Descomplicando a Filosofia do Direito

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Bernardo Montalvão
Resolução 75 do CNJ
Descomplicando a
Filosofia do Direito
2017
Descomplicando_Filosofia_Direito.indb 3
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Capítulo I
A IDEIA DE DIREITO: A JUSTIÇA COMO
IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA) –
JUSTIÇA E EQUIDADE – PARTE I
“Nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre
nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão a Kant – meditaram
tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta. Talvez
por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de
que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar
perguntar melhor”. KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a
política no espelho da ciência. 3ª edição. Tradutor: Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 1.
SUMÁRIO: 1.1. A IDEIA DE DIREITO: JUSTIÇA EM SENTIDO AMPLO;
1.2. A JUSTIÇA COMO IGUALDADE: A JUSTIÇA EM SENTIDO ESTRITO; 1.2.1. OBJETO OU PROCESSO?; 1.2.2. IGUALDADE, SEMELHANÇA,
EQUIPARAÇÃO; 1.2.3. OS TIPOS DE JUSTIÇA; 1.3. JUSTIÇA E EQUIDADE;
1.4. EXEMPLO: A PENA JUSTA; 1.5. QUESTÕES.
1.1. A IDEIA DE DIREITO: JUSTIÇA EM SENTIDO AMPLO.
O que se deve entender por ideia de Direito? Será ela algo real ou apenas ideal? Será ela um axioma, uma hipótese, uma norma fundamental, um
princípio regulativo ou uma condição transcendental do Direito? Para Arthur
Kaufmann, com quem concordamos, não se deve pensar na ideia de Direito
como “algo demasiado alto, e sim compreendê-la como ‘modelo’ da ideia de
Homem na sua tripla configuração”1.
1
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. 4ª edição. Tradução: António Ulisses Cortês.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 225.
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DESCOMPLICANDO A FILOSOFIA DO DIREITO – Bernardo Montalvão
SÍNTESE SOBRE A IDEIA DE DIREITO
A ideia de Direito deve ser pensada como um “modelo”, o modelo da ideia de Homem
na sua tripla configuração.
E qual é essa tripla configuração? A ideia de homem, com a qual a ideia
de Direito está vinculada, pode ser concebida a partir de três diferentes perspectivas, a saber: a) o homem como ser autônomo (ou seja, como aquele que
cria o Direito); b) o homem como o fim último do seu mundo (sendo possível
concluir, então, que ele, o homem, é o fim último do Direito); e c) o homem
como ser heterônomo (isto é, o homem como um ser subordinado ao Direito)2.
QUAL É A TRIPLA CONFIGURAÇÃO DA IDEIA DE HOMEM?
a) o homem como ser autônomo (ou seja, como aquele que cria o Direito);
b) o homem como o fim último do seu mundo (sendo possível concluir, então, que
ele, o homem, é o fim último do Direito); e
c) o homem como ser heterônomo (isto é, o homem como um ser subordinado ao
Direito).
Portanto, é possível perceber que o mais importante no Direito não é a
ideia de Direito, mas, sim, a ideia de homem. De todo modo, há um consenso
difundido de que a ideia do Direito é o mais elevado valor do Direito. E este
mais elevado valor é a Justiça. O que será então a Justiça?3
O QUE É MAIS IMPORTANTE NO
DIREITO?
O QUE É MAIS IMPORTANTE NO
DIREITO?
Não é a ideia de Direito, segundo Arthur Para o consenso difundido, a ideia de DiKaufmann, mas, sim, a ideia de Homem. reito é o valor mais importante do Direito.
E este valor é a Justiça. Logo, a ideia de
Direito é a mesma coisa que a Justiça.
O que vem a ser a Justiça não é algo que se possa dizer – e menos ainda
o que seja o conceito de direito – em uma precisa e definitiva definição. O
que se pode dizer, inicialmente, é que a Justiça é um conceito fundamental,
absolutamente irredutível, da ética, da filosofia social e jurídica, bem como da
vida política, social, religiosa e jurídica. No entendimento filosófico e teológico
em geral, a Justiça surge como a segunda das quatro virtudes cardinais, são
2
3
KAUFMANN, 2010, p. 225.
KAUFMANN, 2010, p. 225.
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Capítulo I – A JUSTIÇA COMO IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA)
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elas: prudência, justiça, coragem e temperança (observe-se, desde já, que as
virtudes seguintes pressupõem, necessariamente, as antecedentes)4.
O QUE É A JUSTIÇA?
