferroviária boliviana até Santa Cruz de la Sierra.
Não pode ser esquecido ainda que, no início do século XX, houve a
construção da ferrovia Madeira-Mamoré, com o objetivo de auxiliar a Bolívia com o
escoamento da sua produção de borracha através dos rios Madeira e Solimões.
No final do século XIX e início do XX, a região norte do Brasil atraiu milhares
de migrantes que foram trabalhar nos seringais. A disseminação dos seringueiros
pelo território de floresta amazônica alcançou áreas que se localizavam fora da
fronteira do Brasil, ocupando o território acreano que, na ocasião, pertencia à Bolívia
desde os tratados de limites de 1867.
31
Como a região apresentava difícil acesso, a ocupação por bolivianos era pífia
na região. Quando a Bolívia tomou conhecimento da ocupação do território do Acre,
imediatamente determinou que tropas do exército se dirigissem aquele território.
Entretanto, em 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, ocorreu o
fim da disputa do Acre pelos dois países com a incorporação do Acre ao território
brasileiro, o que incluiu o pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras
esterlinas, e o compromisso de construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que seria
usada para o escoamento, via oceano Atlântico, da borracha produzida na Bolívia.
Entre os anos de 1907 a 1912, a ferrovia foi construída, mas nunca operou
com a regularidade que se esperava, uma vez que não foram construídos os canais
fluviais necessários para o escoamento da produção. Some-se a esse fato o fim do
ciclo da borracha e a alteração dos interesses de integração física que passaram a
se concentrar no sul da fronteira, o que fez surgir novos projetos que visavam a
oferecer à Bolívia uma saída pelo Atlântico via Porto de Santos.
A partir desse interesse e exatamente dentro desse contexto surge a Estrada
de Ferro Corumbá – Santa Cruz, que tinha como objetivo a ligação com a Ferrovia
Noroeste do Brasil. Os recursos para a construção dessa Estrada de Ferro foram
oriundos do Tratado de Petrópolis que inicialmente seriam destinados integralmente
à construção da Ferrovia Madeira-Mamoré.
Indiscutível o fundamental papel de integração física subcontinental da
Noroeste do Brasil, cujo início da construção se deu em 1905. Iniciando-se em Bauru
– São Paulo, e seguia em direção ao Noroeste. Nos idos de 1910, cruzou o Rio
Paraná e atingiu Porto Esperança em 1914, à beira do Rio Paraguai, chegando em
Corumbá no ano de 1952.
Não sem razão, Corumbá foi a cidade escolhida para ser o fim da linha da
Noroeste do Brasil, posto que está evidenciada uma estratégia geopolítica, ficando
claro, desta forma, a intenção política brasileira de estabelecer conexões físicas com
a Bolívia.
Com o final da Guerra do Chaco, a Bolívia saiu sensivelmente prejudicada e
buscou alianças com a Argentina e o Brasil. Com o Brasil a Bolívia negociou duas
formas de integração bilateral: a primeira, por intermédio do petróleo boliviano e a
segunda, por intermédio de uma ligação física, que possibilitasse a interligação de
Santa Cruz de la Sierra com Corumbá através de uma ferrovia.
32
Com investimentos brasileiros, seria possível que o petróleo boliviano fosse
exportado para nosso país, uma vez que na época a dependência energética era
patente.
Com a ferrovia, a produção boliviana poderia ser escoada via Porto de
Santos, aproveitando-se a Noroeste do Brasil. Bem por isso foi assinado, aos 25 de
fevereiro de 1938, o Tratado sobre Ligação Ferroviária, que, entre outros
compromissos, trouxe ao Brasil a responsabilidade da construção do trecho entre
Porto Esperança e Corumbá.
Ocorre que algum tempo depois, Bolívia e Argentina assinaram tratados nos
mesmos moldes do que a Bolívia assinou com o Brasil, o que veio de certa forma a
se tornar um empecilho para o cumprimento dos acordos de 1938, já que havia
convergência das áreas estipuladas para exploração petrolífera pelo Brasil e pela
Argentina. Isso fez com que o Brasil determinasse a suspensão dos fundos para a
pesquisa geológica.
A integração física delineada de maneira superficial acima demonstra a
relativa permeabilidade que existe nessa zona fronteiriça, acentuada no século XX
com a migração de seringueiros brasileiros para a Bolívia e vice-e-versa.
Inegável que a Bolívia ocupa uma posição geopolítica de destaque no
subcontinente americano, embora seja apenas membro associado do Mercosul.
Não há como passar incólume por outro aspecto de considerável relevância
no campo histórico entre os dois países como as negociações para a aquisição pelo
Brasil do território do Acre, assunto que causa manifesto desconforto por parte dos
bolivianos e que culminou com a assinatura de alguns tratados e acordos que serão
vistos a seguir.
3.2 Tratado da Amizade, Limites e Comércio (27/03/1867).
O Tratado da Amizade, Limites e Comércio assinado entre o Brasil e a Bolívia
no dia 27 de março de 1867, assim o foi quando não se tinha a noção exata da
situação geográfica dos rios da Bacia Amazônica. Tanto isso é verdade que, ao
analisar o referido tratado, se verifica que em um dos seus artigos acabava por
estabelecer a linha limite saindo do rio Madeira, por um paralelo, para oeste, até as
nascentes do Javari. No mesmo documento ainda era estabelecido que se essas
33
nascentes estivessem ao norte do paralelo tal linha deveria seguir "desde a mesma
latitude", até aquela nascente local que originou o Estado do Acre.
