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REVISÃO / REVIEW
SÍNDROME CARDIORRENAL, RENOCÁRDICA, OU...?
CARDIORENAL SYNDROME, RENOCARDIAC SYNDROME, OR...
1
2
Enio Marcio Maia Guerra , Thaisa Minata Simabukuro
controlava, por si mesmo, o débito cardíaco. Guyton
demonstrou, entretanto, que este era regulado, na realidade,
pela necessidade dos tecidos por oxigênio. As “Curvas de
Guyton” descrevem a relação entre as pressões atriais direitas e
o débito cardíaco, estabelecendo as bases para a fisiologia da
circulação.
O modelo circulatório de Guyton foi particularmente
útil na exploração da ligação entre controle da pressão arterial
em longo prazo e a regulação renal de água e sódio, mantendo o
volume do líquido extracelular. A excreção de sódio é
controlada através da integração de fatores regulatórios físicos,
neurais e hormonais. Os principais sistemas envolvidos na
retenção de sódio incluem o sistema renina-angiotensinaaldosterona e o sistema nervoso simpático; os fatores
natriuréticos, como o peptídeo natriurético atrial e o óxido
nítrico, são fundamentais na promoção da excreção de sódio.1
Os rins, assim como o coração, possuem funções
endócrinas e são capazes de liberar mediadores celulares e
humorais (Figura 1).
O atual estado de conhecimento mostra o conceito da
regulação hemodinâmica do coração e dos rins como um
sistema complexo e dinâmico, nos quais mudanças na função
de um órgão podem levar a uma disfunção em espiral em
ambos, alterando o balanço entre óxido nítrico e espécies
reativas de oxigênio, inflamação sistêmica, ativação dos
sistemas nervoso simpático, sistema-renina-angiotensinaaldosterona (SRAA) e a influência e a interação das várias
substâncias, como endotelinas, prostaglandinas, vasopressina
2
e peptídeos natriuréticos.
Conhecemos agora o cenário da disfunção renal, a
experiência cardíaca com vários graus de aterosclerose
acelerada, hipertrofia ventricular esquerda e remodelamento,
microangiopatia miocárdica e calcificação vascular, enquanto
no cenário da disfunção cardíaca; hipoperfusão e excessiva
ativação SRAA contribuem para a progressão da insuficiência
3
renal.
Além disso, tem-se uma constelação de potenciais
fatores de risco modificáveis para doença cardiovascular que
tem também alto risco para doença renal, assim como outros
fatores, como tabagismo, hipertensão, dislipidemia, idade e
diabetes são também fatores de progressão para a doença
renal. Finalmente, a disfunção cardíaca e dos rins pode causar
efeitos semelhantes como, por exemplo, a anemia, que pode
contribuir para a piora da função de ambos os órgãos.2
RESUMO
O desempenho cardíaco e a função renal são estreitamente
interligados tanto fisiologicamente quanto em situações de
doença. A visão reducionista dos rins como simples filtros,
sofrendo os efeitos danosos de uma bomba em falência, tem
sido substituída pela compreensão das complexas interações
entre estes dois órgãos. Ambos são reguladores de funções
vitais como, por exemplo, pressão arterial, resistência
vascular periférica, diurese, natriurese, homeostase do
volume circulante, perfusão periférica e oxigenação tissular.
Embora as primeiras descrições da entidade nosológica que
envolvem estes dois órgãos tenham mais de 100 anos, só
recentemente a síndrome cardiorrenal foi definida como uma
desordem fisiopatológica na qual a disfunção aguda ou
crônica de um órgão pode induzir disfunção aguda ou crônica
no outro. Neste artigo revisamos as interações desta
complexa simbiose rim-coração, tanto em condições
fisiológicas como em situações patológicas.
Descritores: síndrome cardiorrenal, síndrome renocárdica,
anemia, insuficiência renal, insuficiência cardíaca.
ABSTRACT
The cardiac performance and renal function are intrinsically
linked both in physiological conditions and disease situation.
