um enfoque musical sobre a música na mídia

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UM ENFOQUE MUSICAL SOBRE A MÚSICA NA MÍDIA
Daniel Lemos Cerqueira*
*
Departamento de Artes, Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
[email protected]
RESUMO:
O presente artigo constitui o embasamento necessário à realização de uma mesa-redonda no I
MUSICOM, evento a ser realizado na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Este trabalho visa a
tornar explícito questões relativas a Música e Mídia sob um enfoque musical, reforçando aspectos
histórico-culturais e pedagógicos que embasam a visão de um músico acadêmico, além de enfatizar a
atual posição da Música Popular no meio acadêmico brasileiro. Em seguida, será estabelecido um diálogo
com possíveis definições de Música e Mídia por parte da Comunicação Social e da Música, a fim de
evidenciar a diversidade de pontos de vista.
PALAVRAS-CHAVE:
Música Popular, Música Erudita, Mídia, Linguística
INTRODUÇÃO
Embora seja uma tarefa praticamente impossível buscar um sentido geral para a
Música, uma definição breve e subjetiva pode ser atribuída a esta, sob o ponto de vista
da cultura Ocidental: a arte dos sons. Por possuir um caráter discursivo, onde uma série
organizada de manifestações sonoras é apreciada e decodificada pelo cérebro ao longo
do tempo, a Música pode ser considerada uma linguagem, porém, deve ser ressaltado
seu caráter não-verbal, pois os elementos portadores de sentido (significantes) dos quais
o discurso musical trata não são objetivos, conforme afirma o linguista Émile
Benvenieste:
A ‘língua’ musical consiste em combinações e sucessões de sons, diversamente
articulados; a unidade elementar, o som, não é um signo; cada som é identificável na
estrutura da escala da qual ele depende, não sendo dotado de significação. Eis o
exemplo típico de unidades que não são signos, que não designam, sendo somente os
graus de uma escala na qual se fixa arbitrariamente a extensão. Temos aqui um
princípio discriminador: os sistemas fundados sobre unidades dividem-se entre
sistemas com unidades significantes e sistemas com unidades não significantes. Na
primeira categoria coloca-se a língua: na segunda, a música (BENVENIESTE, 1969,
p.58-59).
Dessa forma, a Música por si só não oferece elementos semânticos, porém, os
elementos de seu discurso podem possuir significados sob uma perspectiva histórica,
sendo o ouvinte capaz de identificar tais elementos caso possua o conhecimento
necessário para decifrá-lo. Segundo o compositor italiano Luciano Berio (1925-2003), o
conhecimento histórico é fundamental para a percepção dos elementos musicais, e sua
obra possui este diálogo entre o presente e o futuro:
(...) essa tendência a trabalhar com a história, na extração e transformação consciente
de “minérios” históricos e sua absorção em processos e materiais musicais não
historicizados, reflete a necessidade – que trago dentro de mim há muito tempo – de
inserir organicamente “verdades” musicais, para poder abrir o desenvolvimento
musical em graus diferentes de familiaridade, para ampliar seu desenho expressivo e
seus níveis perceptivos (BERIO In: DALMONTE, 1988, p.57).
No período Barroco da Música Erudita Ocidental, uma elaboração estética
trouxe à Música um sentido semelhante ao da linguagem verbal, sendo tal objeto
conhecido como teoria dos afetos. Elementos musicais baseados em motivos, escalas,
modelos rítmicos, arpejos e outras figuras de estruturação musical representavam
objetivamente
estados
emocionais
(raiva,
medo,
paixão,
por
exemplo)
ou
acontecimentos (morte, choro, purificação, etc.) inspirados na Retórica da Antiguidade
Clássica (BUELLOW In: SADIE, 2001). Para que houvesse comunicação através destas
figuras de linguagem, era necessário educar musicalmente as pessoas para que pudesse
haver a compreensão, naturalmente. A partir do século XVII, a retórica do discurso
musical seguiu um percurso particularmente voltado a questões de estética e sonoridade,
desligando-se das expressões características da teoria dos afetos, tornando a
subjetividade o elemento semântico preponderante do discurso1. Hans Joachim
Koellreutter (1915-2005), musicista de fundamental contribuição para o cenário musical
brasileiro do século XX, expressa sua concepção sobre a linguagem da Música:
Escrever sobre música é extremamente difícil, porque a idéia musical como tal não
pode ser descrita por palavras da linguagem comum. A idéia musical é autônoma e não
pode ser descrita pela linguagem do dia a dia, a não ser por meio de metáforas, tropos
e analogias, ou seja, por palavras tomadas de empréstimo de outras áreas. Música não
"sobe" nem "desce", não "pergunta" nem "responde", não "chora" nem "ri". Música é
som e só pode ser descrita, em última análise, por meio de sons, isto é, por meio de
signos sonoros e musicais. (KOELLREUTTER, 1989)
Dessa forma, uma característica fundamental da Música como linguagem é estabelecer
sua comunicação através de signos próprios, e mesmo com o caráter subjetivo do
discurso, elementos semânticos acumulam-se através de um processo criativo que se
sedimenta ao longo da história, ampliando os horizontes da linguagem e influenciando a
percepção musical dos indivíduos. Estes, por sua vez, apreciam a Música através de
suas experiências musicais, sendo assim, o conhecimento pessoal torna-se necessário
para a compreensão da Música, sem o qual não haveria interpretação nem linguagem,
assim como na idéia de signo presente na Semiótica.
