Artigo publicado em A Nossa Terra, 1-04-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo O fole do cacique A falsificação da história é a manipulação habitual dos embaucadores. Na Galiza temo-los até na música culta e pretendem convencer-nos de que nunca existiu. Eis senão as programações dos concertos que se celebram na nossa terra. Ou as obras que se estudam nas aulas dos Conservatórios. Excepto Carminha Burrana o resto é tudo uma feira -dixit o manda-mais da cultura. Falando de manipulação histórica o próprio nome da Galiza foi borrado do mapa; os seus reis destronados; o território arrebanhado; a língua convertida em filha da sua irmã menor; a cultura transformada em atraso e a música em aturuxo. Mas a falsificação mais pitoresca e ridícula da música galega é a dos roncos erguidos. Mistura de sado-masoquismo organológico, disciplina castrense e servilismo político em favor da destruição identitária -cultural e musical- dum povo. Os sonhos de grandeza dum iluminado ao que se lhe aparece o dinheiro da Xunta em grandes moreias para aniquilar o principal ícone da cultura tradicional galega. Logo vêm os Messias de turno a nos redimir dos males que eles mesmos nos inventam e tiram-nos as polainas para nos vestir pela cabeça, que deve ser a moda politicamente correcta, com as saias do progresso. E buscam em gravados antigos como justificar os seus lascivos gostos. A gaita de fole galega foi grosseiramente manipulada na sua essência orgánica para humilhar a nossa tradição popular. O passado está-se a falsificar para nos convencer de que a gaita de fole com os roncos de pé (um tanto libidinosa) é a autêntica gaita galega tradicional. No retábulo da Sacristia da Catedral de Tui vê-se um exótico gaiteiro con plumas. Por estar em sagrado não vou duvidar da veracidade histórica do celtismo ultramarino que tanta glória económica deu ao império do arrepiante sol que nunca dormia. Seria mesmo cómico ver uma bandada de gaiteiros com plumas e tapa-rabo deleitando ao virrei de Compostela nas romarias. Ou nas competições desportivas da liga dos roncos de pé. Para fazer o índio não precisam de informação nem turismo, basta-lhes com o regueirinho de dinheiro oficial. Entretanto, a Associação Ourensana de Folclore Tradicional que atende mais de trinta escolas, com centos de alunos de gaita de fole e percussão por toda a província de Ourense, teve que suspender as aulas porque a Deputação leva desde Outubro sem pagar-lhe aos professores. Parece que gastaram o orçamento em fazer uma nova gravação da banda dos roncos erguidos, com manipulados musicais de alta tensão percussiva, e contribuir assim para lograr descendência aos namorados principescos. Eis aí a imagem de farrapo e infla-gaitas que convém à nossa auto-estima. O fole do cacique não dá para pensar. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 15-04-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Urdideira musical Pedem-me que informe de gravações de obras de compositores galegos. Procurarei dar conta dos CDs que incluírem autores galegos vivos, e tiverem distribuição comercial. As edições privadas, institucionais e auto-edições não tem caso citá-las por estarem fora do mercado e não incidirem no processo cultural. Isto obriga a falar da industria discográfica galega e a política destrutiva da Xunta. As poucas tentativas de selos discográficos galegos foram sucumbindo por falta duma política cultural que garante transparência, competência em igualdade de condições, e apoio institucional à cultura galega. O mesmo papanatismo que demonstram na programação do Jacobeu ou no "Festival Internacional de Música de Galicia" -desprezando supinamente os criadores galegos- encontra-se em todos os estamentos de poder. Os nossos políticos bobeiam diante duma multinacional que lhes pede dinheiro para virem fazer-se uma foto, e ignoram as iniciativas galegas que criam cultura, fazem país e geram riqueza. E quem lhes faz compreender a estes pailães que apoiar os produtos culturais galegos não é repartir esmolas na sua freguesia nem organizar romarias, senão definir acções que prestigiem e favoreçam o consumo da nossa música e cultura dentro e fora da Galiza? Sem embargo aqui não existe o menor interesse pela nossa indústria cultural. Se uma indústria, que tão só em direitos de autor representou o 6'5% do PIB espanhol no 2003, carece duma política de fomento, promoção, investimento, e I+D, então para que nos serve o governo da Xunta? O recurso mais natural da Galiza, a sua música e cultura, só aproveita às contas de resultados de empresas forâneas. A política da Xunta consiste em que nós criemos a vaca para que mamem os de sempre. Mas por destrutiva que seja a política cultural, não podem impedir que a nossa música desperte interesse além nós. Como prova aqui vai uma referencia discográfica, o Concerto Fauno para Violoncelo e Orquestra de Rogélio Groba, gravado pela London Symphony Orchestra dirigida por Andrew Litton com Mats Lidström de Solista. O CD está publicado por Astrion -8800761- e contem ademais o Concerto para Violoncelo Opus 85 em mi menor de Edward Elgar, com os mesmos intérpretes. Também lhes recomendo un CD publicado por iniciativa do Concelho de Pontevedra -que bem deveria adoptar o lema de "Vila da boa música". Comemora o centenário da primeira gravação de música galega feita em 1904 pelo Coro de Perfecto Feijóo. Aires da Terra (Ouvirmos, VR0101). É un documento sonoro histórico com a deficiente qualidade técnica do seu tempo, mas ilustra o atraso que padece a Galiza na exploração dos seus recursos culturais. Em cem anos melhorou muito a técnica de som, mas seguimos igual, com os mesmos caciques, e ninguém urde o tear para criar o tecido da nossa indústria musical. -Obrigado, Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra 22-04-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Esquisitos e jupiterianos A não ser que sejamos uns extraordinários actores, é dizer, uns farsantes consumados, a imagem própria que projectamos cara a fora é sempre muito diferente da que nós mesmos percebemos. Bem sabemos que num cenário não transcorre a vida real, que é um espaço demarcado para evadir-nos do acontecer quotidiano e permitir o descanso psicológico. Podemos responder com riso ou lágrimas às emoções que sucedem no cenário, mas sabemos que isso é um parêntesis na realidade. A formação, experiência estética e cultural de cada um condiciona a resposta, mas também a qualidade da proposta artística e aqui é que intervêm as dotes de simulação de autores e intérpretes. No cenário os músicos devem transmitir ao público o conteúdo emocional da obra. E falando de obras mestras, os intérpretes geniais rara vez traduzem mais do que a metade do seu conteúdo, e um ouvinte entendido descodifica a metade da interpretação, sem contar as suas próprias interferências. É o ruído no processo comunicativo. É evidente que a vida real dos artistas profissionais tem de se contaminar pela actuação cénica, pelo menos em aspectos estéticos externos -atitudes corporais ou vestimenta-, como também se contagiam os espectadores. Sem embargo a contaminação mais habitual nos últimos dois séculos é ao contrário, da vida real do artista para as suas obras e interpretações -a Sinfonia Fantástica de Berlioz é consequência duma frustrada paixão amorosa do compositor-. A simbiose vida-obra ou arte-ética é pura ficção cénica, válida apenas como proposta reflexiva. A primeira condição do artista é a sensatez, ainda que simule uma tolemia continuada. Dalí era um grande fabulador de si mesmo, vendedor da sua própria glória, e interpretando seu papel até ao ponto de nos fazer crer que ele era a sua própria criação. A base formativa dum artista são as técnicas expressivas, que também lhe aproveitam no acontecer social e faz com que alguns o vejam diferente, mas não deixa de ser um tipo normal, frequentemente tímido, e até emocionalmente inseguro quando sai da cena. Júpiter, versão romana do grego Zeus, e depois transubstanciado no Deus Pai da Trindade Cristã, é uma alegoria da luz que rege as fontes da vida, física e espiritual. Iuppiter lucendix ou Deus do lóstrego são imagens dum acto criativo espectacular e, conscientes ou não, os artistas tendemos a ser jupiterianos. Uma perspicaz leitora, Sílvia, fez-me alguns comentários e concluiu com esta retranqueira frase: "é que os músicos sois mui esquisitos". De tanto sentir os raios, trovões e tempestades de Júpiter podemos cair na extravagância. Os ruídos da grandura dificultam a comunicação. Um artista "esquisito" -o contrário do "exquisito" espanhol- ainda que divino ou jupiteriano é um fracasso -ruído de coisa que se quebra. -Obrigado Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 6-V-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo A excepção musical galega "Uma sociedade que não é solidária com os seus artistas e científicos não tem futuro". É alentador observar este rescaldo de sensatez nas palavras da nova Ministra de Cultura, Carmen Calvo, na sua tomada de posse. Seria bom que prendesse no ideário político dos governantes galegos. A Semana do Corpus de Lugo celebra este ano quinze concertos que vão do 27 de Abril até ao 8 de Junio. Examinei o programa e não vi nenhum compositor galego ainda que sim há diversos intérpretes galegos ou residentes na Galiza. Perguntei a Víctor Carou, director artístico do festival, o motivo de tal incongruência e confessou-me que os artistas e mais as agências são muito cómodas e impõem os programas de turné. Só teve opção de escolher um reportório menos frequentado do habitual, como é o do século XX, porque o seu orçamento não dá para produções próprias ou impor programas. Também não me consta que na inauguração do Auditório do Conservatório Superior de Música da Corunha interpretaram algum compositor galego vivo, como corresponderia numa instituição educativa. E visto o programa do Festival Mozart deste ano, isso dos compositores galegos deve soar-lhes a antípodas selvagens. O estudo realizado pela SGAE sobre a programação das orquestras espanholas demonstra o nulo interesse que as duas orquestras sinfónicas galegas têm pelos compositores do seu entorno. Não sei se a Ministra estava a pensar nisto quando pronunciou essa frase e vai atalhar o problema de raiz, rejeitando os intérpretes que desprezam os compositores do entorno geográfico e temporal em que desenvolvem os concertos. É uma brincadeira de péssimo gosto que os intérpretes que estão a perceber salários e cachets dos orçamentos públicos galegos não ofereçam nos seus programas obras dos nossos compositores, tanto dentro como fora da Galiza. A Ministra promete uma lei de "excepção cultural" para proteger a indústria cultural espanhola da tirania globalizadora das multinacionais da aculturação. Mas quem vai proteger a música culta galega do supino desprezo dos intérpretes e das instituições que o permitem, toleram ou aliciam? Como a música culta espanhola está presente na Galiza e até por vezes muito bem representada, quando comprovo a eliminação dos autores galegos dou em pensar no separatismo espanhol excludente que pratica a Xunta por meio de subsídios a instituições e intérpretes galeguicidas. Se numa democracia o povo tem os governantes que merece porque é livre de os eleger, vai ser coisa de acreditar nas palavras de Laxeiro quando lhe dizia aos amigos: "Que país mais jeitoso e que caralho de gente". Eis a excepção musical galega. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 13-V-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Músicas e letras galegas Os alunos do Conservatório Superior de Música da Corunha estão a esmolar livros e partituras para ter algo que pôr nas estantes da sua inane biblioteca. Um centro superior com uma biblioteca sem livros é como um oceano sem peixes, sem vida, uma cloaca. Doutra banda os bibliotecários estão a considerar um "ataque à cultura" que os autores dos livros vivam do seu trabalho, e pedem que os criadores renunciem aos seus direitos para custear as bibliotecas de empréstimo. E ainda há editores que apoiam este autoricídio carpetovetónico apelando para a democracia. Assim nos vai. Um disparate idêntico à criminalização social que padecemos os compositores por pedir o que nos reconhece a Lei. Parece que aqui os carros vão pela direita, e não como em Inglaterra, por puro capricho dos condutores. Ninguém pensa que é um mandato legal para regulamentar as relações dos indivíduos na sociedade e dar segurança rodoviária e jurídica. As leis especificam quais são os nossos direitos e deveres. A liberdade de expressão, e a criativa ainda mais, só se garante na segurança jurídica. Como editor do Corpus Musicum Gallaeciae ofereço gratuitamente aos Conservatórios todas as novidades que publico, sempre que eles se comprometam, num acordo de Claustro, a não permitir o uso de cópias ilegais nas aulas, ou seja, a cumprir a lei de os carros circularem pela direita. Até hoje nenhum a quis cumprir, mas logo queixam-se-me da penúria para encontrar obras. Se persistirem nessa delinquência ainda menos vão encontrar. O pagamento por empréstimo, segundo a lei comunitária, corresponde ao leitor, que para isso aforra comprar o livro. Os bibliotecários poderiam propor que em casos extremos fosse a instituição titular da biblioteca quem assumisse esse pagamento num orçamento especial. Porém pedem que sejam os autores quem renunciem aos seus legítimos direitos. Parece pouco ético ser solidário por conta do dinheiro de outrem, como se alguém propusesse resolver a questão reduzindo-lhe o salário aos bibliotecários. Um despropósito. Mas porque não entramos grátis no cinema, nos transportes públicos ou no futebol? que isso sim que seria quantitativamente mais democrático. E por falarmos de letras, a Associação Galega de Intérpretes de Música culta vai comemorar o Dia das Letras Galegas com um concerto de Lírica Galega, com obras de Juan Durán, Margarita Soto e Marcial del Adalid. Poucos compositores para um acto simbiótico e necessário que deveria ter multiplicidade ao longo do ano. O mundo da música, as letras e as artes em geral têm de confluir mais neste país maltratado pela asneira política. O concerto é no dia 18 de Maio na Sala de Câmara do Palácio de Congressos da Corunha. Canta a nossa extraordinária soprano Teresa Novoa acompanhada ao piano por Pedro Roque. Já está na hora de as músicas e letras galegas circularem de lei. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 10-VI-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Oppius postumum Já diz a doutrina evangélica que ninguém é profeta na sua terra, e como aqui temos tantos papa-missas não é estranho que o opus magnum destes tartufos seja o desprezo do próprio para realçar o alheio mas, isso sim, sempre com o nosso dinheiro. Ai está o programa de música "Xeración 2000+4" do Conservatório Superior de Música de Vigo com o patrocínio de Caixa Galicia. 9 concertos ao longo deste mês de Junho nos que figuram 23 compositores e 27 obras, mais um programa surpresa. Tem até uma estreia em Espanha porém não há uma só obra de compositor galego. É a retórica habitual do menospreço por elevação para humilhar nove séculos de história da música culta galega. Opus nigrum do manual de usurpador cultural. Não é casual nem anedótico, é um facto sistemático contra da música culta galega. As instituições educativas, políticas, financeiras e religiosas aniquilam subtilmente a nossa cultura. O sibilino "bilinguismo harmónico" que apregoa o vice-rei de Compostela não é mais que o permanente esmagar da nossa identidade, reduzindo-a a mero folclore pitoresco. Tenho escrito aqui de tantas programações de concertos a ignorar os nossos compositores que já parece um opus perpetuum, mas a insistente cooperação destrutiva que mostram alguns profissionais da música é patológica. Caja Madrid coopera na sacralização musical, esta vez com uma tournée do 11 ao 15 de Junho pelas catedrais galegas. A Grande Missa KV 427 de Mozart com intérpretes de muito marketing para impressionar os pasmarotes políticos; e onde mencionar os compositores galegos se perceba como blasfema. É curioso o percurso das catedrais: Tui, Ourense, Lugo, Corunha(!) e Santiago. Corunha, sim, ainda que não tem catedral, mas Vigo, a cidade mais grande da Galiza, não. Subtilezas coloniais. Um de tantos opus horribilis da música em Vigo é a insistente campanha dum jornal de grandes opus pouco musicais, aliciando aos vizinhos no incumprimento da lei que regulamenta a remuneração dos autores, por usar as suas obras nas festas. Pretendem convencer a sociedade que as vítimas somos os verdugos e que todos têm direito a viver a costa do trabalho dos autores menos os próprios criadores. As Comissões de Festas não terão ânimo de se lucrar mas os intérpretes que tocam na festa, os electricistas, técnicos, montadores, e até os cregos, nenhum faz a festa de balde porque todos vivem do seu trabalho. E se lhes parece cara a tarifa dos autores pois que prescindam da música e amenizem a festa com sermões e saltimbancos. As leis, beneficiem ou prejudiquem, estão para se cumprir. Aqui nem de mortos lhe reconhecem aos compositores galegos o seu trabalho. Vai ser coisa de não catalogar as obras pelo número de opus senão como oppius postumum. Já o disse a doutrina evangélica: pelo seu opus os conheceredes. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra: 17-VI-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo O número pitagórico A música, como o seu nome indica, está vinculada às musas, quer dizer, ao espírito. Mas foi já na antiga Grécia que estabeleceram os seus fundamentos matemáticos considerando a música, junto com a aritmética, geometria e astronomia, como uma rama da ciência por excelência, a Matemática ou Quadrivium escolástico; e afastada da gramática, retórica e dialéctica do Trivium. A música é pois essencialmente dedutiva, abstracta e expressável em números ainda que os compositores usemos um sistema de grafado que disfarça os números e os subtrai à vista. Pitágoras, há dois mil e quinhentos anos, desenhou o primeiro instrumento musical científico, um monocórdio provido dum cavalete movível, para estudar o fenómeno físico-harmónico. O monocórdio permitia dividir a longitude da sua única corda em sucessivas partes iguais. Desse modo demonstrou a existência dos sons secundários ou parciais cuja frequência é múltipla da do som fundamental que o gera. Quando uma corda tensada é desviada do seu ponto de repouso tende a voltar para ele mas a própria força leva-a à posição contrária e assim sucessivamente num movimento oscilatório ou vibracional. Além disso nesse percurso centrípeto a longitude da onda vai-se fraccionando seguindo a sequência dos números naturais. Essa gama de sons que envolvem a fundamental denomina-se Série Harmónica ou Hipértonos. A partir daí representou os intervalos que relacionam as notas da escala mediante razões de números inteiros. E logo concebeu o universo como esferas cristalinas em movimentos concêntricos a produzir os sons da escala musical. Era a música das esferas, música mundana ou também música celestial. Dois milénios depois Galileo ainda foi queimado pela religião da ignorância por proclamar que a Terra é esférica. Centos de volumosos tratados propuseram múltiplas formas de achegar a física à praticabilidade dos instrumentos. O tempero dos instrumentos modernos é já um conceito intelectual que faz abstracção das leis físico-harmónicas. O temperamento igual, consagrado por J.S. Bach no "Cravo bem temperado", divide a oitava em 12 semítonos iguais, é dizer, convenientemente desafinados. A música, inclusive a polifonia, era melódica, linear, unidimensional, mas com o temperamento igual surgiu a verticalidade, a matéria sonora dos acordes. Isto foi um grande avance mas reavivou o discurso da tradição, da memória, do ser. Jacobo, um leitor gaiteiro, aponta-me que o maior atentado contra a gaita de fole é o abandono da escala natural, na qual todas as notas do ponteiro eram consoantes com os hipértonos do ronco. É óptima para instrumentos com nota pedal ou bordão, mas é impraticável quando se junta com instrumentos temperados. A solução vai ser ter duas gaitas, a natural para a tradição e a temperada para o folque urbano moderno. Pitágoras também formulou que deus é um número. Foi assassinado. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 24-VI-2004 O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Um sorriso aliciante No princípio era o verbo se alimenta. tempo. O alvorecer instantes antes de incompreensão. silêncio, onde tem o seu berço a nada e todo o Era o alicerce que sustenta as ideias e concorda o discursivo da alquimia. A perfeição do caos ser reduzido aos princípios racionais da No silêncio é que tudo se forja. As emoções, os sentimentos, as paixões, tudo é lá, no estado rudimentar de um novo ser; como ideias força a mover as polés da vontade. Em todos os arcos há dois pontos de apoio, onde repousa a tensão formal da sua estrutura. Princípio e fim, alfa e ómega de todas as coisas. É preciso situar-se no cume para ter uma perspectiva equidistante e manter o equilíbrio dos fundamentos. No arco da cultura o silêncio é a génese mas também a morte. Tudo nasce no sossego primigénio e se desenvolve num tempo evolutivo até ao cimo. Ali começam os anjos da cultura a impor o politicamente correcto silenciamento paulatino da inteligência para obrigar a calar. Eros e Tânatos na eterna luta da criação e a obscuridade, da cultura e a ignorância. A cultura é a domesticação do animal para o transformar em pessoa mas o silêncio destrutivo dos guardiães sociais não tem limite e nalgum partido político, como o de Carminha Burrana, já alcança a desfaçatez de proclamar o sacrossanto "direito à ignorância". Ou a persistente campanha dos meios de comunicação da seita do opus dei contra da propriedade intelectual para submeter a liberdade de criação. É evidente que a defesa dos seus inconfessos interesses precisa dum razoável número de indivíduos incultos, mesmo nos órgãos de poder. O silêncio não é o vazio, nem a ausência de som. É tão só um estado calmo no que nenhuma fonte sonora supera o nosso limiar de atenção. O silêncio está cheio de sons, de ideias, de pensamentos, vivências, sentimentos, anseios, promessas. Em fim o silêncio está cheio de nós mesmos e nele é que o ego se expressa. Pelo contrário o vácuo sonoro absoluto é inquietante porque nos obriga a escutar a solidão, as nossas vísceras, os sons internos do nosso corpo, e isso, se não tens o hábito de escutar, gera aflição. Todos fogem do silêncio como se do "rigor mortis" se tratasse, e refugiam-se no barulho da vida para afogar as vozes do seu espírito. Os lugares públicos mais concorridos são aqueles onde só se pode falar aos gritos, e mesmo com monossílabos. Quanto mais barulho há no ambiente menos espaço resta para pensar, reflectir, ponderar ou meditar, e aí os indivíduos perdem grande parte da capacidade de análise ou de crítica, adquirindo o conceito de massa a sua mais genuína acepção: largo conjunto social que constitui uma comunidade não organizada, sem solidariedade real. Mas como um sorriso aliciante, naquele primigénio silêncio que transpassa a alva, de toda a nada conformada foi a música criada. E para nos impingir, o cavaleiro Dom Quixote viria aqui dizer: Onde música houver, coisa má não há-de existir. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 1-VII-2004 e difundido com permissão do autor. O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo O Satânico Ofício É um dado adquirido que as vacas produzem leite de mais qualidade escutando música de Mozart. Nenhum outro autor estimula as úberes bovinas. Nem sequer as harmonias do divino J.S.Bach lhes fazem cócegas. Também é um facto comprovado que a práctica da música na infância desenvolve as mesmas conexões cerebrais que o raciocínio matemático. Vicenzo Galilei (1533-1591), compositor e teórico que nos seus livros refutava as ideias do fundamento matemático natural da musica, ensinou a tocar o órgão e o alaúde ao seu filho Galileu nascido em 1564. Aos dezasseis anos Galileu Galilei já demonstrou que a frequência oscilatória dos pêndulos é independente da amplidão do seu movimento, e inventou um aparelho para que os médicos pudessem medir com exactidão o pulso dos doentes. A partir disso Christiaan Huygens, matemático, físico e astrónomo holandês, publicou em 1658 um pequeno trabalho intitulado "Horologium" de onde deriva a palavra relógio, e no qual descreve pormenorizadamente a construção de relógios de pêndulo. Aos vinte e cinco anos Galileu foi nomeado professor da Universidade de Pisa em reconhecimento das suas extraordinárias qualidades matemáticas. Actualmente existem experimentos para gerar sobre-dotados em matemática que se baseiam na prática de instrumentos musicais a idades precoces, inclusive antes de cumprir o primeiro ano. Por outra banda Beethoven, no seu Tratado de Harmonia, afirma que aqueles que não dominem os segredos da harmonia musical antes dos oito anos já pouco podem fazer na profissão. Vem a dizer que a música há-de ser como a língua materna e portanto deve adquirir-se antes da formação completa do cérebro. A música é a expressão mais formosa da linguagem matemática e a precoce formação de Galileu propiciou esse espírito cientista que tanto incomodava os seus contemporâneos, incapazes de duvidar dos dogmas da ignorância. Galileu Galilei sofreu dois processos do Santo Ofício em 1616 e 1633 por contradizer a Igreja de Roma. Demonstrar que a Terra não é o centro do Universo e que o mundo celeste não é perfeito nem imutável valeu-lhe ser queimado em vida, ainda que só o torturaram com queimá-lo vivo se não apostatava da ciência. Diz a lenda que ao retractar-se das afirmações sobre o movimento da Terra ainda disse "Eppur si muove!" (No entanto, move-se!). Mas pudera ser que isso fosse dito por Giordano Bruno em 1600, ao ser conduzido a fogueira por ensinar a teoria de Copérnico na Universidade. Em 1992 João Paulo II disse que os teólogos cometeram erros na condena de Galileu mas não reconheceu os erros da Igreja ao considerá-lo herege até hoje ou manter toda a sua obra no Índex de livros proibidos por mais de duzentos anos. Tal vez a sua infalibilidade ainda pensa que o Vaticano é o umbigo do universo. A abstracção matemática da música culta galega também desestabiliza os indivíduos submetidos a dogmas, por isso põem tanto ardor em escondê-la. Mas quais harmonias excitam as úberes dos herdeiros do Satânico Ofício? © 2004 by Rudesindo Soutelo Os artigos de 2003 estão recolhidos em "O Bardo na Brêtema, 2003" publicado por Arte Tripharia. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 8-VII-2004 e reproduzido aqui com permissão escrita do autor. O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Carta aberta a Vossa Excelência Excelentíssimo Senhor, Um ano mais, com o protocolar respeito, está a celebrar-se o pomposo "Festival Internacional de Música de Galicia" ainda que este ano, acaso por ser jacobeu, tem um brilho algo mais cinzento, de resíduo sólido incombustível, de restos mortais. É habitual na política cultural do seu partido político fazer solenes declarações propositadas mas de conteúdo vácuo. Dizer na apresentação que este festival "conseguiu converter-se num referente das grandes citas culturais europeias" não sei se é demagogia pailana, desfaçatez descomunal ou um desprezo supino da cidadania galega que paga este disparate com os seus tributos. Dezoito programas mais cinco repetições. Dezassete concertos em Compostela mais um em Vigo, Ponte Vedra, Corunha, Ferrol, Lugo e Ourense. Só um programa não se dá em Compostela, o da Orquestra de Câmara Galega que inclui a única obra de um compositor galego vivo. Vai ser que o Apóstolo é tão antigalego como a Conselharia de Cultura, a programação das Orquestras e Bandas de Música do país ou as gaitas da Real Banda de Ourense. Seria muito pedir-lhe que fizesse públicas as contas do Festival e ainda as de Cultura em geral? A democracia não é só perguntar-nos de quatro em quatro anos a quem lhe renovamos o salário. Auditar as contas da Cultura oficial talvez desmoronasse o mito de gasto elitista e pudéssemos saber quem são as elites que vivem por conta do nosso esforço, e aos intermediários do caciquismo cultural. Porque a cultura não dá votos, senão o dinheirinho que circula por conta da cultura. Os seus assessores musicais seguramente lhe dizem maravilhas do Festival e da política cultural do seu Governo, com as que todos os anos responde as minhas cartas. Agradeço o interesse que põem em convencer-me de que a Galiza é o pais de Alice. Mas eu sei que Vossa Excelência não é parva, leva mais de cinquenta anos demonstrando uma extraordinária inteligência política para agradar a gregos e troianos, e sabe muito bem como se acaba com a cultura galega. Exaltar o alheio para menosprezar o próprio. Mais um ano, com o mesmo protocolar respeito, estou a denunciar a deliberada manipulação do facto musical galego, a política galeguicida que Vossa Excelência alicia ou como mínimo permite. Um ano mais a esmagar a inteligência galega mantendo a gestão cultural nas mãos dum zote que já é celebrado em todo o globo terráqueo pelas suas esquisitas burrices, até o ponto de ser conhecido com o bem pouco honroso apelativo de Carminha Burrana. Como será a coisa que até tenho nostalgia daquele espírito dos "XXV anos de Paz", ainda que foram "a puro ovo". E, transpondo a carta que enviara aos compositores no 15 de Janeiro de 1964, planifique agora a montagem de grandes concertos que exaltem, por meio da música, o fecundo período criativo da Galiza durante os "XV anos de Pax Fraguiana". E, se os seus louvadores têm dificuldades para identificar os compositores galegos de hoje, posso oferecer-lhes a colecção Corpus Musicum Gallaeciae. Agradeço a atenção prestada por Vossa Excelência e permita-me a despedida com esta exortação: A nossa língua é mundial e os nossos compositores também. Programe a nossa música. © 2004 by Rudesindo Soutelo Os artigos de 2003 estão recolhidos em "O Bardo na Brêtema, 2003" publicado por Arte Tripharia. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 2-IX-2004 e reproduzido aqui sob licença do autor para Arte Tripharia. O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Os fios da música O etnomusicólogo Peter L. Manuel, professor do CUNY Graduate Center da Universidade de Nova Iorque, passou por Madrid na sequência duma investigação sobre a problemática dos direitos de autor nas músicas populares e convocou-me no Café Central para falar desses fastidiosos assuntos legais que tanto incomodam a boémia artística, até que o montante económico os faz reflectir. É claro que as músicas de tradição oral são de domínio público em tanto que se mantêm na pura oralidade, mas o que acontece com as interpretações, recolhidas, arranjos, transcrições a pentagrama, publicações de cancioneiros e CDs? Nos nossos Conservatórios ensina-se a ler e interpretar a música mas nada dizem do seu código de circulação. Como se nas auto-escolas só ensinassem as técnicas de condução e mecânica do automóvel e nada dissessem das normas legais que regulamentam o tráfico. O direito de autor é uma matéria imprescindível na formação dum músico, seja profissional ou amador, porque toda a sua actividade se baseia no uso de propriedades intelectuais, próprias ou alheias, e tem de observar as normas legais do mesmo modo que exigirá que se observem quando deva receber o seu cachet ou o seu salário de professor. As leis europeias reconhecem direitos a todos e cada um dos que intervêm no processo criativo. A melodia popular original é em domínio público e qualquer pessoa pode ir buscá-la pelas congostas do país até dar com ela, mas se nos servimos do trabalho doutras pessoas -publicação, interpretação ou transcrição manuscrita- então é preciso a permissão dos autores desses trabalhos, ainda que a melodia original continue a seguir em domínio público. A partir da melodia original todos podem fazer livremente a sua versão mas não assim a partir dum cancioneiro ou uma gravação de outrem porque já é uma transformação do original e tem um autor proprietário. O anacronismo formativo dos nossos Conservatórios leva ao desprezo mais absoluto da propriedade intelectual, e chega a converter os intérpretes nos principais inimigos da criação musical porque participam em roubos da propriedade alheia, apoiam campanhas contra o colectivo de compositores que pretendem viver do seu trabalho, colaboram no extermínio da nossa música em favor das forâneas prejudicando a indústria e a economia do país. A ignorância leva-os inclusive a desprezar os seus próprios direitos de intérprete. Também é curiosa a coincidência de interesses entre as multinacionais da indústria fonográfica, que vão caminho do monopólio absoluto por via de fusões e concentrações, e mais a direita política. Ambos apontam para a supressão das entidades de gestão dos direitos de autor em nome do livre mercado. Mas detrás disso está o objectivo inconfesso das multinacionais de estabelecer a sua lei sem controles e aniquilar os pequenos competidores nacionais, obrigando os autores a passar pelo seu aro e impor as suas tarifas directamente às TV, rádios, discotecas, cine, locais públicos, etc. Aos políticos preocupa-lhes a independência económica dos autores que se traduz em liberdade criativa e insubmissão ao poder. Mariano Rajoy já ameaçara com uma lei para debilitar a SGAE e nos submeter. Por fortuna a malheira eleitoral livrou-nos deste perigoso autoricida que confunde a malha com a palha, algo habitual nos pailães que desconhecem a língua própria do seu país. Palha malhada para botar-se a dormir é do que precisa este político gárrulo ou chainhas, ainda que ele é tão esquisito que diria "cheinhas", como se estivesse a falar do boas que estavam as centolas. O paradoxo é que os inimigos da direita e do capitalismo globalizador sejam os melhores aliados do sistema que combatem quando aliciam a piratagem para acabar com a SGAE. Os subtis fios do bonifrate operam milagres e quando as sociedades de autores percam o controle até a melodia original vai deixar de estar em domínio público. Quem move os fios da música? © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota de Arte Tripharia: Já está disponível a edição com todos os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 9-IX-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Requintada fragrância Rudesindo Soutelo No mês de Agosto observei que as notícias de música de algum jornal mudaram substancialmente os titulares. Parece que agora a consigna é transmitir uma sensação de absoluta normalidade na programação da música culta galega. Uma amostra: A Voz de Galicia titulava no dia 9 de Agosto "Los compositores gallegos protagonizan Música en Compostela", e no dia 27 "La Sinfónica de Galicia estrenará 25 obras en su nueva temporada". Com estes titulares deve estar exultante o Vice-rei de Compostela, e daí que respondesse a minha "Carta aberta a Vossa Excelência" com uma supina raveeira. Desta vez sentou-lhe tão mal a minha missiva que nem pediu aos seus assessores musicais a protocolar folha de mentiras com que todos os anos tratava de me convencer do bem que nos vai. Ele próprio me manifesta por escrito a sua absoluta discrepância, e para não gerar dúvidas faz-mo em castelhano. Pelo menos fica claro que não falamos a mesma língua. Os titulares criam mais opinião que o corpo da notícia, mas se o que diz o titular não aparece nem se explica no texto então existe uma clara intenção manipuladora da opinião. A música culta galega está a viver um fecundo período criativo, apesar do absoluto desprezo que mostram as instituições. Existe uma acção coordenada para silenciar toda expressão diferente da cultura oficial. A isso se lhe chamava repressão mas desde que o raposo está a guardar as galinhas temos de lhe dizer Amem. O compositor que não se submeta à Pax galeguicida pode criar mas perde o direito social à existência. Eis a solene estultíce da regedora de Vigo: concluiu que a cultura é deficitária e portanto o Auditório deve orientar-se para as reuniões de negócios. Este vai ser o resultado de governar encomendando-se ao Cristo da Vitória. Manter a estes incultos sim que é deficitário. Este ano a Asociação Galega de Compositores celebra o seu XII ciclo de concertos. Quatro Domingos consecutivos no Museu de Belas Artes da Corunha a partir do 12 de Setembro, às 12 horas. No primeiro concerto o pianista António Queija Uz interpreta obras de Adalid, Durán, Soto Viso, Ivánovic Barbeito, Balboa, Vara e Lecuona. O 19 de Setembro Genaro Fernández interpreta também ao piano as obras de Montero, Vázquez Casas, Soutelo e Cambeiro. No 26 de Setembro será o Grupo Instrumental Século XX que dirige Florian Vlashi junto com a mezzosoprano M. José Ladra quem interprete as obras de Soto Viso, López García, Pérez Berná, Pereiro e Cuevas. E o 3 de Outono o Duo Eugeny Moriatov (violino) e Irina Moryatova (piano) tocam obras dos já clássicos Adalid, Gaos e Quiroga. Noutros anos estes concertos repetiam-se em Ferrol mas como prova do bem que nos vai, desde que o PP manda na cidade, suprimiram o ciclo. Tão bem nos vai que a Rádio pública Galega, que grava todos os concertos, nega-se a pagar os direitos que estabelece a lei. Portanto eu vejo-me na obriga de lhes proibir gravar, arquivar ou usar quaisquer das minhas obras até pagarem todo o que devem aos autores galegos; porque aos de fora sim que lhes pagam. Esta proibição pode ser secundada por outros autores e editores, já que o ofício de compositor se fundamenta na dignidade e não nas dádivas do poder. Sou consciente de que as minhas obras podem desaparecer dos concertos subsidiados e dos CDs institucionais, ou mesmo que as pressões obriguem a imolar esta secção, mas eu não estou à venda. Pois bem, nem os compositores galegos protagonizaram "Música em Compostela" nem a Orquestra Sinfónica de Galicia vai estrear 25 obras. Porquê se titula assim? A colheita cultural destes XV anos de Pax Fraguiana tem uma requintada fragrância de persistente decrepitude con notas de velhice e gosto senecto. Um tanático bouquet galeguicida para abutres e corvos negros. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota de Arte Tripharia: Já está disponível a edição com todos os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 16-IX-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema A minha música de Manuel María Rudesindo Soutelo "Não sei como agradecer tanta tenrura" Foi a voz morna do seu canto singelo o que mais aliciou a minha sensibilidade musical. Na sua poesia de suaves tonalidades e sons agarimosos transcende um firme compromisso de defesa da dignidade do poeta, da sua cultura e do seu povo. A minha natural timidez não permitiu que me achegasse a Manuel María até há poucos anos, quando tive a ousadia de lhe enviar a minha obra para coro a cappella "Lábios de sabor a mar", com um texto próprio. Isso propiciou várias conversas e algumas cartas que aumentaram a minha admiração não só pelo poeta senão também pela sua extraordinária qualidade humana. "Não sei como agradecer tanta tenrura" Convidado por Alejandro Finisterre fui dar à tertúlia do Café Comercial de Madrid onde se reúnem, o último Sábado de cada mês, os poetas e intelectuais galegos do Grupo Bilbao. Ali conheci Borobó, Sabino Torres -primeiro editor de Manuel María-, Xosé Farinha Jamardo, Vicente Araguas, Fermim Bouza Álvarez, Manuel Pereira Valcarcel, Xosé Soto, Carmen Blanco Romero, e muita gente nova que como eu escutavam com devoção. No ano 1999 os veteranos da tertúlia propuseram continuar a revista Loia, fundada por Antón Patiño, Xosé Manuel Pereiro, Manuel Rivas, Lois Pereiro e outros galegos coincidentes em Madrid e cujo último número saíra em 1978. Pedi participar como compositor e concebi um projecto de doze peças curtas para homenagear os meus amigos de letras, com a Gaita de fole como instrumento expressivo. O propósito, em consonância com a revista, era criar um repertório de música culta para duos de Gaitas de fole, e explorar uns recursos que podem abrir caminhos novos tanto à música como ao instrumento, ainda que corria o risco de ser anatemizado por violentar o status de ícone popular e tradicional. Assim nasceram os dois primeiros duos: "Borobó" e "Manuel María". "Não sei como agradecer tanta tenrura" A revista não foi adiante e publiquei os dois duos no Corpus Musicum Gallaeciae. Falei com alguns gaiteiros para ver de oferecer aos dedicatários esse presente sonoro mas nenhum aceitou o desafio, e até agora não tenho notícias de terem sido interpretados em concerto. É curioso que a editora receba muitas petições destas partituras, mas tão-só dois exemplares foram para a Galiza. Já não se sentia com forças mas quando lhe pedi criar um novo livro, para inaugurar uma colecção em galego português, de primeiras ainda me deu esperanças e confessou-me que esse era o futuro. Manuel María era um incondicional leitor do Bardo na Brêtema, e na sua imensa generosidade, sempre que podia, assistia aos concertos onde se programasse a música culta galega. Eu confiava em vê-lo o próximo Domingo 19 no Museu de Belas Artes da Corunha onde as 12 da manhã estreiam uma obra minha, e desde aqui quero brindar essa primeira audição do "Prelúdio da Montanha Mágica", homenagem a Thomas Mann, ao amigo ausente. Sei que a escutaria com agrado. Não é possível falar de Manuel María sem ter presente a companheira de "tantos dias usados em comum, tantas horas de plenitude" e berço de tantos versos. Saleta, musa de toda uma geração da lírica galega, é a essência de Manuel María, por esse motivo cito o primeiro verso do seu livro A Luz Ressuscitada, para lhe expressar, com as palavras que ele dedicara a Saleta, o meu imenso agradecimento a ambos. "Nao sei como agradecer tanta tenrura". © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota de Arte Tripharia: Já está disponível a edição com todos os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 23-IX-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema A psicofonia de Compostela Rudesindo Soutelo Sabíamos que que as paredes têm ouvidos e até olhos, mas agora também têm voz e mesmo com orquestra acompanhante. Parece que no Conservatório Superior de Música das Palmas as paredes cantam, e os vigilantes nocturnos do centro levam meses escutando vozes, pianos, fagotes, violoncelos, percussões, mas quando vão lá onde soa a música não há ninguém. O curioso é que só o fazem de noite quando os habitantes naturais do prédio não estão presentes para escutar as lôbregas cadências. Diz-que naquele lugar foram assassinadas centos de pessoas pelas hordas militares do excrementíssimo general, e antes houvera um convento onde se praticaram enterramentos estranhos. Característica comum a outras "casas assombradas" onde se produzem fenómenos poltergeist, que traduzido quer dizer espírito brincalhão. O extraordinário é que esses talvez espíritos das vítimas do fascismo espanhol se expressem com música, e não precisamente com a de defuntos. Os investigadores do fenómeno deveriam analisar essas músicas nocturnas porque é provável que sejam menos necrófilas que as produzidas durante o dia nas aulas. No quadro de pessoal dos Conservatórios abundam os cadáveres e essa competência desleal com o mundo dos mortos pode ser a causa que provoque o sonambulismo dos espíritos melómanos, que seguramente reclamam aos músicos de dia que lhes ofereçam um repertório mais vivo, mais actual, que os ilustre dos avanços estéticos, e dos novos compositores que fazem ir para a frente a música, a cultura e a sociedade. Cadáveres abundam também na política, e alguns são tão esquisitos que não abandonam o poder nem de mortos. Não seja que as vítimas estejam à espera deles para lhe ajustar as contas. Nesta vida têm tudo atado e bem atado, ainda que por vezes precisem de virar o casaco, mas na outra quem sabe se a justiça será verdadeiramente cega. Diz-que o poder, ainda que seja pequeno e passageiro, corrói a ética, e por vezes também a estética. Quando as paredes dos Conservatórios galegos comecem a cantar as ladainhas que aprendem dos tribunais de oposições alguns surpreender-se-ão com as misérias musicais deste país. Exercer o poder para vingar algum facto passado, ocultas antipatias ou invejas profissionais por cima dos valores puramente pedagógicos que demonstra o candidato e algo próprio de medíocres e inseguros. Como é possível que professores com anos de docência nos Conservatórios não aprovem as oposições e sim o consigam os seus alunos?. A ética do sistema que tal coisa permite também está corroída. Ainda mais corroído parece estar o não nato Auditório de Vigo. O novo estudo de viabilidade insistiu em que Vigo não demanda cultura para justificar um Auditório dessas dimensões e portanto orientaram-no para congressos e reuniões de negócios. Coincidia com outro estudo da Junta que há um ano já irritara profundamente a cidadania com o mesmo insulto. O mais corrosivo é que Dona Corina Porro, alcaide de Vigo, concordasse com esse despropósito. Vigo, a cidade mais grande da Galiza, e a sua comarca somam uns 600.000 habitantes e não tem uma só orquestra sinfónica profissional, um pouco longe dos 20.000 habitantes por orquestra que tem Alemanha. Também é certo que para desprezar a nossa música culta não fazem falta Orquestras nem Auditórios, eis o Festival Are More de Vigo que nem o nome tem galego. Corroídos sim devem estar os cérebros dos esclarecidos técnicos que tal disparate concluíram mas, como quem paga manda, de seguida se prestaram a "corrigir as expressões desvirtuadoras" e fazer viável o inviável. Porque Vigo não pode ter um Auditório público como o de Compostela, o da Corunha ou a faraónica Cidade da Cultura? Porque o Auditório de Vigo precisa de financiamento e gestão privada? A "Perly" do PP é que não precisa de paredes que lhe falem porque para isso deveria ter ouvidos e não só orelhas. Com o Mausoléu da Cultura que está a construir o Vice-rei em Compostela já não vamos necessitar de criar música, bastará com peregrinar lá a prostrarmo-nos ante o túmulo da nossa identidade -vexada, violada e ultrajada- para ganhar as indulgências culturais plenas. Entretanto o Vice-rei anuncia uma outra eternidade, a sua própria, que se vai impregnando nas paredes institucionais para se transformar na macabra psicofonia de Compostela, que com tanto para-normal ao seu arredor já não precisa de orquestra acompanhante. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota de Arte Tripharia: Já está disponível a edição com todos os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 30-IX-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Política musical anacolútica Rudesindo Soutelo Vai-se celebrar do 1 ao 3 de Outono a IV edição do Certame provincial de Bandas de Música no Palácio da Cultura de Ponte Vedra, com vinte e seis agrupações participantes. As Bandas de Música são uma resposta da sociedade civil às necessidades de um ócio ou lazer criativo que aproxime à nossa juventude duns modelos de qualidade de vida fundamentados na disciplina e o esforço que confere o estudo dum instrumento musical, assim como a convivência socializadora que implica a prática colectiva da música. Deste enorme colectivo de jóvens músicos está a sair um bom número de extraordinários intérpretes que só vão poder sobreviver na emigração, porque as Bandas de Música profissionais, tanto municipais como militares, já foram eliminadas quase por completo, e por outra parte tão-só duas Orquestras Sinfónicas profissionais em toda a Galiza também não lhes vão ajudar. Lazer criativo é aquele que desenvolve o espírito inventivo favorecendo as capacidades artísticas e a competência emocional do indivíduo, ao mesmo tempo que lhe proporciona um agradável prazer. O lazer criativo, que não devemos confundir com o instinto animal procriativo, ocupa de tal modo a mente que já não resta espaço para prazeres passivos. O mito de que a prática desportiva protege das drogas se desmorona ao ver grandes estrelas com problemas de adição. Por contra, não vi nenhum profissional da música culta dar em drogas, porque a música gera tal prazenteira actividade mental que qualquer outro estímulo resulta ocioso. Outro mito é o que relaciona a droga com certas músicas porque aí a música não é mais que um decorado sonoro, uma escusa. O défice democrático do nosso sistema político, sem mecanismos para a participação activa da cidadania na política quotidiana dos municípios, impinge ao associativismo vizinhal para fazer ouvir as necessidades da sociedade. Na província de Ponte Vedra esse movimento é muito forte e nele é que está a base organizativa e mais a explicação desta eclosão de Bandas de Música. Nalguns casos já há segundas Bandas e agrupações infantis para acolher o crescente número de músicos, e mesmo começam a aparecer as primeiras tentativas de constituir Orquestras Sinfónicas ligadas à estrutura social das Bandas. Mais de setenta Bandas de Música na província de Ponte Vedra e nem uma só Orquestra Sinfónica profissional dá a medida da profunda incultura dos que nos administram, ou talvez as consignas galeguicidas dos seus partidos não lhes permitem perceber nem interpretar a demanda social. A mágoa é que o repertório não acompanhe, e mesmo algumas Bandas de Música parecem ser antigalegas. É certo que é difícil encontrar obras editadas dos compositores galegos, mas quando existem tão-pouco as compram senão que as pirateiam e assim se vai destruindo o futuro. A Rádio Galega, emissora pública, também contribui para esta destruição da identidade galega pressionando as Bandas para não programarem obras editadas porque eles gravam as interpretações de modo ilegal, sem licença dos proprietários das obras. Mas essa ilegalidade abrange toda a música para Banda, editada ou não, e em língua vulgar isso tem um nome: roubar ao autor. Também aqui a consigna é galeguicida porque vai só contra os compositores galegos; aos de fora sim que lhes pagam. Como editor do Corpus Musicum Gallaeciae tenho-me oferecido a algumas Bandas para regularizar os seus arquivos ilegais negociando umas condições especiais com as associações de editores de música. Não tive resposta mas os directores e responsáveis das Bandas de Música devem reflectir sobre o gravíssimo dano que estão causando à criação musical, ainda que com certeza não vão reagir até se verem diante dum juiz. E qualquer compositor galego ou mesmo um cidadão ou membro da própria Banda, de forma anónima, os pode denunciar. Se este fosse um país normal, os políticos tomariam medidas contra a destruição da nossa música e da nossa cultura, por exemplo impedindo o uso de partituras ilegais nos actos subsidiados con dinheiro público como o Certame de Ponte Vedra ou as numerosas actuações pagadas pelas distintas administrações. Mas a política musical dos nossos administradores é um pensamento solto, fora de sentido, sem ligação com o resto. É a quebra do contexto, é dizer, uma política musical e cultural anacolútica. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota de Arte Tripharia: Está disponível a edição com os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 7-X-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Músicas subliminares Rudesindo Soutelo A música é uma ferramenta de extraordinária capacidade sedutiva que actua directamente sobre os mecanismos emocionais do cérebro. Daí que seja usada como suporte na transmissão de todo o tipo de mensagens. Mas não todas as mensagens são evidentes ou explícitas. Precisamente a música é a melhor maneira de mascarar os conteúdos menos evidentes, implícitos ou mesmo subliminares, para os introduzir directamente no subconsciente sem passar pelo filtro da vontade do indivíduo. Uma adolescente cantora ou talvez cantadeira usamericana, Britney Spears, numa canção de muito êxito entre a nossa juventude diz com voz doce e sugestiva "Hit me, baby, one more time" que vem a ser "Golpeia-me outra vez, baby". Essa frase, aparentemente inocente pelo meio da canção, quando é escutada uma e outra vez, como se faz com a música, chega a se interiorizar como uma máxima filosófica e serve de soterrada justificação moral duma violência omnipresente nesta sociedade e que causa demasiadas mortes. Há uma indústria da perversidade que tira proveito da música, da sua capacidade hipnótica, para deslizar maldosamente conteúdos anti-sociais numa população adolescente emocionalmente imatura. Ética globalizadora para subverter a capacidade crítica dos futuros adultos. Mas a música é puramente abstracta, e inócua, por isso sustenta qualquer intencionalidade nas mensagens sobrepostas. O que diferencia uma língua de outra não são as palavras, senão a música, que gera as estruturas fonéticas e conforma a morfologia e sintaxe de cada idioma. Por isso se pode assegurar que a língua usada na Rádio e TV galega, ou a que empregam os pailães políticos que nos governam, não é a nossa senão um grosseiro dialecto do espanhol. Basta ouvir o seu discurso plano com melodias e cadências rudes, sons ceceantes e sotaque seco, tão longe da harmoniosa fala dos nossos velhos. Mas não pensem que essa manipulação da música da nossa língua é inocente, como também não é casual a desnaturalização das gaitas de fole que tão generosamente patrocina o nacionalismo excludente espanhol. Ambas estratégias formam parte da mesma consigna destruidora da identidade cultural galega. A Real Banda de Gaitas de Ourense (RBO) é um ícone subliminal destinado a socavar vagarosamente os alicerces da nossa cultura tradicional. Tem uma vistosa parafernália castrense que atrai muito a gente simples. As percussões marciais e de alta tensão usadas desvirtuam os sentimentos naturais da nossa expressão. As suas gaitas de fole são um invento disparatado, uma aberração organológica, e o repertório deturpa a tradição para além de introduzir peças insubstanciais ou alheias à nossa cultura. E toda essa extravagância justifica-se com uma pantomima de peregrinas teorias etnográficas. Este despropósito não é só a tolice dum medíocre megalómano que se pensa o redentor da música galega porque recebe um regueiro de dinheiro público. José Luís Foxo, director do invento, não é mais que um bonifrate nas mãos da perversidade política que nos governa. Para a gente comum este processo não atinge o nível mínimo que desencadeie uma resposta crítica. Daí que se prestigie a RBO dum modo sibilino, apresentando-a sempre ao abrigo de instituições e personagens públicos de muita notoriedade como Fraga, os Príncipes, o Papa, o enterro de Cela, a visita à zona zero de Nova Iorque, e os saraus oficiais da Junta pelo mundo adiante. Tudo isso sem contar o desmedido afã de Foxo por espetar na história uma inúmera quantidade de desgraciosas músicas que compõe para todo bicho famoso que se lhe aproxime. Este descomunal aparato de contrapropaganda da cultura galega custa uma fortuna, um pouco menos do que nos custa o separatismo linguístico oficial. Mas a última cacicada subliminal que se lhes ocorreu é construir a sede da Escola da RBO encostada à sede do Conservatório Profissional para assim a converter, pela porta traseira, numa extensão do ensino oficial da música culta. Agora desde a Conselharia pressionam para que a disciplina de Gaita de fole do Conservatório se leccione na sede da RBO simulando que está homologada para conceder títulos oficiais. Inclusive, saltando toda legalidade, a RBO quer impor os professores. Entretanto a Deputação de Ourense retira-lhe subsídios à Escola de Música Tradicional. Pois isso: "Golpeia-me outra vez, baby" © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 14-X-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Melífluos xenofílicos Rudesindo Soutelo Abrira o dia e desde aquele outeiro o horizonte limpo da nossa música definia-se numa linha de precisos contrapontos e vagarosas cadências. O rumor do mar preenchia os fundos sonoros do espírito e a clara voz dos bardos se espalhava no espaço óptimo do sereno. Os Conservatórios de Música já perderam tão incorrecto nome e nas suas aulas os mortos eram tão-só uma referência histórica para enfiar o presente. Nas salas de concerto, igual que nas exposições de pintura, só había autores vivos com os que se podia conversar das coisas quotidianas. As grandes obras do passado foram enviadas aos museus sonoros, onde uns empregados públicos vestidos de pinguim se afadigavam em repetir obsessivamente as velhas músicas. Os festivais de música culta deixaram de ser reuniões de melómanos xenófilos para se transformarem em mostras da extraordinária criatividade dos nossos compositores e atrair ouvintes doutros países que vinham cá experimentarem as delícias da nossa música, para depois a difundirem pelo mundo. Os direitos de autor gerados pela nossa música em todo o mundo desenvolveram muito mais a economia do país do que antes o fizera o dinheiro dos nossos emigrantes. A indústria musical e as Feiras de instrumentos, partituras e acessórios conseguiram grande prestígio internacional. As orquestras profissionais, os grupos de câmara, solistas e demais profissionais da música multiplicaram-se em número e em concertos, encomendando obras novas aos nossos compositores para as incorporarem no seu repertório habitual. As emissoras de rádio e televisão promoviam a nossa música, especialmente nos intercâmbios com emissoras doutros países. A nossa língua e cultura abandonaram o isolamento suicida que nos impunham as consignas políticas de submetimento a culturas e línguas alheias. A nossa autoestima foi estimulada. O país alcançara a maturidade política e os usurpadores da vontade do povo foram todos eles abandonados no seu tremedal. Entretanto o mar continuava a encher de som cadenciado e compassado o espírito da gente que atinge o seu rumor. Um sossego de furiosa calma que nos abre as portas de um outro entendimento. Uma percepção subtil que nos mergulha na essência da nossa própria existência. A presença do mar indicava que aquilo não era o Frankfurt do Meno, nem a sua Musikmesse. Era um mar enérgico que deitava sua bravura no manto arenoso das praias. Um mar de vida persistente. Mas de súbito o mar deteve o harmonioso movimento e retirou-se ao seu nível mais baixo, permanecendo calmo, preguiçoso, inerte. A ausência do rumor do mar era inquietante. Todos observavam em silêncio o singular fenómeno mas ninguém ousava dizer coisa alguma. A reunião política que se celebrava mesmo à beira do mar continuava o seu acontecer sem prestar atenção alguma ao extraordinário da situação. O Bardo achegou-se a um povo de marinheiros próximo para pesquisar qualquer informação que esclarecesse tão estranho comportamento do mar. Encontrou-se com um mutismo absoluto, mesmo os jornalistas permaneciam em silêncio. A superfície do mar era totalmente lisa como um espelho de cristal mas a ausência do rumoroso som causava grande desassossego. Caminhando pelo peirao do porto observou que um leve movimento se estava a iniciar e fixou os olhos num ponto de referência para comprovar que não era uma ilusão óptica. O movimento ia em aumento, e a frequência das ondas era claramente mais rápida do normal. A gente permanecia absorta, sem pronunciar palavra nem reagir perante o receoso rumor mareiro que os envolvia. O nível do mar crescia velozmente e, sem atrever-se a enxergar o horizonte, tomou da mão a sua acompanhante gritando-lhe: rápido, fujamos daqui! Ainda fatigado o Bardo acordou sobressaltado, e por experiência sabia que aquele não era um sonho comum. Um sonho com o mar é muito difícil de esquecer. Então tomou consciência de que algo muito perigoso podia estar a acontecer à nossa música culta. O Bardo sentiu-se abafado pela densidade da Brêtema que tudo o envolvia e compreendeu a causa do grave perigo anunciado: nela pairavam demasiados melífluos xenofílicos. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 21-X-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Are More Expensive Rudesindo Soutelo As elites culturais dum país são aquelas que fazem evoluir a sociedade com as suas propostas e reflexões. Na Galiza carecemos de massa crítica para conformar uma elite não só cultural, senão também política e até económica ou empresarial. Começou o Quinto Festival de músicas alheias Are More. Seiscentos mil Euros por dezanove programas de agência e uma produção teatral duma obra de Oscar Wilde. Demasiado dinheiro expatriado para tão poucas nozes e menos vozes. Um disparate económico para dar gosto a uma melíflua elite de xenofílicos. Também é fatalidade que nenhum dos artistas contratados tivesse a amabilidade de incluir compositores galegos nos seus programas, ainda que só fosse em agradecimento dos generosos cachets que vão receber. E ninguém da organização reparou que em todo o festival não figura uma só obra dos nove séculos de música culta galega. Vai ser que o Director artístico foge do localismo que cultivam os grandes festivais internacionais de música impondo obras e compositores a tão afortunados intérpretes. E os patrocinadores também não têm nada a dizer? Porque tanto as empresas privadas como as instituições financeiras ou políticas têm a obriga de velar pela rendibilidade do seu dinheiro e nem um só cêntimo desse exorbitado orçamento se emprega na nossa música. As marcas comerciais ou institucionais patrocinadoras do Are More devem saber que ficam ligadas a um culturicídio que lhes vai passar factura. O patrocínio não é uma esmola que se dá a uma sociedade indigente, senão uma obriga ética, dos agentes económicos do país, de retornar à sociedade uma parte dos benefícios que ela própria gerou, e fazê-lo em forma de investimentos que desenvolvam a sua capacitação e identidade cultural. O patrocinador busca um canal de comunicação distinto do anúncio publicitário, para vincular a sua imagem a actos e actividades que o público geral identifique com um compromisso social de defesa da sua cultura nos distintos âmbitos de convivência dos indivíduos. Quando só se investe em "glamour", como é a proposta do Are More programando divas em gira sem qualquer nexo com a cultura que as acolhe, no subconsciente colectivo da sociedade vai-se instalando uma silente distância preventiva com as marcas patrocinadoras. E essa resistência passiva vai condicionar os hábitos de consumo. A proverbial burrice dos nossos governantes não sempre é real, também sabem fingir a sua protocolária quota parte para não envergonharem o inominável homem do Sacocheo. A permanente ostentação de incultura dos políticos galegos de partidos de obediência mesetária, tem uma funda raiz de vingança histórica iniciada pela Rainha Católica, e que o cronista Zurita definiu como "Doma y castración del Reyno de Galizia". Aí deram começo os nossos séculos obscuros e ainda permanecem no espírito dessa casta política que odeia a cultura galega, e mesmo qualquer coisa distinta da aculturação do submetimento. A estratégia destes cinco séculos foi sempre o desprezo por elevação e isso é o que hoje nos propõe o Are More, atafulhar-nos com afamados intérpretes internacionais para que qualquer reivindicação da nossa música semelhe uma nimiedade chauvinista. A única elite que temos na Galiza é a do controlo mesetário na política, religião, finanças, educação, agro, pesca, meios de comunicação e praticamente em toda a actividade produtiva ou criativa com a consigna de evitar que a nossa língua e cultura confluam no berço natural portugalego. É uma elite monolíngue de pensamento único que ainda acredita na frase do Catecismo patriótico espanhol quando afirmava que Espanha foi colocada providencialmente por Deus no centro do mundo. Uma bola intragável como a do Concelheiro de Cultura, Inácio López-Chaves, que diz que o Are More encontra-se "numa situação privilegiada no panorama musical europeu e mesmo mundial". A presunção é a vaidade pailã da estultícia que só se compra com dinheiro. A importância dum festival de música mede-se pela capacidade de gerar criatividade no seu entorno e inseri-la no contexto internacional. Nos cinco anos de Are More não se encomendou nenhuma obra nova aos compositores galegos, nem produziu nada digno de ser apresentado nesse "panorama mundial". Tão só programou um desfile de divos. Quantas emissoras de rádio ou TV se interessaram por transmitir o festival? Nem sequer as espanholas. Os patrocinadores devem dizer algo, mesmo se o fazem por imposto revolucionário, para evitar ser considerados de antigalegos. Direi-lho em inglês: We Are More Susceptible, They Are More and Better, They Are More Expensive. We Are More Lumpen. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 28-X-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Estapafúrdios musicais Rudesindo Soutelo É aliciante ter leitores que reflectem sobre as teimas do Bardo na Brêtema já que me permitem fazer algumas digressões e estapafúrdios musicais. Uma leitora, Maria José, faz-me uma amável sugestão sobre as minhas referências ao passado histórico recente. Considera ela que é necessário superar esse passado, que a maioria dos leitores não conheceu a ditadura e essas alusões podem resultar extravagantes. Também aponta que as circunstâncias culturais mudaram tanto que não cabem paralelismos. Outro leitor, Jacobo, fala-me do "brutal filisteismo dos sectores sociais dominantes", do processo de arrabalização e colonização cultural dependente da grande metrópole, do significativo silêncio desses sectores perante o fomento da barbárie, que parecem promover a alcoolização massiva e prematura da mocidade. E relaciona tudo isso com a perda do canto, sim, das canções. Noutro tempo era habitual que em qualquer excursão de estudantes se cantasse um extensíssimo repertório. Agora os estudantes já não sabem nem cantar. Algumas personagens deste nosso presente estão tão implicados no passado mais lôbrego da história recente que manter o silêncio nos converte em cúmplices dos seus crimes de lesa-pátria. A nossa música, a nossa cultura, e também a nossa democracia foram vilmente esmagadas durante decénios, que na Galiza foram séculos, e, quando já lhes fraquejaram as forças, os nossos verdugos viram o casaco e alçam a bandeira da concórdia para evitar de devolver ou pagar tudo aquilo que nos roubaram. E aí seguem as raposas a guardar das galinhas. Maurice Ravel compôs uma obra para voz e piano, premiada e estreada em Mosca no ano 1910, que se titula "Chants populaires". A primeira das Canções conhece-se como a espanhola e, há um par de anos, um musicógrafo madrileno escrevia dela, no programa dum recital de canto, este magro comentário: "La española es la despedida de unos muchachos que van a conocer la dureza de la guerra." Esse canto não é espanhol, é galego. E ainda que começa assim: "Adeus meu hominho adeus / já qui te marchas pra guerra / não t'olvides da prendinha / qui che queda ca na terra", a dura guerra que os aguarda desvela-se na seguinte estrofe: "Castelhanos de Castilha / tratade bem aos galegos. / Quando vão, vão como rosas, / Quando vêm, vêm como negros." Nas zarzuelas do século XIX abundam as referências insultantes aos galegos e que tanto faziam rir ao subsidiado público da Vila e Corte. Era uma moda secular inaugurada pela indesejável e galeguicida Rainha Católica que ainda hoje permanece. Aquela sociedade tão esquisita precisava das nossas mulheres para criar os seus filhos, mas para eles as galegas eram tão-só amas de cria, algo assim como uma vaca urbana para poder mamar quente. Talvez isso foi o que inspirou, quando viajava pela Galiza, àquele comissário fascista que escreveu a letra de "Mi vaca lechera". No prólogo de "Cantares galegos" queixa-se Rosalia que toda Espanha considera a Galiza como a esquina mais desprezível da terra, un cortelho imundo!! E acrescenta que só se lembram de nós para nos humilharem ainda mais. Não é preciso remontar-nos ao passado para comprovar que essa música continua aí, a zoar-nos nos miolos, e interpretada pelos continuadores do sacro filisteismo de obediência mesetária, com a única missão de destruir a nossa identidade cultural. A língua e mais a música são os principais objectivos destas raposas que nos vigiam. Quando os estudantes deixam de cantar, as excursões convertem-se em passeios submissos, maleáveis, permeáveis à aculturação. Considerar que hoje temos uma maior cultura que os nossos avós é um autoengano decadente como uma Sonata de Outono. Aquela cultura era a das próprias vivências desenvolvedoras do espírito. Agora temos uma informação cultural infinitamente maior mas sem vivências espirituais que nos desenvolvam como indivíduos. O que temos é massa, mas massa acrítica, e as raposas já aprenderam que botando-nos de comer grãos transgénicos conseguem muito mais do que atemorizando o galinheiro com mortes indiscriminadas e semeando o país de tumbas e campos de repressão. E no nosso caso, subsidiando mais da metade da população, amuam toda a música. Um povo que não defende a sua música, e sobretudo a música da sua língua, é um povo escravo. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 4-XI-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Ars transgressoria Rudesindo Soutelo O acto criativo é sempre uma transgressão do modelo, um avanço para além do permitido, um quebranto da norma. Sem transgressão não há progresso, tão só imobilismo e isso é a destruição da criatividade, a morte do espírito. A luta dos indivíduos pela sobrevivência é já uma transgressão, mas a transgressão criativa é a que faz panicar os espíritos acomodados porque carecem dum referente delimitador de contextos, e tudo o relacionam com a violência e a barbárie. Na sua paranóia chegam a corromper interessadamente o significado das palavras de modo que confundamos a utopia com o disparate, o caos com a desordem ou a anarquia com o desgoverno. A transgressão tem diversas formas de expressão e a eleição que façamos é o que nos distingue, mas a comunicação do acto criativo precisa duma linguagem que ao ser transgredida pode dificultar a descodificação da mensagem. Assim quando a transgressão é muito explícita ou radical, gera no comum dos utentes uma incómoda sensação que pode manifestar-se tanto com uma admiração snobe como com um rejeitamento feroz, mas só uns poucos vão reflectir sobre o alcance da transgressão e tirar conclusões. Num primeiro contacto, se não é um experimentado profissional ou estudioso, é muito difícil identificar todos os elementos que conformam a proposta transgressora e portanto é impossível de decifrar e compreender as múltiplas leituras possíveis da acção criadora. Sempre que assisto à estreia duma obra minha presto muita atenção aos comentários que essa primeira audição suscita e analiso o grau de controvérsia. O mais desolador é a unanimidade, a favor ou em contra, porque isso indica que é uma obra inútil, de leitura simples facilmente reconhecível a través de outras obras, que não precisa nem suscita reflexões, que não gera cultura, enfim, é uma perda de tempo, uma obra desnecessária. Nas culturas tradicionais a transgressão está sempre implícita, mas ao de leve, sem saltos nem rupturas, e constantemente ligada a uma utilidade práctica. Na actual cultura popular urbana, ainda que simule modernidade e inovação, a transgressão é praticamente nula porque os modelos não são gerados pelos criadores senão pela indústria globalizadora do lazer que explora propostas reiterativas de negócio massivo e alienante, em conluio com o poder político. Toda transgressão precisa duma funda reflexão prévia por parte do criador, de modo que a sua proposta seja assimilável e finalmente compreendida por um número significativo de potenciais utilizadores. Provocar é muito fácil, violentar também, mas para transgredir para além da norma é preciso reflectir sobre o código de comunicação de jeito que se assegure a recepção da mensagem. Outra coisa é a interpretação ou leitura que cada um faça dessa mensagem e depende sobretudo da informação e cultura do indivíduo. A transgressão criativa nem sempre se faz acrescentando a complexidade da linguagem artística, também pode ser por simplificação ou redução. O arcadismo -retorno ao modelo clássico da natureza- com Metastasio a frente louvando o prazer e a vida material, é uma transgressão da complexidade barroca que na sua decadência já se transformara numa mera ostentação intelectual. O classicismo de Haydn e Mozart é a transgressão do prédio musical culminado por Bach. A Arnold Schönberg cabe-lhe a honra de derrubar os históricos muros da música tonal e abrir todo um mundo de possibilidades a expressão culta da música ocidental. Ainda que para muitos isso foi uma ruptura violenta o certo é que essa transgressão era já uma realidade em Wagner -Tristão e Isolda- e mesmo em Brahms. Assim como Kandinsky articulou a linguagem abstracionista no "Ponto e linha sobre o Plano", Schönberg construiu um novo código de comunicação para dar coerência à linguagem expressamente atonal. É o sistema dodecafónico, onde as doze notas em que dividimos a oitava carecem de hierarquias. Um avanço da recuperação semântica da anarquia, o caos e mais a utopia. Depois de um ano publicando esta secção senti a necessidade de aflorar aos leitores anónimos que até agora não se manifestaram. E daí que transgredisse a linguagem no artigo "Melífluos xenofílicos" buscando reacções diferentes das habituais e por primeira vez recebi parabéns e impropérios por igual. Neste caso fiz a transgressão imitando um arcadismo naif acorde com a expressão melíflua dos inimigos da música culta galega, das sebandijas do subsídio político galeguicida, dos programadores e exaltadores da maravilhosa música estrangeira para silenciar a própria. Enfim, a voz melíflua dos culturicidas. Obviamente a leitura superficial, ou mesmo melíflua, também eram possíveis. Como já disse, na expressão musical e artística em geral toda norma que não possa ser transgredida é desnecessária. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 11-XI-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Ética e estética Rudesindo Soutelo A ética e a estética parecem ir sempre por caminhos divergentes, mas nenhuma estética é possível sem os alicerces da ética. Em 1939, Manuel de Falla, com sessenta e dois anos e uma saúde já precária, decide abandonar Espanha depois de conseguir safar-se da presidência do Instituto de Espanha que lhe impuseram por decreto e sem consulta prévia. Era o único compositor de prestígio internacional que ficava naquele "país dos ananos", e o regime fascista precisava de símbolos culturais para lavar a sua imagem criminosa. O assunto era tão grave que foi tratado nas mais altas instâncias políticas. Havia que subornar a Dom Manuel para que colaborasse com o regime permanecendo em Espanha e assim, descartados outros paupérrimos cargos de prestígio como dirigir o Real Conservatório Superior de Música ou a Real Academia de Belas Artes de São Fernando, concluíram que o melhor era nomeá-lo Conselheiro Geral da Campsa (Monopólio do Petróleo), o qual lhe permitiria dispor dum elevado salário sem fazer nada. Quando Falla recebeu a notícia indignou-se tanto que acelerou a sua marcha, mais bem fugida, para a Argentina, onde morreu em 1946 numa extrema penúria económica. Em 1948, Isaac Díaz Pardo, com vinte e oito anos, era um pintor de êxito que expunha nas melhores salas de Madrid e Barcelona com grande sucesso de vendas. Aproveitar as possibilidades de medrar que lhe oferecia aquela Espanha era, nas suas palavras, uma coisa muito néscia "e estava fazendo-me merecedor dessa necedade" de maneira que decidiu abandonar a pintura e iniciar o renascimento de Sargadelos. Contemplar hoje a obra pictórica de Isaac Díaz Pardo, com esses delicados olhos de penetrante perscrutação que nos observam desde o aquém do quadro, leva-nos ao estremecimento do ego. Perdeu-se daquela um grande artista, maior ainda, como Falla, pela sua integridade ética frente aos que a escusaram em favor duma estética etérea. Um leitor faz-me notar a profunda incoerência da vida musical galega, onde existe uma notável actividade de concertos, um elevado número de Conservatórios e Escolas de Música, de Universidades, de Meios de Comunicação, e porém não há um só crítico musical em toda a geografia. Quando muito algum cronista social. As notícias de música nos jornais estão cheias de erros de vulto e "delicias" verbais. Assim um dia leio, em castelhano, que existe um instrumento chamado "Clavo", ou seja que o jornalista deve escrever às marteladas. Noutro dia um titular anuncia a actuação dum Trio de pianos quando em realidade se tratava dum veterano Trio com Piano -Violino, Violoncelo e Piano- e há cinquenta anos que dá concertos pelos cenários do mundo inteiro. Os nomes dos compositores sofrem de todo o tipo de transplantes, amputações ou mesmo transubstanciações, e não só nos de origem eslavo senão também nos de autores galegos. A ética informativa dos Meios galegos não dá para contar com um profissional da música que redija ou reveja as notícias musicais. A Rádio Galega tem na sua web uma base de dados da discografia galega que contém a informação por temas, títulos e intérpretes, desprezando supinamente os genuínos criadores da música, ou seja, os compositores. Essa é a ética de serviço das nossas instituições públicas, a mesma que lhes permite roubar aos compositores galegos os seus direitos económicos, mas sem que nenhum dos responsáveis da Rádio renuncie ao seu avultado salário, ou que emitam as cunhas publicitárias de balde. A estética do politicamente correcto não é mais que uma política do vazio esteticamente correcto, e baseia-se no cinismo do poder com total desprezo dos valores éticos. Essa estética da aparência não se passa de um vulgar glamour. As obras sociais das duas Caixas de Aforros galegas também participam dessa estética glamourosa da música culta que tanto promove a Junta. E nas suas programações ignoram sistematicamente a existência da nossa história, da nossa cultura e dos nossos compositores. As suas actividades musicais têm um peso social demasiado importante como para não terem uma ética cultural que desenvolva, valorize e difunda os nossos compositores, especialmente os novos. Isso é só questão de vontade, de compromisso com a sociedade que as sustenta, ou talvez simples inteligência, porque não precisa de investimento extra. Na Galiza a única estética com uma ética coerente é a da destruição da nossa cultura. Cinco séculos de "doma y castración" não conseguiram eliminar a nossa língua com a eficiência alcançada em tão-só "XV anos de Pax Fraguiana". O Vizo-rei e mais o seu conselheiro de in-Cultura devem ser os únicos que aqui sabem fazer as coisas bem à primeira. Sine etica nulla estetica. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 18-XI-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Sine musica nulla vita Rudesindo Soutelo Recebi uma proposta que me obriga a reflectir sobre algo tão óbvio como a disponibilidade da nossa música culta para ser interpretada em concerto. Amiúde repito aqui que temos uma riqueza musical importante mas logo os intérpretes dizem que não existem partituras. Há dez anos, fiz inúmeras visitas à Junta para explicar aos políticos a necessidade urgente de publicar o nosso património de música culta. Elaborara um projecto de edição das partituras complementado com a gravação de 99 CDes e dividido em duas partes, a primeira compreendia o património histórico enquanto a segunda se destinava aos compositores em activo. O propósito era fornecer à comunidade profissional o material básico de partituras e partes para que a nossa música pudesse ser programada e assim facilitar a sua integração no repertório internacional dos grandes intérpretes. Por outra parte os CDes teriam a função de mostrar a realidade sonora e, ao mesmo tempo, criar uma demanda profissional e também social da nossa música. A muitas daquelas visitas acompanhou-me Rogélio Groba, o compositor mais importante e prolífico de toda a história da música culta galega, uma instituição viva que se está a menosprezar desde o poder e mesmo desde a inveja profissional. Misérias políticas dum in-país. Naquelas infrutuosas visitas aos escritórios dos políticos conheci muitos repartidores de estampilhas. Eram cargos de contenção, políticos que despregavam as suas melhores dotes dilatórias e dissuasoras. Tão-só uma vez encontrei uma pessoa sensível e com vontade de levar adiante o projecto, Rubén Lois Calviño, mas uns dias depois Fraga remodelou o seu gabinete e tudo se perdeu. Convenci-me que falar de música culta na Junta era perder o tempo e há quatro anos comecei, com os direitos do Hino Galego, o Corpus Musicum Gallaeciae onde já vão publicadas um cento de obras. Os nossos compositores começam a ser conhecidos internacionalmente e a demanda da nossa música culta vai em aumento, mas curiosamente nenhum Conservatório, Escola, Biblioteca ou mesmo as Lojas de música galegas se interessa pelos nossos compositores. Os estudantes de música, e muitos dos profissionais, chegam a pensar que isso não existe na Galiza. E já vai sendo mais fácil escutar a nossa música na Alemanha que aqui. Todos temos direito a sonhar que vivemos num país normal, que nos governa gente competente e interessada no desenvolvimento cultural para progredir o facto económico e social. Mas ao acordarmos descobrimos que esses políticos também sonham com emudecer a nossa música e mais a nossa língua. Praticam um separatismo espanhol que lhes impede reconhecer a nossa cultura ou mesmo a nossa existência. Insistem tanto na evangelização musical deste território selvagem que já ofendem a dignidade. Como é o caso da parafernália mediática do Concelho de Vigo utilizando a Maria Bayo para que diga que o orçamento do Are More é uma miudeza e que o seu recital é muito patriótico por ter maioria de compositores espanhóis. Nos 30.000 Euros que cobrou por esse recital bem podia incluir algum compositor galego. Pois já não sei se os galegos é que não somos espanhóis ou que os organizadores dos festivais são todos antigalegos, ainda que o salário lho paguemos nós. As partituras já estão aí, só precisam de as comprar. Mas numa sociedade tão caciquilmente subsidiada como a nossa tudo é desleixo e esperamos a que nos las regalem. Ninguém pensa em comprar, quando muito em fotocopiar, ou seja, roubar aos compositores. É aqui onde o peixe se morde a cauda. A proposta que recebi é recuperar o repertório tradicional das nossas Bandas de Música em edições que se adaptem ao plantel instrumental das agrupações actuais. Peças tão conhecidas como "Festa na tolda" de Gustavo Freire são hoje pouco interpretadas por não haver materiais actualizados disponíveis. Mas quando uma editora de música publica obras galegas para Banda não consegue vender mais dum dez por cento a respeito das cópias ilegais que se utilizam. Algumas editoras tratam de abaratar custos rebaixando a qualidade dos materiais, mas ainda assim não conseguem recuperar sequer o investimento feito e afinal sempre acabam cancelando as edições. Uma edição de Banda, bem feita, exige uma elevada despesa. Assim vamos empobrecendo o repertório, e quando um editor actua contra uma Banda por uso de cópias ilegais ainda há estamentos públicos que aliciam a fraude, levando essas agrupações, e os directores, ao pagamento de elevadas multas. A Federação Galega de Bandas de Música também não está por ajudar na recuperação nem na criação de repertório galego, e não faz nada por erradicar as cópias ilegais. Uma irresponsável cooperação na destruição da nossa música, e sem música galega as nossas Bandas são meros instrumentos de aculturação. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 2-XII-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Mecânicas musicais Rudesindo Soutelo Há umas semanas houve em Madrid um protesto de intérpretes de música às portas dum teatro onde se estreava um musical sem músicos. Poupar os salários duma orquestra é um argumento económico mas também muito prático porque os intérpretes gravados não padecem doenças humanas. O play-back é a penúltima ameaça para os intérpretes profissionais da música. A próxima poderia ser a das aulas de Conservatório sem professores, e tecnicamente isto já é possível inclusive com uma maior interactividade de aluno-professor da que se dá em muitas aulas ao vivo. Para além disso evitaria aos alunos ter de aturar as neuroses dos intérpretes frustrados que se dedicam ao ensino. E também que a Deputação de Ourense fizesse o ridículo na selecção de professores de gaita, onde importa mais o número de filhos do candidato que a sua formação musical já que só lhe pedem acreditar o Graduado Escolar, ou seja saber ler e escrever, e falar um pouquinho de galego, ainda que com certeza também lhes serve o castrapo. Dirão-me que isto não tem nada de novo, que antes já foram os intérpretes profissionais expulsos das discotecas, esses templos da música embutida que aglomera a juventude em torno a um tumultuoso barulho. Também foram postos fora das emissoras de rádio, e dos cinemas, e até das igrejas, para os substituir, com notório êxito, pelos intérpretes mecânicos. As gravações permitem que a música chegue a toda a humanidade sem que essa humanidade tenha nunca manifestado qualquer interesse pela música. A música mecanizada converteu-se num elemento mais da mobília que guarnece a vida das pessoas para assim desterrar os perigosos silêncios reflectivos. Música decorativa, utilitária, adormecente ou mesmo alienante que ocupa os quartos emocionais e filosóficos da existência das pessoas. Qualquer indivíduo ouve hoje mais horas de música num ano que há dois séculos poderia ouvir em toda a sua vida, e a música gravada é um produto perfeitamente controlado em todos os seus parâmetros que permite o doseamento gota a gota para uma mais eficaz terapia de uniformidade e massificação. A famosa imagem do cão a escutar atentamente a grafonola, com a subliminar lenda comercial "A voz do seu amo", foi premonitória do acontecer social do século vinte, muito mais do que as profecias de George Orwell ou Aldous Huxley. O totalitarismo moderno fundamenta-se naquele reclamo publicitário que representa no cadelo a submissão do indivíduo carente de silêncios reflectivos e que vai relegando o impertinente hábito de pensar. Sergiu Celebidache (1912-1996), um dos melhores directores de orquestra do século passado, rejeitou durante toda a sua vida a colaboração com a indústria da música mecânica e tão só permitia, como documento histórico, as tomas de som de alguns dos seus concertos. Só no final acedeu a gravar alguns DVD com a sua Orquestra Filarmónica de Munich. Por contra, Herbert von Karajan (1908-1989) foi um megalómano que utilizou todo o poder da fonografia para alimentar a indústria do seu próprio mito. Também não duvidou em se afiliar ao partido nazi em 1933 para eliminar os seus rivais ainda que logo se desculpasse dizendo que o fizera "pelas ânsias de progressar na carreira". São dois casos que ilustram os extremos, mas a reprodução mecânica da música é uma séria ameaça para os intérpretes profissionais porque o número de actos com música ao vivo e em directo não aumenta na mesma proporção e além disso a parvoíce dos que programam música na Galiza prefere as medianias e mediocridades de fora antes que os nossos intérpretes e compositores. A Lei de Propriedade Intelectual reconhece direitos mas nas aulas dos Conservatórios ignoram a formação assim a maioria desconhece que existe uma entidade, Intérpretes e Executantes (AIE), que se ocupa disso distribuir o dinheiro que gera o uso das gravações, que lhes corresponde do cânone de cópia privada. aos intérpretes, legal dos alunos e a Associação de e mais de assim como a parte O direito a remuneração equitativa que estabelece a lei só é economicamente significativo quando das gravações se faz uma utilização massiva como é o caso de alguns intérpretes da música ligeira com uma indústria mediática detrás controlando os resortes emocionais da massa. Mas todos os intérpretes têm direito a viver do seu trabalho e quando as emissoras de rádio ou TV, discotecas e outros locais públicos utilizam uma gravação deveriam pagar aos intérpretes um cachet como se estivesse ao vivo e em directo, pois o resultado musical vem a ser o mesmo. E não tenho notícias que por utilizar música gravada os trabalhadores do local ou emissora percebam um salário mais baixo. Sei que há intérpretes amadores que estão dispostos a tocar grátis ou mesmo pagando com tal de satisfazer o seu ego diante dum público que os escute, mas aqui estou a falar dos profissionais que dedicam a sua vida a aperfeiçoar a sua arte interpretativa para que todos possamos desfrutar da música escrita pelos compositores. É lógico que devam ser remunerados com um cachet digno tanto se actuam em directo como com uma gravação. Continua a ser o seu trabalho. Evidentemente isto vai contra as normas do consumismo alienante do totalitarismo moderno, mas propiciaria a racionalização do uso da música, e talvez assim os professores de Conservatório evitem ser substituídos por uns colegas mecânicos interactivos que não precisem de salário. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 9-XII-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Perspectivas musicais Rudesindo Soutelo O passado dia 1 de Dezembro a Ministra da Cultura, Carmen Calvo, na inauguração do VII Seminário de Propriedade Intelectual dizia: "Se uma sociedade desenvolvida não consegue proteger os seus criadores não tem futuro e será colonizada". Talvez a Ministra não se referisse à Galiza. O mesmo dia o Conselheiro de in-Cultura galego comparece perante o pleno do Parlamento para apresentar mais uma das suas asneiras. Anunciou um Foro no 2005 para atrair turistas, uma cópia pressurosa do realizado em Barcelona, e na relação de famosos que disse ter contactados figura Edward Said, falecido em Novembro de 2003, junto a Mikhail Gorbachev, Jimmy Carter, Kofi Annan, Daniel Barenboim, e todo famoso vivo ou morto que se lhe apareça em sonhos. Pelos corredores do Seminário, que se celebrava em Madrid, perguntavam-me por Carminha Burrana como quem se lembra do pateta da aldeia. As burrices deste governante são uma infâmia para a Galiza e tem bem merecido o alcunho desde que transformou a Cantata de Carl Orff en "uma das melhores vozes deste país". A Ministra da Cultura anunciou, para antes do fim do ano, um plano de medidas urgentes contra a piratagem intelectual argumentando que a quem mais prejudica é aos jovens porque lhes cega o futuro. Vai reforçar a formação de juízes e polícias para lutar contra os delitos de vulneração dos direitos dos criadores, e responsabilizar todas as administrações porque têm o dever de garantir as condições para o normal desenvolvimento da criação. "O papel do Ministério da Cultura não é fazer cultura nem dirigi-la, senão gerar o espaço propício para a sua manifestação" disse Carmen Calvo e avançou que a Directiva Europeia 29, de Harmonização dos Direitos de Autor também conhecida pelo nome de Sociedade da Informação, vai ser incorporada em breve e para o ano 2006 teremos uma nova Lei de Propriedade Intelectual consensuada com todas as partes implicadas para facilitar a difusão pacífica da obra criativa. Com certeza a Ministra também não se referia as instituições galegas. A RTVG grava e emite música vulnerando a lei. Os centros de ensino público pirateiam descaradamente. As orquestras e agrupações musicais que se financiam de subsídios públicos fazem o papel de agentes colonizadores e ainda espoliam os compositores. Os Conservatórios Superiores de Música de Vigo e Corunha foram contactados por CEDRO (Centro Espanhol de Direitos Reprográficos) para legalizar a actividade das suas máquinas de fotocopiar, mas em ambos casos receberam um desplante dos responsáveis dos centros. Parece que a partir daí lhes enviaram um inspector e acabarão nos tribunais de justiça. A Conselharia de Educação deveria informar, e também formar, aos cargos directivos dos centros de ensino sobre a legalidade vigente na Propriedade Intelectual, e também nas vantagens da negociação amistosa para melhor os administrar. Não é boa estratégia provocar que um juiz te obrigue a pagar, porque estrangula os orçamentos. Jean François Michel, Director do Serviço de Exportação da Música Francesa, disse: "A diversidade cultural é reconhecer a totalidade dos direitos de autor". Temos de convencer a sociedade de que o respeito pela propriedade intelectual é coisa de todos, como as finanças públicas. Se um tira o lixo ao rio talvez não se passe nada, mas se todos tiramos o lixo ao rio isso é uma catástrofe que provocamos de um em um. A Ministra também falou de informação e pedagogia para evitar a catástrofe e as medidas repressivas. Segundo indicou um analista do Observatório Europeu do Audiovisual, na França o filme mais descarregado e pirateado é "Buscando a Nemo", para crianças, e não são precisamente as crianças quem as descarregam senão os seus pais. Obviamente não é uma pedagogia correcta oferecer aos filhos filmes roubados. Ao dia seguinte o Conselheiro de in-Cultura deveu sentir-se tão satisfeito de si mesmo pelo logro de o Jacobeu ter ignorado a nossa música culta que rematou a sua intervenção perante a imprensa com um eufórico "Viva Carminha Burana!". Resulta patético que alguns jornais ainda celebrem a flatulência do governante como se fosse um orgulho para o país. Só a estultícia pode congratular-se com a indignidade que deitam sobre a nossa terra. Contudo, mesmo assim, é preciso que retorne à Galiza para trabalhar desde dentro. Sei que as dificuldades se empilham mas está na hora de iniciar uma nova perspectiva musical. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 16-XII-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema A perfeição do caos Rudesindo Soutelo "O acaso não é mais que a medida da ignorância do homem", dizia Henry Poicaré em 1903 e definia o acaso como aquilo que não responde a uma dinâmica linear. Acaso ou caos. Aleatoriedade ou complexidade. Edward Lorenz definiu em 1959 o caos como os processos que parecem comportar-se de acordo com o acaso ainda que, de facto, o seu desenvolvimento esteja determinado por leis precisas. A música não é um jogo de azar ainda que pareça suscitar emoções aleatórias nos diferentes indivíduos que a escutam. A complexidade do seu processo gerativo induz no ouvinte uma complexidade emocional que vai manifestar-se através dos filtros culturais da pessoa. O "determinismo" explicava o universo como se fosse um relógio suíço onde a partir dumas condições dadas as leis da natureza permitiam predizer em qualquer momento os fenómenos subsequentes. A "teoria do caos" demonstra que todo fenómeno tem múltiplas predições, daí que não se possa vaticinar com precisão a meteorologia além de 48 horas, que é quando começa a ser significativo o desvio entre o fenómeno real e o previsto. A música, ainda quando não se lhe preste atenção como é o caso das músicas ambientais, exerce um grande influxo no sistema muscular e nos pensamentos das pessoas, motivo pelo qual é massivamente utilizada nas lojas de consumo e lazer para incrementar o negócio. A função estruturadora da música também se deixa sentir nas palavras e os escritores que ouvem o que escrevem, lendo em voz alta, habitualmente se expressam melhor porque a música da linguagem ajuda a reflectir e ordenar as ideias. Na mitologia grega Caos situa-se nas divindades do inferno. É o vazio incomensurável e tenebroso onde se originaram todas as coisas. Também é o silêncio onde toda a música foi criada. Caos é a ordem ainda antes de ser compreendida pela mente humana. Vem a ser o equivalente do bíblico "In pricipio erat Verbum". Já tenho escrito aqui que a música é a expressão mais formosa da matemática. E também tenho referido as cabalas numéricas empregadas por Bach e Händel no processo criativo. O sistema tonal é um conglomerado de formulações matemáticas acumulado durante quatro séculos, ainda que a maioria dos músicos não tenha consciência do que sustenta a sua expressão musical. O dodecafonismo, introduzido por Schönberg para transcender o sistema tonal, também é, como técnica serial de composição, um processo matemático de múltiplas predições. O serialismo integral, técnica compositiva que controla absolutamente todos os parâmetros duma obra e não só as notas como no dodecafonismo, multiplica ainda mais as predições. No ano 1972 Edward Lorenz publica um incitante artigo titulado "Previsibilidade: o bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadeia um tornado no Texas?" e nele formula que factores quase insignificantes temporariamente amplificados podem mudar radicalmente o estado dum fenómeno. A representação gráfica da turbulência assemelhava-se a uma borboleta e daí que se conheça pelo "efeito borboleta". Iannis Xenakis, Pierre Boulez, Karlheiz Stockhausen e outros compositores já aplicavam nos seus procedimentos criativos a introdução de elementos quase insignificantes que transformavam o discurso dum modo previsível em múltiplas direcções, e anteciparam o mapeamento da geometria fractal -do latim "fractus" que significa quebrado- baseada na auto-similitude das partes que por pequenas que sejam sempre se parecem ao tudo. Os fractais inserem-se na teoria do caos e foram definidos por Benoît Mandelbrot em 1975. A inextricável sonoridade de "Rhea", obra para 12 saxofones estreada em Madrid em 1988, é uma das primeiras obras do compositor andaluz Francisco Guerrero (Linares 1951-Madrid 1997) que se baseia no procedimento fractal, e duma beleza extraordinária. Entre os seus alunos está o compositor galego Manuel Rodeiro, actualmente professor no ESMUC (Escola Superior de Música de Catalunya). Escutar música de estrutura complexa favorece as conexões neuronais que melhoram o funcionamento do cérebro. Platão dizia que se devia proibir inovar a música porque "quando os modos da música cambiam, as leis fundamentais do Estado sempre cambiam com eles". De maneira que, se estiver no certo, para melhorar o estado dos fenómenos políticos só temos que fazer crescer inteligentemente a complexidade da música. Estes quase insignificantes artigos não pretendem o efeito borboleta, mas temporariamente amplificados, poderiam mudar algumas políticas. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Boas Festas! Artigo publicado em A Nossa Terra, 23-XII-2004 e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema In musica corruptus imperat Rudesindo Soutelo Já disse o Conselheiro de Pesca que ele não tinha pescado nada na sua vida política entanto que outros se têm aproveitado dos seus postos de governo. Isso incomodou muito no seu próprio partido ainda que ele não teve a valentia de os denunciar perante a lei. Daí que não saibamos se é que a sua queixa era a favor ou contra o enriquecimento paralelo dos políticos. Na música, como en qualquer outra actividade económica, também conhecemos esse tipo de gente com sorte, extraordinária sorte, para fazer fortuna. São esses que não perdem o tempo em estudar porque sabem que no país da mediocridade política o mais importante são as relações públicas sistematicamente organizadas para alargar a sua projecção pessoal. Podemos afirmar que aqui tocam mais os que menos tocam, e quanta menos música tocam ainda mais poder, influência e dinheiro tocam. São desse tipo de gente que têm sempre uma especial habilidade para ocupar os postos decisivos no reparto de prebendas à conta do dinheiro público. Dizia Arnold Schönberg que certo dia um aluno seu anunciou-lhe que abandonava os estudos de composição porque decidira de se dedicar à crítica musical e não queria que o estudo condicionasse a sua carreira. Nunca deu o nome dele mas sabe-se que foi um dos críticos mais poderosos do século passado. Desde que todos servimos para tudo, sem necessidade de acreditar uma formação específica para o cometido a desenvolver, um biólogo amador de música pode candidatar-se e aprovar umas oposições para leccionar Direcção de Orquestra num Conservatório de Música sem nunca ter visitado um centro de ensino musical. Pergunto-me eu para que servem então essas longas réstias de matérias curriculares que atarefam aos estudantes dos Conservatórios. Uma formação dilatada em excesso que prejudica seriamente os nossos profissionais porque chegam ao mercado laboral muito mais tarde e com um nível inferior ao do resto de Europa. Isto gera um descomedido número de músicos aspirantes a viverem do dinheiro público e assim vai estragando-se, viciando-se, alterando e apodrecendo a profissão. Na Metafísica de Aristóteles diz: "A mudança que vai de um sujeito a um não-sujeito é corrupção". A ONG Transparency International deu a conhecer o Global Corruption Report de 2004 onde se indica a percepção que os cidadãos têm da corrupção nas instituições, e resulta curioso que, junto com outros 36 países, os espanhóis considerem os partidos políticos como as instituições mais corruptas. Desse qualificativo não se livra a justiça nem as entidades religiosas. O que nos diferencia doutros países é que aqui os meios de comunicação são percebidos como os mais corruptos tão só por debaixo dos políticos. E o 2% dos espanhóis inqueritados ainda reconhecem ter pagado algum suborno nos últimos 12 meses. A Hitler não lhe importava que os artistas de que ele gostava não fossem nazis porque a todos os considerava politicamente estúpidos. Numa carta a Albert Speer, seu Ministro de Armamento, dizia-lhe: "Não devemos julgar nunca aos artistas pelas suas ideias políticas. A imaginação necessária para o seu trabalho os incapacita de pensar de modo realista". Por politicamente estúpidos devem ter os nossos governantes aos compositores galegos. Convocam prémios com cláusulas escravistas onde se tens a desgraça de ser laureado deves trabalhar grátis, ou arruinar-te, para cumprir com a obriga de fazer ao teu cargo as partes instrumentais para a execução, e ademais renunciar ao legítimo direito de aluguer desses materiais. Publicam partituras com contratos de edição que não se acomodam à lei, prejudicando gravemente o compositor por confundir exploração e promoção, e impedindo que os autores vivam do seu trabalho. Editam fonogramas com critérios de propaganda política para dizer que se ocupam da nossa música, mas sem observar as regras de jogo e obviando a lei que obriga a ter uma autorização formalizada por escrito para gravar as obras. A RTV galega faz gravações e emissões desprezando os proprietários dos direitos, mas devem ser conscientes do seu delito porque já retiraram da internet a informação de autores e obras programadas. Entanto, o Presidente da Junta da Galiza, D. Manuel Fraga Iribarne, recupera o seu velho estilo fascista para acusar de "embusteiros e idiotas" os cidadãos que duvidam das excelências dos "XV anos de pax fraguiana". Quando a actividade cultural e as edições dependem sobremaneira dos subsídios públicos então estamos a falar de censura e isso só favorece aos simpatizantes e colaboradores do poder culturicida. O governo central já anunciou um código ético para combater a prevaricação, ainda assim "in musica corruptus imperat". © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Feliz 2005! Artigo publicado em A Nossa Terra, 30-XII-2004, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Brêtemas da memória Se eu fosse monárquico escreveria-lhe uma carta aos Reis Magos, mas uma carta sem palavras para que a mensagem não se visse constrangida a concrecionar imagens e sensações que em simultânea dependência delimitam os conceitos mentais. Escreveria talvez uma carta de amor articulada em sussurros, murmúrios, rumorejos, bisbilhos, cicios e ainda suaves e gementes suspiros. Uma carta de sugestivas sonoridades que veiculasse directamente as emoções da mensagem. Félix Mendelssohn, autor das "Canções sem palavras", dizia que as palavras não significam o mesmo para duas pessoas diferentes, e afirmava que só a música despertava o mesmo sentimento em todas as pessoas. A música não é uma linguagem universal, tão-só é uma linguagem humana, uma expressão cultural gerada pelo cérebro. Ao ser de natureza humana, cada povo originou a sua própria organização das palavras, com as distintas inflexões ou curvas de som que foram conformando uma música primigénia. Essa música que caracteriza cada uma das línguas é o oxigénio do idioma mas também é a base de todas as músicas existentes, sejam mais ou menos diferentes entre si, entrelaçadas ou inter-relacionadas. E quando uma cultura quer esmagar a outra, a táctica que se tem demonstrado como mais efectiva é a de suplantar as curvas melódicas e cadências originais com as da língua dominante, para subtilmente abafar as palavras e as ideias. Eis a destruição da nossa língua nos meios de comunicação galegos, entoando-a com a secante prosódia espanhola, e até mesmo com a sintaxe e grafia castelhana. Essa subordinação à palavra permanece ainda hoje em múltiplas músicas, e um grande número de pessoas é incapaz de ouvir a música sem a muleta das palavras porque não sabem o que devem pensar quando experimentam as mudanças emotivas que lhes induz a música. As palavras prestam-lhe significado a essas sensações mas também empobrecem a experiência emotiva do ouvinte porque a música suscita muitas mais emoções que as palavras. A música ligeira é um exemplo de inconsistência expressiva quando ignoramos os significados verbais que a sustentam. E a maior parte da música de ópera também desvela essa fraqueza formal se eliminamos os argumentos e as palavras. A abstracção na música é algo muito recente. A brêtema introduziu-se na memória da música instrumental para que deixasse de imitar os modelos vocais, gerando assim as suas próprias formas. O texto explicita o conteúdo, e compele à forma, mas na música pura ou abstracta o conteúdo e mais a forma são uma mesma coisa, organizada em tensões e distensões que criam expectativas no ouvinte para logo, dum modo mais ou menos dilatado ou mesmo de jeito inesperado e surpresivo, serem total ou parcialmente satisfeitas. O compositor é portanto um manipulador de emoções. A forma Sonata é uma arquitectura altamente elaborada que permite sólidas construções de música pura onde se reflectem as contradições emocionais e também a luta por alcançar o equilíbrio. A Variação é outra grande forma puramente instrumental onde a identidade inicialmente exposta evolua num constante desenvolvimento do ser até recompor a sua própria essência. A forma A-B-A em que está construído este artigo, com duas ideias em contraste na exposição, responde a essa retórica discursiva. Quando Mendelssohn afirmava que só a música despertava o mesmo sentimento em distintas pessoas, referia-se a ouvintes duma mesma cultura que compartem o mesmo código musical, é dizer, uma mesma memória. Libertados da associação verbal, qualquer ouvinte, seja ou não da mesma cultura, tanto pode perceber comicidade numa marcha fúnebre como terror dramático numa nana ou cantiga de embalar. A música não gera sentimentos senão emoções e, como dizia Stravinski, a música, expressa-se a si mesma. Para compreender uma carta de amor sem palavras, em murmúrios prosódicos carentes de sintaxe e percebendo as paixões que transmite, é preciso deixar-se fecundar dos estímulos emocionais sem pretender reduzir tudo à esquemática emoção das palavras. Ainda assim, se as palavras fossem necessárias para escrever essa carta de amor, então com traço suavemente firme diria: A memória, amor, é o mecanismo de evocação que concreciona o presente e nos constrange a impelir o futuro. A brêtema é o filtro que permite à memória transcender as evocações, para assim substanciá-las, ao de leve, na nossa essência até nos despir das cores, do tacto, do corpo, e nos fundir na transparência. Amo a luz do ser que me transforma em presença intangível para me elevar no firmamento do seu doce desejo. Claro que se eu fosse monárquico não precisaria de escrever uma carta aos Reis Magos. Que o 2005 nos colme de músicas! (galegas). © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 6-I-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Música, Poder e ... Rudesindo Soutelo Começou um novo ano esmagador para a música culta galega. Não compreendo o empenho que têm as instituições financeiras, junto com as autoridades políticas e mais os caciques culturais galegos de querer convencer a sociedade de que os compositores galegos não somos espanhóis. Cada vez que se apresenta um festival, um ciclo de concertos, a programação dum auditório, duma orquestra, banda, grupo de música ou o programa de obras a estudar nas aulas dos conservatórios e escolas de música, sempre há alguém que se vanglória por ter incluído alguma migalha de música espanhola. Mas nessas miudezas espanholas só por puro erro figuram os compositores galegos, e mesmo o Conselheiro de in-Cultura, quando se lhe reclama a presença dos nossos criadores nas programações oficiais, refila dizendo que "isto não é uma feira". Para nariguetas tão esquisitas os nossos compositores devem empestar tanto que não parecem dignos de figurar na história da música como espanhóis. A Orquestra Sinfónica da Corunha (ou talvez seria mais finório dizer, como nos ensinam pelos altifalantes dos aeroportos espanhóis, "La Coruna" sem essa garabulha que lhe põem acima do ene), vai receber três milhões de euros anuais da Junta, ou seja do nosso bolso, para que a música culta galega não contamine as orelhas dos poderosos valedores. Algum dirá que este ano, com grande comiseração pela nossa música, vão tocar até três obras de autores galegos, que vem a ser como verter um copo de água doce na salgada imensidão do Oceano. A quem deveriam pedir-lhe esses tres milhões de euros para a Orquestra é às embaixadas de Alemanha, França, Itália, Áustria e do resto de países cuja cultura e indústria musical está a difundir tão generosamente a Orquestra. Caixa Nova apresentou a sua programação para o 2005, e como a moda deste ano vai de Dom Quixote pois os galegos não pintamos nada. Nem sequer respeitam a língua dos seus clientes, que são os que lhe dão ou emprestam o dinheiro à Caixa para logo ainda ser menosprezados por ela. A temporada de abono de música clássica tem a sua migalha espanhola mas nenhum compositor galego. Isso sim, fazem uma grande contribuição para a musicologia de sotaina e renomeam impudentemente obras de nome algo indecoroso para gente bem-pensante ou castelhano-bem-falante. A Obertura de "O rapto do serralho" de Mozart converte-se em "El rapto de la serrería"(sic na web de Caixa Nova). Talvez este retorcido duplo eufemismo relaciona "serrería" com a viguesa rua tabu da Ferreria onde se concentram os lupanários, prostíbulos ou serralhos. "O livro galego ontem e hoje" é uma ingente pesquisa dos recursos bibliográficos galegos, e abrange desde as Cantigas de Afonso IX, o sábio, até o século XX. Levou-lhe vinte cinco anos de trabalho à Federação de Livreiros da Galiza e na apresentação, o seu presidente Jaime Corral, dizia que não podiam continuar com esse labor, indispensável para a língua e a cultura galega, e que já está na hora de as instituições assumirem essa função social. Essas são as coisas que deveria estar fazendo a Conselharia de Cultura, assim como uma catalogação exaustiva de toda a música culta galega, e não dedicar-se a queimar o nosso dinheiro em fogos de artifício cultural, em saraus inúteis ou mesmo com uma clara intenção esmagadora e colonizadora. Eis o caso do "Festival Internacional de Música de Galicia", onde a nossa música é sistematicamente ignorada e desprezada para exaltar a alheia, muitas vezes com o único mérito de não ser galega. Esse separatismo excludente dos patetas do poder é já insultante para a cidadania porque só nos consideram espanhóis para pagar impostos e para lhes renovar o salário de quatro em quatro anos. Alguns criadores, em conversas privadas, reconhecem que estão absolutamente submetidos aos subsídios do poder, e não vêem a maneira de safar-se dessa tirânica censura. Tão-só um cataclismo nos livraria desta férrea estrutura caciquil e quiçá, oxalá, também dos Carminhas Burranas. Lorenzo da Ponte, o libretista das três melhores Óperas de Mozart -"Le Nozze de Fígaro" (1786), "Don Giovanni" (1787) e "Così fan tutte" (1790)-, ainda que de espírito revolucionário era grande admirador, émulo e amigo de Giacomo Casanova. Nas suas memórias, pensando nele, pergunta: “Quem acredita em sonhos é louco; e quem não acredita, o que é?” Não é coisa de indagar qual é o ofício mais antigo do mundo mas é bom recordar que a primeira diabrura descrita na Bíblia é poder e não fornício. © 2004 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 13-I-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Criação e liberdade Rudesindo Soutelo Na Directiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, diz nos Considerandos 10 e 11: "Os autores e os intérpretes, ou executantes, devem receber uma remuneração adequada pela utilização do seu trabalho, para poderem prosseguir o seu labor criativo e artístico, assim como os produtores, para poderem financiar esse trabalho. Um sistema rigoroso e eficaz de protecção do direito de autor e direitos conexos, constitui um dos principais instrumentos para assegurar os recursos necessários à produção cultural europeia, bem como para garantir a independência e dignidade aos criadores e intérpretes." Ao meu endereço electrónico chegam correios de alunos e pais de alunos de música denunciando roubos musicais que se praticam a plena luz do dia e sem a menor dissimulação. Há Conservatórios de Música, públicos e privados, que permitem ou toleram que os professores dêem cópias ilegais das partituras, ou seja de música roubada, aos alunos. Alguns até cobram por cometer o delito. Isto acontece também em muitas Escolas de Música, e em Bandas, Coros e Agrupações musicais. Os que me escrevem estão escandalizados porque está-se a fomentar a cultura do crime contra a propriedade em meninos tenros, desde os cinco ou seis anos, quando é mais preciso estabelecer os referentes éticos que constroem a pessoalidade social do cidadã. Alguns pais me dizem que quando interpelam o professor por essa conduta criminosa recebem desculpas como que o livro é difícil de encontrar ou que está esgotado. Não seria estranho que, como consequência desses roubos sistemáticos, a editora já se tivesse arruinado e o autor, se não morreu de fome, subsista com a comida que apanha nos contentores do lixo. Um professor quando escolhe uma obra ou um livro para os alunos deve pensar na utilidade pedagógica mas também que seja acessível no mercado, é