Elaine Caroline Kiatkoski A Importância da Etnobotânica e Etnofarmacologia na produção de novos medicamentos Introdução Plantas medicinais é um tema recorrente na pauta da ciência brasileira. Unanimidade entre químicos e farmacólogos brasileiros de reconhecida expressão internacional, os estudos com plantas medicinais ainda não receberam no Brasil, a atenção que o tema merece das agências financiadoras, embora já exista uma massa crítica de pesquisadores qualificados nas áreas de química e de farmacologia. Até o presente momento, não houve um processo coordenado de todos os atores (indústria, farmacólogos, fitoquímicos, químicos sintéticos, farmacêuticos, médicos, etc.) visando o desenvolvimento de fármacos a partir de plantas. O único recurso terapêutico de parcela da população brasileira e de mais de 2/3 da população do planeta, o mercado mundial de fitoterápicos movimenta cerca de US$ 22 bilhões por ano e vem seduzindo a cada ano mais adeptos nos países desenvolvidos. Em 2000, o setor faturou US$ 6,6 bilhões nos EUA e US$ 8,5 bilhões na Europa, sendo a Alemanha 1. Fig. 1 Produtos Fitoterápicos Na busca de novos medicamentos, podem ser seguidos quatro critérios principais para a coleta de espécies vegetais, otimizando a probabilidade de acerto. Estes critérios são: 1. Coletas randômicas de espécies vegetais, preferencialmente, em lugares com alto grau de diversidade e endemismo. 50% das espécies vegetais do mundo estão localizadas em sete países “megadiversidades”, sendo eles: Brasil, Colômbia, México, Zaire, Madagascar, Indonésia e Austrália. Se comparar o número de espécies endêmicas por país/região é possível perceber melhor essas diferenças e entender por que os trópicos são o foco de perspectiva da descoberta de novas drogas: País/Região Suíça Alemanha Reino Unido México Região Amazônica nº de espécies vegetais endêmicas 1 16 73 3376 25000 a 30000 Fig. 2 Amazônia 2. Coletas guiadas por quimiotaxonomia, ou seja, espécies pertencentes a determinados gêneros que são conhecidos por produzirem certos compostos (alcalóides, flavonóides, esteróides entre outros). Esse critério foi utilizado durante um estudo farmacológico que selecionou duas espécies de origem brasileira: Hypericum brasiliense Cholsy. e Hypericum cordatum (Vell.) N. Robson, baseado no fato de que a espécie Hypericum perforatum L., de origem européia, e do mesmo gênero taxonômico, apresentou em vários estudos anteriores: ação antidepressiva. Fig. 3 Hypericum brasiliense Fig. 4 Hypericum perforatum Num trabalho anterior, utilizou-se o mesmo critério ao selecionar a Artemísia (Artemísia vulgaris L.), justamente pelo fato do gênero Artemísia possuir muitos estudos na literatura. O trabalho objetivou verificar a possível ação tóxica dessa espécie em tratamentos crônicos, a fim de avaliar o risco de seu consumo por mulheres gestantes ou em período de lactação e contatou que, de fato, não possui a referida ação. Fig. 5 Artemísia vulgaris 3. Coletas biorracionais (guiadas por ecologia), baseiam-se na observação das interações entre vegetais e animais que levam à produção de compostos secundários; 4. Coletas baseadas no conhecimento tradicional local, como indicativo do potencial farmacológico. Considerando-se os critérios acima, pode-se concluir, que o conhecimento tradicional é o mais adequado par a seleção de potenciais farmacológicos por apresentar alta porcentagem de acertos nos testes de investigação de respostas positivas. Sabe-se que 80% dos laboratórios que utilizam pesquisas etnofarmacológicas para o desenvolvimento de seus produtos, obtêm tais informações com base na literatura e bancos de dados, ao invés de enviarem pesquisadores a campo para resgatar o conhecimento de determinado grupo humano. Neste sentido, os lucros oriundos do desenvolvimento de tais drogas não consideram a população que, de alguma maneira, forneceu suas informações. Apesar disso, as vantagens oriundas desse desenvolvimento são consideráveis 2. A Etnobotânica pode ser definida como o estudo das relações entre povos e plantas. Já a Etnofarmacologia é “a exploração científica interdisciplinar dos agentes biologicamente ativos, tradicionalmente empregados ou