A assinatura do Tratado de 1867 representou dentro do contexto histórico da
época um desconforto dos países signatários com outros países da América Latina,
dentre eles, o Peru, que de forma virulenta atacava a assinatura do tratado, via
imprensa, acusando a Bolívia de tomar uma posição em favor do Brasil em meio à
Guerra do Paraguai.
A resposta da Bolívia pela imprensa e meios diplomáticos acabou pondo fim à
celeuma instaurada, quando afirmou que a assinatura do Tratado representava um
ato de soberania, pois somente o proprietário poderia ceder o seu direito. Com isso,
refutaram-se as investidas peruanas e ainda trouxe o Brasil à condição de país
aliado da Bolívia.
Ramón Casas Vilarinho, analisa esse Tratado, com a seguinte visão:
Com o avanço das tropas aliadas sobre o exército de Lopez e a difícil
situação financeira de Bolívia, Chile e Peru, o governo brasileiro tomou a
ofensiva e se aproximou do governo boliviano para assinar o primeiro
Tratado de Limites, que ficou pronto em março de 1867. Fazendo valer o
princípio do uti possidetis, o Brasil conseguiu amealhar mais algumas
léguas de território disputado, o que gerou protestos dentro e fora da
Bolívia. O país que mais reagiu ao tratado foi o Peru, antigo aliado na
formação da Confederação Peruana-Boliviana, e futuro aliado na Guerra do
Pacífico. A assinatura desse tratado em meio à Guerra do Paraguai foi
sentida com desconfiança pelos outros países, já que poderia representar
uma posição do governo boliviano a favor do Brasil na guerra. Para o Peru,
este assunto era de suma importância, pois, além de país fronteiriço com a
Bolívia, o que poderia representar um avanço do expansionismo brasileiro
por suas terras, havia uma aliança em curso entre Chile, Equador, Peru e
Bolívia, a Aliança do Pacífico, que podia ser entendida também como uma
aliança defensiva contra as ambições argentinas e brasileiras: A América
do Sul era como um tabuleiro de xadrez, em que não se podia movimentar
qualquer peça contra outra, sem o risco de sofrer um ataque pela
retaguarda, dada a cobertura com que todos os países contavam. A
Argentina sempre temera que o Brasil a atacasse por causa das Missões,
caso ela se envolvesse em guerra com o Chile. O Chile também evitava o
confronto com a Argentina, porquanto o Peru e a Bolívia poderiam intervir, a
fim de tentarem a retomada de Tacna e Arica. E o Peru, por sua vez,
receava que o Brasil o acometesse, através da Amazônia, aproveitando-se
de qualquer outro conflito que se desencadeasse com o Chile. (BANDEIRA,
2003, p. 56).
O Tratado de 1867, antecedeu ao Tratado de Petrópolis que teve por objetivo
a restauração dos limites do Brasil ao sul, como será visto adiante.
34
3.3 Tratado de Petrópolis (17/11/1903)
Se a situação dos limites ficou aparentemente apaziguada após a assinatura
do Tratado da Amizade Limites e Comércio, em 1898, verificou-se que à vista do
Tratado de 1867, a região do Acre pertencia à Bolívia. Esse reconhecimento de
área, na verdade, deu-se em troca do reconhecimento da neutralidade da Bolívia na
Guerra do Paraguai, interessante para que as questões da Bolívia com os outros
países da América Latina ficassem bem delineadas. De qualquer forma, até 1869,
essa faixa de terra não era habitada, sendo os brasileiros os primeiros a adentrarem
nesse território a fim de efetuarem a exploração da borracha.
Em decorrência da seca de 1877, vários nordestinos acabaram por emigrar
para o Acre, atendendo necessidade dos proprietários de seringais, atraídos pela
mão de obra barata e abundante.
O governo Boliviano, ao notar esse potencial de exploração que ocorria no
território, houve por bem em instalar uma aduana para recolhimento de impostos em
Puerto Alonso, provocando imediata reação por parte não só dos brasileiros
instalados no local, mas do próprio governo amazonense, que viu a decadência das
suas receitas.
A situação descrita causou diversos atritos, vez que a população não queria
se submeter ao governo boliviano. Para tentar solucionar a questão, o governo
boliviano arrendou o território a anglo-americanos, originando inúmeras revoltas.
Antes do vencimento do arrendamento, entretanto, foi entabulada uma negociação
entre o Governo dos Estados Unidos da América e do Brasil, a fim de solucionar o
impasse.
A multa foi paga e o Brasil ocupou militarmente a região até que a questão
fosse resolvida definitivamente.
O Tratado de Petrópolis pode ser entendido como a restauração dos limites
do Brasil ao sul. O que na verdade aconteceu foi o resgate, mediante indenização,
do título português ou brasileiro que havia sido cedido a Bolívia pelo Tratado de
1867 (Barão do Rio Branco citando Clóvis Beviláqua: 1909).