1
A análise musical fenomenológica é uma ferramenta para racionalizar e lementos da música e a forma
com que o ouvinte reage a elas através de seus estados emocionais, sendo assim, busca uma realização
objetiva da interpretação subjetiva. (KOELLREUTTER, 1989)
2
A MÚSICA POPULAR NO CENÁRIO NACIONAL
O termo Música Popular surgiu no século XIX para distinguir, em princípio,
uma manifestação cultural voltada a pessoas sem instrução musical, sendo considerada
de menor valor artístico do que a Música Erudita (MIDDLETON; MANUEL In:
SADIE, 2001). À parte tais julgamentos de valor2, a Música Popular constitui a
produção musical mais significativa da atualidade, sendo sua natureza estética mais
propícia às necessidades históricas, sociais e culturais de nossa época, além de permitir
um contato musical por parte de indivíduos que nunca tiveram acesso instrucional à
Música.
Embora alguns autores não concordem, a distinção entre Música Popular e
Erudita é amplamente utilizada sob diversas situações, mesmo com a obscuridade que
permeia a conceituação das áreas em questão. Apesar do distanciamento entre estas
áreas-irmãs, elas sempre dialogaram ao longo da História. Compositores como
Wolfgang Amadeus Mozart (1767-1781) e Ludwig van Beethoven (1770-1827) fizeram
uso de temas provindos da Música Popular em várias de suas obras, e no século XX,
diversos compositores eruditos usufruíram de elementos musicais típicos da Música
Popular em busca de uma identidade, entre eles o jazz e a música regional. O oposto
também é encontrado, com o uso de temas atribuídos à Música Erudita em obras de
conotação popular3. Sob tal enfoque, Marcos Napolitano reforça que a Música Popular
tem origem na própria Música Erudita, sendo que a canção, uma de suas formações
musicais mais importantes, teve origem nos lieds de Gustav Mahler (1860-1911). Outra
evidência disto é o uso de estruturas musicais provindas da Música Erudita, como o
tonalismo, temperamento igual, uso de temas e formas musicais “arquiteturais” 4, por
exemplo.
Uma abordagem comum à definição de Música Popular considera seu vínculo à
popularidade e disseminação cultural, estabelecendo uma ponte com cultura de massa e
2
Tais hierarquias de categorias musicais existem em diversas culturas, não apenas na sociedade Ocidental
(MIDDLETON In: SADIE, 2001).
3
É interessante observar que para definir se uma obra musical pertence à Música Popular ou Erudita,
recorremos frequentemente à conotação social que permeia a obra em questão e seu compositor, ou seja, a
distinção entre estas áreas é melhor definida por sua significação social e histórica, e não a partir de
aspectos propriamente musicais.
4
Termo utilizado por Pierre Boulez (1925-) para descrever a forma musical como é concebida na música
tradicional do Ocidente (BOULEZ, 1995, p.182).
3
a mídia. É interessante observar que para o aparecimento da Música Popular midiática,
uma série de inovações tecnológicas foram necessárias, como a gravação, emissão de
rádio e televisão e outros meios para veículo de informações em massa (JUNIOR, 2006,
p.2), fato que direcionou seus rumos estéticos e musicais, originando caminhos distintos
dos elementos de estruturação e prática musical da Música Erudita.