observados pelo homem” 3. A Etnofarmacologia não trata de superstições, e sim do conhecimento popular relacionado a sistemas tradicionais da medicina. Para apreciar o conhecimento popular é preciso admiti-lo como tal ― um corpo de conhecimento, um produto do intelecto humano ― e não pode ser preconceituoso. Argumenta-se que a cultura popular identifica sintomas, mas não caracteriza ou entende as doenças; conclui-se, por isso, que tais informações não servem de base útil ao desenvolvimento de novos medicamentos. Trata-se afinal de cultura popular ou ciência? O que torna o conhecimento tradicional de interesse para a ciência é que se trata de relatos verbais da observação sistemática de fenômenos biológicos, feitos por pessoas quiçá freqüentemente iletradas, mas algumas tão perspicazes como alguns cientistas. A ausência de educação e cultura formais não implica em ausência de saber 4. Fig. 6 Etnomafarmacologia A seleção de espécies vegetais para pesquisa e desenvolvimento (P&D), baseada na alegação de um dado efeito terapêutico em humanos, pode se constituir num valioso atalho para a descoberta de fármacos, uma vez que a Etnofarmacologia se baseia em informações de utilidade terapêutica e não em um determinado perfil fitoquímico das espécies o que, em tese, indicaria a possibilidade de interação com um determinado alvo biológico 3. Método Etnofarmacológico De maneira geral , um estudo etnofarmacológico envolve os seguintes passos: 1. Coleta e análise de dados etnofarmacológicos; 2. Identificação botânica, incluindo depósito de material testemunha em herbário; 3. Pesquisa bibliográfica em bancos de dados de química e biologia em geral, e de plantas medicinais em particular, tais como Chemical Abstracts, Biological Abstracts, Index Medicus, IPA, NAPRALERT, entre muitos outros. Os dados quimiotaxonômicos podem sugerir a presença de uma(ou mais) determinada classe de substâncias químicas, a(s) qual(is) torna(m)-se objeto de hipóteses quanto à possível participação na atividade biológica; 4. Análise química preliminar para detectar as classes de compostos presentes na parte da planta usada medicinalmente e na própria preparação tradicional; a interpretação do significado químico do modo de preparo popular é útil na definição de marchas fitoquímicas para obtenção dos extratos iniciais, já que as substâncias ativas devem estar presentes na preparação que é administrada aos usuários; Fig. 7 Análise química Fig. 8 Exemplo de estudo fitoquímico: Hedychium coronarium 5. Estudo farmacológico preliminar do(s) extrato(s) bruto(s) em modelos experimentais relevantes relacionados à(s) ação(ões) farmacológica(s) sugerida(s) pela análise da(s) informação(ões) popular(es); 6. Fracionamento químico por métodos diversos (cromatográficos, diferenças de solubilidade, gradiente de pH, cristalizações sucessivas,k etc.), monitorado com base nos resultados das análises farmacológicas; as frações de interesse farmacológico são mais profundamente estudadas com uso de técnicas analíticas (CCD, CG, CLAE, reações específicas); Fig. 9 CCD 7. Estudo farmacológico abrangente e toxicologia pré-clínica de frações padronizadas, e/ou compostos isolados,e/ou formulação farmacêutica a ser comercializada, com o objetivo de subsidiar estudos clínicos; 8. Elucidação das estruturas das substâncias ativas isoladas e/ou obtenção de derivados (UV, IV, RMN 1H e 13C, EM) orientam a farmacotécnica e o controle de qualidade químico/biológico, além de fundamentar futuros estudos farmacológicos com substâncias ativas semi-sintéticas 3. Fig. 10 Exemplo de RMN Não importa caracterizar exaustivamente o perfil fitoquímico da espécie o perfil químico da espécie vegetal em questão e sim identificar o(s) compostos responsável(is) pela atividade farmacológica ou efeito terapêutico. Outro ponto relevante seria que o estudo farmacológico completo só é realizado com a fração, composto ou preparação galênica que se pretende usar nos estudos clínicos. É absolutamente fundamental para a estratégia etnofarmacológica que se compreendam os conceitos do sistema do qual se obtêm as informações; observações fora do contexto são cientificamente inúteis. A Etnomedicina