Foi o Barão do Rio Branco, na qualidade de Ministro das Relações Exteriores,
que tomou frente nas negociações que culminaram no Tratado de Petrópolis,
assinado aos 17 de novembro de 1903, na cidade brasileira que lhe deu o nome.
Por esse tratado, o Acre foi incorporado ao território brasileiro. Com esse acordo, o
35
Brasil pagou à Bolívia a quantia de 2 milhões de libras esterlinas e indenizou o
Bolivian Syndicate em 110 mil libras esterlinas pela rescisão do contrato de
arrendamento, firmado em 1901 com o governo boliviano. Pelo Tratado, a Bolívia
ficou ainda com duas áreas de terras, sendo a maior delas no estado do Mato
Grosso e com a possibilidade de estabelecer alfândegas em Belém, Manaus,
Corumbá e ainda outros pontos da fronteira entre os dois países. Já o Brasil poderia
estabelecer aduanas na fronteira com a Bolívia
Chiavenato, citado por Ramon Casas Vilarino, 2006, afirma que:
A pedida inicial foi de um milhão de libras, e terminou em 110 mil, mais
quatro mil libras em comissões. Isto foi possível graças ao fracasso das
tropas bolivianas na região em litigio, além da proximidade da data final
acertada no acordo para a exploração pelo capital anglo-estadunidense.
(BANDEIRA, 2003, pp 78 e 79). À Bolívia couberam duas áreas, a maior
delas entre os rios Madeira e Abuná, no Mato Grosso, inferior a 5 mil
quilômetros quadrados, mais o montante de dois milhões de libras. Destes,
somente um milhão foi para os cofres bolivianos, pois a outra metade o
Brasil debitou futuramente com a devida correção, do investimento feito na
construção da ferrovia ligando os dois países. Chiavenato afirma que esse
montante pago à Bolívia foi recuperado em apenas um ano de exploração
da borracha acriana (1981, p. 193).
As relações entre Brasil e Bolívia, a partir do Tratado de Petrópolis, foram
marcadas pela anexação do território do Acre, sendo este o maior exemplo, segundo
os bolivianos, da política imperialista desenvolvida pelo Brasil na região.
3.4 Tratado de Natal (25/12/1928)
O Tratado de Natal surgiu em decorrência da necessidade de estreitar,
reforçar diretrizes e de aumentar as relações entre o Brasil e a Bolívia.
Com essa intenção, nos considerandos iniciais, o Tratado de Natal reverbera
ser
conveniente
complementar
a
definição
de
fronteira
comum,
mesmo
reconhecendo a existência dos Tratados Anteriores, de 27 de Março de 1867 e 17
de Novembro de 1903.
Referido instrumento ainda teve como mira a forma de se determinar
definitivamente o melhor modo de dar execução a certas obrigações decorrentes do
Tratado de Petrópolis com relação à ligação ferroviária entre os dois países.
36
3.5 Tratado de Roboré – Nr 1 C/R(29/03/1958)
No ano de 1958, os Ministros das Relações Exteriores do Brasil e da Bolívia
se reuniram. Na pauta, assuntos como a exploração do petróleo, delimitação de
fronteiras, cooperação técnica e econômica, comércio entre os dois países e livre
trânsito.
O resultado mais palpável desse encontro foi a assinatura de 32 Notas
Reversais, que ficou conhecido como Acordos de Roboré, uma vez que foram
assinados na cidade boliviana que leva o mesmo nome.
É certo que resultados efetivos dos Acordos de Roboré não chegaram a ser
sentidos imediatamente, uma vez que não houve por parte do Brasil importação de
Petróleo da Bolívia, que só veio ocorrer muito tempo depois, ou seja, no ano de
2000.
O que se extrai de satisfatório nesse contexto da assinatura do acordo foi sem
dúvida, nenhuma, a questão do gás natural.
A construção do Gasoduto realizada na década passada, desde há muito,
estava prevista na Nota Reversal nº. 6.
Analisando o referido documento, observa-se:
“O Gôverno da Bolivia distribui as Áreas mencionadas da seguinte forma:
Área "A", a "Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos" para ser
desenvolvida por esta entidade de acordo com o seu Estatuto Orgânico;
Área "B", para pesquisa e lavra por emprêsas privadas de capitais
brasileiros, exclusivamente, as quais obterão concessões sujeitas, em geral,
ao Código do Petróleo da Bolívia, aprovado por Lei de 29 de outubro de
1956, e, em particular, às disposições do aludido Código referentes à Zona
I, prevista no artigo 20. As aludidas emprêsas estarão sujeitas em suas
atividades na Bolívia às leis do país, renunciando, de acordo com o artigo
11 do citado Código, a tôda reclamação diplomática”.
Ainda da Nota Reversal mencionada, tem-se que “a Bolívia compromete-se a
vender e o Brasil a comprar, nas condições e preços do mercado internacional, todo
o gás natural produzido pelas empresas privadas de capitais brasileiros, na área “B”
E, finalmente, a Nota Reversal estabelece:
Quando na Área ''B'' houver produção e reservas suficientes de gás natural
que justifiquem economicamente a construção de um gasoduto, o Brasil e a
Bolívia comprometem-se a construir a referida obra, tendo em conta as
necessidades efetivas do mercado brasileiro e a obrigação assumida pelos
dois países no artigo VII desta Nota. Se convier à Bolívia, o Brasil
compromete-se a conceder-Ihe os créditos necessários, reembolsáveis em
petróleo crú e/ou gás natural, para a construção da obra em território
boliviano, a qual pertencerá a "Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos".