O QUE É A JUSTIÇA?
Não é possível dar uma definição definitiva
sobre a justiça. O máximo que se pode
dizer é que ela é um conceito fundamental,
irredutível, da ética, da filosofia social e
jurídica.
No entendimento filosófico e teológico
em geral, a Justiça surge como a segunda
das quatro virtudes cardinais, são elas:
prudência, justiça, coragem e temperança.
De uma forma toda especial, por exemplo, a Democracia está muito
vinculada à forma fundamental da Justiça. E como isso se dá? Por meio do
princípio da igualdade enquanto sua mais elevada ideia diretiva. Ou seja, a
igualdade é o ethos da democracia. Para demonstrar isso, basta pensar nos
clássicos do pensamento democrático, Péricles, Sólon, Tocqueville...5
HÁ UMA LIGAÇÃO PRÓXIMA
ENTRE DEMOCRACIA E JUSTIÇA?
QUAL A RELAÇÃO ENTRE JUSTIÇA
E DEMOCRACIA?
Sim, ambas estão fortemente ligadas à ideia A justiça, por vezes, se confunde com a
de Igualdade.
ideia de igualdade.
E a igualdade, por sua vez, é o ethos da
democracia.
Ou seja, justiça é igualdade, mas não é
só igualdade. E a democracia se orienta a
partir do valor da igualdade.
Segundo a tradição, distingue-se dois tipos de justiça, são elas: a) justiça
objetiva considerada como o mais elevado princípio de justificação das ordens
normativas, das instituições e sistemas sociais (Direito, Estado, Economia,
Família...); b) justiça subjetiva enquanto virtude já expressa na fórmula do
direito romano e de Cícero: “Iustitia est constans et perpetua voluntas suum
cuique tribuens” (A justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um
o que é seu)6. A seguir, na sequência, se tratará primeiro da ideia de Justiça
Objetiva.
4
5
6
KAUFMANN, 2010, p. 225.
KAUFMANN, 2010, p. 225-226.
KAUFMANN, 2010, p. 226. Esta fórmula é encontrada tanto na obra de Ulpiano quanto nos
escritos de Cícero, e também mencionada por Tomás de Aquino.
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DESCOMPLICANDO A FILOSOFIA DO DIREITO – Bernardo Montalvão
HÁ DOIS TIPOS DE
JUSTIÇA.
a) Justiça objetiva;
b) Justiça subjetiva.
JUSTIÇA OBJETIVA
JUSTIÇA SUBJETIVA.
O mais elevado princípio
de justificação das ordens
normativas, das instituições
e sistemas sociais (Direito,
Estado, Economia, Família...). Ou seja, o princípio
que justifica o Direito, justifica o Estado e etc. Objetiva
porque é o fundamento.
É a virtude já expressa na
fórmula do direito romano e de Cícero: “Iustitia est
constans et perpetua voluntas
suum cuique tribuens” (A
justiça é a vontade constante
e perpétua de dar a cada um
o que é seu). Subjetiva porque é a vontade de alguém.
Normalmente, diante da pergunta sobre o que vem a ser a justiça,
responde-se: a justiça é na sua essência igualdade. Porém, se a justiça é
essencialmente igualdade, isso significa também, como é óbvio, que a
justiça não é apenas igualdade. Contudo, no período subsequente a Kant,
sobretudo a partir do positivismo, a justiça foi reduzida exclusivamente
ao princípio da igualdade, ou seja, à proposição segundo a qual os iguais
devem ser tratados igualmente, enquanto que os desiguais devem ser
tratados desigualmente7.
O QUE VEM A SER A IGUALDADE?
COMO OS POSITIVISTAS
QUE SUCEDERAM AO
JUSNATURALISMO DE KANT
ENTENDEM A JUSTIÇA?
Para a maioria dos autores, justiça é, na sua
essência, o mesmo que igualdade. Porém,
segundo Arthur Kaufmann, a Justiça não
é apenas igualdade.
Os positivistas do século XIX reduzem
a justiça ao princípio da igualdade. E o
princípio da igualdade era compreendido
apenas em seu aspecto formal.
Apenas este princípio, compreendido em seu aspecto formal, era considerado como cientificamente seguro, vez que os conteúdos da Justiça, em
geral, não eram reputados como possíveis objetos da ciência. Isto porque, em
especial segundo Kelsen, os conteúdos da justiça pertencem à política, não
podendo, portanto, serem alçados à qualidade de objeto da ciência do direito.