dizer, nas lojas de música. Quanto menos repertório venda hoje uma loja de música, por causa das cópias ilegais, ainda menos venderá amanhã e cada dia que passa nesta prática delituosa vai-se estrangulando mais e mais a rede distributiva básica, e cada vez será mais difícil encontrar algo para roubar. Estou bem seguro que esses professores não aceitam perceber o seu salário em notas de banco ilegais, mas é provável que algum tampouco experimente repugnância em defraudar ao fisco e ao mesmo tempo exigir um subsídio público para melhorar o seu próprio pecúlio. Será este o tipo de gente que acrescenta a bolsa de votos do caciquismo e a corrupção? Nas festas visitei uma Feira de Artesãos, subsidiada com dinheiro público, e quis comprar alguma coisa para presentear aos meus, mas tive que renunciar porque nenhum dos que me interessavam quis fazer uma factura. Como posso então confiar no seu trabalho se mostra uma conduta tão anti-social evadindo impostos? Algum dos casos que me chegam podem ocasionar graves prejuízos económicos e legais aos centros educativos que os permitem ou toleram. Que fazem os inspectores da Conselharia de Educação para evitar esta vergonha criminosa? Ou vai ser coisa de inspeccionar aos inspectores? Por obriga ética e social envio essas denúncias às associações dos colectivos prejudicados para que actuem em consequência, mas como alguns gostam de persistir no delito terei de me ocupar aqui dos delinquentes. A Comissão Europeia decidiu iniciar acções contra Espanha, Irlanda e Portugal no Tribunal de Justiça da CE por vulnerar o direito de aluguer previsto pela Directiva 92/100/CEE, relativa ao irrenunciável direito dos autores a uma remuneração justa e equitativa. Já tenho falado da irresponsável campanha das associações de bibliotecários contra dos autores. Um colectivo que devia estar na defesa incondicional dos direitos de autor em pró da dignidade e independência criativa, por ser isso a matéria prima da sua função laboral e também social, porém está a acirrar à sociedade contra dos autores porque estes pretendem viver do seu legítimo trabalho. Excitam as paixões do povo para que se defronte aos criadores, num intento demagógico de excluir as Bibliotecas do cumprimento da lei, em vez de dirigir essa força cara as autoridades e exigir-lhes um orçamento suficiente para observar uma escrupulosa legalidade. França, Itália e Luxemburgo, que também foram denunciadas por proceder dum modo similar nas suas legislações, já mudaram as leis para afiançar a independência e dignidade dos criadores e intérpretes. Sem autores e compositores economicamente independentes não existe futuro, democracia nem liberdade. © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 20-I-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Bilinguismo filarmónico Rudesindo Soutelo Exmo. Senhor Presidente da Junta da Galiza: Com o respeito e consideração devidos tenho a ousadia de me dirigir publicamente a Vossa Excelência para o informar de certos abusos impróprios de instituições públicas dependentes do seu governo e que apesar de os denunciar repetidamente nos meus artigos persistem numa prepotente atitude delituosa. A Rádio da CRTVG, emissora pública, tem vários programas de música culta e neles se emitem obras procedentes de fonogramas comerciais mas também a partir de registos sonoros realizados pelos próprios técnicos da emissora, o que se conhece como produções próprias. O passado Domingo 9 de Janeiro, o director e apresentador do espaço Concerto Popular, logo de anunciar que o programa ia ser um resumo das Bandas que participaram no 4º Certamem que organizou a Deputação de Pontevedra, e que não se repetiria a peça obrigada em cada uma das distintas secções, acrescentou: "evitamos também as peças gravadas com um imposto especial". Devo presumir que o director dum programa radiofónico numa emissora pública não é qualquer pateta, e que acredita uma formação na matéria tanto técnica como legal. Como Vossa Excelência bem sabe, não existem impostos especiais que gravem a música e afirmar tal coisa num meio de comunicação público só pode responder a uma turva intencionalidade, que espero não seja política nem um veto encoberto. A falsidade das premissas invalida a conclusão ainda que esta seja lógica. O registo sonoro duma obra musical não pode ser realizado sem obter previamente uma autorização expressa e por escrito dos titulares dos direitos, ou seja: o autor, os herdeiros ou quem tenha cedida a exploração em exclusiva por contrato de edição musical. Sem essa autorização prévia, e mais a dos intérpretes, toda gravação sonora é contrária a lei e qualquer utilização, distribuição ou exploração desse registo, inclusive a radiodifusão, é totalmente ilegal. Só um ignorante ou indocumentado pode confundir autorização dos titulares com imposto especial. Algumas editoras têm enviado facturas pelos direitos dessas obras, mas a CRTVG as ignora sem mais comentário, ainda que a alguma editora não galega sim que lhe pagaram. A AEDEM (Associação de Editoras de Música) propôs à CRTVG negociar um convénio que legalize o arquivo de obras gravadas e regulamente a justa, equitativa e legalmente irrenunciável remuneração dos autores dessas obras; um convénio similar aos assinados já com outras emissoras públicas como a TVE ou a Rádio Clássica de RNE. Nunca responderam. Tenho testemunhos de compositores galegos que foram convidados a não editar as suas obras se as queriam ver programadas na Rádio Galega. Também me consta por declarações de directores, que as Bandas de Música recebem avisos de não programar as obras editadas dos compositores galegos se é que querem sair em Concerto Popular. Na página web da CRTVG retiraram a informação das obras que se emitem no espaço Concerto Popular, talvez num intento de obstaculizar que o resto de autores e editoras exerçam os seus legítimos direitos, que não impostos especiais, mas isso tão-só prova que já conhecem o seu delito. O Centro Dramático Galego também sabe algo disso quando não identifica o autor da música nalguma das montagens, como é o caso de "Calígula" de Albert Camús onde uma música dum compositor vivo reforça a acção dramática de princípio a fim, mas sem a autorização preceptiva. Outro tanto acontece na colecção de CDes "Música Clássica Galega" que publica o IGAEM. E assim muitos mais abusos que seria longo de relatar. Não parece muito edificante que as instituições públicas não respeitem a legalidade vigente. Permita Vossa Excelência que aproveite esta carta para lhe fazer uma sugestão em nome dos compositores galegos. A próxima vez que assine um convénio com uma Orquestra, ou mesmo com Bandas, Coros ou Agrupações Musicais em geral, não esqueça incluir uma cláusula de compensação musical pelo dinheiro público que vão receber, e que repercuta na promoção da actual criação musical galega, sem descuidar a nossa história da música culta. Não se trata de monopolizar a programação senão de aplicar também na música o bilinguismo harmónico, ou mais bem filarmónico. O lógico seria exigir uma percentagem de horas de música culta galega directamente proporcional à percentagem que o subsídio público representa no orçamento da Orquestra ou Agrupação. Transitoriamente poderia estabelecer-se um período onde esse bilinguismo galego e extra-galego se harmonizara em 25% e 75%. Mas o que sim desafina muito é dar o equivalente a quinhentos milhões de pesetas anuais a uma Orquestra Sinfónica que dedica menos do 1% da sua programação aos compositores galegos vivos. Agradeço a atenção de Vossa Excelência e fico na esperança de ver corrigidos os abusos institucionais. (Esta carta foi-lhe enviada ao Presidente D. Manuel Fraga antes da sua publicação em A Nossa Terra.) © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 27-I-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Arrepios musicais Roberto Zatorre, neurofisiólogo argentino e investigador no Instituto Neurológico da Universidade McGill de Montreal, ofereceu uma palestra na CosmoCaixa de Barcelona onde desvendou que a actividade cerebral em resposta às músicas que nos emocionam tem exactamente os mesmos parâmetros de activação e inibição que as respostas de recompensa e motivação suscitadas pela actividade sexual, a toma de alimentos quando estamos famintos ou a dose do toxicodependente. Quase todos temos alguma música que por um ou outro motivo nos emociona muito especialmente, até o ponto de nos estremecer e fazer-nos sentir calafrios. É certo também que muita gente padece algum tipo de amusia, incapacidade patológica para a percepção musical, devido a uma alteração neurológica, como a conhecida surdez para os tons que padecia o Ché Guevara. Na música culta ocidental há muitas obras que concitam ao prazer emocional mas poucas que nos transportem de verdade a um estado sublime de prazer estremecedor. Mas para o êxtase não basta com a música, é preciso que ela harmonize com a nossa frequência de ressonância espiritual, e ainda que Zatorre aponta que talvez exista uma gramática universal que a faz ser compreendida dum mesmo modo por toda a humanidade, o certo é que a experiência auditiva e cultural de cada pessoa processa a música de forma substancialmente diferente. Também desvendou que as pessoas iniciadas aos cinco ou seis anos na prática dum instrumento musical, quando o cérebro possui a maior plasticidade, têm um número especialmente elevado de conexões neuronais e uma maior densidade de massa cinzenta. Além disso, os estudos com neuroimagens demonstraram que os músicos com ouvido absoluto têm uma intensa activação da zona cortical frontal, o que não se aprecia no resto dos músicos. É o caso de grandes génios criativos como foram Mozart, Wagner ou Beethoven. O treino musical afecta a estrutura do cérebro e ajuda a um maior aproveitamento dos dois hemisférios. Uma das obras que mais empatia e experiências de prazer origina é o "Cânone" de Johann Pachelbel (1653-1706) quando está interpretado em tempus cardiacus, é dizer, no ritmo de um segundo. Uma menina, estudante de violino, ao ouvir pela primeira vez o famoso "Cânone" disse para sua mãe: "nunca ouvira uma música tão bonita". O que ela estava a experimentar era uma acomodação das suas ondas cerebrais ao ritmo biológico, e isso induzia-lhe um sossego prazenteiro que em determinadas circunstâncias pode transportá-la para um estado de êxtase ou nirvana. Por outra parte uma leitora me descreve a sua experiência com o "Prelúdio e morte de Isolda" de Wagner, no qual essa vagarosa tensão da suspensão tonal lhe faz sentir uma excitação emocional de enorme intensidade, chegando inclusive à tremulação. Mais duma vez tenho escutado experiências similares com outras obras como "O Moldava" de Smetana que, para além do texto descritivo sobre o decurso do rio, põe em pé a coreografia de dois corpos deslizando-se demoradamente na procura duma tensão e compenetração crescente que possibilita a grandiosa fusão luminescente final. Talvez nessa resposta do cérebro está o segredo da rápida difusão de "O Moldava" pelo mundo inteiro, e que fosse esta a obra elegida para lhe dar as boas-vindas oficiais à moeda única europeia. O tantrismo, que se baseia na coordenação subtil entre a mente e o corpo humano, utiliza o sexo, e o orgasmo sem ejaculação, como fonte de energia para abrir a mente à espiritualidade e à criatividade. Sei que alguns músicos praticam esto de modo instintivo em dilatadas jornadas de amor. Essa energia psicossexual conhece-se com o nome de Kundalini e além do caminho tântrico existem outros para chegar a ela. O celibato da Igreja Católica era, na sua origem, parte duma técnica de iniciação baseada no pensamento rítmico para despertar a energia procriadora e a transformar em criativa, mas o celibato como argumento em si mesmo e despossuído da função canalizadora é pura repressão. Agora a ciência veio explicar que a droga e a música compartilham o mesmo prazer, mas é raro que um profissional da música culta em activo aceite prazeres menores e passageiros depois de experimentar a intensidade prazenteira da música. Quando já tinha pronto o artigo descobri que o meu médico já está a aplicar a psico-fono-terapia, que consiste grosso modo em corrigir o cérebro por meio de frequências sonoras a partir do mapa cerebral do paciente. Cefaleias, depressão, ansiedade, hiperactividade infantil, stress, insónia, são algumas das coisas que a música curava intuitivamente e agora também cientificamente. Pitágoras dizia que tudo o que se move produz um som. As células do cérebro, e as do corpo inteiro, produzem sons ainda que não sejam audíveis pelo ouvido humano. Quando duas pessoas se encontram e a música das suas células harmonizam, acontece uma transferência de energia que o cérebro regista como um arrepio -sexual, gastronómico ou musical? © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 10-II-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Sim e não na língua culta. No III Encontro de Criadores celebrado em Barcelona do 1 ao 3 de Fevereiro, José Saramago disse: "Temos de nos unir frente a uma globalização que busca converter o autor em objecto de mercadoria, e em nome do multiculturalismo trata de diluir as particularidades culturais." Saramago também aludiu ao AMI (Acordo Multilateral sobre o Investimento) com o qual a Organização Mundial do Comércio pretendia aplicar a total liberalização das trocas comerciais aos bens e serviços culturais, principalmente audiovisuais. A França recusou-se a essa liberalização que suporia a invasão massiva do mercado com produtos usamericanos e a aniquilação da sua própria cultura. Isto é o que se deu em chamar "excepção cultural". Essa "não-liberalização" da cultura, assumida também pela União Europeia, permitiu manter políticas nacionais e europeias de cotas de programação no cinema, televisão e rádio, bem como ajudas financeiras à produção e a distribuição para proteger a indústria cultural, em particular a cinematográfica. Depois do fracasso do AMI em 1998, a ofensiva usamericana levou às negociações de Seattle (USA, 1999) a liberalização dos novos serviços audiovisuais, como são os ligados a internet e ao comércio electrónico. Carmen Calvo, Ministra de Cultura, disse que "isto é uma batalha mundial e é preciso responder. A cultura é a dignidade e não só oferta e procura. A cultura única não é cultura, é o único." Quando os povos tomam consciência da debilidade da sua cultura, da perda de falantes da sua língua, do esquecimento das suas tradições, filosofia, religião e história substituídas pela cultura dominante, os criadores carecem de estímulos e a raiva longamente contida acaba por explodir em actos de violência, porque o que está em jogo é a identidade dos povos e mais das pessoas individuais. Daí que convenha ir substituindo a economia das pessoas em função das coisas por uma economia das coisas em função das pessoas. Aquela primitiva "excepção cultural" deveu na actual "diversidade cultural" que é a nossa riqueza mas também a garantia duma paz social duradoira. O lema do Encontro convocado pela SGAE foi "A força da diversidade" e na inauguração a Ministra salientou que "estamos obrigados a canalizar o acesso à cultura como uma necessidade vital para a cidadania. Alguns querem uma cultura que sirva como simples valor de mercado e troca. Devemos livrar um combate pela diversidade cultural e um compromisso de protecção aos que geram cultura porque essa é a única forma de ter cultura". Também reclamou uma análise do sector "em clave económica e de criação de emprego". O Presidente da Associação de Compositores e Autores de Música, Teo Cardalda, comentava que a Ministra pronunciara um discurso brilhante, sem papéis e olhando nos olhos. Dos debates do Encontro irei dando conta noutros artigos mas agora coloco aqui a nossa diversidade. O Presidente da Junta defendeu no Porto a candidatura da Tradição Oral Galego-Portuguesa que aspira a ser declarada Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, é dizer, que a Junta reconhece pela primeira vez que a Galiza e mais o Norte de Portugal têm uma mesma cultura, que se sustenta numa língua culta comum com músicas e sotaques diversos. Já o primeiro Presidente da Real Academia Galega, Manuel Murguia, nos Jogos Florais de Tui do 1891, dissera: "nunca pagaremos aos nossos irmãos portugueses que fizeram do nosso galego um idioma nacional"; e noutra ocasião disse: "uma e outra língua são totalmente a mesma, nas suas origens, no seu desenvolvimento e nas suas condições". Daí que este passinho, promovido pela Associação Ponte nas Ondas -uma experiência de rádio escolar transfronteiriça-, ainda que muito fraco é importante para avançar cara a normalização da língua e a recuperação da unidade. Porque a actual separação linguística propiciada pelos ciúmes políticos do medo a que a integração cultural do aquém e o além Minho faça perder peso à autoridade de Madrid, é completamente artificial e só leva a uma continuada perda de falantes na Galiza, entrando já na fase crítica de debilidade cultural apontada acima, e que neste caso pode conduzir ao paradoxo de que a língua, que hoje falam mais de 200 milhões de pessoas no mundo, se extinga precisamente no território que a viu nascer. O desejável seria que, a partir deste reconhecemento da cultura comum, fossem rebaixando a política de separatismo excludente e aceitassem a grafia culta da nossa língua, deixando de criminalizar os que rejeitam escrever o galego com a ortografia prestada do idioma dominante. E falando de diversidade cultural chegam-me correios de leitores que planeiam votar afirmativamente no referendo da Constituição Europeia mas grafando propositadamente as três letras do "sim", o qual, legalmente, o tornaria em voto nulo se as autoridades não resolvem aceitar a grafia internacional da nossa língua nos processos eleitorais. É a mesma estratégia que já utilizara o PNV no referendo da OTAN para que admitissem o Euskera. Sim, não ou depende, mas sempre com a temperada música da nossa língua culta. © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 17-II-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Filantropia não governamental Uma das ideias-força que dum modo quase obsessivo sulcavam os debates do III Encontro de Criadores de Barcelona era que o avanço tecnológico estava prestes a permitir a autosuficiência dos compositores. José Neri, director geral da SDAE (Sociedade Digital de Autores e Editores), dava um prazo de dois anos para alcançar a plena maturidade dos sistemas de segurança electrónica para a protecção efectiva dos direitos de autor nos arquivos de som. Isto junto com o embaratecimento dos processos de gravação, que algum diz que já se pode fazer na própria casa e até sem músicos, leva a pensar que o compositor está no caminho da emancipação absoluta e nunca mais teria de compartir os rendimentos das suas obras com os intérpretes, as editoras e as discográficas. E no debate sobre a composição musical contemporânea um autor jovem dizia que ele se autopublicava melhor que muitas editoras espanholas e mesmo europeias. No ano 1984 aparecera no mercado o computador