37
O Brasil construirá e operará o gasoduto no setor correspondente a seu
território”].
Embora possa ter causado uma certa discussão a construção do Gasoduto, é
inegável que isso trouxe vantagens ao Brasil, dentre as quais reduzir o custo final
dos produtos produzidos pelas empresas utilizadoras desse tipo de energia. Isso,
entretanto, desde que houvesse operação por um longo período sem interrupção
(GHIRARDI, 2008, p. 3)
Se o gás natural tinha importância menor na década de 30 do que passaria a
ter na década de 50, tal situação somente veio realmente a evoluir na década de 60,
por ocasião da inauguração da primeira Unidade de Processamento de Gás Natural
brasileira, a UPGN Catu, na cidade de Pojuca, na Bahia, em 1962 (CALABI et al,
1983, p. 36).
Embora em termos de quantidade a mudança não tenha representado algo
significativo, a importância da década de 1960 é que o Brasil passou a explorar e
refinar o gás proveniente de seu próprio território. Nesse período o Brasil buscava
aumentar o uso do gás, sendo certo, por outro lado que a Bolívia seria de
fundamental importância em caso de ocorrer alguma falha no abastecimento.
Alguns fatores foram decisivos e marcantes para que as negociações do
Brasil e da Bolívia não atingissem o fim colimado, criando-se uma interdependência.
A um, o acordo da Bolívia com a Argentina para fornecimento de gás natural em
1968; a dois, a nacionalização da empresa Gulf Oil em 1969; e a três, a política
econômica
adotada
pelo
governo
brasileiro
após
1968
(Aspectos
da
interdependência nas relações do Brasil com a Bolívia na questão energética (19302008) / Marcelino Teixeira Lisboa – Curitiba, 2011).
Some-se a questão acima o fato de que a Bolívia passou a exportar gás para
a Argentina (PASSOS, 1998), o que levou o governo brasileiro a olhar com certa
cautela o vizinho país, principalmente a sua capacidade de abastecer os dois
países.
A nacionalização da Gulf Oil em 1969, gerou certa desconfiança no governo
brasileiro, com vistas à realização de investimentos em um país com forte histórico
de instabilidade política e institucional.
Nessa época, o General Ernesto Geisel era presidente da Petrobras e
resolveu suspender o projeto do gasoduto, exatamente em razão da instabilidade
38
boliviana que era de conhecimento por intermédio de estudos realizados.
(LAMPREIA, 2007, p. 68).
A crise do Petróleo em 1973 afetava diretamente o Brasil, dependente que
era do “ouro negro”. O Brasil, na época, era, sem dúvida, o principal importador de
óleo no mundo em desenvolvimento. A aproximação com o Oriente Médio
preencheu certos vazios diplomáticos e está intimamente ligada a crise energética
da primeira metade da década de 70.
A chamada “Diplomacia do Interesse Nacional” (69-74), do chanceler Mário
Gibson Barbosa, trouxe algumas alterações de forma em contraposição à
“Diplomacia da Prosperidade”, do presidente Costa e Silva. Para Vizentini19, “uma
estratégia individual de inserção, estabelecendo relações essencialmente bilaterais,
especialmente em direção aos países mais fracos”. Essa orientação que se dava
privilegiava as relações bilaterais da ação diplomática voltada para a busca do
desenvolvimento.
Durante a década de 1970, o Itamaraty reforçou duas diretrizes de política
externa para o Oriente Médio, tendo em conta o choque do petróleo e os interesses
do país. A primeira, a partir de 73, era pautada pela condenação da expansão
territorial de Israel por meio de conflitos armados com seus vizinhos. A segunda,
após a Guerra do Yom Kippur, dizia respeito ao apoio à criação do Estado palestino.
A nova orientação da diplomacia abandonava a retórica anterior da política de
equidistância20 entre as partes para assumir, na opinião de Norma Breda21, caráter
de maior realismo, nacionalismo e pragmatismo, posição condizente com as
transformações do cenário internacional, mormente a crise do petróleo.
Uma política desenvolvimentista praticada pelo Brasil acabou por gerar
igualmente nesse período um crescimento econômico nunca dantes visto entre os
19
VIZENTINI, P. G. F.. A Política Externa do Regime Militar Brasileiro: Multilateralização, Desenvolvimentoe a Construção de uma
Potência Média (1964-1985). 1. ed. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998.V. 1, p.142.
20 A posição da diplomacia brasileira que se seguiu de 47 a 73 em relação ao imbróglio na Palestina não foi de neutralidade, mas sim de
eqüidistância. A neutralidade, no caso, significaria desinteresse, abstenção e ausência. A eqüidistância, por sua vez, revelava-se posição
única e equilibrada, por meio da qual o país poderia contribuir, ainda que de maneira modesta, para o encaminhamento do conflito árabeisraelensepalestino em conformidade com a tradição pacífica nacional. O termo eqüidistância, o qual orientou a política externa para o
Oriente Médio de 47 a 73, foi desenhado pelo próprio Itamaraty, que mantinha, até então, interesses comerciais tanto com Israel quanto
com os países árabes. Além disso, a presença de importantes contingentes judeus e árabes na sociedade brasileira influenciou o
posicionamento equilibrado e eqüitativo da diplomacia para a região. Cf. SANTANA, Carlos Ribeiro. O Brasil e conflito árabeisraelensepalestino (1947-2005). Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2005, p. 101.