Neste sentido, é marcante a pergunta de índole retórica elaborada por Kelsen:
7
Convém assinalar que esta assertiva foi, pela primeira vez, elaborada por Aristóteles em sua
conhecida obra “Ética à Nicômano”.
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Capítulo I – A JUSTIÇA COMO IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA)
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o que é a justiça?8 Ao que ele mesmo responde: não o sabemos e nem nunca
o saberemos. Portanto, naquele contexto, a filosofia do direito, a doutrina
da Justiça, como quer Arthur Kaufmann, restringia-se ao aspecto formal9.
COMO O POSITIVISMO JURÍDICO
COMPREENDE O PRINCÍPIO DA
IGUALDADE?
QUAL O CONTEÚDO DA JUSTIÇA,
SEGUNDO KELSEN?
Apenas como algo formal, vez que somente
desta forma ele poderia ser considerado
como cientificamente seguro, vez que os
conteúdos da Justiça, em geral, não eram
reputados como possíveis objetos da ciência. Não se pode estudar os conteúdos da
justiça de forma científica, de modo seguro,
porque a ciência não tem a capacidade de
penetrar na consciência de cada indivíduo.
Para Kelsen, os conteúdos da justiça pertencem à política, não podendo, portanto,
serem alçados à qualidade de objeto da
ciência do direito.
Quando Kelsen se pergunta: o que é a
justiça? Ele responde: não o sabemos e
nem nunca o saberemos. Não porque é um
mistério, mas, sim, porque é algo subjetivo
e não pode ser estudado cientificamente.
A partir da lição de Gustav Radbruch há uma modificação10. E isto se
dar porque este autor volta a filosofar sobre os conteúdos da justiça. Porém,
também ele – convém destacar que, assim como Kelsen, Radbruch também
era um neokantiano – somente considerava como seguras as afirmações
sobre as formas. No que se refere aos conteúdos, também ele, Radbruch,
defendia o relativismo jurídico filosófico ou axiológico. Por isso, a partir
da doutrina de Radbruch, acerca das diferentes vertentes e dimensões da
ideia de Direito (ou seja, sobre a Justiça) e de suas relações recíprocas não
há, de acordo com ele, conhecimentos, mas, sim, e apenas, convicções11. Em
outras palavras, a ciência deve mostrar quais são as proposições racionalmente possíveis, por exemplo, sobre os conteúdos da justiça, e prepará-las
para a decisão12.
8
KELSEN, Hans. O que é a justiça? Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2001, passim.
9 KAUFMANN, 2010, p. 226.
10 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução: Marlene Holzhausen. Revisão técnica:
Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004, p. 46.
11 RADBRUCH, 2004, p. 47.
12 KAUFMANN, 2010, p. 226-227.
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DESCOMPLICANDO A FILOSOFIA DO DIREITO – Bernardo Montalvão
O QUE MUDA
A PARTIR DA
DOUTRINA DE
GUSTAV RADBRUCH?
RADBRUCH É
INFLUENCIADO
PELA DOUTRINA
DE KANT, QUE ERA
JUSNATURALISTA?
O QUE PENSA
RADBRUCH SOBRE O
EVENTUAL CONTEÚDO
DA JUSTIÇA?
Há uma modificação no
modo de se pensar a justiça. E isto se dar porque
este autor volta a filosofar sobre os conteúdos da
justiça.
Assim como Kelsen, Radbruch também era um
neokantiano e, por isso,
somente considerava
como seguras as afirmações sobre as formas, ou
seja, a ideia de justiça formal.
Que sobre isso há um relativismo jurídico filosófico ou
axiológico, vez que há diferentes vertentes e dimensões da
ideia de Direito (ou seja, sobre
a Justiça) e de suas relações
recíprocas não há, de acordo
com ele, conhecimentos, mas,
sim, e apenas, convicções.
SEGUNDO RADBRUCH, O QUE PODE FAZER, ENTÃO, A CIÊNCIA ACERCA
DO TEMA DA JUSTIÇA?
A ciência deve mostrar quais são as proposições racionalmente possíveis, por exemplo,
sobre os conteúdos da justiça, e prepará-las para a decisão.
Inicialmente, Radbruch falava expressamente sobre as “antinomias
da ideia de Direito”13. Radbruch também afirma que a justiça é igualdade.
