II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR A ABORDAGEM DA CLASSE GRAMATICAL “ARTIGO” EM LIVROS DIDÁTICOS: REFLEXÕES TEÓRICAS E PROPOSIÇÕES DIDÁTICAS BUREI, Jossária de Oliveira (G-UNIOESTE) CORBARI, Alcione Tereza (UNIOESTE) GARBATO, Ana Cristina (G-UNIOESTE) RESUMO: Pretende-se, neste trabalho, apresentar algumas reflexões propostas na disciplina Morfologia, Fonética e Fonologia, do Curso de Letras da UNIOESTE/Cascavel. Mais especificamente, toma-se para análise um conteúdo alocado pela Gramática Tradicional na área da Morfologia: a classe gramatical artigo. Inicialmente, faz-se uma análise da abordagem desse conteúdo proposta em dois livros didáticos de 5ª série: um usado em escola pública, outro, em escola particular. Das unidades investigadas, serão considerados os conceitos referentes à classe gramatical em tela e os exercícios propostos. Na segunda parte do trabalho, propõe-se uma análise do conteúdo em questão com amparo no Funcionalismo e na Linguística Textual. A partir dessa perspectiva, entende-se que o artigo, mais do que um elemento que antecede o substantivo, definindo-o ou indefinindo-o, tem papel importante na interpretação do texto. Para debater essa questão, toma-se uma versão da fábula O Leão e o Rato, de Esopo (publicada pela Enciclopédia Mundo da Criança, 1992), como unidade de estudo e como ponto de partida para a proposição de exercícios de análise linguística. Auxiliam nessa empresa as reflexões propostas por Neves (1991), Costa Val (1999) e Koch (1992). PALAVRAS-CHAVES: Livro Didático, Gramática Tradicional, Análise Linguística, Artigo. 1- Introdução Muito se tem discutido sobre os problemas do ensino de Língua Portuguesa, atribuindo-se a culpa aos estudantes, à estrutura, ao método, dentre outros fatores. Apesar dessas discussões, os resultados esperados não têm sido obtidos, pois, efetivamente, a prática reflexiva do ensino de gramática continua, de forma geral, sendo rechaçada em detrimento da prática normativa, preocupada em aplicar exercícios mecanizados que não levam o aluno à reflexão. Em outras palavras, os conteúdos gramaticais não são abordados de forma relacionada ao contexto de produção, circulação e recepção do texto. Considerando esse contexto, nos propomos, nesta pesquisa, a analisar a abordagem da classe gramatical artigo feita dois livros de 5ª série, quais sejam: Sistema Max de Ensino e Português: Idéias & Linguagens (DELMANTO; CASTRO, 2006). O primeiro é usado em pelo menos uma escola privada de Cascavel; o segundo, em ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR algumas escolas públicas desse município. Na segunda parte do trabalho, com base no Funcionalismo e na Linguística Textual, propomos um trabalho com o artigo a partir da fábula O Leão e o Rato, de Esopo, considerando o texto como unidade de estudo e como ponto de partida para a proposição de exercícios de análise linguística. 2- A abordagem do conteúdo artigo em dois livros didáticos Em ambos os livros acima citados, o conteúdo artigo está inserido em uma unidade maior, que aborda outros assuntos, inclusive outras classes gramaticais. Pode-se dizer que o espaço dedicado ao artigo é relativamente pequeno nos livros analisados (não ultrapassa quatro páginas). No livro utilizado em escolas públicas, o estudo acerca do artigo está disposto em uma seção no meio da unidade chamada Estudo da língua: Reflexão e uso. Já no livro usado na escola particular, o conteúdo em tela está alocado após o texto inicial da unidade (Lisete, de Clarice Lispector), e se insere numa seção denominada Aprofundando a gramática. Como se pode observar, já os títulos das seções apontam para perspectivas de análise diferentes: no primeiro caso, voltada para a análise da língua em uso; no segundo caso, amparada na Gramática Tradicional (GT). Uma análise das definições de artigo apresentadas mostra que, nos dois livros analisados, elas se ancoram na GT: Artigo é a palavra que antecede o substantivo para determiná-lo. [...] O artigo pode ser: a) definido: aquele que antecede o substantivo de modo