BREDA DOS SANTOS, Norma. “O Brasil e a questão israelense nas Nações Unidas: da criação do Estado de Israel ao
pós(?)-sionismo”, In: BREDA DOS SANTOS, Norma. Brasil e Israel: diplomacia e sociedades. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2000, p. 20 e 21.
21
39
anos de 1968 e 1973, o que gerou consequentemente uma demanda maior por
recursos energéticos.
Nesse ponto, mais uma vez a Bolívia carecia de confiabilidade para o
fornecimento da energia, posto que esta deveria ser capaz não só de suprir as
necessidades, mas igualmente não poderia sofrer solução de continuidade.
Bem por isso, ainda no início da década de 70 o Brasil e a Bolívia voltaram a
dialogar com relação a venda dos hidrocarbonetos. Tal diálogo obviamente decorreu
de alguns acontecimentos pontuais, como a entrada em funcionamento da UPGNCandeias, na Bahia, unidade brasileira de processamento de gás aliada à
descoberta pela Argentina de reservas de gás. Com essa descoberta, a Argentina
perdeu interesse na importação do gás boliviano além, é claro, do aumento
repentino do preço do petróleo pelos países árabes.
Tudo isso fez com que o Brasil voltasse novamente os olhos para a Bolívia,
resultando em uma reunião ocorrida em 1974, a fim de que os dois países
pudessem negociar o que ficou conhecido como Acordo de Cooperação e
Complementação Industrial, assinado em 22 de maio do mesmo ano, em
Cochabamba.
Tal acordo levou em consideração não só a questão do gás, mas outros
assuntos relativos ao financiamento de obras de infraestrutura e da aquisição pelo
Brasil de ferro gusa e produtos siderúrgicos a serem produzidos na Bolívia.
Esse acordo, denominado de Acordo de Cooperação e Complementação
Industrial Brasil-Bolívia, posteriormente promulgado pelo Decreto Nº 74.841, DE 6
DE NOVEMBRO DE 1974, previu a instalação de um pólo industrial no território
boliviano, mais precisamente na fronteira com a cidade de Corumbá, passando a
contar com uma siderúrgica destinada a mineração de ferro, uma petroquímica
voltada para a produção de fertilizantes nitrogenados e uma fábrica de cimento.
Por esse acordo, ainda, ficou estabelecido que um gasoduto deveria ser
construído para abastecer às necessidades de gás do pólo industrial então
acordado. Indicava mais, que haveria de estender o gasoduto até os centros
consumidores de gás natural do Brasil, sendo financiador da obra. Em suma, a
utilização do gás boliviano estava condicionada a construção de uma obra que
contribuiria para o desenvolvimento industrial da Bolívia.
Preocupado com a instabilidade política do país signatário do acordo, o Brasil
impôs duas condições para que esse fosse efetivamente assinado na época. A
40
Bolívia deveria comprovar a capacidade de fornecer a quantidade de gás ao Brasil e
os dois países teriam que demonstrar a viabilidade da compra e venda do gás
natural e do abastecimento do pólo industrial boliviano.
Tais condições foram cumpridas e constam do texto do acordo entabulado. O
gás natural, então de importância reduzida nos Acordos de Roboré de 1958,
demonstra uma transmudação em face das alterações de necessidades energéticas
e políticas praticadas em função da crise petrolífera.
Em função dessa resistência, novamente a compra do gás boliviano foi
adiada, o que levou o Brasil a incentivar a produção nacional de Petróleo. Mas não
foi apenas esse incentivo que caracterizou aquele momento de crise pela qual
passava o Brasil. Outras medidas tomadas pelo governo acabaram por sedimentar a
característica de criatividade do brasileiro para driblar a crise que se instalava. Como
exemplo disso a redução de importação de supérfluos e incentivo à busca de novas
formas alternativas de energia.
Embora pudesse parecer, em uma análise menos acurada que a questão do
gás tivesse sido esquecida, isso não aconteceu. Em 1988, por intermédio de uma
proposta de construção de termoelétricas na zona de fronteira movida a gás natural,
acabou por recrudescer o assunto. Entretanto, tal idéia não encontrou ressonância
nem na Bolívia e tampouco foi vista com muita simpatia pelo Brasil. Ainda assim, foi
assinado um compromisso de compra e venda de três milhões de metros cúbicos
diários de gás pelo Brasil a partir do início da década de 1990. Em 1993, foi
assinado um contrato de compra e venda de gás natural entre a Petrobras e a
YPFB.
Se para o Brasil o acordo era festejado pelas autoridades, na Bolívia a
situação não era a mesma e enfrentava resistência da oposição ao General Hugo
Banzer, então Presidente do país.