There is a trend to replace the reductionist view of the kidney
as a simple filter, suffering the ill effects of a failing pump, by
our understanding of the complex interactions between these
two organs. Both regulate vital functions as arterial pressure,
peripheral vascular resistance, diuresis, natriuresis,
circulating volume homeostasis, peripheral perfusion and
tissue oxygenation. Albeit the first observations of this
nosological entity were described more than one hundred
years ago, only recently the cardiorenal syndrome was
defined as a pathophysiological disorder in which acute or
chronic dysfunction of one organ may induce acute or chronic
dysfunction in the other. The present paper reviews the
interplay of the complex symbiosis between the heart and the
kidney both in physiological conditions and disease
situations.
Key-words: cardiorenal syndrome, renocardiac syndrome,
anemia, kidney failure, heart failure.
INTRODUÇÃO
Arthur Guyton (1919-2003) foi um fisiologista
americano que se tornou famoso por seus experimentos da
década de 50, estudando a fisiologia do débito cardíaco e suas
relações com a circulação periférica. Os resultados destes
trabalhos desafiaram o conhecimento tradicional que o coração
Rev. Fac. Ciênc. Méd. Sorocaba, v. 11, n. 4, p. 5 - 9, 2009
1 - Professor do Depto. de Medicina - PUC-SP
2 - Residente em Nefrologia - PUC-SP
Recebido em 30/10/2009. Aceito para publicação em 17/11/2009.
Contato: [email protected]
5
Rev. Fac. Ciênc. Méd. Sorocaba, v. 11, n. 4, p. 5 - 9, 2009
DISCUSSÃO
A função renal, refletida pela determinação da
creatinina sérica, ou mais precisamente através da estimativa da
taxa de filtração glomerular (TFG), tem sido considerada como
o melhor fator preditivo de sobrevida cardiovascular e
4,5,6,7
hospitalização em praticamente todas as populações.
8
Heywood, analisando uma população de 118.465
pacientes com insuficiência cardíaca, demonstrou que a
maioria deles (64%) apresentava insuficiência renal moderada
(TFG < 60 ml/min).
Vários estudos identificaram fatores de risco para
insuficiência renal em pacientes com insuficiência cardíaca
avançada. No estudo SOLVD - Studies of Left Ventricular
9
Dysfunction -, os fatores que se correlacionaram com a piora
da função renal, definida como um aumento do nível de
creatinina sérica de 0,3 mg/dl, podem ser citados:
Idade avançada;
Baixa fração de ejeção;
Elevado nível de creatinina basal;
Baixa pressão sanguínea sistólica;
Diabete melito;
Hipertensão;
Uso de terapia antiplaquetária, diuréticos ou betabloqueadores.
Em agosto de 2004, o National Heart, Lung and Blood
Institute reuniu um grupo de investigadores para avaliar o
conhecimento sobre as interações entre o sistema
cardiovascular e os rins e para propor recomendações para as
investigações futuras (“Cardio-renal connections in heart
failure and cardiovascular disease,” disponível em:
http://www.nhlbi.nih.gov/meetings/workshops/cardiorenalhf-hd.htm, acesso em 07/11/2009). Este grupo focou sua
atenção sobre a situação na qual as respostas renais agudas e
crônicas eram basicamente consideradas como resultantes de
alterações primárias na função cardíaca.
Pouco tempo após, em face desta complexa interação,
2
Ronco propôs a redefinição desta entidade: síndrome
cardiorrenal é uma desordem fisiopatológica na qual a
disfunção aguda ou crônica de um órgão pode induzir disfunção
aguda ou crônica no outro. Para incluir a ampla gama de
transtornos interrelacionados e para enfatizar a natureza
bidirecional das interações cardiorrenais, postulou a divisão em
quatro categorias distintas, cujos títulos refletem a doença
primária mais provável e o tempo de evolução. Uma quinta
categoria foi considerada para acomodar as co-disfunções
cardíacas e renais secundárias a uma doença sistêmica (Tabela).
6
Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba
Tabela. Classificação da Síndrome Cardiorrenal
Tipo I. Síndrome cardiorrenal aguda
Piora abrupta da função cardíaca (choque
cardiogênico ou ICC agudamente descompensada)
conduzindo à lesão renal aguda.