A partir do pressuposto anterior, outro olhar considera o poder de manipulação
comercial que a Música Popular oferece, atendendo às necessidades do sistema
capitalista vigente na atualidade, fato que divide opiniões no meio musical. Enquanto
alguns autores atribuem tal acontecimento a um declínio do nível cultural, outros
reforçam que esta é um elemento cujo fim seria a afirmação criativa de identidades,
porém, trata-se de uma discussão mais política do que propriamente musical. Assim, a
Música Popular dificilmente torna-se objeto de estudo para músicos de formação
tradicional, pois estes dificilmente consideram que a modalidade musical em questão
possua um viés artístico, e sim comercial. Somando-se a isto, o repertório da Música
Popular não requer do instrumentista o mesmo tipo de conhecimento histórico e
execução musical que o repertório erudito, pois os elementos do discurso musical
baseiam-se em outros princípios5. Assim sendo, a grande maioria dos trabalhos
acadêmicos sobre Música Popular no Brasil são obras de sociólogos, antropólogos,
historiadores e outros pesquisadores da área de Ciências Humanas, o que resulta,
naturalmente, em uma produção de restrito enfoque propriamente musical.
Apesar disso, o atual cenário brasileiro é propício para a inserção da Música
Popular no meio acadêmico. Instituições tradicionais no ensino de Música realizaram
concursos públicos recentemente para a contratação de músicos especialistas nesta área,
e entre elas, temos a Universidade Federal da Bahia (UFBA – edital 15/2008),
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG – editais 129/2009, 130/2009 e
131/2009, Universidade Federal da Paraíba (UFPB – edital 35/2009) e a Universidade
Federal do Pará (UFPA – edital 130/2008 e 21/2009). Ainda, duas instituições
renomadas já possuem cursos de Música Popular: a Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO) e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sendo
esta última pioneira, implementando o curso em 1989. Dessa forma, espera-se que possa
5
Algumas práticas que podem exemplificar esta diferença: conhecimento de teoria musical, leitura de
partitura e execução de repertório erudito Ocidental são comumente vinculadas à Música Erudita,
enquanto aprendizado por audição (“tocar de ouvido”), elaboração de arranjos e leitura de cifras
populares são conhecimentos atribuídos à Música Popular.
4
haver grande contribuição à Música Popular, permitindo sua profissionalização através
da exigência por currículo e titulação em instituições de ensino e ambientes destinados à
prática musical, reconhecimento das habilidades peculiares à área como forma efetiva
de conhecimento, elaboração de métodos para Música Popular com fins pedagógicos e
de produção intelectual6 específica. Dessa forma, os futuros músicos da área poderão
aprimorar-se, adquirindo princípios importantes oferecidos pela formação em nível de
graduação, como o zelo pelo patrimônio histórico-cultural, a disciplina e a
racionalização de suas metodologias de estudo, historicamente atribuídas ao “talento”
por não haver uma formalização pedagógica:
A idéia de que o músico popular nasce de um encanto, de uma heróica e intensa
inspiração, de que ele não necessita de nenhuma técnica musical mais sistemática, ou
que essa técnica resulta diretamente daquela inspiração, não passa de um modo de
escamotear a realidade e a história da produção musical. Contribui para reproduzir o
‘mito’ da ‘simplicidade’ do músico popular. Isto é, colocá-lo em sua devida
‘inferioridade’. (ZAN, 2006, p.23)
Dessa forma, é imperativo que a Música Popular possua um espaço reconhecido como
área de conhecimento, pois mesmo estando vulnerável a influências significativas de
fenômenos extra-musicais (como a mídia, a indústria cultural e a política, por exemplo),
é inegável sua importância como manifestação cultural. Ainda, é possível reforçar que a
Música Popular constitui forte elemento para afirmação de identidade e tradição no
Brasil, valorizando sua autenticidade artística7. Em oposição, sua vertente européia foi
enfaticamente atacada por Theodor Adorno (1903-1969), pois de acordo com o autor,
sua produção baseia-se em “um cunho meramente comercial” (MELLER, 2007, 178).
MÍDIA VERSUS MÚSICA POPULAR
Mídia é o termo utilizado em Comunicação Social para definir meios de
comunicação que possibilitem o acesso à informação por um grande número de pessoas,
podendo ser estes as emissoras de rádio, televisão, revistas, jornais e a internet, entre
outros. Tal termo está frequentemente ligado a uma conotação pejorativa, sendo-lhe
atribuída uma idéia de manipulação das massas por parte de um grupo restrito. Assim, o
conceito de indústria cultural concebido por Adorno e Max Horkheimer (1895-1973),
6
Entende-se por produção intelectual as produções artística e bibliográfica. É fundamental que a área de
Artes não esteja restrita apenas a uma modalidade de produção; ambas devem ser valorizadas e
incentivadas.