Em 9 de fevereiro de 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso, do
Brasil, e o presidente Hugo Banzer, da Bolívia, inauguraram o primeiro trecho da
construção do Gasbol, com 1.970 quilômetros, que liga a cidade de Rio Grande, na
Bolívia, à Campinas, no Brasil. Na cerimônia realizada na fronteira entre os dois
países, o Presidente Boliviano afirmou que o gasoduto seria uma fonte de benefícios
tangíveis para o povo boliviano. Para o Presidente Fernando Henrique, em seu
discurso, o gasoduto representava a força da economia real do país e o Brasil
avançava rumo a “um horizonte que vai muito além das circunstâncias [então]
41
presentes” (NASTARI, 1999). De conhecimento que, dentre as diversas tentativas de
integração energética realizadas pelo Brasil e pela Bolívia ao longo do século XX, a
inauguração da primeira fase do gasoduto, em fevereiro de 1999, e a chegada do
gás para abastecimento da indústria brasileira, em julho de 1999, demonstraram que
a comercialização do gás se tornou realidade. A grande diferença entre os
documentos assinados em 1938, 1958 e 1974 e o acordo referente ao gás da
década de 1990, reside no fato de que apenas esse último teve maior efetividade.
Ainda que no Governo do General Banzer a política de capitalização de
empresas estatais tenha sido mantida, as crises internacionais intermitentes na
época acabaram por afetar a economia boliviana, sendo responsável pela queda no
nível de emprego. As constantes crises políticas oriundas da corrupção, somada a
descoberta de um câncer no ano 2000, levaram a um enfraquecimento do combalido
Governo de Hugo Banzer, que renunciou nesse mesmo ano, vindo a morrer em
decorrência da doença no ano seguinte.
O Vice-Presidente Jorge Quiroga, um civil, assumiu o cargo no restante do
mandato do Presidente Hugo Banzer, mas não pode, por questões legais internas,
se candidatar nas eleições do ano seguinte, ou seja, as eleições de 2002. Nessas
eleições, ocorreu o aparecimento do candidato Evo Morales, que, entretanto, veio a
perdê-las para o candidato Gonzalo Sanchez de Lozada.
Lozada, entretanto, mesmo tendo ganhado as eleições, acabou por ter que
renunciar no ano seguinte (2003). Sem apoio popular, em função de não conseguir
levantar a economia boliviana e diante dos violentos protestos do povo nas ruas, foi
praticamente obrigado a passar o governo ao seu Vice-Presidente Carlos Mesa.
O clima de instabilidade não arrefeceu e Carlos Mesa igualmente não satisfez
as exigências do povo boliviano, acabando por renunciar:
Em 2005, Carlos Mesa aprovou a Lei de Exploração dos Recursos Naturais
do País, mesmo contra a opinião pública, que, insatisfeita, exigiu que a
decisão fosse revogada. A Lei foi considerada, pelos bolivianos, como uma
forma de entregar, aos EUA, a produção de gás do País. Uma série de
protestos, como fechamento de ruas, de estradas e de aeroportos, foi
realizada, até que a situação se tornou insustentável para a manutenção do
Presidente Mesa no cargo. O Presidente do Judiciário, Eduardo Rodríguez,
assumiu e convocou uma nova eleição ainda em 2005. Nas eleições de
dezembro de 2005, insatisfeitos com as recentes políticas e já influenciados
pela atmosfera populista e nacionalista dos outros Países da América
Latina, em especial a Venezuela de Hugo Chávez e o Brasil de Luiz Inácio
Lula da Silva, o povo boliviano reuniu-se em torno do nome de Evo Morales
e o elegeu com o recorde absoluto de 54% dos votos do País, tendo ele
assumido o poder em 2006”.( Impacto na relação Brasil-Bolívia, com a
42
nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, em 2006 - Bernardo
Pestana Mello C. Duarte; Thiago Carvalho Saraiva; Rosemarie Bröker Boné)
Apesar de ter perdido as eleições no ano de 2002 para Sanchez de Lozada,
Evo Morales passou a ser conhecido e surgiu como o primeiro líder indígena a
postular o cargo. Sua vitória esmagadora nas eleições de 2005 o consagrou
politicamente.
Após a assunção do cargo, em 1° de maio de 2006, o Presidente da Bolívia
Evo Morales Ayma, nacionalizou todo o setor de hidrocarbonetos daquele país, com
o Decreto nº 28.701. Tal medida foi impactante para vários países, dentre os quais o
Brasil, já que a Petrobrás era a maior empresa instalada no país vizinho, sendo
responsável por 18% do PIB boliviano. Com isso, os contratos de concessão para a
exploração do gás foram cancelados de uma hora para outra e as plantas industriais
dessas empresas passaram a ser administradas pela Yacimientos Petrolíferos
Fiscales Bolivianosa - YPFB, sem qualquer compensação para as empresas
estrangeiras. A YPFB surgiu em 1936, por Decreto do Presidente Boliviano Coronel
David Toro, devido à crise instaurada após as fraudes fiscais feitas pela Standard Oil
of Bolivia, uma das concessionárias da matriz norte-americana que podia fiscalizar,
explorar e exportar os hidrocarbonetos bolivianos.