Contudo, ele não se limita a dizer apenas isso. Isto porque se o princípio da
igualdade tem uma natureza exclusivamente formal, faz-se necessário trazer
à baila um princípio material. Porém, Radbruch não concebia esse princípio
material como inerente à Justiça, antes o designava por meio do termo “adequação”. E, ao fazê-lo, colocava a noção de adequação ao lado das noções de
justiça e segurança jurídica. Esta última noção, a segurança jurídica, torna-se
necessária, vez que a adequação material apenas vale relativamente e está, por
isso, dependente do poder que estabelece o que não pode ser cientificamente
estabelecido14.
13 RADBRUCH, 2004, p. 47-48.
14 KAUFMANN, 2010, p. 227.
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Capítulo I – A JUSTIÇA COMO IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA)
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O QUE PENSA RADBRUCH SOBRE O
PROBLEMA DA JUSTIÇA?
POR QUE RADBRUCH, APESAR
DE FALAR SOBRE O CONTEÚDO
DA JUSTIÇA, NÃO ABRE MÃO
DA NOÇÃO DE SEGURANÇA
JURÍDICA?
Radbruch afirma que a justiça é igualdade (justiça em sentido formal). Contudo,
ele não se limita a dizer apenas isso, pois
admite que é preciso perceber o aspecto
material da justiça (o seu conteúdo). Porém, Radbruch não concebia esse princípio
material como inerente à Justiça, antes o
designava por meio do termo “adequação”. E, ao fazê-lo, colocava a noção de
adequação ao lado das noções de justiça e
segurança jurídica.
A segurança jurídica, torna-se necessária,
vez que a adequação material apenas vale
relativamente e está, por isso, dependente
do poder que estabelece o que não pode
ser cientificamente estabelecido. Se não há
como, cientificamente, determinar o conteúdo da justiça, então quem irá fazê-lo
será o poder que o estabelece, por exemplo,
o juiz.
Todavia, em um momento posterior, o próprio Radbruch modificou a
sua doutrina sobre a ideia de Direito de modo significativo. Isto porque ele
passa a caracterizar a justiça (a igualdade), a adequação e a segurança jurídica
como “três faces da ideia de Direito” que “dominam conjuntamente o Direito
em todas as suas vertentes” e cujas contradições não se devem entender antinomicamente, mas, sim, como um “conflito da justiça consigo mesma”15. A
partir deste momento, como assevera Kaufmann, Radbruch se viu obrigado
a apresentar uma “ordem de prevalência dos valores da ideia de direito”16.
EM UM SEGUNDO MOMENTO, COMO RADBRUCH PASSOU A ENTENDER
O PROBLEMA DA JUSTIÇA?
Radbruch modificou a sua doutrina sobre a ideia de Direito de modo significativo. Isto
porque ele passa a caracterizar a justiça (a igualdade), a adequação e a segurança jurídica
como “três faces da ideia de Direito” que “dominam conjuntamente o Direito em todas
as suas vertentes” e cujas contradições não se devem entender antinomicamente, mas,
sim, como como um “conflito da justiça consigo mesma”.
15 RADBRUCH, 2004, p.48.
16 RADBRUCH, 2004, p.48; KAUFMANN, 2010, p. 227.
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DESCOMPLICANDO A FILOSOFIA DO DIREITO – Bernardo Montalvão
JUSTIÇA (SEGUNDO RADBRUCH)
IGUALDADE (JUSTIÇA FORMAL): todos são
iguais perante a lei. A lei
é quem determina quem
são os iguais e quem são os
desiguais.
ADEQUAÇÃO (JUSTIÇA
MATERIAL): o conteúdo
da justiça é aquele que
melhor se adeque à singularidade do conflito a ser
julgado.
SEGURANÇA JURÍDICA
(PAZ JURÍDICA): justiça é
o poder que estabelece o que
não pode ser cientificamente
estabelecido.
A partir de tudo que foi dito até aqui, é possível concluir que a Justiça (em
sentido amplo) tem três vertentes: a igualdade (justiça em sentido estrito), a
adequação (justiça social ou do bem comum) e a segurança jurídica (ou paz jurídica). Na igualdade está em causa, como ensina Kaufmann, a forma da justiça,
na adequação, o conteúdo da justiça, e, na segurança jurídica, a função da justiça17.
OS TRÊS ÂNGULOS A PARTIR DOS QUAIS SE PODE OBSERVAR AS
DIFERENTES FACES DA JUSTIÇA.
A igualdade (justiça em A adequação (justiça social A segurança jurídica (ou
sentido estrito).
ou do bem comum).
paz jurídica).