preciso, específico. Pode ser o, a, os ou as. [...] b) indefinido: aquele que determina o substantivo de modo vago, impreciso, genérico. Pode ser um, uma, uns ou umas. (SISTEMA MAXI DE ENSINO, p. 14). Essas palavras que antecedem um substantivo definido-lhe o gênero são chamadas de artigos (femininos ou masculinos). [...] Artigo definido é a palavra que acompanha o substantivo, individualizando-o, determinando-o. São artigos definidos: o, a, os, as. Artigo indefinido é a palavra que acompanha o substantivo, generalizando-o, indeterminando-o. São artigos indefinidos: um, uma, uns, umas. (DELMANTO; CASTRO, 2006, p. 148/149). Como se vê, embora acompanhada de exemplos, as definições dadas são bastante abstratas se considerarmos que se voltam para a 5ª série. No caso do livro usado na escola particular, confunde-se a noção morfossintática de „determinante‟ e a noção semântica de definido/indefinido. Parece-nos difícil para uma criança de 5ª série ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR compreender que o artigo serve para „determinar‟ um substantivo de modo impreciso, por exemplo. Nesse sentido, o conceito apresentado no livro usado em escolas públicas parece mais adequado ao público ao qual o livro se dirige, já que não se preocupa em apresentar o artigo como elemento „determinante‟, noção de difícil compreensão mesmo para alguns adultos. Porém, mesmo o conceito apresentado no livro usado em escolas públicas, não tão confuso para a criança, poderia ser melhor trabalhado no nível metalinguístico. Algumas gramáticas de cunho normativo, inclusive, fazem essa exposição do conceito de forma mais clara, embora não completa, do que a explicação apresentada pelos livros didáticos analisados. Tomemos como exemplo Cunha e Cintra (1985, p. 199): Dá-se o nome de ARTIGO às palavras o (com as variações a, os, as) e um (com as variações uma, uns, umas), que se antepõem aos substantivos para indicar: a) que se trata de um ser já conhecido do leitor ou ouvinte, seja por ter sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento de experiência, como nestes exemplos. [...] b) que se trata de um simples representante de uma dada espécie ao qual não se fez menção anterior. [...] No primeiro caso, dizemos que o artigo é DEFINIDO; no segundo, INDEFINIDO. Um ponto positivo observado em ambos os livros é o fato de a definição não ser dada logo no início da abordagem do conteúdo. Antes, são apresentados alguns questionamentos sobre a função do artigo na frase, numa análise comparativa entre artigo definido e indefinido. O livro usado na escola particular faz isso de maneira bastante breve, questionando o estudante sobre o motivo de o narrador da história apresentada no início da unidade ter usado um guardanapo e o guardanapo em diferentes frases, quais sejam: I – “Enrolei Lisete num guardanapo e fomos de táxi correndo par um hospital de bichos”; II – “Voltamos para casa com o guardanapo vazio e o coração vazio também”. (SISTEMA MAXI DE ENSINO, p. 14). Nesse caso, não se explicitou em que momento da história cada uma das frases apareceu, exigindo que essa relação fosse feita pela própria criança. Além disso, não podemos deixar de observar que se perdeu a oportunidade de trabalhar com os outros dois artigos que aparecem na frase (que iniciam os sintagmas nominais um hospital de ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR bichos e o coração vazio). Embora, nesses casos, não haveria uma frase para comparar o uso de artigo definido e indefinido em sintagmas com o mesmo núcleo, questionamentos bem encaminhados poderiam levar o aluno a perceber o motivo de o produtor usar diferentes artigos em cada caso. O livro didático usado em escolas públicas despender um tempo maior à análise linguística, que é feita a partir de diferentes textos (uma tira, um poema e um fragmento de uma canção), antes de apresentar o conceito que diferencia artigo definido de artigo indefinido. Assim, os exercícios extrapolam o limite da decodificação, pois apresentam atividades que levam o aluno à reflexão da função do artigo