O Decreto Supremo nº 28.701 contém nove artigos, dentre os quais se
destacam: - artigo 01 - nacionalização total e absoluta, por parte do Estado, dos
recursos naturais de hidrocarbonetos da Bolívia; - artigo 02 - obrigação de as
empresas produtoras de petróleo e gás em território boliviano entregarem toda sua
produção à YPFB; - artigo 05 - o Estado toma o controle sobre a produção, o
transporte, o refino, a distribuição, a comercialização e a industrialização dos
hidrocarbonetos do País; - artigo 07 - nacionalização de ações para que a YPFB
tenha 50% mais uma ação das empresas produtoras de petróleo no território
boliviano.
Por esse Decreto, que dava inicio às medidas nacionalistas impostas pelo
Governo de Evo Morales, verifica-se a nacionalização do petróleo e gás da Bolívia
obrigando as empresas internacionais a se retirarem do país ou a lá permanecerem
como prestadoras de serviços para a YPFB.
Com o objetivo de amenizar a crise que se abateu entre os dois países, a
Petrobrás assinou um acordo em 28 de outubro de 2006, que a reconhecia não só
43
como prestadora de serviços, mas como operadora e responsável pelo
desenvolvimento do setor no país.
Criada no final de 1995, a Petrobrás-Bolívia iniciou suas operações
efetivamente em meados de 1996, tornando-se a maior empresa do País. Os
investimentos totais nos projetos de domínio boliviano alcançaram mais de US$ 1,5
bilhão no período 1996-06. Dessa forma, a estatal brasileira passou a ser a maior
contribuinte para as contas públicas da Bolívia, chegando, em 2005, a 18% do PIB
boliviano, 20% em investimentos diretos e 22% da arrecadação total de impostos, de
acordo com a própria Petrobrás (Barneda, 2006). Para obter esses resultados, foi
necessária a construção, entre 1997 e 2000, do gasoduto Bolívia-Brasil, ao mesmo
tempo em que a Petrobrás iniciou ações de exploração e produção na parte oriental
da Bolívia, na Cidade de Tarija. A partir dessas iniciativas, passou a operar em toda
a cadeia produtiva e comercial do gás (exploração, produção, comercialização,
transporte por dutos, processamento e refino). A Petrobrás-Bolívia era responsável
pela operação das refinarias Gualberto Vilaroel, em Cochabamba, e Guillermo Elder
Bell, em Santa Cruz de La Sierra, por intermédio da sua controlada no País
Petrobrás Bolívia Refinación S/A (PBR). A empresa passou, em 2001, a utilizar a
bandeira Petrobrás na rede de postos. As vendas mensais saltaram de 500.000 para
800.000 litros de gasolina, e, no ano de 2006, 26 postos possuíam a bandeira
Petrobrás. Ela atendia à totalidade da demanda da Bolívia de gasolina especial e
premium, além da de gasolina de aviação e querosene, sendo responsável, também,
por mais de 60% da demanda de óleo diesel. Isso fez da Petrobrás-Bolívia líder do
mercado de combustíveis naquele país. Após a compra das refinarias pelo Governo
boliviano, a estatal local passou a ser proprietária plena das ações e dos ativos,
além de a fornecedora de derivados de petróleo no País (Impacto na relação BrasilBolívia, com a nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos, em 2006 - Bernardo
Pestana Mello C. Duarte; Thiago Carvalho Saraiva; Rosemarie Bröker Boné)
É certo que algumas cláusulas sofreram alterações após a nacionalização
pelo Decreto Supremo nº 28.701 (Bolívia, 2007), o que tornou o Contrato de
Produção Compartilhada diferente do assinado anteriormente entre a Bolívia e
outros países (Azevedo, 2006).
Suas principais características são: (a) execução de todas as operações
petroleiras por sua conta e risco; e (b) recebimento direto na conta de um retorno
financeiro definido em função da recuperação de custos, preços, volumes e
44
investimentos, invalidando, portanto, um contrato de prestação de serviços. Até
dezembro de 2006, a Petrobrás continuou responsável pelas operações dos blocos
de San Alberto (cuja produção bateu o recorde absoluto de produção no dia 5 de
dezembro de 2006, ao alcançar 12,5 milhões de m3/dia de gás natural e 10,2 mil
barris/dia de petróleo), San Antonio, Rio Hondo, Ingre e Irenda, além de pela
totalidade de seus atuais ativos durante a vigência do contrato, que durará 30 anos,
a partir da validação do Congresso boliviano.
No caso de ocorrência de conflito de interesses entre as empresas, o Tratado
de Proteção de Investimentos Estrangeiros atribui a arbitragem ao Poder Judiciário
da Bolívia, de acordo com regras e procedimentos impostos pela Câmara de
Comércio Internacional (CCI).
Para o caso específico do Estado de Mato Grosso do Sul, a passagem dos
dutos do Gasoduto Brasil Bolívia, em um primeiro momento, representaria a
redenção, na medida em que o Estado passaria a contar com energia em
abundância, em um espaço de tempo relativamente curto, com a expectativa de
implantação de indústrias e crescimento industrial. A posição estratégica do estado
favoreceria a implantação de grandes empresas multinacionais. Passada a euforia
inicial, foram instaladas no Estado usinas termelétricas em Três Lagoas e Campo
Grande, pautadas na ideia de que Mato Grosso do Sul era uma das unidades
federativas que muito se destacava na demanda de energia, tendo em vista que
quase 95% de suas necessidades energéticas eram atendidas com energia
proveniente de outras unidades federativas, sem contar com a perspectiva de
ampliação do setor industrial amplamente apontado como a redenção da economia
estadual.