Tipo II. Síndrome cardiorrenal crônica
Anormalidades crônicas na função cardíaca (ICC
crônica) provocando doença renal crônica e
potencialmente permanente.
Tipo III. Síndrome renocardíaca aguda
Piora abrupta da função renal (isquemia renal aguda
ou glomerulonefrite) acarretando doença cardíaca
aguda (insuficiência cardíaca, arritmia, isquemia).
Tipo IV. Síndrome renocardíaca crônica
Doença renal crônica (doença glomerular ou
intersticial crônica) contribuindo para diminuição da
função cardíaca, hipertrofia cardíaca e/ou aumento
no risco de eventos cardiovasculares adversos.
Tipo V. Síndrome cardiorrenal secundária
Condição sistêmica (Diabetes mellitus, sepse),
produzindo disfunção cardíaca e renal simultânea.
ICC, Insuficiência Cardíaca Congestiva
Entretanto, a recente publicação de um dos dois grandes
trabalhos desenhados para analisar a redução da morbimortalidade cardiovascular com a utilização de AEE em
pacientes diabéticos com insuficiência renal crônica fracassou
13
em comprovar tais benefícios. Além disso, em sua conclusão,
o estudo TREAT - Trial to Reduce Cardiovascular Events with
Aranesp Therapy -, ressaltou que o uso de darbepoetina alfa
esteve associado a risco aumentado de acidente vascular
encefálico, risco este que para muitos dos envolvidos na
elaboração da decisão clínica, superaria os benefícios
potenciais.
O estudo RED-HF - Reduction of Events with
14
Darbepoetin Alfa in Heart Failure -, ainda está em
andamento, devendo se completar quando aproximadamente
1.150 pacientes experimentarem o evento primário - morte ou
internação por piora da insuficiência cardíaca.
Mais recentemente especularam se a razão das elevadas
taxas de morbi-mortalidade e hospitalização na ICC não
poderiam ser atribuídas à anemia (Esquema: possível
mecanismo para retenção hidrossalina e insuficiência cardíaca
10,11
na anemia).
A doença renal crônica (DRC) pode ocasionar ou
agravar tanto a anemia quanto a ICC. Esta pode provocar ou
agravar a anemia e a DRC e, por fim, a anemia pode ocasionar
ou agravar a ICC e a DRC. Esta interação entre as três condições
foi denominada SíndromeAnêmica Cardiorrenal.Aimplicação
desta interação é que o controle adequado da ICC e da anemia
poderia prevenir a progressão tanto da ICC quanto da DRC.
12
Anand analisou todos os ensaios publicados sobre a
utilização de agentes estimuladores de eritropoetina (AEE),
evidenciando que os trabalhos pioneiros, com pequeno número
de pacientes provenientes de um mesmo centro, demonstraram
melhora no estado clínico e na função ventricular, quando estes
agentes foram utilizados para o tratamento da anemia.
7
Rev. Fac. Ciênc. Méd. Sorocaba, v. 11, n. 4, p. 5 - 9, 2009
TRATAMENTO DA SÍNDROME
CARDIORRENAL
melhorar inicialmente os parâmetros hemodinâmicos e a
função renal, porém não há comprovação que estes agentes
15,16
melhorem outros parâmetros, como a mortalidade.
Vários tratamentos têm sido propostos para tratar a
insuficiência cardíaca aguda descompensada. Estes incluem a
adição de diuréticos tiazídicos para neutralizar o aumento da
reabsorção tubular distal de sódio, a adição de acetazolamida
para tratar o aumento da reabsorção tubular proximal de sódio, a
infusão constante de diuréticos de alça, doses suprafisiológicas
de peptídeos natriuréticos, antagonistas da vasopressina,
bloqueadores do receptor da adenosina e dispositivos
extracorpóreos, incluindo ultrafiltração e dispositivos de
auxílio ventricular.