7
Paolo Scarnecchia, musicólogo italiano, reforça o valor da Música Popular no Brasil, afirmando que esta
“é original, sendo o fruto de talentos semi-eruditos ou mesmo eruditos que trabalham com o reservatório
da tradição folclórica” (SCARNECCHIA In: WISNIK, 2004, p.219).
5
que versa sobre o tratamento da cultura no sistema capitalista, encontra-se comumente
associado à mídia. Assim sendo, a Música Popular, por ser um instrumento aplicável
neste contexto de forma eficiente, fica vulnerável a diversas influências extra-musicais
provindas de ideais capitalistas, e em especial, as canções populares, caracterizadas pela
complexidade de suas interfaces (VALENTE, 2009). Estas, por sua vez, possuem letra,
um elemento da linguagem verbal, tornando-se um forte instrumento de veiculação
midiática graças à sua objetividade. Desse modo, a força da linguagem verbal acaba por
deslocar os aspectos musicais da canção popular a um plano de menor atenção
perceptiva, levando a um questionamento sobre sua legitimidade como veículo de
expressão musical. O comentário a seguir ilustra uma visão sobre a canção popular no
meio acadêmico:
O caráter híbrido da canção, composta de letra e música, em vez de atrair para si o
olhar de estudiosos tanto das faculdades de Letras como das de Música, imputa-lhe, ao
contrário, o estigma de não ser objeto específico nem de uma, nem de outra. Assim,
enquanto os conservatórios, de orientação erudita, fecham as portas à música popular,
as faculdades de Letras só ocasionalmente aceitam projetos de teses e dissertações
sobre esse tema, desde que ele assuma um caráter comparatista que contemple,
obrigatoriamente, algum corpus estritamente literário. (MELLER, 2007, p. 171)
Assim sendo, a canção popular torna-se um elemento de difícil análise sob aspectos
musicais, uma vez que a linguagem verbal pode comprometer a percepção de eventos
musicais por parte do indivíduo, mesmo se a considerarmos um híbrido entre Música e
Literatura. Sob este aspecto, a Etnomusicologia torna-se um ramo do conhecimento
mais adequado para o estudo destas canções, pois considera de forma mais concreta a
influência de aspectos extra-musicais para o entendimento musical de uma obra.
Outra discussão que paira sobre a influência midiática na Música Popular é a
dicotomia Arte versus Mercado, referida por inúmeros pesquisadores e compositores,
entre eles Adorno, Humberto Eco (1932-), Caetano Veloso (1942-), Kurt Cobain (19671994) e Marcelo Camelo (1978-). O ponto central desta questão foca-se no limiar entre
a liberdade artística que o músico pode ter e a padronização estética oriunda da indústria
cultural, que visa à transformação da obra de arte em produto de consumo. Por se tratar
de dois mundos com filosofias distintas, os músicos populares dependentes do mercado
ficam sujeitos a modificar suas propostas musicais em favor de exigências políticas e
econômicas, restringindo sua autonomia criativa e artística. Porém, sob o atual cenário
tecnológico, com a acessibilidade de ferramentas para estúdio, edição musical e
divulgação da produção, entre outros, o músico poderá adquirir certo grau de autonomia
na realização de suas propostas artísticas, pois não mais dependerá de cumprir
6
exigências com produtores musicais ou gravadoras8. Entretanto, trata-se de uma questão
complexa que necessita de maior espaço para discussão.
FINALIZAÇÃO
Por possuir concepções favoráveis a sua aplicação na Mídia, a Música Popular
constitui um importante fenômeno cultural na sociedade atual, em especial as canções
populares, por permitirem interfaces que combinem o poder da linguagem verbal e a
utilização de aspectos musicais, entre outras. Porém, sob uma perspectiva musical,
encontramos certos “poréns” com relação a questões ideológicas provindas da área de
Artes, entre elas a restrição da autonomia criativa, ênfase em aspectos extra-musicais no
discurso (evidenciando a Música em segundo plano) e carência por trabalhos sob
enfoque musical. Assim, os músicos devem estar cientes destas questões, buscando
atuar de acordo com as especificidades de cada modalidade do fazer musical, sem
abster-se da produção musical que aparentar ser menos interessante. Quanto aos
profissionais da área de Comunicação Social, é interessante entender a concepção dos
músicos ao tratar sobre a Música presente na Mídia. Tal situação restringe o campo de
possibilidades musicais, uma vez que o produto final é a utilização da Música através de
enfoques exteriores a ela.
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8
Segundo Tatiana Lima, nos anos 1990, “as iniciativas independentes posicionadas na fronteira entre a
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