no texto. Tomamos como exemplo de atividade de análise linguística o exercício de reflexão abaixo, dado após apresentação do poema Casa séria, em que aparecem os sintagmas „o pai‟, „a mãe‟ e „a menina‟: Se a autora tivesse dito “Um pai é todo arrumado” ou “Uma mãe é alguém que se irrita facilmente e trabalha sem parar”, estaria transmitindo a mesma idéia?. (DELMANTO; CASTRO, 2006, p. 149). Após, faz-se questionamentos sobre os artigos usados em parte da música Eu só quero um xodó, de Anastácia e Dominguinhos: Quando o eu-poético (a voz que “fala” no poema) diz que quer um amor, um bem, um xodó, está se referindo a determinada pessoa? (DELMANTO; CASTRO, 2006, p. 149). É comum nesse livro o encaminhamento de afirmações incompletas, que precisam ser preenchidas pelo aluno, com base no que se observou nos textos/fragmentos de textos dados, como se vê nessa atividade, dada após a análise do poema e do fragmento da música: A partir de suas respostas anteriores, podemos concluir que usamos artigos definidos (o, a, os, as) quando e artigos indefinidos (um, uma, uns, umas) quando . (DELMANTO; CASTRO, 2006, p. 149). Nesse sentido, para além de considerarem a orientação dada pela gramática normativa (o que se observa na apresentação dos conceitos), os autores consideram, na proposição dos exercícios, a gramática reflexiva, pois apresentam atividades de ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR observação e reflexão sobre a língua que buscam detectar, levantar suas unidades, regras e princípios, ou seja, a constituição e funcionamento da língua. (TRAVAGLIA, 2000, p. 33). Assim, partindo de evidências linguísticas, os exercícios propostos pelo livro didático usado em escolas públicas, de forma geral, busca explicitar a gramática implícita do falante, de modo a levar os alunos à consciência dos usos que já faz da língua. Já no livro usado na escola particular, fica evidente o uso do texto como pretexto para ensinar conceitos gramaticais. Com exceção da primeira abordagem do artigo, em que o aluno precisava explicar a diferença observada entre „um guardanapo‟ e „o guardanapo‟, todas as outras atividades voltam-se para a simples classificação morfossintática dos artigos, mesmo sendo as frases retiradas do texto dado no início da unidade. Numa perspectiva normativista, o livro, então, desconsidera o rico material linguístico que supostamente explora para se limitar ao ensino prescritivo de gramática. Para exemplificar o que afirmamos neste parágrafo, apresentamos os enunciados de alguns dos exercícios propostos: 1. Classifique em definido ou indefinido os artigos em destaque nas frases a seguir: [...] 2. Circule os artigos presentes nos trechos a seguir e ligue-os aos substantivos que eles determinam: [...] 3. Classifique os artigos que você identificou no exercício anterior. 4. O artigo sempre se antepõe a um substantivo e concorda com ele em gênero (masculino/feminino) e número (singular/plural). Considerando esse fato, diga se nas frases a seguir a palavra funciona ou não como artigo. (SISTEMA MAXI DE ENSINO, p. 15). As frases dadas para análise, quando é o caso, foram retiradas do texto Lisete, o que evidencia que esse texto foi usado apenas como pretexto para propor exercícios de fixação de conceitos metalinguísticos, que não contribuem de fato para explorar habilidades linguísticas requeridas na leitura e na produção de texto. Ao limitar a abordagem do artigo a exercícios estruturais mecanizados, o livro em questão não se propõe a levar o aluno a refletir sobre os textos que circulam em seu cotidiano e a entender como interpretar e usar produtivamente os artigos nas atividades de leitura e produção de texto. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR No livro didático usado em escola pública, como já explicitamos, os exercícios não são mecanizados e extrapolam a decodificação, levando o aluno a uma análise linguística que contribui para sua formação como leitor e produtor de texto. Porém, observamos que, em geral, o texto como um todo não é trabalhado. Ou seja, são enfocadas as estratégias envolvendo o uso de artigos, mas estas não são relacionadas de forma explícita a questões mais gerais que precisam ser consideradas quando da interpretação de um texto, como a finalidade do texto e as intenções do produtor, por exemplo. Para exemplificar, tomados a tira apresentada em um dos exercícios propostos (DELMANTO; CASTRO, 2006, p. 151): O exercício proposto guia o aluno a uma resposta do tipo “o artigo definido especifica, define o minuto do qual se falou no primeiro quadrinho”, ou algo do gênero. No entanto, o uso do artigo dá margem à proposição de exercícios muito mais ricos, que considerem tal uso a partir do gênero utilizado pelo autor. Assim, poderia ser explorado, por exemplo, o humor gerado pelo uso do artigo definido no último quadrinho, e mesmo uma certa ironia por parte da personagem que escolhe retomar „um minuto‟ por „o minuto‟. O conhecimento do gênero „tira‟, de suas finalidades e características composicionais, contribui para que tais interpretações sejam feitas. Conforme propõe Neves (2000), o artigo não pode ser estudado de modo descontextualizado; ao contrário, deve-se levar em conta o contexto linguístico, a intenção de quem escreve e o conhecimento de mundo de quem lê, dentre outros fatores. Levando em consideração essas orientações, na seção abaixo, propomos uma abordagem do conteúdo artigo considerando o texto como unidade de análise e como ponto de partida para a proposição de exercícios de análise linguística que considerem ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR questões de textualidade, as quais justificam o uso dos elementos linguístico atualizados pelo produtor. 3- Proposição didática: uma análise de artigos atualizados na fábula o Leão e o Rato Uma possível sugestão para a abordagem do artigo seria trabalhar com o texto, levando em consideração que este carrega sentidos, que não é um emaranhado de frases soltas, mas sim uma unidade sócio-comunicativa, semântica e formal (COSTA VAL, 1999). Em seu processo de produção e compreensão, vários são os fatores que contribuem para a (re)construção dos sentidos de um texto. Nesse sentido, o professor precisa trabalhar com os alunos, juntamente com os elementos estritamente linguísticos, os fatores pragmáticos, ou seja, os aspectos que envolvem o contexto sóciocomunicativo, tais como a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade e a intertextualidade. Propomos, então, um trabalho com o artigo a partir de textos reais, que circulam socialmente. Não como fazem os livros didáticos em geral, que usam o texto como pretexto, retiram dele frases isoladas para, a partir delas, propor exercícios estruturais, mas sim considerando o texto como unidade de sentido, que passa a ser considerada mesmo quando se propõe o estudo de um recurso linguístico específico. Como sugestão, analisamos a fábula O Leão e o Rato. Observamos, nesse momento, apenas os artigos que encabeçam sintagmas nominas que introduzem ou retomam as personagens da história. Vamos texto. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 O Leão e o Rato Esopo Uma vez, quando o leão já estava dormindo, um ratinho pôs-se a passear em suas costas. Isso logo acordou o leão, que segurou o bichinho com a sua enorme pata e abriu a boca enorme para engoli-lo. – Perdão, rei dos animais – gritou o ratinho – Deixe-me ir, não o importunarei mais. Quem sabe um dia não conseguirei pagar-lhe este favor? O leão riu-se muito ao pensar na possibilidade de o ratinho ajudá-lo em alguma coisa. Afinal, soltou-o. Algum tempo depois, o leão caiu numa armadilha. Os caçadores, que desejavam levá-lo vivo ao rei, amarraram-no numa árvore, enquanto iam providenciar uma carroça para transportá-lo. Nesse momento, apareceu o ratinho. Vendo o apuro em que se encontrava o leão, lembrou-se de sua promessa e num instante roeu as cordas que o prendiam à árvore. – Eu disse que talvez um dia pudesse ajudá-lo? – lembrou o rato. A moral desta história é que amigos pequenos podem ser grandes nas horas difíceis. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR É possível observar que, ao serem atualizados em um texto real, os artigos empregados, tanto definidos quanto indefinidos, revelam sentidos que contribuem para a interpretação e para o estabelecimento da coerência textual. Assim, por meio das escolhas linguísticas que faz – inclusive da escolha que faz dentre os elementos que pertencem às classes fechadas, como é o caso do artigo –, o produtor vai revelando intenções e moldando o texto em função da sua aceitabilidade. De início, observemos o artigo do sintagma nominal (SN) referente a um dos protagonistas. No começo da fábula, o autor insere a personagem leão acompanhado do artigo definido. Antes de abordar essa introdução da personagem, é pertinente que o professor crie condições, recorrendo a textos reais, para que os alunos cheguem à conclusão de que “o artigo indefinido tem como emprego bem característico a introdução, no texto, de um referente que, na seqüência, poderá ser referenciado por qualquer das palavras fóricas, especialmente pelo artigo definido (NEVES, 2000, p. 514, grifos da autora). Com essa análise, o professor cria um espaço propício para questionar os estudantes sobre as intenções do autor ao “ignorar” essa regra geral. Espera-se, com isso, que os alunos percebam que a escolha pelo artigo definido não é gratuita. A construção linguística em tela (o leão - linha 1) aponta para um leitor previsto, que deve ser capaz de fazer relações intertextuais – manifestadas quando o autor se apropria dos conhecimentos de outros textos para escrever o seu (COSTA VAL, 1999). Isso porque o artigo definido, ao individualizar o sentido do substantivo, aponta para um leão específico, aquele personagem único, rei da floresta, já conhecido pelo leitor – que, ao chegar a esse texto, já teve contato com outros exemplares da narrativa ficcional, especialmente com o gênero fábula (esse é o leitor previsto). Se fosse usado o artigo indefinido, o sentido atualizado seria outro, já que “o sintagma nominal com artigo indefinido apresenta uma pessoa ou coisa simplesmente por referência à classe particular à qual ela pertence, ou seja, apresenta-a como elemento de uma classe” (NEVES, 2000, p. 513, grifos da autora). Assim, ao recorrer à definitização e apontar para um leão específico, o produtor garante a recuperação de uma atmosfera fictícia, que remonta ao cenário da floresta habitada por animais falantes, distribuídos conforme uma relação hierárquica, cujo topo é ocupado pelo leão. É evidente que elementos como o layout do texto, o título e a expressão uma vez (linha 1) já apontam para o gênero escolhido. Porém, o uso do artigo ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR definido na introdução da personagem reforça a garanta de atualização do cenário fictício por parte do leitor. Isso porque, por constituírem “realizações prototípicas da chamada definitude, seu [artigos definidos] uso é, em geral, indicativo de um conhecimento compartilhado” (CALLOU et al., 2000, p. 84). Nesse sentido, a intertextualidade é fator relevante para a atribuição de coerência ao texto, já que o autor não considera necessário inserir a personagem por meio de um SN com artigo indefinido, para depois retomá-lo com um SN introduzido por um elemento definido (artigo definido, pronome etc.). Com essa análise, espera-se que o estudante chegue à conclusão de que o artigo definido se refere, então, não só a um elemento textual anterior, mas também a um elemento do contexto situacional cuja referência é partilhada pelos interlocutores, por intermédio de inferências (KOCH; VILELA, 2001), feitas a partir das pistas deixadas pelo contexto de comunicação. E, ainda, que compreenda que a presença do artigo definido é determinada pela intenção do falante bem como pela maneira como o usuário da língua pretende comunicar uma dada experiência, conforme analisa Neves (2000). Para a autora “o uso do artigo é, pois, extremamente dependente do conjunto de circunstâncias, lingüísticas ou não, que cercam a produção do enunciado” (NEVES, 2000, p. 391). Numa análise contrastiva em