portugal europa

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PORTUGAL
NA QUEDA DA
EUROPA
Viriato
Soromenho-Marques
PORTUGAL
NA QUEDA DA
EUROPA
Introdução
Há mais de três anos que a vida dos Portugueses foi
completamente alterada pela entrada em vigor do cha­
mado programa da troika, com o seu respetivo crédito de
*
emergência . Este pedido de ajuda não se tratou, apenas,
de mais um evento de aperto financeiro como aqueles
que Portugal havia conhecido em 1977 e em 1983. Nem
sequer é comparável com a bancarrota de 1892. É bas­
tante mais grave do que qualquer um desses precedentes
históricos.
* Os 78 mil milhões de euros do crédito da troika estão distribuídos de for­
ma equilibrada pelas seguintes entidades: Mecanismo Europeu de Esta­
bilidade Financeira (Orçamento Comunitário); Fundo Europeu de Es­
tabilidade Financeira (Orçamentos dos Estados-Membros); e pelo FMI
(Resto do Mundo).
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A crise em que Portugal se encontra mergulhado, tra­
duzida nos efeitos devastadores de uma política de auste­
ridade sem quartel, faz parte de uma crise mundial mais
vasta, que tem na Europa um epicentro particularmente
delicado. Em 2011, quando Lisboa passou a ser governa­
da a partir de Berlim, Bruxelas e Washington, os Portu­
gueses perceberam que a Europa para onde o país tinha
entrado, com esperança, em 1986, havia desaparecido
definitivamente. A Europa cujo leme é segurado, com
tanta firmeza como escasso esclarecimento, pela chance­
ler Angela Merkel, não tem qualquer relação genealógica
com a Europa de Jean Monnet e de Robert Schuman.
A Europa que pretendeu construir uma fundação sólida
para promover e manter a paz e a prosperidade, afas­
tando definitivamente o perigo da hegemonia e os riscos
de desmesura daí decorrentes, essa Europa já não existe.
E jamais voltará à existência na forma como foi plasmada
nos tratados firmados, entre 1951 (Comunidade Euro­
peia do Carvão e do Aço) e 2007 (Tratado de Lisboa).
O objetivo deste livro é simples. Partilhar com o lei­
tor as dúvidas, mas também os resultados positivos do es­
tudo e da investigação, traduzidos em teses e hipóteses
de trabalho, sobre as causas profundas e próximas des­
ta crise, bem como sobre os possíveis caminhos de saí­
da. Este livro fala sobre uma situação que é ameaçadora
para o país e para a Europa no seu conjunto. Há quase
trinta anos, no derradeiro auge da Guerra Fria, quando
a Europa corria o risco de se transformar num campo
de batalha nuclear, publiquei o meu primeiro estudo so­
I n t rod u ção
bre temas europeus (Europa: O Risco do Futuro, 1985). Os
meus receios e apreensões de então, partilhados por mui­
tos observadores e atores em todo o mundo, foram su­
perados por uma evolução pacífica e positiva, que muito
deve à visão e coragem de Mikhail Gorbachev. Em 2014,
a ameaça iminente não é imediatamente bélica, mas os
seus efeitos destruidores estão à vista de todos. Na eco­
nomia, na sociedade e no estado de espírito, depressivo
e angustiado de milhões de portugueses, e de centenas
de milhões de europeus, vivendo e labutando em todos
os países da União Europeia. Ninguém saberá se a queda
da Europa, atualmente em curso, conduzirá a uma coli­
são catastrófica. O que sabemos é que, depois de anos su­
cessivos de crise, nem um só nome se ergue portador de
esperança. Os dirigentes políticos europeus, que escutam
a chanceler Merkel nas frequentes reuniões do Conselho
Europeu, causam um calafrio geral. Dali não se liberta
qualquer raio de esperança, nenhum assomo de luz. Que
ninguém atire a primeira pedra. A mediocridade dos di­
rigentes políticos é o preço que se paga pela persistente
preguiça cívica dos cidadãos. A apatia e o desinteresse,
que são uma das doenças letais das democracias na Eu­
ropa, ajudaram à tempestade perfeita da crise europeia.
Uma Europa sem liderança, na altura em que ela mais
necessária seria.
O futuro é para os mortais, limitados nas faculdades
de conhecimento e ação, um permanente enigma. Con­
tudo, ao contemplarmos a crise de Portugal no quadro
do atual desmoronamento da Europa, há três regras, por
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entre a incerteza geral, que permanecem firmes. O fu­
turo desfecho desta crise dependerá, em primeiro lugar,
daquilo que julgamos saber sobre ela, em segundo lugar,
daquilo que existindo objetivamente é, todavia, por nós
desconhecido, e, finalmente, daquilo que poderemos fa­
zer intervindo nos acontecimentos, pois tudo está ainda
em aberto.