Observa-se: a forma da jus- Observa-se: o conteúdo da Observa-se: a função da
tiça
justiça.
justiça.
Deste modo, a diferença entre a forma, conteúdo e a função da Justiça reside
na necessidade de análise sistemática das diferentes variáveis que integram a Justiça. Como leciona Kaufmann, “na verdade, a justiça é sempre simultaneamente
forma, conteúdo e função”18. A realização da igualdade e do bem comum é função
da justiça. O princípio da igualdade não é pensável sem conteúdo. O máximo bem
comum não é determinável sem forma. A segurança jurídica não subsiste por
si, pois só será seguro o direito que respeite o princípio da igualdade e a justiça
do bem comum. Em suma, “a divisão aqui seguida não significa portanto uma
diferença de natureza da justiça, mas antes uma diferente acentuação”19.
PARA ARTHUR KAUFMANN, A JUSTIÇA É:
A justiça é “sempre simultaneamente forma, conteúdo e função”. Logo, a divisão aqui
seguida não significa portanto uma diferença de natureza da justiça, mas antes uma
diferente acentuação”.
17 KAUFMANN, 2010, p. 227.
18 KAUFMANN, 2010, p. 228.
19 KAUFMANN, 2010, p. 228.
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Capítulo I – A JUSTIÇA COMO IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA)
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VAMOS COMPARAR O QUE PENSAM SOBRE O MESMO ASSUNTO
ALGUNS FILÓSOFOS DO DIREITO?
A JUSTIÇA SEGUNDO
HANS KELSEN
A JUSTIÇA
SEGUNDO
GOFFREDO TELLES
JR.
A JUSTIÇA
SEGUNDO TÉRCIO
SAMPAIO FERRAZ
JR.
“A justiça é uma qualidade ou
atributo que pode ser afirmado
de diferentes objetos. Em primeiro lugar, de um indivíduo. Diz-se
que um indivíduo, especialmente
um legislador ou um juiz, é justo
ou injusto. Neste sentido, justiça é
representada como uma virtude
dos indivíduos. Como todas as
virtudes, também a virtude da
justiça é uma qualidade moral; e,
nessa medida, a justiça pertence
ao domínio da moral”20.
“A justiça é, portanto, a qualidade de uma conduta humana
específica, de uma conduta que
consiste no tratamento dado a
outros homens. O juízo segundo
o qual uma tal conduta é justa ou
injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A
conduta que é um fato da ordem
do ser existente no tempo e no
espaço, é confrontada com uma
norma de justiça, que constitui
um dever-ser. O resultado é um
juízo exprimido que a conduta
é tal como – segundo a norma
de justiça – deve ser, isto é, que
a conduta é valiosa, tem um valor de justiça positivo, ou que a
conduta não é como – segundo
a norma de justiça – deveria ser,
porque é o contrário do que deveria ser, isto é, que a conduta
é desvaliosa, tem um valor de
justiça negativo. (...) Por outras
palavras: o que é avaliado, o que
pode ser valioso ou desvalioso,
ter um valor positivo ou negativo
é a realidade”21
DEFINIÇÃO DA JUSTIÇA: “Justiça é a RETRIBUIÇÃO EQUIVALENTE DO QUE FOI DADO
OU FEITO”22.
O QUE É O JUSTO? “É
óbvio que o justo é o que
está ajustado; é o que se
acha na exata medida.
Justo é a qualidade de
ser conforme, adequado,
correspondente, proporcional”23.
A justiça é um código
doador de sentido. “Em
suma, a justiça é ao mesmo tempo o princípio racional do sentido do jogo
jurídico e seu problema
significativo permanente. Ao criar normas,
interpretá-las, fazê-las
cumprir a justiça (em
seu aspecto material) é
o problema que deve ser
enfrentado, como num
jogo de futebol, em que
o objetivo é atingir o gol.
Como, porém, no futebol
só há jogo se houver onze
jogadores de cada lado,
um campo conforme
certas medidas, de certo
tamanho, assim também
a produção, a aplicação
e a observância do direito estão delimitadas
pelo princípio formal da
igualdade proporcional
a partir do qual o jogo
se identifica como jurídico: a justiça forma não
pertence ao jogo, mas é o
limite do jogo. Se dentro
desses limites, porém, o
jogo é justo ou injusto,
isto é problema da justiça
material, de seus princípios éticos e de sua moralidade”24.