relação àquela sugerida para o sintagma o leão (linha 1), o professor pode chamar a atenção dos alunos para o fato de a outra personagem ser introduzida por um artigo indefinido (um ratinho – linha 1). Nesse caso, faz-se referência a um rato qualquer, logo, um ser insignificante dentre os outros de sua classe. Cria-se, assim, uma imagem de uma personagem „coitadinha‟, fraca, sem importância. Certamente consideramos que o substantivo no diminutivo tem uma carga maior nessa caracterização. Porém, é preciso observar que a indefinitude contribui sobremaneira para a imagem que vai se construindo da personagem. Essa imagem e aquela que se faz do leão contribuem para a coerência textual, já justificam as ações narradas no texto. Já nas demais referências às personagens centrais, são usados artigos definidos. Isso ocorre porque existem regras para o emprego dos artigos como formas remissivas: um termo introduzido por um artigo indefinido só pode ser retomado por artigo definido (KOCH, 1992). Esta aí uma oportunidade de o professor explorar as restrições da língua quanto ao uso de artigos, permitindo que os alunos percebam as nuances de sentido ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR atualizadas por meio dessa classe gramatical. Além disso, o professor pode chamar a atenção dos estudantes para a relação que se estabelece entre as retomadas e a manutenção temática, relevante para o estabelecimento de coerência ao texto. A análise feita em relação ao uso do artigo definido em o leão (linha 1) é extensiva aos casos de introdução das personagens os caçadores e (linha 8) e o rei (linhas 8/9). Essas personagens também são introduzidas por artigos definidos por serem recorrentes em textos fabulosos. Assim, o gênero justifica a forma de abordagem das personagens. A título de ilustração, podemos imaginar uma notícia de jornal em que se diz que o leão foi preso pelos caçadores. Obviamente haveria, aí, uma dificuldade de aceitação do texto como uma unidade coerente, pois o leitor se perguntaria: que leão? que caçadores? No caso da realidade brasileira, menos aceitável ainda seria o texto se se falasse no rei. Assim, a escolha pelo artigo definido, que conta com o conhecimento prévio do leitor, é feita tendo em vista a aceitabilidade por parte do leitor. Isso porque, ao reconhecer as intenções do produtor, o leitor aceita o texto como coerente, porque o reconhece como um texto fabuloso. Nesse sentido, torna-se relevante para a análise a situacionalidade, fator de textualidade que está ligada à situação comunicativa: o contexto em que produtor e leitor estiverem inseridos influenciará na escolha do gênero textual necessário, na organização estrutural do texto, no vocabulário e na linguagem mais adequados (COSTA VAL, 1999). Assim, um texto – e, de forma mais específica, as estratégias linguísticas atualizadas – que pode ser compreendido como adequado à determinada situação de interação pode não ser em outra. O uso dos artigos, então, contribui para gerar os sentidos que se deseja que o leitor atualize, pois o produtor (ou, talvez, nesse caso, o tradutor) articula os artigos definidos e indefinidos conforme lhe convém, visando, no entanto, a aceitabilidade. Nesse sentido, intencionalidade e aceitabilidade são elementos que entram na análise linguística. Conforme Costa Val (1999), a intencionalidade pode ser compreendida como a maneira pela qual o produtor realiza escolhas para atingir seu objetivo na situação sócio-comunicativa em que está envolvido. Interferem também nas escolhas que o produtor realiza as antecipações que faz em relação ao destinatário de seu texto. Em contrapartida, tem-se o processo de aceitabilidade, que consiste em o receptor ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR aceitar ou não o que o produtor lhe oferece como um discurso/texto que faça sentido e que seja útil e relevante à suas expectativas. Considerando a importância dos fatores da textualidade para a interpretação do texto, entendemos que eles podem e devem ser investigados mesmo quando se enfoca um único elemento linguístico, como a classe gramatical artigo, por exemplo. O trabalho com estruturas linguísticas específicas tendo em vista tais fatores pode enriquecer as aulas de Língua Portuguesa e contribuir para a formação de um leitor atento às estratégias que pode usar, quando produtor do texto, e às que o outro usa, quando leitor. 