pessoal Apple Macintosh, com a sua característica interface gráfica e facilidade de uso, que possibilitou o surgimento da edição digital, e foi simplificando tanto o processo de produção editorial que pôs na moda o conceito da autoedição. Daquela muitos autores profetizaram o fim das editoras mas passou uma geração e não sei de nenhuma editora que fechasse por causa da autoedição. Pelo contrário sim conheço muitos autores que experimentaram as escassas vendas da sua autogestão mal entendida, e compreenderam que o livro (e isto serve para a partitura e o CD) é algo mais que a obra contida nele. O valor intrínseco da obra precisa dum valor acrescentado -tipografia, desenho, paginação, suporte, marketing, promoção, distribuição- para que a mensagem do autor chegue duma forma mais cómoda e clara e também ao maior número possível de leitores. O editor existiu antes de Gutemberg inventar a imprensa e com certeza vai continuar existindo ainda depois das redes digitais. Aquela revolução tecnológica da autoedição chegou ao mundo da música, tanto gráfica como sonora, e Teresa Alfonso, presidenta da Associação Espanhola de Editores de Música -na qual não estão as multinacionais-, disse que o futuro dos editores não está em perigo, o que sim está em perigo é a diversidade musical. Por outro lado, o editor Jaume Piles respondeu ao jovem compositor que se orgulhava das suas autoedições com um "Bem vindo ao clube", já que a maioria das editoras começaram com a autoedição das próprias obras e isso foi a base que logo se desenvolveu em editora. O país precisa ainda de muitos editores de música para atender a extraordinária produtividade e de grande qualidade dos nossos compositores e assim os jovens compositores não se veriam obrigados a autoeditar as suas obras. Cabe dizer aqui que as multinacionais ou "majors" só se interessam por um autor quando este já tem um nome reconhecido e que vende. Um assíduo leitor, gerente duma orquestra sinfónica não galega, faz-me alguns comentários e aponta "Todos vamos aprendendo e de certo entre os meus colegas vai-se instalando progressivamente a certeza de que salvaguardar os direitos dos criadores é un pilar indiscutível do futuro cultural dum país. O diálogo entre os diversos colectivos é fundamental." A cultura do diálogo e a negociação é algo que ainda nos custa muito porque implica aceitar que o outro tem algum direito que nos pode negar, e isso casa mal com o habitual despotismo político que impregna este país. Temos uma sociedade embebida de prepotência e são ainda muitos os que se vanglóriam de acatar as leis só quando estas os beneficiam. Na antologia de disparates que os defensores da cultura única disseminam sibilinamente pelas suas redes da confusão, apareceu uma nova hipérbole retórica de criminalização oblíqua dos compositores, e consiste em deitar na opinião pública a ideia de que os compositores são uns entes de natureza filantrópica, ou seja que não precisam de comer nem pagar hipotecas, e que estão tutelados por uma ONG denominada SGAE. E como não cumpre os objectivos sociais, políticos e solidários que se lhe exigem às Organizações Não Governamentais, pois profana-se a propriedade dos autores, é dizer, que se rouba o trabalho dos criadores. Essa parvoíce filantrópica resulta muito cómica e só falta que agora apareça um iluminado que interprete como ONG os partidos políticos, sindicatos ou colectivos de funcionários. Deixemos os autores fazer o seu trabalho que não é a edição nem a filantropia não governamental senão o criar cultura, a nossa cultura, e para isso precisam de comer e pagar hipotecas. Os conflitos solucionam-se dialogando e não violando a lei vigente. © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 24-II-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Pirataria e in-cultura única O consumo de música é hoje tão brutal que esta sociedade já não desfruta dela senão que a engolipa, como se padece-se duma musicofagia patológica. A qualidade da música e mesmo as condições da escuta parecem importar pouco e só os decibéis cotizam algo, tal como se o único propósito fosse evitar o aterrador silêncio. Esse consumismo desaforado não é inocente nem voluntário senão induzido pela in-cultura dominante da alienação única, que utiliza a neutralidade da música para inocular no organismo social o hedonismo animal e primário. A Sony duvidou muito antes de oferecer ao grande público o primeiro gravador digital que permitia a clonagem dos produtos fonográficos, mas concluiu que esse era o seu caminho e iniciou uma estratégia de expansão fundamentada no debilitamento dos seus sócios naturais, aliciando a pirataria para favorecer a venda das suas equipas, e sabendo que isso prejudicaria gravemente a indústria audiovisual. O objectivo era produzir uma crise no sector que afundasse o valor das discográficas no mercado para depois comprar a baixo preço. Epic, Legacy e Columbia Records, conhecida aqui por CBS, foram a base sobre a qual constituiram Sony Music e Sony Pictures. Paralelamente a crise gerou uma concentração de discográficas noutras quatro multinacionais ou "majors": Universal, EMI, Warner e BMG. Finalmente a BMG, com o beneplácito da Comissão Europeia, fusionou-se com Sony Music. O ano pasado, Sony apresentou um eficaz sistema antipirataria para a indústria fonográfica que lhe suporia outro bom negócio -a favor ou em contra sempre fazem bom negócio- e surpreendentemente o retirou do mercado sem mais explicações. Manter a crise talvez lhe sirva para se fazer com alguma das outras três multinacionais a preço de saldo. As "majors" já controlam o 80% do mercado discográfico mundial, e a concentração empresarial propiciada pela pirataria está favorecendo a aparição de modelos alienantes supressores da razão e da liberdade. A diversidade ainda está presente no 20% do mercado da música gravada, mas por pouco tempo. Por outra parte, como bem assinalava o editor Carlos Martínez, de M-20, no debate sobre a "diversidade cultural na música" celebrado em Barcelona, quem mais se está a beneficiar da pirataria neste momento são as operadoras de telefonia. Segundo os dados de Telefónica o 80% do tráfico das ADSL -linhas de Banda Larga com alta velocidade de transferência- são descargas de arquivos, e o 60% disso são arquivos de música. Telefónica também declara que já se superaram os 2.500.000 de linhas ADSL em Espanha e calculando, pelo baixo, a uma quota media de 30 Euros por mês dá 900 milhões de Euros por ano, dos quais 432 milhões corresponderiam ao tráfico de música, que praticamente é todo ilegal. Mas como vai Telefónica perseguir essa delinquência na sua rede se lhe está a proporcionar lucros tão chorudos? e ainda por cima sem ter que compartir um só cêntimo com os autores e artistas que lhe sustentam o negócio. O contraponto é que no ano 2004 o conjunto da indústria discográfica espanhola não atingiu os 300 milhões de Euros de facturação. Telefónica deveria pois pagar um cânone compensatório aos autores e artistas por consentir o roubo nas suas linhas. Por falar de cânone, persiste a campanha de criminalização dos autores, artistas e intérpretes pela compensação por cópia privada. A lei de propriedade intelectual estabelece no artigo 31 a cópia sem autorização do autor no caso de ser para utilização privada e exclusiva do próprio copista, e no artigo 25 o legislador estabelece o cânone das fotocópias e dos suportes fono e video-gráficos virgens como uma remuneração equitativa para "compensar os direitos de propriedade intelectual que se deixassem de perceber por razão da expressada reprodução" e acrescenta "este direito será irrenunciável para os autores e os artistas, intérpretes ou executantes ... e se fará efectivo a través das entidades de gestão dos direitos de propriedade intelectual" que na actualidade são AIE, AGIDE, AISGE, ALMA, CEDRO, DAMA e SGAE. Para acabar com esse cânone bastaria com convencer o legislador europeu que permitisse eliminar da lei espanhola a cópia privada sem autorização, e automaticamente o cânone desapareceria. Mas se queremos as duas coisas a vez, copiar e não pagar, então, com a lei na mão, isso é um roubo. O silêncio é o berço da reflexão, da razão e da opinião. O silêncio obriga a pensar e isso não convém os sujeitos designados para o consumo convulsivo. Portanto, se queremos alcançar o sonho do pensamento único globalizado dum novo totalitarismo de face amável, só temos que favorecer a pirataria até que o 100% do mercado seja controlado por uma ou duas "major", mas aí acabará o roubo. Como se vê a pirataria musical não é mais que uma poderosa ferramenta ao serviço do grande capital e da in-cultura única. © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 3-III-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Fantasmas de aculturação É claro que as leis não as fazemos os compositores, nem sequer as leis da música, ainda que talvez o país funcionasse melhor, mas não temos nenhum poder e muito menos o poder legislativo. Se eu tivesse voto decisivo na redacção da Lei de Propriedade Intelectual o cânone por cópia privada para uso exclusivo do copista e sem autorização do autor não existiria, porque considero que o artigo 31º que permite a tal cópia é um menoscabo do trabalho criador, como se uma lei permitisse não pagar o salário dos trabalhadores os dias que a empresa não obtivesse lucro. Mas a coisa é que o legislador europeu, talvez pressionado por algum lobby com interesse no negócio, decidiu permitir esse tipo de cópia e, para evitar os legítimos protestos dos trabalhadores da criação, introduziu o cânone compensatório. Os autores preferem viver do que realmente gera o seu trabalho e não do reparto estatístico do cânone, algo que tem ressonâncias de beneficência, subsídio e esmola, porque nunca se sabe se corresponde com a realidade dos rendimentos do trabalho. Também é certo que existem autores que tiram mais proveito do cânone e não o mudariam. Diz-me Celso, um amigo leitor, que lhe parece um roubo ter que pagar um cânone compensatório ao comprar um CD virgem que não vai destinar a copiar música. Pois tem razão. Vem a ser o mesmo que eu, que nunca tive nem penso ter televisor, tenha de subsidiar a televisão pública, e ninguém proponha que a paguem os ouvintes, como acontece em praticamente toda a Europa, com um cânone anual por cada aparelho de rádio e TV instalado. Ou que tenhamos de pagar um sobrepreço ao comprar num grande armazém para compensar as perdas pelo que outros roubam, ou a sobretaxa que pagamos de impostos para compensar o que roubam os defraudadores. Também é um roubo que os nossos impostos sirvam para manter o clientelismo político repartindo subsídios aos amigos do poder, ou para colocar os mais parvos da família política na função públicaou, falando de música, para dar três milhões de euros anuais a uma orquestra que dedica menos do 1% da sua programação aos compositores galegos, ou para que a Deputação de Ourense nos insulte com a, digamo-lo claro, mamarrachada da Real Banda de Gaitas e a parafernália esquizóide do seu director. Mas tudo o anterior não me autoriza a violar as leis vigentes. Os cânones compensatórios têm sempre um componente de injustiça particular para paliar outra maior. Roubo também seria o disparate que alguém insinuou para que a SGAE não envie às sociedades de autores estrangeiras o dinheiro que corresponde aos seus filiados. A consequência imediata seria que os nossos autores também não perceberiam os direitos das suas obras gerados fora e que são mais importantes. Mas, digo eu, não seria mais fácil convencer, consciencializar ou talvez culturizar, as comissões de festas, os concelheiros ou vereadores de cultura e os responsáveis pelas diversas programações musicais que se fazem por toda a Galiza, para que ao contratarem grupos,orquestras e intérpretes de música em geral exijam uma maioria de autores galegos, que temos suficientes e muito bons, tanto na música culta como na tradicional, popular, rock, jazz, etc. Desse modo apoiariam a nossa criação e mais dinheiro ficaria aqui. Mas a patetice, inépcia, auto-ódio, e mesmo a militância galeguicida do poder só promove o alheio. Nestes dias o Concelho do Ferrol anuncia a iminente inauguração do renovado Teatro Jofre e promete, a través dum convénio com Caixanova, "espectáculos do máximo nível" que na música culta, para a instituição financeira viguesa, como já tenho indicado aqui, é qualquer coisa que não seja galega. Até 80% dos direitos de autor vai parar a outros países e que logo ainda tenham a pouca vergonha de lhe dizer aos autores que se apropriem do dinheiro dos seus colegas estrangeiros. Talvez pense o ladrão que todos são da sua condição mas a ética dos nossos criadores está na defesa dos direitos de todos os autores, em lógica correspondência com a defesa que dos nossos autores fazem os de fora. E já é bem triste que muitos dos nossos criadores recebam mais dinheiro por direitos gerados fora que na própria terra, e quando aquí não são deliberadamente dados ao desprezo. Há anos que os musicógrafos galegos estão a dar notícias dum compositor que não figura nos catálogos das editoras de música e eu teria imenso prazer em conhecê-lo para examinar pelo miúdo porque muitos dos títulos das suas obras coincidem com as minhas. É um tal Rudesindo Fernández Soutelo, e como no meu bilhete de identidade diz Rudesindo Soutelo Fernández pois já começo a duvidar se tenho um primo fantasma ou que o método cientista mudou em erudição infusa. Algo pior lhe aconteceu a Pascual Veiga durante quase um século pois a única partitura do Hino galego em venda o identificava como J. A. Veiga e quando lho fiz saber às autoridades um pouco homérico funcionário político se zangou comigo por pretender mudar a história aculturada da identidade galega baseada em fantasmas. © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF) Artigo publicado em A Nossa Terra, 10-III-2005, e reproduzido aqui baixo licença do autor para Arte Tripharia. ____ O Bardo na Brêtema Rudesindo Soutelo Fundamentos de corrupção "Digam às suas televisões autonómicas que não roubem aos autores, e protejam os artistas próprios". Isto foi o primeiro que ouviram os Conselheiros de Cultura, e outros cargos políticos relacionados com a política cultural municipal e autonómica, nada mais acabar as suas intervenções no debate "Diversidade e cooperação cultural no estado das autonomias" celebrado em Barcelona. Mas ali não havia nenhum responsável da política cultural galega para tomar nota, e ainda assim, Baldo Martínez, no colóquio não deixou de formular perguntas ao ausente "amigo de Carminha Burrana" na convicção de que ia obter a mesma prepotente, indiferente, despótica e muda resposta. A rádio e televisão pública galega não diferem muito dos modelos políticos imperantes nas taifas subalternas, atafulhada de vontades subservientes muito bem pagas. E talvez pelo medo a perder tão graciosa regalia, a sua distinta e singular progénie se afana com tanto afinco em impedir que os compositores tenham direito a comer, especialmente se são galegos. No programa "Concerto Popular", por pôr um exemplo, aumenta cada Domingo a lista negra de autores que exigem o cumprimento da lei, e que portanto são ignorados nas emissões. Nessa represália vingativa já incluem até ao Maestro Rogélio Groba. As oposições para professores de conservatórios da Junta foram convocadas para se realizar nas fins de semana de Maio mas se persiste o suspenso universal das últimas convocatórias ainda lhes vai sobrar tempo. Se o plano de estudos de música do ano 1966 era mau, o da LOGSE ainda foi muito pior e tão-só conseguiu o desterro da pouca cultura do esforço que ainda se transmitia aos estudantes profissionais. O resultado foi uma maior perda de competitividade no mercado internacional da interpretação musical. Um dos disparates da LOGSE foi juntar o estudo da harmonia, contraponto, fuga e composição numa única matéria que rebaixou a formação do compositor a uns imprecisos Fundamentos de Composição. O disparate que comete a Junta é que, sem ter convocado nunca antes as vagas de composição -ciclo superior- nem as de contraponto e fuga -ciclo meio-, no 2001 equipara os professores de harmonia, que é uma matéria elementar ainda que se estude no grado meio, com os Fundamentos de Composição, e a partir daí estes presidem aos tribunais de oposição para cobrir vagas de ciclo superior. Imaginem que se convoca a primeira vaga de professor de idioma Russo e, como não existe ninguém que conheça esse idioma para poder avaliar os candidatos, constituem um tribunal com professores de inglês e um tradutor para se comunicar com os opositores. Pois isso já sucedeu, assim que não se surpreendam do que aconteça nas oposições de música onde, como sabem, não é preciso acreditar um título musical para concorrer, e se ainda logo o tribunal tampouco é douto na matéria que avalia pois a burla ao sistema e mais aos alunos está assegurada. Se o Maestro Rogélio Groba tivesse de se candidatar a estas oposições, com certeza também engrossaria o suspenso universal. Há mais de um mes que o sabia mas esperei a que o fizessem público. Rogélio Groba ganhou o "Prémio Internacional de Composição Auditório de Galicia" ainda que para isso teve de se apresentar de total incógnito, com a documentação em inglês, evitando qualquer rasto que pudera delatar a sua autoria. Este prémio vem a ser como uma vingança do compositor pelo desprezo institucional padecido. Felicito a Rogélio Groba pelo êxito da sua estratégia mas não posso menos que expressarlhe a minha mais sentida condolência pelo castigo alcançado. O prémio, 12.000 Euros mais a estreia da obra, contém uma trapaça que o converte numa fraude ao premiado. Na cláusula 6ª das bases reserva-se ao Auditório o direito a estabelecer as condições para a difusão e reprodução, podendo realizar a edição da partitura e gravação em qualquer momento, obviando que a Lei declara nula qualquer cessão de direitos que não sejam objecto dum contrato de edição musical formulado por escrito e livremente pactuado. E para mais humilhação ainda obriga ao premiado a fazer, ao seu cargo, os materiais de orquestra para a interpretação, cujo custo, dependendo das características da obra, pode superar o prémio. Além disso estabelece que o autor renuncia de por vida ao direito de aluguer desses materiais, que fez com o seu dinheiro ou bem com meses de trabalho não remunerado, e ainda por cima tem de lhos entregar em propriedade ao Auditório, que poderia alugá-los a terceiros ou para emissões de rádio, TV ou registos video-fonográficos sem retribuir um cêntimo ao autor. E Fraga responde-me, mais uma vez, com o protocolar traslado da minha carta aos departamentos denunciados. As vontades aduladoras do caciquismo servil fundamentam a Pax Fraguiana enquanto nós vamos bailando este eternamente arrastado tango de "A maravilhosa beleza das corrupções políticas". © 2005 by Rudesindo Soutelo Nota: Os artigos publicados desde Setembro 2003 a Julho 2004 estão editados por Arte Tripharia no Corpus Musicum Gallaeciae. -Arte Tripharia www.artetripharia.com (Download Catalog in PDF)