O que sabemos sobre a crise apenas corrobora o
sentimento de preocupação. Manda a honestidade
intelectual que se diga, face ao que é conhecido, que
as possibilidades desta crise ter um desenlace trágico
e tumultuoso parecem superar as possibilidades que
militam a favor de uma solução positiva. Contudo, con­
tamos a nosso favor com a humildade e a esperança.
A primeira aconselha-nos a não responder à superfi­
cialidade dos otimistas com a arrogância dos céticos.
O mundo é mais rico do que qualquer representação
teórica. A bondade do possível espreita por uma opor­
tunidade. Não deixemos que olhos obnubilados pela
amargura sejam privados de a vislumbrar. Quanto à
esperança, essa depende inteiramente daquilo que,
enquanto cidadãos, estejamos dispostos a realizar na
esfera de ação e influência que todos dispomos, por
mais ínfima que seja. Adaptando as sábias palavras de
Mahatma Gandhi, que as nossas ações possam traduzir,
desde já, o futuro que desejamos para Portugal e para
a Europa, cujos destinos estão indissoluvelmente en­
trelaçados.
A situação de crise portuguesa e europeia, que se
arrasta dolorosamente e sem fim à vista, talvez não
possa ser compreendida, e ainda menos resolvida, por
I n t rod u ção
uma análise que se situe total e estritamente no campo
do que é possível conhecer. Nesta encruzilhada históri­
ca, que justifica o passado e condiciona todo o futuro,
talvez tenhamos de apelar ao milagre. Contudo, é esse
milagre, sobre o qual este livro se debruça, a força po­
derosa que, por seu turno, nos convoca para a tarefa da
sua própria realização.
15 de abril de 2014
Viriato Soromenho-Marques
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Capítulo 1
PORTUGAL
NAS BALANÇAS
DA EUROPA
N
um dos seus luminosos
escritos sobre a Europa,
Eduardo Lourenço con­
siderava ser a adesão de Portugal às diversas metamor­
foses do projeto de construção europeia – e não apenas
ao atual e entrópico processo iniciado nas ruínas da Se­
gunda Guerra Mundial – caracterizada por escassa me­
ditação, nula «adesão simbólica» e uma tendência para a
«fuga» permanente para espaços geográficos exteriores
1
ao Velho Continente .
§1.
A debilidade política genética da Europa.
Na verdade, uma das notas da psicologia co­
letiva que pode ser encontrada nas diferentes culturas na­
cionais europeias é a de uma reiterada interrogação sobre
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o estatuto e a identidade europeias. Portugal não tem o
exclusivo da incerteza ou da oscilação, seja em relação ao
seu lugar na Europa política, seja no que respeita à inten­
sidade da sua habitação da casa cultural europeia, no sen­
tido mais amplo do termo. De facto, a cultura europeia
integra dentro de si mesma não só as célebres e singulares
capacidades de autorreflexão e autocrítica, como também
uma enorme insegurança quanto ao grau de partilha de
uma herança europeia comum, por parte dos diferentes
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povos que dela se alimentam . Veja-se a excentricidade
britânica, fazendo da sua ilha um mundo e um império
que, curiosamente, tendem a «insularizar» o que se desig­
na como «continente». Ou as dúvidas dos povos eslavos,
esmagados por placas tectónicas imperiais em constante
recomposição. A geometria variável da Europa para os
pensadores germânicos, oscilando entre um centro coeso
e um alargamento sem limites para todos os pontos car­
deais, em especial para leste (o famoso Drang nach Osten, do
século xix em diante). Para os Portugueses, como também
para os outros povos da Península Ibérica, a questão que
se repete mais vezes é a da sincronia do tempo próprio
com o que se considera o tempo médio europeu. Basta
pensar nos nossos estrangeirados, ou em Ortega y Gasset,
e na sua tese de que a Espanha tinha falhado a Idade das
Luzes. Ou ainda, se quisermos traduzir essa expressão na
linguagem europeia dominante a partir do último quar­
tel do século xx, a questão da convergência das condições
de civilização material e do rendimento médio entre nós
e os outros.
Se o pluralismo humano, linguístico e cultural euro­
peu, com toda a dinâmica emulação que lhe está associa­
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da, é um fator de pujança que transformou a Europa num
enorme centro de produção espiritual, incluindo aqui a
ciência e a tecnologia, já o pluralismo das unidades polí­
ticas que constituem o Velho Continente tem sido a fon­
te de angústia existencial constante, que não poupa nem
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mesmo as grandes nações e os mais poderosos Estados .