dedica-se ao estudo aprofundado de sistemas médicos enquanto sistemas culturais e mostra com conceitos médicos tradicionais se repetem (com variações locais) em diversas culturas. Já que os sistemas médicos são produtos de culturas específicas com enorme variação em termos de práticas e crenças de saúde, uma detalhada base etnofarmacológica é necessária para selecionar espécies que possam ser fontes de drogas eficazes transcuturalmente. A vasta gama de informações sobre o uso de centenas de plantas como “remédios” em todos os lugares do mundo leva à necessidade de se desenvolver métodos que facilitem a enorme tarefa de avaliar cientificamente o valor terapêutico de espécies vegetais 3. A maior parte da flora é ainda desconhecida químico/farmacologicamente, e o saber tradicional associado existem predominantemente em países em desenvolvimento. A perda da biodiversidade e o acelerado processo de mudança cultural acrescentam um senso de urgência no registro desse saber 4. A Etnofarmacologia e o desenvolvimento de fármacos Fig 11 Os medicamentos inovadores têm sido obtidos pela triagem intensiva de muitos compostos para uma outra atividade. Produtos naturais têm sido tradicionalmente empregados na identificação de receptores e na investigação de funções fisiológicas e patofisiológicas e de sítios de ação de fármacos. Fig. 12 Medicamentos A indústria farmacêutica considera razoável a relação de 1:10.000 entre compostos comercializado/estudados. De cada dez compostos descobertos, quatro seguem para a fase de desenvolvimento, enquanto uma taxa de 50% de desistência devido a efeitos a toxicidade/efeitos adversos, antes mesmo que uma fase clínica completa seja deslanchada4. No contexto do desenvolvimento de fármacos, o interesse em medicinas tradicionais praticamente resume-se as plantas neles usadas, na esperança de que ao menos em parte as que são utilizadas na preparação de remédios populares devem conter compostos químicos de interesse farmacêutico. A compreensão das profundas diferenças nos significados de saúde, doença e etiologias em termos farmacodinâmicos pode ser útil no desenvolvimento de novos paradigmas de fármacos e seus modos de uso e de ação. Os progressos em Farmacodinâmica estão constantemente revelando novos alvos celulares e moleculares relevantes para ação de fármacos; podese esperar que medicamentos tradicionais possam atuar como modificadores do curso natural de patologias por mecanismos fisiológicos que ainda sequer conhecemos 3. Conclusões e perspectivas A espécie humana se aproveita de uma fração muito pequena das plantas com as quais sempre conviveu e que a antecedem no planeta Terra. O reino vegetal ainda permanece como uma grande incógnita cujos mistérios começam a serem desvendados. Fig.13 Biodiversidade A humanidade, ao longo do tempo selecionou apenas cerca de 300 plantas para a alimentação e, de um pouco mais de uma centena, obteve princípios ativos puros para o tratamento de doenças. Estes números são bem modestos quando se está diante de um universo de aproximadamente 250.000 espécies de plantas superiores. Segundo estimativas recentes feitas por dois pesquisadores americanos. As florestas tropicais úmidas guardam apenas 328 drogas úteis à medicina. Se esta previsão for levada em consideração pela indústria farmacêutica. pode-se supor que as gigantes desse mercado não investirão na bioprospecção das florestas. porque o retomo financeiro é muito reduzido diante do volume de recursos necessários que devem ser investidos para um empreendimento dessa magnitude. A literatura cientítica está repleta de previsões como esta. cujo interesse maior parece ser definir valores econômicos para hectares de florestas de importância vital para a sobrevivência e bem estar das populações das nações desenvolvidas. Se for necessária a internacionalização de certas áreas de floresta. o preço da terra já foi calculado em bases científicas. Previsões à parte. uma verdade sobressai. Não pode existir vida na Terra sem a presença das plantas e, estudá-las, sob qualquer que seja a ótica cientítica, é parte do domínio da química de Produtos Naturais. Em futuro próximo, a humanidade terá ao seu dispor as