4- Considerações finais Neste trabalho, observamos que o livro usado na escola particular apresenta conceitos propostos pela GT e exercícios que se limitam a explicitar a função morfossintática dos artigos. Além disso, explora exercícios de forma mecanizada e simplória, não levando os alunos a refletir sobre o uso efetivo dessa classe de palavras em situações reais de comunicação. Há que se observar, ainda, que o exercício de metalinguagem disfarça-se na abordagem do artigo em orações retiradas de um texto. Mas aplica-se, nesse caso, a análise apresentada por Neves (1991, p. 42): “isso, nada mais significa que usar o texto como pretexto. [...] „partir do texto‟ representa extrair do texto frases ou palavras e, sobre elas, exercitar a metalinguagem”. No livro usado em escolas públicas, a abordagem da classe gramatical em questão extrapola essa perspectiva, ao se proporem exercícios que visam a refletir sobre o uso do artigo e da linguagem. Porém, as estratégias linguísticas que envolvem o artigo não são relacionadas com os fatores textuais que levam em conta o contexto sócio-comunicativo, tais com a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade e a intertextualidade. Partindo desses resultados, propomos uma análise de um texto visando não só trabalhar a gramática reflexiva, mas também observar a atualização de elementos linguísticos em um texto, que, na análise, é considerado como um todo, uma unidade de estudo que requer a abordagem de questões mais amplas de textualidade. Acreditamos que, assim, estaremos mais próximos de propiciar uma formação sólida de leitores críticos e produtores de texto competentes. ISSN 2178-8200 II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem 06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR Vale ressaltar que entendemos que a Gramática Tradicional deve ser de domínio do professor. No entanto, quando se trata do ensino, ela não pode ser a única referência teórica a que se recorre, já que não considera o texto como uma unidade de análise, mas se limita ao estude de sentenças descontextualizadas. A melhor forma de ensinar gramática é provocando reflexões, considerando o conhecimento prévio do aluno e aplicando a gramática em textos, considerando os fatores pragmáticos aí envolvidos, tais como as situações de produção, circulação e recepção dos textos estudados. Referências CALLOU, D. et al. Dinâmica do específico e do genérico: artigo definido e construções existenciais.In: Veredas, revista de estudos linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p. 8188, 2000. DELMANTO, D.; CASTRO, M. C. Português: Idéias & Linguagens: 5ª série. 12. ed. [reformulada]. São Paulo: Saraiva, 2006. COSTA VAL, M. G. Redação e Textualidade. In: ____. Maria da Graça. Texto e Textualidade. 2. ed. São Paulo: Martins, 1999. CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova Gramática do Português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ESOPO. O leão e o Rato. In: Enciclopédia Mundo da Criança. v.1. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1992. KOCH, I. G. V. A Coesão Textual. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1992. _____; VILELA, M. Gramática da Língua Portuguesa – Gramática da palavra – Gramática da frase – Gramática do texto/Discurso. Coimbra: Livraria Almedina, 2001. NEVES, M. H. M. Gramática dos usos do português. São Paulo: Unesp, 2000. _____. Gramática na escola. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1991. SISTEMA MAX DE ENSINO. 5ª série ou 6º ano do ensino fundamental 2. Londrina: Maxiprint, s/d. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para ensino de gramática no 1º e 2º graus. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000. ISSN 2178-8200