Se fizermos uma animação eletrónica da evolução, nos úl­
timos cinco séculos, da geografia política europeia, vere­
4
mos um verdadeiro torvelinho de mudanças . No último
milénio, só para situarmos a modernidade como ponto
de partida, as fronteiras da Europa têm sido esculpidas
num ritmo vertiginoso. Com golpes de sabre e baioneta.
Com bombardeamentos de artilharia e de aviação. Com
marchas devastadoras de exércitos. Mas também com chan­
tagem diplomática e económica. Sem compreendermos
isto não perceberemos a razão de tanta nostalgia e lamen­
tação acerca da Europa, que emerge na policromia lin­
guística em que se exprimem os intelectuais europeus.
Portugal não é diferente. Nem se trata só de uma ques­
tão de dimensão e poder material. Talvez seja mais exato
falar de uma memória mais antiga, devido ao facto de
Portugal ser um Estado e uma Nação que, comparativa­
mente, com a maioria dos outros, há mais tempo inter­
pretam os sinais vitais do continente em que nascemos e
do qual nunca nos separámos verdadeiramente. Os nos­
sos maiores pensadores e líderes na ação tendem a olhar
prudentemente para o resto da Europa. Pois, como bons
Europeus, percebem bem que aí coexistem tanto janelas
de oportunidade como sombrias ameaças existenciais.
Não há mistério. A reserva mental e a «fuga» para ou­
tros lugares, em busca de um respaldo estratégico para
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garantir a segurança ontológica que sempre tem escassea­
do em solo europeu, é apenas um compreensível sinto­
ma, presente na cultura portuguesa como na de outros
povos, de que a Europa tem sucessivamente fracassado
na primeira tarefa que deveria ser a sua: construir um sis­
tema político que garantisse a paz em liberdade no Velho
Continente. O labirinto europeu foi, é, e continuará a ser,
matricialmente, um resultado da falta de imaginação e da
incompetência política de sucessivas gerações de líderes
europeus incapazes de pensarem a Europa no seu con­
junto, quer espacialmente, quer temporalmente.
§2.
A Europa como ameaça permanente. Em
1971, já retirado da vida política ativa, Franco
Nogueira, ministro português dos Negócios Estrangeiros
entre 1961 e 1969, escreveu uma obra de interpretação
da história de Portugal, onde a desconfiança em relação
à possibilidade de uma reconfiguração das relações entre
5
Portugal e/na Europa é desenhada com particular ênfase .
O contexto ajuda a perceber o pessimismo de No­
gueira. Portugal estava há uma década envolvido numa
dispendiosa guerra em três dos principais territórios do
seu Império Ultramarino. A guerra ceifava vidas, além
de consumir uma parte de leão do Orçamento de Estado,
custando ainda ao país um vasto isolamento diplomáti­
co, incluindo-se aí também alguns dos principais aliados
de Lisboa. Sem o confessar abertamente, compreende-se
uma reserva profunda acerca da possibilidade desse es­
forço de guerra, agora dirigido por Marcelo Caetano, po­
der prolongar-se por muito mais tempo. O embaixador
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resolve penetrar no passado nacional, produzindo uma
verdadeira filosofia da história, que se traduz num alerta
para a perda do Império, e para a ingenuidade das elites
nacionais ao darem crédito ao discurso de unidade euro­
peia e do «mercado comum», que, na perspetiva do autor,
escondia, numa capa meramente ideológica, os «grandes
objetivos nacionais» das «grandes potências europeias».
Nogueira vai mais longe. Sempre que Portugal ten­
tou participar no coração dos assuntos europeus, mes­
mo quando esteve do lado dos vencedores, como foi o
caso no desfecho da Primeira Guerra Mundial, perdeu
sempre (subestimando que a manutenção do Império,
objetivo central da participação portuguesa, foi atingi­
da). A tese central do embaixador acabaria por coincidir
perfeitamente com a atitude de Salazar que fundou a sua
intransigente política ultramarina na convicção de que,
privado das suas colónias, Portugal seria engolido pela
História. Estaria ele a pensar na «oposição democrática»,
que timidamente se começava a organizar no espaço pú­
blico do marcelismo? Julgo que não só. Nogueira percebe
as fraturas que se abrem dentro do próprio regime, e vai
buscar à história ilustrações de como «o escol português»,
nos momentos decisivos, acabou sempre por ir contra o
interesse nacional, levado pelas sedutoras promessas dos
cantos de sereia provenientes da Europa profunda, ou
mais genericamente do Ocidente: o respeito pelas «leis de
sucessão ao trono», que nos trouxeram a dinastia filipina; a
«liberdade dos mares», que favoreceram a hegemonia ma­
rítima de holandeses e ingleses; o «antiesclavagismo», que
alimentou os interesses comerciais britânicos; a «autode­
terminação», que ajudou a universalizar a pax americana…
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