Terapia com nesiritide
Peptídeos natriuréticos, incluindo o peptídeo
natriurético atrial e o peptídeo natriurético tipo B (PNB), são
liberados como uma resposta do miocárdio ao estiramento e
induzem natriurese, vasodilatação e suprimem o SRAA e o
sistema nervoso simpático. O PNB recombinante (nesiritide)
foi desenvolvido como uma terapia inicial para melhorar a
17
hemodinâmica renal e a diurese. Colucci demonstrou que a
utilização desta droga poderia ser útil na melhoria dos
sintomas e da hemodinâmica em pacientes internados por
ICC descompensada. As investigações adicionais, entretanto,
questionaram a eficácia e a segurança desta terapêutica com
relação à função renal. Dois grandes estudos demonstraram a
ausência de danos para este órgão, porém foram incapazes de
evidenciar benefícios clínicos.18,19
Tratamento da resistência ao diurético
A adição de um diurético tiazídico por sua ação no
túbulo distal, pode atuar sinergicamente com diuréticos de alça
em pacientes com resistência ao diurético, induzindo maior
diurese. Este efeito sobre a função renal global e na sobrevida,
entretanto, não está claro. A espironolactona e eplerenona são
diuréticos leves, que agem distalmente no túbulo e que tem o
benefício adicional de atenuar a resposta neuro hormonal renal
inadequada à insuficiência cardíaca. Bloqueando o receptor
mineralocorticóide, reduzem a hipopotassemia induzida pelos
diuréticos de alça e, consequentemente, diminuem a
mortalidade na ICC. Finalmente, a infusão contínua de
diuréticos de alça pode ser mais eficaz que em bolus, por reduzir
os efeitos da avidez de sódio pós-diurese. Esta terapêutica está
sob investigação em um largo estudo multicêntrico patrocinado
15
pelo Instituto Nacional de Saúde americano.
Antagonistas da vasopressina
A vasopressina promove retenção de água livre através
da atuação sobre os receptores V2 nos ductos coletores e através
do estímulo ao receptor V1, vasoconstrição. O bloqueio de suas
ações poderia, portanto, diminuir a hipervolemia e reduzir a
pós-carga. Dois antagonistas da vasopressina têm sido
avaliados: conivaptan, um bloqueador do receptor V1a e V2; e
tolvaptan, um bloqueador do receptor V2 por via oral.
20
Georghiade, em estudo multicêntrico, demonstrou
melhora na correção da volemia com o uso desta droga, sem
alteração na pressão arterial, frequência cardíaca ou função
renal. Uma análise post hoc deste estudo sugeriu uma redução
21
de 60 dias na mortalidade. Konstam, entretanto, não foi capaz
de demonstrar os benefícios desta terapêutica sobre a
mortalidade ou a readmissão com insuficiência cardíaca.
Terapia inotrópica
Embora os relatos iniciais tenham sido animadores,
posteriormente a dopamina não se mostrou eficaz para melhora
da sobrevida. De forma geral os inotrópicos, incluindo
dopamina, dobutamina, milrinone e levosimendan, podem
8
Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba
Antagonistas do receptor da adenosina
A adenosina provoca vasoconstrição arteriolar aferente
e aumenta a reabsorção tubular próxima de sódio. Este ação é
mediada através do receptor de adenosina A1. Os estudos
envolvendo o bloqueador deste receptor (KW-3902) ainda
estão em fase II, porém os resultados iniciais confirmam a
utilidade potencial desta droga em aumentar a diurese,
reduzindo as necessidades dos diuréticos de alça, e na
15
preservação da função renal.
9.
10.
Ultrafiltração
A utilização de métodos extracorpóreos tem
demonstrado aumento significativo na remoção de volume em
pacientes com insuficiência cardíaca aguda descompensada,
entretanto, observações de longo prazo não comprovam estes
15
benefícios.
11.
12.
CONCLUSÃO
13.
Na ausência de estudos clínicos definitivos pode-se
concluir mais uma vez, utilizando uma antiga máxima em
Medicina, que a decisão sobre tratamento desta complexa
síndrome de interrelação coração-rim deve ser baseada na
combinação da condição do paciente e na compreensão e
utilização das opções terapêuticas mais cautelosas e
conservadoras.
14.
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