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DESCOMPLICANDO A FILOSOFIA DO DIREITO – Bernardo Montalvão
1.2. A JUSTIÇA COMO IGUALDADE: A JUSTIÇA EM SENTIDO ESTRITO.
2021222324
1.2.1. OBJETO OU PROCESSO?
A questão da justiça move-se em duas direções, a saber: a) O que é a
justiça?; b) Como se conhece ou se realiza a justiça? Trata-se, portanto, de
uma ontológica e gnosiológica, respectivamente. A primeira, em busca da
suposta essência da justiça. A segunda, voltada ao problema de como conhecer a justiça. Convém destacar que, por muito tempo, pensou-se, e muitos
pensam ainda, que se podia lidar e responder a essas duas questões de forma totalmente apartada. A justiça apresentava-se como um objeto material
(substancial) exterior (externo àquele que busca alcançá-la), ou seja, como
um “objeto” que se contrapõe ao pensamento de quem tenta compreendê-lo
e que deveria, também por isso, ser recebido na sua pura objetividade pelo
“sujeito” cognitivo. Portanto, de acordo com o pensamento corrente à época,
no conhecimento não interviria nada do sujeito cognoscente. Em harmonia
com essa tese, ainda hoje se ensinam e se escrevem “filosofias do direito”, por
um lado, e “metodologias”, por outro, sem que haja entre elas, e isso é o pior,
qualquer interligação25.
20 KELSEN, Hans. O problema da justiça. 5ª edição. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 2011, p. 3.
21 KELSEN, 2011, p. 4-5.
22 TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do Direito. 4ª edição revista e atualizada.
São Paulo: Saraiva, 2011, p. 355.
23 TELLES JUNIOR, 2011, p. 359.
24 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação.
8ª edição. São Paulo: Atlas, 2015, p. 321.
25 KAUFMANN, 2010, p. 228.
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Capítulo I – A JUSTIÇA COMO IGUALDADE (JUSTIÇA COMUTATIVA)
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A QUESTÃO DA JUSTIÇA MOVE-SE EM DUAS DIREÇÕES:
O que é a justiça?
Como se conhece ou se realiza a justiça?
O problema ontológico da justiça. Ou seja, O problema gnosiológico da justiça. Isto
há uma essência de justiça? Dito de outra é, como se conhece a justiça? Como se
maneira, qual o objeto da justiça?
realiza a justiça?
COMO SE PENSAVA A RELAÇÃO ENTRE ESSAS DUAS DIREÇÕES?
Convém destacar que, por muito tempo, pensou-se, e muitos pensam ainda, que se
podia lidar e responder a essas duas questões de forma totalmente apartada.
Esta antiga concepção parte do pressuposto de que a há um sujeito que conhece a
justiça (o sujeito cognitivo) e um objeto que é conhecido (objeto cognoscível) ou que
se deixar conhecer.
Todavia, é preciso que se advirta, desde já, que o esquema cognitivo
sujeito/objeto já está ultrapassado ou, como prefere Kaufmann, pertence
ao passado26. Até mesmo no cenário das ciências explicativas da natureza,
como, por exemplo, a Física, e ainda mais nas ciências hermenêuticas da compreensão, não faz mais nenhum sentido tomar por base o esquema cognitivo
sujeito/objeto. Em função disso, nos últimos tempos, tem-se desenvolvido
cada vez mais as Teorias Processuais da Justiça, que compreendem a justiça
e, por consequência, também o direito justo, como produto do processo de
determinação do direito. A pergunta que fica “no ar”, porém, é: será, a justiça,
exclusivamente, o produto de um tal processo ou, pelo contrário, não teria
este processo um fundamento material?27
QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DO ESQUEMA COGNITIVO SUJEITO/
OBJETO QUE JÁ ESTÁ ULTRAPASSADO OU, COMO PREFERE KAUFMANN,
QUE JÁ PERTENCE AO PASSADO?
O desenvolvimento recente
de Teorias Processuais da
Justiça. Esta parece ser a
tendência atual. Nesse sentido, parece ser a lição de
autores como, por exemplo,
Jürgen Habermas e Robert
Alexy.
A justiça e, por consequência, também o direito justo,
passa a ser compreendido
como o produto de um processo, o processo de determinação do direito.
Mas uma dúvida permanece: será, a justiça, exclusivamente, o produto de um tal
processo ou, pelo contrário,
não teria este processo um
fundamento material?
26 KAUFMANN, 2010, p. 228.
27 KAUFMANN, 2010, p. 228.
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