biofábricas vegetais, onde cultivares de mamão ou bananas geneticamente modificadas. por exemplo, substituirão as fábricas de vacinas, no que será conhecido como setor agrocêutico. Arroz e soja transgênicos, além de resistentes a pragas, serão vitaminados. Os primeiros passos nessa direção foram dados com a decifração do código do mapa genético do arroz, a base da dieta de mais da metade da população mundial. Pode-se antecipar que solos contaminados com metais pesados e com material radioativo, hoje impossíveis de serem ocupados, serão descontaminados com plantas, no que já é chamado de fitoremediação, e que plantas substituirão os combustíveis fósseis como fontes renováveis de energia limpa. Os químicos de PN serão atores importantes no palco do futuro. O domínio das plantas vai ser possível quando o mundo mágico das enzimas for melhor compreendido e as vias metabólicas totalmente conhecidas. Expressar ou silenciar genes será atividade rotineira na biologia molecular. quando biólogos e químicos, em pareceria, perscrutarem o fundo das células vegetais vivas. seus núcleos, cromossomos e genes. Já se começou a caminhada nessa direção e a participação dos químicos de Produtos Naturais será cada vez mais importante para que esse caminho seja percorrido mais depressa. O domínio das técnicas analíticas e preparativas ele separação, tanto ele metabólitos secundários como de macromoléculas de plantas, como das técnicas de identificação dessas mesmas moléculas, é parte da rotina da química ele Produtos Naturais nos países industrializados. Isso não significa que a comunidade brasileira de química de Produtos Naturais abandone seus projetos ele bioprospecção de fármacos novos para se engajar nos megaprojetos de decifração de códigos genéticos ou deixe de procurar nas plantas a razão de sua resistência a pragas. Mas, também é imperativo que os grupos novos de fitoquímicos não se limitem a continuar fazendo o que aprenderam com seus mestres para deixarem de ser clones científicos. A história da QPN brasileira dos próximos 25 anos certamente terá outros narradores, que num exercício de futurologia traçarão outros cenários. Até lá pode-se esperar que a ciência retome seu caminho natural para melhor compreensão dos sistemas vivos e deixe de ser o grande balcão de negócios no qual vem se transformando, fator de hegemonia cada vez maior elas nações riCas. Seja qual for o cenário futuro é necessária a preservação das florestas e os químicos de Produtos Naturais têm obrigação de defendê-las para as próximas gerações, nem que seja para perpetuar a cultura de presentear o próximo com uma bela orquídea 1. REFERÊNCIAS (1) PINTO, A. C. , [et al]. Produtos naturais: Atualidade, Desafio e Perspectivas. Química Nova, vol.25, supl. 1, 45-91, 2002. (2) RODRIGUES, E.; CARLINI, E. L. A. Levantamentos Etnofarmacológicos: Sua importância no desenvolvimento de fitomedicamentos. Racine 70, Setembro/Outubro, 2002. (3) Farmacognosia: da planta ao medicamento, cap. 06 (4) ELISABETISKY, E. Etnofarmacologia. Cienc.Cult. vol.25 nº.3 São Paulo Julho/Setembro 2003. Fig. 1 disponível no dia 04/06/06 em: metadesign.com.br/.../ emb-panizza-conj.htm Fig. 2 disponível no dia 04/06/06 em: www.mma.gov.br/.../ fotos.cfm?mes=06&ano=2004 Fig. 3 disponível no dia 04/06/06 em: www.ib.unicamp.br/.../ Hypericum_brasiliense.html Fig. 4 disponível no dia 04/06/06 em: linnaeus.nrm.se/.../ hyperica/hyper/hypeper.html Fig. 5 disponível no dia 04/06/06 em: www.kulak.ac.be/.../ Fig. 6 disponível no dia 04/06/06 em: www.cordobaserrana.com.ar/ lafalda/pachamama.htm Fig. 7 disponível no dia 04/06/06 em: www.parana-online.com.br/ noticias/index.php?o... Fig. 8 disponível no dia 04/06/06 em: www.unir.br/.../ leandro%20Soares%20Moreira.htm Fig. 9 disponível no dia 04/06/06 em: www.itis-molinari.mi.it/. ../colori/crptlc.htm Fig. 10 disponível no dia 04/06/06 em: www.redpav-fpolar.info.ve/.../ m251a004.html Fig. 11 disponível no dia 04/06/06 em: www.pasteur-df.com.br/ pesquisa_clinica_destin... Fig. 12 disponível no dia 04/06/06 em: www.el-mundo.es/.../ 08/industria/1120843024.html Fig. 13 disponível no dia 04/06/06 em: www.mre.gov.br/.../ flortrop/biodiv/apresent.htm