No que tange a Corumbá, a usina termelétrica tão propalada ficou apenas no
campo das ideias, posto que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3)
manteve a decisão de impedir que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais (Ibama) concedesse licença ambiental para construção da
termelétrica. Em 2005, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Mato
Grosso do Sul moveram uma ação civil pública contra o Ibama, que havia concedido
uma licença prévia para a construção da usina conhecida como Termopantanal, na
região de Corumbá. O objetivo da ação foi invalidar a licença, uma vez que o Estudo
de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), documento obrigatório para construção de usinas
como esta, tinha uma série de deficiências. Entre tais deficiências foi constatada a
45
ausência de um estudo sobre a possibilidade de os rios da região do pantanal serem
contaminados por metais pesados, como o mercúrio. A possibilidade de dano
irreversível impediu a instalação da usina termelétrica na região do Pantanal-SulMato-Grossense, área declarada patrimônio nacional pela Constituição Federal.
46
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve em princípio o propósito de acompanhar o Tratado de
Roboré e sua influência na fronteira após a nacionalização dos hidrocarbonetos e
mais do que tudo, verificar a possibilidade da utilização desse Tratado de forma que
pudesse trazer algum benefício concreto à população da região fronteiriça.
Observou-se após o início da pesquisa, que o Tratado de Petrópolis, assinado em
1903, com o pagamento pelo Brasil do Território do Acre, foi o marco que originou o
surgimento dos demais tratados aqui estudados.
Em sua aproximação com o país vizinho, o Brasil sempre teve em mira as
reservas petrolíferas daquele país. Tanto essa afirmação é verdadeira, que a
Petrobrás, tendo iniciado sua incursão no país andino nos idos de 1996, logo se
transformou na principal empresa do país, sendo responsável por 15%(quinze por
cento) do PIB Boliviano.
Em 2001, com o início da distribuição do gás boliviano no Brasil, inegável o
surgimento de novas indústrias no próprio estado do Mato Grosso do Sul, como em
outros estados brasileiros e ainda a instalação da termelétrica no país vizinho.
Com a nacionalização dos hidrocarbonetos no ano de 2006, momento em
que a Bolívia passou a controlar os seus recursos naturais, não só o Brasil, mas os
outros paises que se relacionavam com a Bolívia, não tiveram alternativa que não se
adaptar às mudanças propostas desde campanha eleitoral do Presidente Evo
Morales Ayma. Nesse ponto, não cabe nenhum julgamento com relação a um país
que, utilizando as suas riquezas naturais busca se desenvolver e angariar melhores
condições de vida para a sua população.
Há que se entender as aspirações bolivianas e o interesse de se firmar o seu
desenvolvimento enquanto nação. A busca pelo controle dos seus recursos naturais,
pode colaborar com o seu desenvolvimento.
Apesar dos interesses brasileiros terem sido afetados com a nacionalização
dos hidrocarbonetos, a utilização do gás boliviano pelas indústrias brasileiras e a
atuação da Petrobras na Bolívia continuam sendo um negócio bom para os dois
países, trazendo desenvolvimento para a região fronteiriça.
A idéia da venda do gás pela Bolívia ao Brasil, nem sempre encontrou
ressonância entre os dois países, ainda que tenha sido assinado um compromisso
47
de compra e venda de três milhões de metros cúbicos diários de gás pelo Brasil a
partir do início da década de 1990.
No que tange a Corumbá, a ação judicial movida, defendendo o pantanal,
como patrimônio da humanidade impediu a instalação de uma termelétrica na região
do Pantanal brasileiro, mas as relações entre os dois países devem continuar sendo
mantidas pois que interessa as duas nações e trazem inegável progresso para a
região de fronteira.
Após a análise das questões que envolveram não só o Tratado de Roboré
mas os outros tratados que o antecederam, evidenciou-se que a forma concreta que
a população fronteiriça poderia utilizar-se do Tratado de Roboré, se fez presente
desde
antes mesmo de sua assinatura, estampado no interesse do Brasil pelo
desenvolvimento econômico com vistas ao crescimento industrial do país. A
motivação econômica que inegavelmente sempre moveu o Brasil com relação ao
inescondível interesse pelo gás boliviano, fica demonstrada no interesse que sempre
teve em assinar acordos e manter proximidade e boas relações de vizinhança com a
Bolívia.
O estudo inicial do Tratado de Roboré, que antes era visto apenas como
acompanhamento dos reflexos e resultados desse instrumento para a região de
fronteira após a nacionalização dos hidrocarbonetos, mostrou que foi, sem dúvida,
a principal ocorrência na política econômica dos dois países nos últimos anos.
É certo que os dois países vizinhos, precisam um do outro e as relações de
cooperação, devem ser mantidas com vistas ao desenvolvimento não só econômico
mas também de amizade
interesses correlatos.
e entendimento de ambas as nações, com vistas a
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